a
democracia
e educação
editora nacional
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01291/82
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ii.uuLiiaaaes pedagrógricas -volume21
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CIP-Brasil. Catologação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP
Dewey, John, 1859-1952.
. Democracia e educação : introdução à filosofia da educação /
John Dewey ; tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. —
4. ed. — São Paulo : Ed. Nacional, 1979.
(Atualidades Pedagógicas ; v. 21)
í. Educação 2. Educação — Filosofia I. Título. II. Série.
CDD-370
78-1392
-370.1
D513d
4.ed.
índices para catálogo sistemático:
1. Educação 370
2. Educação : Filosofia 370.1
3. Filosofia da educação 370.1
/l
JOHN DEWEY
ATUALIDADES PEDAGÓGICAS
Volume 21
Direçáo de
J. B. DAMASCO PENNA
DEMOCRACIA
E EDUCAÇÃO
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
DA EDUCAÇÃO
Tradução de
GODOFREDO RANGEL
e
ANÍSIO TEIXEIRA
O
Estudo preliminar de
LEONARDO V AN ACKER
4.a edição
A relação completa dos livros publicados em
ATUALIDADES PEDAGÓGICAS
está no fim deste volume.
Título do original em língua inglesa:
01291/82
Democracy and education
íN
publicado por The Macmillan Company, New York.
De JOHN DEWEY,
nestas "Atualidades Pedagógicas":
Vol. 2 — Como pensamos, tradução e notas de Haydée Camargo Campos
Vol. 21 — Democracia e educação, tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira
Vol. 76 — Vida e educação, tradução e estudo preliminar de Anísio Teixeira
e na "Biblioteca Universitária":
Série 1.*, vol. l — A filosofia em reconstrução, nova
tradução de António Pinto de Carvalho, revista
por Anísio Teixeira
Apresentação da 4." edição
XI
"Dewey e dois de seus livros" (Estudo preliminar, de Leonardo
Van Acker)XIII
Apresentação da í." edição
XXIII
Prefácio da 7.° edição
XXVII
Cap. l — A educação como necessidade da vida
1. A renovação da vida pela transmissão
2. Educação e comunicação
3. O papel da educação formal
Resumo
I
4
6
10
Cap. 2 -r- A educação como função social
1.
2.
3.
4.
Natureza e significação do meio
O ambiente social
O meio social como fator educativo
A escola como ambiente especial
Resumo
II
13
17
20
24
Cap. 3 — A educação como direçào
Proibida a reprodução, embora parcial,
e por qualquer processo,
sem autorização expressa dos Editores.
1. O meio como o fator de dircção
2. Modalidades de dircção social
3. A imitação e a psicologia SOCÍA!
4. Aígumas aplicações à educação
Rcsiuna
Cap. 4 — A educação como crescimento
1.
2.
3.
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639
01212, São Paulo, SP
a propriedade desta tradução.
25
28
36
39
42
Condições do crescimento
Os hábitos como manifestações de crescimento
A significação educacional do conceito do desenvolvimento
Resumo
44
49
53
56
Cap, 5 — Preparação, desdobramento e disciplina formal
1.
2.
3.
A educação como preparação
A educação como desdobramento
A educação como o adestramento das faculdades . . . .
Resumo
58
60
65
73
Cap. 6 •— A educação conservadora e a progressiva
1979
Impresso no Brasil
1.
2.
A educação como formação
A educação como recapítulação e retrospecção
75
78
3.
A educação como reconstrução
Resumo
82
Cap. 7
1.
2.
3.
4.
5.
— A concepção democrática da educação
O que subentende a associação humana
O ideal democrático
A filosofia educacional platónica
O ideal "individualista" do século XVIII
A educação sob o ponto de vista nacional e social
Resumo
87
93
94
98
Cap. 8
1.
2.
3.
