'Madrinha do Carandiru': Rita Cadillac recorda curiosidades 20 anos após última transferência de presos; veja fotos | São Paulo | G1

Por Carlos Henrique Dias e Kleber Tomaz, g1 SP — São Paulo


Rita Cadillac no Carandiru brinca com detento, que tinha que tirar calcinha com a boca; havia outra peça íntima por baixo — Foto: Arquivo pessoal

A multidão eufórica de presos no pátio da Casa de Detenção, no Complexo do Carandiru, veste calças beges e canta "É Bom Para o Moral". No palco, a cantora e dançarina carioca Rita Cadillac sorteia um detento aleatório para ir à frente e tirar a calcinha da ex-chacrete com a boca. Só tinha um dilema: ele não tinha dente. Era apenas mais um dos inúmeros shows da “Madrinha do Carandiru”.

“Era uma brincadeira. Claro que eu estava de maiô e botava uma calcinha por cima e mandava o preso tirar com a boca, mas eu não ficava nua. Neste caso, fiquei sabendo que os internos o chamaram num canto e que ele teria faltado com respeito comigo. A diretoria toda falou assim: ‘Rita, pelo amor de Deus, vai lá porque o cara vai apanhar’. Ele fez tudo certinho, é que eu não sabia que ele não tinha dente”, relembra e ri durante entrevista ao g1 20 anos depois do fechamento do presídio.

Em setembro de 2002, o último grupo de presos foi transferido para outras unidades do interior. No mesmo ano, houve a demolição de parte da estrutura. Na área restante, foi construído o Parque da Juventude e uma Escola Técnica Estadual, em um memorial. Rita foi apenas uma vez ao local após a demolição.

“Não consegui ficar no parque, fui embora e nunca mais eu fui lá”, conta.

No dia da saída dos últimos presos, o diretor chamou a cantora. A movimentação foi acompanhada também pela imprensa. O repórter do Fantástico Maurício Ferraz fazia a cobertura na época. Ele tinha consigo uma câmera fotográfica e tirou fotos de uma mulher.

Foto de Rita Cadillac na saída dos últimos presos do Carandiru — Foto: Murício Ferraz/TV Globo

20 anos depois, o jornalista revelou ao g1 as imagens. Era Rita Cadillac no registro. Ela viu as fotos nesta semana pela primeira vez e comentou o que pensava naquele momento.

“Tristeza e um alívio, ao mesmo tempo, porque a gente sabia que aquilo ali era uma bomba. O Carandiru era uma bomba que estava para ser detonada a qualquer momento”, diz.

Rita Cadillac foi convidada a ver a saída dos últimos presos do Caradiru — Foto: Maurício Ferraz/TV Globo

Público diferente

O primeiro show de Rita dentro do cárcere foi no Rio de Janeiro, em 1983. Só em 1984 foi escalada para cumprir o contrato que tinha com uma gravadora e se apresentar no Carandiru.

“No Rio de Janeiro, eu achei horrível, muito, muito escuro. Era uma coisa fechada, sombria. Quando acabou o show, eu falei: ‘Nunca mais alguém vai me pegar para fazer cadeia’. Nunca tinha entrado numa cadeia. Surgiu o Carandiru e foi melhor, porque ainda tinha luz, era no pátio. A primeira pessoa que eu vi quando cheguei lá foi o cantor Lindomar Castilho. Deu um apertinho no coração.”

Em 1981, Lindomar assassinou a ex-mulher e também cantora Eliane de Grammont em um bar na Zona Sul de São Paulo.

Além dos presos, naquele dia a plateia era formada por visitantes, inclusive crianças. Foram cantadas cerca de cinco músicas num clima, segundo ela, de felicidade e descontração.

Ao fim, voltou para casa e no outro dia recebeu uma ligação da direção do Carandiru. Uma comissão dos presos tinha um convite: ser madrinha dos detentos.