— Objetivos da educação
A natureza de um objetivo
O critério para o conhecimento dos bons objetivos
Aplicação à educação
Resumo
Cap. 9 — O desenvolvimento natural e a eficiência social
como objetivos
1. O objetivo fornecido pela natureza
2. A eficiência social como o objetivo da educação
3. A cultura como o objetivo da educação
Resumo
100
106
108
112
115
119
121
129
132
134
Cap. 10 — Interesse e disciplina
Significação das palavras interesse t e disciplina
A importância da ideia do interesse da educação
Alguns aspectos sociais da questão
Resumo
136
142
148
150
Cap. 11 — Experiência e pensamento
1. A natureza da experiência
2. A reflexão na experiência
Resumo
Cap. 12 — O ato de pensar e a educação
1. A essência do método
Resumo
Cap. 13 — A natureza do método
1. A unidade da matéria e do método .. ..
2. Método geral e método individual ....
3. Os característicos do método individual
Reswnw
,
152
158
165
167
179
181
187
190
198
Cap. 14 — A natureza da matéria de estudo
1. A matéria para o educador e para o educando .
2. O desenvolvimento da matéria para o educando
199
203
Cap. 15 — O brinquedo ou o jogo e o trabalho no currículo
1. O papel das ocupações ativas na educação
2. Ocupações proveitosas
3. Trabalho e jogos
Resumo
214
216
223
226
Cap. 16 — A significação da geografia e da história
1. Extensão da significação das ntividades primárias ..
2. A natureza complementar da História e da Geografia
3. A Histór ía e a presente vida social
Resumo
228
231
235
239
Cap. 17 — As ciências no currículo
1. O lógico e o psicológico
2. A ciência e o progresso social
3. O naturalismo e o humanismo na educação
Resumo
241
245
251
253
Cap. 18 — Valores educacionais
l. A natureza do senso do real ou da apreciação direta
2. Os valores dos estudos
3. A segregação e a organização dos valores
Resumo
254
261
267
273
Cap. 19 — Trabalho e lazer
1. A origem do antagonismo
2. A situação atual
l\csnmo
275
280
286
Cap. 20 — Estudos intelectuais e estudos práticos
1. O antagonismo entre a experiência e o verdadeiro
conhecimento
2. A teoria .moderna sobre a experiência e o -conhecimento
3. A experiência como experimentação
Resumo
292
298
303
Cap. 21 — Estudos físicos e estudos sociais. Naturalismo e
humanismo
1. Os antecedentes históricos do estudo de humanidades
2. Moderno interesse científico pela natureza
3. O atual problema educacional
Resumo
305
309
314
319
288
Cap. 22 — O indivíduo e o mundo
1, O espírito, como puramente individual
2, O espírito individual como agente de reorganização ..
3, Equivalentes educacionais
Resumo
,..,
321
324
332
336
Cap. 23 — Aspectos vocacionais da educação
1. A significação da vocação
2. O papel dos objetivos -vocacionais na educação
3. Oportunidades e perigos atuais
Resumo
338
340
344
352
Cap. 24 — Filosofia da educação
1. Revisão crítica
2. A natureza da filosofia ... f
Resumo
354
356
365
Cap. 25 — Teorias do conhecimento
1. Continuidade vcrsus dualismo
2. Escolas de método
Resumo
366
372
378
Cap, 26 •— Teorias de moral
1.
2.
3r
4,
O interior e o exterior
O antagonismo entre o dever e o interesse
Inteligência e caráter
O social e o moral
Resumo
índice Analítico
380
385
389
392
469
397
APRESENTAÇÃO DA 4,a EDIÇÃO
Dois dos livros de John Dewey, dados à estampa nesta
coleção de "Atualidades Pedagógicas", Como pensamos (vol.
2) e Democracia e educação (vol, 21), um e outro clássicos
do pensamento filosófico e pedagógico de nossos dias, e esgotados, um e outro, há já algum tempo, voltam agora, com
esta reedição, às estantes de livrarias e bibliotecas. E voltam
enriquecidos do excelente estudo preliminar "Dewey e dois
de seus livros", de autoria do Professor Leonardo Van Acker.
O Professor Van Acker é belga de nascimento, e já em
1922 começou a lecionar na Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de São Bento, em São Paulo. É, aliás, cidadão brasileiro desde 1940 Doutor em filosofia e letras pela Universidade Católica de Lovaina, também se doutorou em filosofia
tomísta, no Instituto Superior de Filosofia da mesma universidade. Entre nós, a larga influência que seus aturados estudos
filosóficos e seu eminente professorado exerceram foi consagrada com o prémio "Moinho Santista" em filosofia, a ele
conferido em 1963._É membro do Instituto Brasileiro de Filosofia (São Paulo) e da Société Philosophique (Lovaina).
Do muito que tem escrito, destacam-se penetrante estudo sobre
as ideias de Bergson, A filosofia bergsoniana: génese, evolução
e estrutura gnosiológíca do bergsonismo (1959) e numerosos
trabalhos referentes à lógica clássica, assim formal como material; a respeito de Dewey, pensador que sempre lhe mereceu
particular atenção, um estudo sobre "A religião na evolução
do pensamento de Dewey", composto em sua língua natal
(1938) e, publicados em português, "Ciência e democracia em
John Dewey" (1943), "O naturalismo de John Dewey" (1957),
"Os valores na filosofia de John Dewey" (1961).
Os Editores
DEWEY E DOIS DE SEUS LIVROS
1. Nasceu John Dewey aos 20 de outubro de 1859 em
Burlington e faleceu a l de junho de 1952 em Nova York.
Depois de cursar os três graus do ensino na cidade natal, fez
o doutorado em filosofia na Universidade Johns Hopkins, em
Baltimore. Em 1884 começou a carreira de professor universitário no Michígan, continuando-a em 1894 na Universidade de Chicago, onde fundou uma escola primária experimental, e acabando-a no Teachers College da Universidade
Columbia, em Nova York (1905-1930). Viagens prolongadas na Inglaterra, Rússia, Turquia, no Japão e no México entrecortaram-lhe a docência nos Estados Unidos, mas lhe proporcionaram experiência direta da situação mundial.
Em filosofia, Dewey a princípio adotou o hegelianismo do
seu mestre, George Sylvester Morris; mas a influência do evolucionismo de Charíes Darwin e a da psicologia biológica de
William James levaram-no a elaborar uma filosofia pragmatista, que fez escola na América do Norte — a chamada "Escola de Chicago" — além de ganhar no Brasil um fervoroso
discípulo na pessoa de Anísio Teixeira, aluno de Dewey no
ano letivo de 1928-29 e um dos grandes pioneiros da reforma
pedagógica nacional no espírito do pragmatismo experimentalista e democrático-socialista.
2, Embora locutor de grande efeito soporífero (cf. John
Dewey, por Sidney Hook, N. Y., 1939, p. 21), Dewey foi escritor de extraordinária fecundidade, chegando a produzir, de
1898 a 1940, na razão de quase um livro por ano, como prova
esta lista, aliás incompleta, das obras publicadas: My pedagogic creed (1898); The school and society (1899); The chila
and the curriculum (1902); Studíes in logical theory (com ou-
XIV
tros, 1903); The school and the chila (1907); Ethics (com
J. H. Tufts, 1908, 1932); Moral principies in education
(1909); The influence of Darwin on philosophy and other
essays (1910); How we think (1910, 1933); Interest and
efjort'in education (1913); German philosophy and politics
(1915); Democracy and education (1916); Essays in experimental logic (1916); Creative intelligence (com outros, 1917);
Reconstruction in philosophy (1920); Human nature and conduct (1922); Lê dévelappement du pragmatisme amérícain
(1922); Experience and nature (1925); The public and its
problerns (1927); The quest for certainty (1929); An and education (1929); Soviet education (1929); Impressions of Soviet
Rússia and the revolutionary world, México, China, Turkey
(1929); Characters and events (2 vols. de artigos coligidos por
J. Ratner, 1929); The sources of a science of education (1929);
Individualism, old and new (1930); Philosophy and civilization (1931, 1939); An as experience (1934); A common jaith
(1934); Liberalism and social action (1935); Experience and
education (1938); Logic, the theory of inquiry (1938); Theory
of evaluation (1939); Freedom and culture (1940); Education
today (estudos coligidos por J. Ratner, 1940); Problems of
men (1946); Knawing and the known (com A. Bentley, 1949)
3. Não cabe aqui aprofundarmo-nos na análise da filosofia geral de Dewey, mas, antes, delinear-lhe a doutrina em
Democracia e educação (1916) e Como pensamos (1933),
sem preterir, naturalmente, os pressupostos filosóficos. São,
esses pressupostos, em resumo, os seguintes:
I. O pragmatismo (do grego: pragma — objeto de ação ou
práxis): a realidade é toda composta, não de seres estáticos
e isolados por diferenças hierárquicas de essência ou natureza,
mas, sim, de acontecimentos relacionados pelo dinamismo da
ação recíproca transformadora, intrinsecamente iguais e só diferentes pelo grau de eficiência ou capacidade de reconstrução
progressiva.
II. O experimentalismo: a tal dinamismo reativo universal
pode-se chamar "Experiência" no sentido genérico, do qual as
"experiências" humanas, como a vivência consciente e a "experimentação" científica, física, ou sociológica, não passam de
aspectos particulares.
XV
III. O princípio de continuidade: o pragmatismo e o experimentalismo implicam a "continuidade" ou identidade intrínseca e essencial entre a natureza cósmica e a experiência humana, entre pessoa e sociedade, entre os vários grupos e classes
sociais, entre o moral e o social, entre a atividade material ou
corpórea e a atividade espiritual, intelectual ou moral; pois
estas últimas não passam das funções mais altamente evoluídas
e eficientes da atividade material, controlando experimentalmente a matéria cósmica para a progressiva realização de uma
convivência humana plenamente participada ou democráticosocialista.
IV. Verdade como práxis: nesses termos, as ideias ou significados intelectuais (ideas, meanings) já não são entidades
imateriais e supra-sensíveis, mas hipóteses de solução de problemas e, portanto, instrumentos de ação material experimental
para resolvê-los (instrumentalismo}. Donde, a verdade da
ideia não passa da sua eficiência experimental ou cognitiva e.,
em última análise, da sua provada utilidade social ou moral.
V. Escola nova: donde resulta, enfim, a necessidade de reformar a fundo a escola tradicional, predominantemente passiva, dogmática, conservadora e elitista, em escola nova, radicalmente ativa ou crítico-experimental, progressiva e socialdemocrática.
4. Democracia e educação pretende fornecer as ideias pedagógicas e filosóficas adequadas a uma sociedade técnico-industrial que queira ser democrática de verdade, e não apenas
de nome. Parte do pressuposto de a sociedade só ser deveras
democrática se todos os membros lhe participam do bem comum em termos de igualdade, de modo a permitir a flexibilidade no reajuste das instituições e proporcionar uma educação,
tornando os indivíduos pessoalmente interessados na participação e no reajustamento da vida social, e mentalmente habilitados
a realizar mudanças sociais, sem provocar confusão e desordem
(cap. VII, resumo). Assim sendo, na autêntica educação democrática, as atitudes e disposições necessárias à continuação
sempre renovada e progressiva da vida social não devem resuJtar de mera transmissão direta de conhecimentos e emoções,
dos educadores aos educandos; mas hão de ser o fruto implícito ou indireto da participação de educadores e educandos
XVI
nas experiências do mesmo ambiente social. Quer dizer que
a escola não deve ser isolada da vida comum, mas tem de
simplificá-la, purificá-la e melhorá-la. Nela, a direçao dada
pelos educadores não deve ser baseada no prestígio ou na ascendência pessoal ou subjetiva destes, mas, sim, nos resultados
objetivos ou universalmente válidos da experiência comum, física, ou sociológica. Destarte, a educação será vida ou crescimento contínuo, e não apenas preparação para a vida adulta;
nem mero desenvolvimento ou formação mental subjetiva; nem
simples exercitação ou treino de faculdades ou capacidades especiais e isoladas e já adrede preparadas. Como processo contínuo de crescimento ou reconstrução da experiência socialmente
participada, a educação terá o seu fim em si mesma, não sendo
meio para fins diferentes e ulteriores. Será progressiva como
a própria vida e não regressão mental ao passado, nem recapitulação das fases culturais-históricas do mesmo. Será democrática, enfim, não reservada a classes privilegiadas; mas nem
por isso estreitamente individualista, e sim comunitária, no
sentido da participação enquanto possível extensa dos interesses
do grupo por todos os respectivos membros e da interação
enquanto possível plena e livre entre os vários grupos (caps.