“Falei: ‘Oi, o que é ser madrinha? Me explicaram que era simplesmente poder ir lá de vez em quando, quando tivesse campeonato de futebol, as festas e palestras. A partir desse dia, eu virei madrinha do sistema carcerário do Carandiru”, se recorda.

Aprensentação de Rita no Carandiru — Foto: Arquivo pessoal

‘Sempre respeitada’

A dançarina afirma que nunca se envolveu com nenhum preso ou funcionário do complexo e passou a participar de campanhas contra a Aids com o médico Drauzio Varella, que trabalhou por anos no complexo.

“Rasgava o saquinho da camisinha, sabe? E falava para eles, na palestra, que tinha que se preservar, porque havia muita doença lá dentro e tinha que pensar nas visitas, a família que estava lá fora.”

Rita afirma que foi um tempo de aprendizado, tentava não julgar e era respeita pelos detentos, que chegaram a preparar até uma festa de aniversário para ela com bolo, suco e presentes artesanais.

"Sempre fui muito respeitada, exatamente por eu respeitá-los. Claro que a gente sabe das atrocidades de muitos, assim como muitos que entraram lá dentro por roubar uma galinha ou até um erro judiciário”, comenta.

Dançarina posa para foto no pavilhão 4, onde hoje funciona uma escola técnica — Foto: Arquivo pessoal

Do ‘velho do Carandiru’ à falsa ‘velha’

O Velho do Rio, personagem de Osmar Prado na novela "Pantanal", que acabou na última sexta-feira (7), fez com que a artista se lembrasse de uma figura que a marcou.

Segundo ela, um homem andava com um cajado pela área do complexo e estava presos havia tempos. Sempre que estava para ser solto, arrumava confusão para não sair.

“Ele aprontava na porta para não sair. Batia em alguma agente ou em outro preso e ficava, porque o cara não tinha mais família aqui fora. Até agora, vendo a novela, me lembrei dele. Eu conversava com ele e com muitos presos. Me tornei até madrinha de filhos”, detalha.

Em outra situação, quando estava na saída, ela presenciou uma correria. Um dos internos se fantasiou de idosa e passou por todos os seguranças. No entanto, tropeçou ao passar na última etapa e perdeu o disfarce.

“Saiu de boa no último portão. Quando abriu o portão, que era para ele sair, deu uma tropeçada. Imagina a cena, o cara vestido de mulher, de peruca, de vestido. Eu caí na gargalhada, e os guardas o seguraram.”

Os shows eram, geralmente, no Natal e na festa do Dia das Crianças, conta Rita. A madrinha marcava presença também no júri de festivais e em desfiles.

“A diretoria me falava que depois daquela troca de energia durante o show, por pelo menos uns 45 dias tudo ficava calmo, relaxado”, revela.

Matança de 111

Complexo Carandiru — Foto: João Wainer/Espaço Memória Carandiru

Quando ligou a televisão em 2 de outubro de 1992, ela se deparou com uma rebelião e matança de 111 presos pela Polícia Militar. Ela afirma que demorou para retornar depois do massacre.

“É uma coisa muito ruim você saber o que teve lá e começou a ficar uma coisa mais perigosa. Comecei a fazer muito mais outros presídios.”

Atualmente, os sobreviventes continuam sem algumas respostas. Entre elas, quando os responsáveis serão punidos. As investigações apontaram que 330 policiais militares participaram da incursão com 25 cavalos e 13 cachorros. Três décadas depois, o caso ainda se arrasta na Justiça.

Policiais Militares entram armados no Carandiru em 1992 — Foto: Reprodução/Arquivo/GloboNews

“Quando saiu o último 'bonde' [grupo de presos], foi uma coisa, um sentimento estranho, que foi um sentimento de ‘acabou’ e, ao mesmo tempo, de saudade. Não pensei que fosse chegar ao ponto de acabar de verdade. Só acreditei quando acabou quando realmente teve a implosão e gravamos o filme.”

Com direção de Hector Babenco, o fime "Carandiru", de 2003, baseado no livro "Estação Carandiru", de Drauzio Varella, contou com a participação de Rita.

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