I-VII).
5. Quais, agora, os objetivos (aims) concretos e peculiarmente acentuados em que se traduz esse fim (end) global de
educação social-democrática? Em primeiro lugar, tais objetivos devem ser projetos inteligentemente concebidos e executados; portanto, não rigidamente impostos de fora, de modo a
tornar impossível a livre escolha e experimentação de meios
e resultados adequados e desejáveis Além disso, não devem
ser objetivos unilaterais e conflitantes, mas organicamente coordenados. Assim, por exemplo, o desenvolvimento das apti/ does naturais ou a cultura intelectual devem ser objetivos coordenados com o da eficiência social; e, reciprocamente, esta
última não pode deixar de ser vazia se não implica cultura
intelectual e desenvolvimento das aptidões naturais. Do mes( mo modo, a experiência, ou experimentação, deve ser metodicamente guiada pelo pensamento lógico; do contrário, é feita
à toa, sem reflexão inteligente, sem coerência, nem validade
cognitiva, nem utilidade social. (Por isso Dewey escreveu o
livro: Como pensamos.}
XVII
S
S
Entre matérias e métodos de estudo e ensino deve haver
correlação tão natural e profunda como entre a inteligência e
o mundo real. Há, por certo, necessidade lógica e pedagógica
de dividir as várias disciplinas; mas não devem ser aprendidas
ou ensinadas em isolamento da sua base social comum que é a
experiência da humanidade. Tampouco deve haver separação
completa entre o trabalho do estudo e o divertimento do jogo,
porque, aplicado ao jogo, o trabalho se torna interessante e
artístico; ao £>asso que, absolutamente isolado do jogo, o trabalho torna-se tarefa imposta, prejudicada pela tendência natural à livre atividade lúdica, que não é mera excitação física,
mas atividade ou ocupação inteligente, visando a fins juntamente técnicos, estéticos e sociais. Donde a necessidade pedagógica de combinar o trabalho com o jogo e vice-versa. Enfim, o princípio geral de não-isolamento das matérias ou disciplinas da sua base social comum na experiência humana é
válido especialmente para a geografia e a história, que resumem
a experiência da humanidade no espaço e no tempo; bem como para as ciências físicas ou naturais, que são o resultado
lógico e cognitivo da luta dos homens para controlar o ambiente cósmico e assim fazer progredir a sociedade (caps.
vm-xvii).
6. Com respeito ao valor educativo das várias matérias de
ensino ou disciplinas, existe também a distinção pedagógica em
valores estéticos e utilitários, intelectuais e práticos, naturalísticos e humanísticos, culturais e profissionais. Entretanto, como
as disciplinas são correlativas, assim também não podem ser
mutuamente exclusivos os sobreditos valores pedagógicos. As
belas letras e artes, por exemplo, têm incontestável valor estético; mas este não lhes é exclusivamente próprio. Para quem
a estuda ou ensina com admiração e apreço, qualquer matéria
pode revestir-se de valor estético. Do mesmo modo, não há
conhecimentos teóricos ou "intelectuais" sem nenhum valor prático, nem disciplinas científico-naturais sem valor humanista
ou social, nem matérias culturais sem valor profissional, e reciprocamente. A distinção dos valores educativos, segundo
Dewey, não é de modo nenhum absoluta ou intrínseca, mas
relativa e extrínseca, devida a situações e fatores históricos e
sociais (cap. XIX, resumo).
O primeiro de tais fatores é a organização da antiga sociedade helénica, em que havia a classe dos senhores, donos
XVIII
exclusivos do lazer, além da classe dos escravos, adstritos unicamente aos trabalhos corporais. Por certo, aos senhores incumbiam as atividades políticas e militares, que em vez de
lazer lhes davam muito que fazer no serviço da pátria. Mas
essas ocupações ou profissões eram consideradas "liberais", ou
próprias de cidadãos ou.homens livres; por oposição às ocupações ou profissões chamadas "servis", por serem geralmente
relegadas aos escravos. Donde já se vê que entre o valor estético e o utilitário, entre o cultural e o profissional, não há
qualquer distinção absoluta ou intrínseca, mas só relativa a
circunstâncias históricas extrínsecas. Em sociedade genuinamente democrática, aliás, todas as profissões são consideradas
igualmente valiosas ou dignas, por serem todas serviços sociais
competentes, necessários e úteis à comunidade humana. Nenhuma profissão dispensa por completo o trabalho corpóreo, e
todas merecem a recompensa estética do lazer. Daí ser aceitável a chamada profissionalização do ensino, contanto que não
seja puramente tecnicista, mecanizadora, desumanizante ou dissocializadora (cap. XXIII, resumo).
Outro fator histórico, explicativo da separação entre o
valor naturalístico e o humanístico, é devido, em parte, ao conceito de "experiência" na antiga Grécia, onde a experiência significava "empeiria" rotineira1 e desprovida de ciência técnica;
e, em parte, ao humanismo esteticista do Renascimento, considerando as letras e artes antigas mais refinadas e humanas do
que as letras e-artes medievais e modernas. Donde resultou a
discriminação axiológica entre os estudos científico-naturais e
os estudos humanístícos, literários, filosóficos e histórico-sociais. Mas essa discriminação axiológica foi superada pelo
conceito moderno e contemporâneo de "experiência" como experimentação científica, levando a conhecimentos metodicamente comprovados. Nesses termos, a manipulação do mundo físico já não permite simples rotina empírica, mas adquire a
dignidade de ciência voltada para o controle da natureza, não
para servir interesses de classe, mas para promover o progressivo bem-estar de toda a comunidade humana.
O último fator histórico da discriminação dos valores educativos é a própria filosofia, mormente a moderna, marcada
pelo individualismo estreito, isolando o espírito do sujeito humano, não só do próprio corpo, mas até da natureza física,
bem como da convivência humana. Donde surgiram os pseudo-
XIX
problemas da oposição entre espírito e matéria, conhecimento
e realidade, experiência consciente e natureza física, liberdade
individual e obrigação social, etc. O que reforçou, em pedagogia, a oposição entre os valores educativos. Esse falso individualismo, com as suas péssimas consequências pedagógicas,
deve ser superado pelo verdadeiro individualismo, que sabe1
conciliar matéria e espírito, homem e natureza, liberdade individual e progresso social. Mas isso exige uma filosofia adequada, que seja, ao mesmo tempo, teoria geral da genuína
educação social democrática (caps. XVIII-XXIII).
7. Como todo pensamento, a filosofia visa a resolver situações perplexas oferecidas pela experiência, por definição do
problema, formação, discussão e experimentação das hipóteses
de solução. Objeto próprio do pensamento filosófico são as
situações perplexas e problemáticas da experiência social, como
sejam as oposições ou conflitos entre interesses e aspirações de
grupos. E, como o único meio de resolver tais oposições é a
modificação das disposições emocionais e intelectuais por meio
de educação apropriada, segue-se que a filosofia é a teoria orientadora da prática educativa deliberada em vista da realização
de uma sociedade deveras democrática.
Como vimos, a sociedade democrática genuína é caracterizada pela maior participação possível dos indivíduos na experiência do grupo e pela maior interação possível entre os
vários grupos. Por definição, tal sociedade rejeita todas as
divisões ou oposições tendentes a isolar pessoas ou grupos, de
modo a tornar-lhes o conhecimento unilateral, e a conduta
moral discriminatória e injusta. Daí vern que a sociedade integralmente democrática deve abandonar todas as filosofias que,
inspiradas em divisões sociais isolantes, propõem teorias gnosiológicas e éticas tecnicamente chamadas "dualistas", por causa das dicotomias separatistas que estabelecem entre matéria e
espírito, espírito e mundo exterior, experiência consciente e
natureza física, indivíduo e sociedade, etc. A filosofia deveras
democrática deve ser a da continuidade intrínseca ou absoluta
entre esses vários elementos separados ou isolados pelo dualismo filosófico. Para ela, tanto o conhecimento como a conduta
moral são intrinsecamente experimentais, pois é pela experimentação, corno atividade participada, que a sociedade progride na aquisição de conhecimentos objetivameníe válidos e
r
xx
XXI
que os indivíduos se vão socializando ou tornando universalmente humanos. Tal é, em resumo, a doutrina exposta em
Democracia e educação (cf. caps. XXIV-XXVI).
claro, em Fr. De Hovre, Ensaio de filosofia pedagógica., tradução de Luiz e J. B. Damasco Penna (Ed. Nacional, São Paulo,
vol. 95 destas "Atualidades Pedagógicas", 1969).
8. Enquanto esse livro é uma sociologia filosófica da
educação, Como pensamos oferece uma lógica pedagógica. Assunto básico desta última é a análise do processo real, e não
puramente formal, do pensamento "reflexivo" ou correio, levando a conhecimentos metódica e criticamente verificados, por
oposição ao pensamento irrefletido e incorreto, levando a posições precipitadas, dogmáticas, acríticas.
No processo do pensamento reflexivo, Dewey distingue
cinco fases, cuja sequência, por sinal, não é rígida: 1) situação
difícil ou perplexa; 2) definição da natureza do problema; 3)
sugestão de ideias como hipóteses de solução; 4) verificação
lógica ou raciocinativa (isto é, por ação interior de pensamento
ou imaginação) da consistência ou coerência das ideias ou hipóteses com os dados do problema, de modo a eliminar as
incompatíveis e selecionar a única coerente; 5) verificação experimental (ou seja por ação exterior) da única hipótese compatível. Tal é a ordem intelectual que deveriam seguir as aulas
escolares, com participação dos alunos e do professor, este último não como ditador, nem como simples aprendiz, mas como
orientador intelectual da experiência partilhada por todo o grupo. Com isso, a preleção expositiva não seria completamente
suprimida, mas conservada para/fornecer aos alunos as informações, aliás nunca dogmáticas, que eles por si mesmos não
podem conseguir, mas que são/necessárias à sugestão das ideias
ou hipóteses de solução. Estas últimas deveriam ser logicamente discutidas, bem como de fato experimentadas em comum, mormente para educar os alunos para o diálogo e o
convívio em sociedade genuinamente democrática.
De Democracia e educação, existe um comentário seguido, expositivo e crítico, de autoria do filósofo norte-americano,
idealista e hegeliano, Herman Harrel Horne, com o título de
A filosofia da educação sob o ponto de vista democrático,, traduzido por Adolpho Packer (Ed. Saraiva, São Paulo, 1938).
Em O poder da educação, de Theodore Brameld, traduzido por
Deny Félix Fonseca, encontra-se também uma crítica ao progressismo antifinafista e antropocêntrico de Dewey (Zahar Ed.,
Rio, 1967, p. 95-96). De toda a filosofia pedagógica deweyana, incluindo-lhe as raízes biográfico-existenciais e os postulados filosóficos gerais, apresenta exposição e crítica minuciosa,
precisa e concisa, o livro de Maria Isabel Moraes Pitombo, Conhecimento, valores e educação em John Dewey (Ed. Pioneira,
São Paulo, 1974). Da lógica e gnosíologia empirista de Dewey,
lêem-se crítica e apreciação interessantes em Miguel Reale, Experiência e cultura (Ed. Grijalbo-Edusp, 1977, cap. III, § 2).
Da ideia de verdade, pragmatista e experimentalista, há exposição e crítica sucinta e cerrada em Ruy Afonso da Costa Nunes,
A ideia de verdade e a educação (Ed. Convívio, São Paulo,
1978, cap. VI). Finalmente, há uma crítica interessante e implícita ao indutivismo empirista na lógica e na teoria da aprendizagem deweyanas, bem como ao antidogmatismo radical e
progressista de Dewey, em Karl Popper, Lógica da pesquisa
científica (Ed. Cultrix-Edusp, 1975) e Autobiografia intelectual
(Ed. Cultrix-Edusp, 1977, §§ 10-20), ambas traduções de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Motta.
9. Até aqui, a exposição da doutrina de Dewey nas duas
obras sobreditas. È o que nos cabia nesta sucinta introdução,
sem entrarmos na crítica do pensamento deweyano. Entretanto, ao leitor desejoso de estudar essas obras com ponderação
crítica, achamos conveniente indicar as seguintes fontes, todas
elas publicadas em português.
Sobre Dewey como filósofo e pedagogista reformador, há
um estudo breve e vivo, bem documentado e extremamente
10. Por último, gostaríamos de salientar a oportunidade
da reedição destas duas obras de John Dewey, sempre muito
influente nos meios pedagógicos. Por certo, atualmente, já não
tem o eminente pensador norte-americano o cartaz que tinha
no Brasil, nas décadas de 1930 a 1950. Para os marxistas militantes, o socialismo dele não passa de pragmatismo burguês,
cientificista, individualista e utilitário Para os cristãos, mormente os católicos, a sociedade democrática por ele concebida
não é integralmente humana, porque repudia no homem a tendência natural para o Ser, o Viver e o Valor Infinito, sem o
qual a contínua reconstrução da experiência humana fica defí-
XXII
nitivamente sem sentido adequado às aspirações do homem.
Apesar de todas essas censuras, é inegável em Dewey o intuito
de promover entre os homens a grande comunidade fraternal,
para além do individualismo egoísta e libertário, bem como do
comunismo coativo e totalitário. Foi esse intuito sincero que
lhe inspirou muitas ideias e recomendações intrinsecamente valiosas e duradouramente atuais, como sejam estas duas: 1) não
há democracia autêntica sem indivíduos mentalmente capazes
de colaborar para o bem comum e cfe mudar as estruturas sociais, não introduzindo confusão ou desordem; 2) nem há democracia genuína sem educação do pensamento reflexivo, capaz
de discussão objetiva e prova experimental, avesso ao debate
emocional, à precipitação confusionista e à mania de improvisação. São essas duas ideias que encarecidamente propomos à
benevolente reflexão de todos os patriotas brasileiros, mormente os jovens, sinceramente empenhados em instaurar neste Brasil
uma comunidade realmente democrática, fraternal e integralmente humana.
São Paulo, maio de 1979.
Leonardo Van Acker
APRESENTAÇÃO DA l.a EDIÇÃO
Reputo a versão em língua portuguesa deste grande
livro de JOHN DEWEY — o seu melhor livro sobre educação,
na opinião do próprio autor — como uma inestimável contribuição à cultura popular brasileira.
Na justificada e explicável confusão de pensamento, em
que se encontra o país, confusão que é aumentada pela arrcgitnenlação que se vem ultimamente realizando de quanto dogmatismo serôdio se encontra para lutar, por esse meio inoperante,
contra, a própria perplexidade ambiente — «5o sei de livro
mais salutar e mais promissor. Com efeito, o leitor encontrará
nas suas páginas a revelação — e nada menos é preciso para
o Brasil, hoje — do que é a democracia e dos meios de realisá-la. A teoria simplista e tão largamente utilizada e explorada pelos seus inimigos, de que a democracia é mera- forma
de governo e forma de governo que falhou ou vem falhando,
fica inteiramente destruída com a- compreensão ampla e profunda qiíe nos transmite DEWEY da verdadeira democracia.
Mas, não é só. A obra de DEWEY é a mais sólida e a.
mais convincente das reivindicações do pensamento moderno,
no sentido de demonstrar a sua inalterável continuidade com
todo o pensamento da humanid-ade e a sua vigorosa capacidade
de restaurar e revitalizar todos os valores morais e espirituais
indispensáveis à vida do homem.
Tanto vale dizer que a sua obra é obra de conciliação
e de síntese e não de divisão ou combate. A confusão de
pensamento a que aludimos é sobretudo originária de uma
inacreditável fragmentação da cultura. Essa fragmentação
é, por sua vês, proveniente da penetração, cada vês mais
impetuosa, de fórmulas novas de pensamento nas velhas
fórmulas herdadas de outras idades. Enquanto foi possível
conservarem-se isoladas e limitadas essas novas contribuições
e, por esse meio, guardar e acautelar os moldes amados e
admirados da velha cultura moral e espiritual, o equilíbrio foi
mantido. Tempo chegou, porém, em que não era mais possível persistir tal regime de transigência e pás condicional.
Sobreveio, então, a confusão moderna e, para curá-la, os
XXIV
remédios violentos e antagónicos. Restauração do velho pensamento, harmonioso e adequado nas idades a que serviu, mas
ineficaz, insuficiente e contraditório nos dias de hoje; ou
imposição imediata de uma nova ordem, totalmente nova, com
valores novos e novas instituições. O diagnóstico do erro de
ambas as soluções é fácil de faser: só a golpes de espada
pode qualquer delas ser, não digo cumprida, mas simplesmente
tentada.
Ao invés disso, o que urge é um estudo das condições
atuais e dos desajustamentos atuais, para traçar o programa
da reconstrução indispensável à integração do presente estado
de coisas. Nem restauração do passado nem imposição de
íím futuro ainda inexistente. Mas, revigoraçâo de tudo do
passado que ainda for útil e operante e readaptação de tudo
que for novo e eficaz, em uma- contextura que não será integralmente nova senão porque será integralmente viva e
orgânica.
Ê essa obra de análise, de balanço e de equilíbrio que
DEWEY realiza magistralmente. Na superfície acidentada do
pensamento contemporâneo, ele ó um restaurador de unidade.
O vigor e a. frescura de seu- pensamento têm a atração
e o Ímpeto que caracterizam as reais contribuições da inteligência. Nem especiosidade, nem simplificações excessivas.
Nada dessa aparência miraculosa de certas mistificações doutrinárias contemporâneas. Poucos pensamentos estão alicerçados em um tão sólido bom senso e tão inalterável equilíbrio.
DEWEY se filia, por esse modo, à grande linhagem de pensadores
que não vem acrescentar aos conflitos e às divisões entre os
homens, mas revelar a possível conciliação de suas querelas,
desde que desejem elevar-se um pouco i-nais adiante dos seus
interesses imediatos. Não é demais insistir no caráter conciliante e reintegrador do pensamento deweyano, sobretudo em
momento, como o nosso, em que a maior necessidade nacional
é a de uma- nova síntese para 'pacificar e dirigir os espíritos
em perturbação.
Se assim é em relação à cultura geral, o que não dizer
em relação à cultura pedagógica, em particularf
Se, por um lado, a educação nada mais é que um campo
de aplicação dos princípios e fórmulas da cultura geral, por
outro lado não é menos verdade que se essa cultura geral
se f as confusa, perplexa e contraditória, em nenhum outro
lugar se torna mais indispensável, por isso mesmo, a ne-
XXV
cessidade de claresa e coerência, tão aumentada fica a responsabilidade da educação nesses períodos de crise intelectual.
Dai provém a mair importância deste livro para os educadores
nacionais. Muitas das ideias aí expostas são familiares ao
meio pedagógico brasileiro, mas creio poder diser que nenhum
outro livro em português, presentemente, poderá, como este,
contribuir para explicar a origem e o alcance dessas ideias, os
seus corolários e consequências, bem como o seu lugar no
contexto geral do pensamento humano.
É um tratado de educação que, sob diversos aspectos,
representa uma suma moderna dos conhecimentos pedagógicos. Nem outra ê mesmo a sua intenção profunda, compreendendo como compreende DEWEY a filosofia como a investigação e a descoberta das soluções dos conflitos, antíteses,
antagonismos e perplexidades que atormentam o espírito em
cada 'momento da história.
DEWEY é, hoje, considerado no mundo como o filósofo
da democracia. Coube a ele desenvolver em todas as suas
possibilidades e consequências o ideal democrático, em face
das condições modernas da ciência e do mundo. Não se trata
de uma exposição acidental e provisória, mas da análise das
suas premissas definitivas e da descoberta do método adequado de lidar com os seus problemas e as suas dificuldades.
O Capítulo de Educação, que não faltou a nenhuma das
grandes filosofias operantes que já teve a humanidade, e
que também não faltou à filosofia de JOHN DEWEY, é o que
é dado hoje, ao público brasileiro, neste livro fundamental.
Resta, tão-sornente, acentuar que, nascido no solo americano, filiado às mais legítimas fontes de seu pensamento e
adstrito às condições de vida do continente, temos o direito
de considerar nossa essa vigorosa e sadia formiifação dos novos
ideais humanos. O legítimo e largo humanismo que se plantou
nas terras novas e no novo clima social deste continente não
tem maior intérprete nem maior professor do que o autor
deste livro.
Possa o trabalho*aqui traduzido contribuir para dar sentido e direção às nossas próprias perplexidades, como está
contribuindo e tem contribuído, nos demais países americanos
e em quase todo o mundo ocidental, para orientar o pensamento
e a ação dos seus educadores.
ANÍSIO TEIXEIRA
São Paulo, 15 de janeiro de 1936.
PREFACIO DA l. a EDIÇÃO
Este livro é um esforço para penetrar e definir as ideias
implícitas em uma sociedade democrática e para aplicá-las aos
problemas da educação. A exposição inclui a indicação dos
fins e métodos construtivos da educação pública, encarados
desse ponto de vista, e ainda uma crítica das teorias do conhecimento e da moral, formuladas em condições sociais primitivas e que continuam a atuar nas sociedades nominalmente
democráticas, obstando a realização adequada do ideal democrático.
Como se verá, a filosofia exposta nas páginas deste
livro mostra o desenvolvimento democrático em suas relações com o desenvolvimento do método experimental nas
ciências, das ideias de evolução nas ciências biológicas e com
a reorganização industrial — e analisa as mudanças de matéria
e método na educação que esses desenvolvimentos determinam.
Testemunho o meu profundo reconhecimento ao DR.
GOODSELL do Teachers College pelas críticas que fez ao livro, ainda em original; ao Professor KILPATRICK, do mesmo
instituto, por críticas e sugestões em relação à ordem dos tópicos, de que largamente me utilizei; e a Miss ELSIE RIPLEY
CLAPP por muitas críticas e sugestões. Aos dois primeiros
indicados, também pelo trabalho de revisão das provas. Além
desses, sinto-me grandemente em dívida para corn uma série
extensa de estudantes, cujas sucessivas turmas se distribuíram
por mais anos do que os que desejo enumerar.
J. DUniversidade de Colúttibia, Nova Iorque
CAPÍTULO l
A educação como necessidade da vida
l. A renovação da vida pela transmissão. — A mais
notável distinção entre seres vivos e inanimados é que os
primeiros se conservam pela renovação. Ao receber uma
pancada, a pedra opõe resistência. Se a resistência for maior
do que a força da pancada, ela exteriormente não apresentará
mudança; no caso contrário se partirá em fragmentos menores
que ela. A pedra nunca procura reagir de modo a defender-se
contra a pancada e muito menos a tornar a dita pancada um
fator que contribua para a própria continuidade de sua açao.
Quanto à coisa viva, pode ser facilmente esmagada por uma
força superior, mas jamais deixa de tentar converter as
energias, que sobre ela atuam, em elementos favoráveis a sua
existência ulterior. Se não o consegue, não se fragmenta em
pedaços menores (pelo menos nas mais elevadas formas da
vida), mas perde sua identidade como coisa viva.
Durante toda a sua duração, ela esforça-se por tirar
proveito das energias que a cercam. Utiliza-se da luz, do ar,
da umidade e das matérias do solo. Dizer que as utiliza,
importa em reconhecer que as transforma em meios para sua
própria conservação. Enquanto se acha a crescer, a energia
que despende para tirar vantagens do ambiente é mais que
compensada pelo que obtém: ela cresce. Poderemos dizer
que um ser vivo é aquele que domina e regula em benefício
de sua atividade incessante as energias que de outro modo o
destruiriam. A vida é um processo que se renova a si mesmo
por intermédio da ação sobre o meio ambiente.
Em todas as formas elevadas de vida este processo não
pode continuar-se indefinidamente. Após algum tempo elas
sucumbem: morrem. A criatura não é apta para o trabalho
de uma indefinida auto-renovação. Mas a continuidade do
processo da vida não depende da promulgação da existência
de nenhum indivíduo. Prossegue, em incessante sequência,
2
Democracia e educação
A educação como necessidade da vida
a reprodução de outras formas vivas. E apesar de morrerem
não só os indivíduos, como também as espécies, consoante nos
mostra a geologia, a vida persevera em formas cada vez mais
complexas. Ao passo que se extinguem algumas espécies,
surgem outras mais aptas a se utilizarem dos obstáculos contra
os quais as extintas lutaram em vão. A continuidade da vida
significa uma contínua readaptação do ambiente às necessidades
dos organismos vivos.
Falamos sobre a vida em sua significação menos elevada
— como uma coisa física. Mas empregamos a mesma palavra
para indicar toda a extensão da experiência do indivíduo e
da espécie. Ao deparar-nos o livro Vida de Lincoln sabemos
não se tratar de uma obra sobre fisiologia e sim de uma
exposição dos antecedentes sociais de seu tempo, de uma
descrição do meio de seus primeiros anos de vida, da condição
e ocupações ct)e sua família; dos principais episódios do
desenvolvimento de seu caráter; de lutas e realizações notáveis;
e de suas esperanças, gostos, venturas e sofrimentos individuais.
De modo exatamente semelhante reíerjmo-nos à vida de uma
tribo selvagem, do povo ateniense, da nação americana. "Vida"
subentende costumes, instituições, crenças, vitórias e derrotas,
divertimentos e ocupações.
Empregamos a palavra "experiência" com a mesma
riqueza de sentido. E, a isto, assim como à vida em sua mera
significação fisiológica, se aplica o princípio da continuidade
por obra da renovação. Com o renovar da existência física,
também se renovam, no caso de seres humanos, as crenças,
ideais, esperanças, venturas, sofrimentos e hábitos. Assim se
explica, com efeito, a continuidade de toda a experiência, por
efeito da renovação do agrupamento social. A educação, em
seu sentido mais lato, é o instrumento dessa continuidade
social da vida. Todos os elementos constitutivos de um grupo
social, tanto em uma cidade moderna como em uma tribo
selvagem, nascem imaturos, inexperientes, sem saber falar,
sem crenças, ideias ou ideais sociais. Passam com o tempo os
indivíduos, passam, com eles, os depositários da experiência
da vida de seu grupo, mas a vida do grupo continua.
Os fatos primários e inelutáveis do nascimento e da morte
de cada um dos componentes de um grupo social determinam
a necessidade da educação. Por um lado, existe o contraste
entre a imaturidade dos recém-nascidos membros do grupo
— seus únicos futuros representantes — e a maturidade dos
membros adultos, que possuem os conhecimentos e seguem os
costumes do referido grupo. Existe, por outro lado, a
necessidade de que não somente sejam fisicamente conservados
em número conveniente esses membros imaturos, como também
de que se iniciem nos interesses, intuitos, conhecimentos,
habilidades e costumes dos componentes adultos; e se assim
não fosse, findaria a vida característica dá comunidade.
Mesmo em uma tribo selvagem estão os seus membros
imaturos muito longe de poder praticar os trabalhos dos adultos,
se forem abandonados a si mesmos. Com o progresso da
civilização aumenta a distância entre a capacidade originária
do imaturo e os ideais e costumes dos mais velhos. Para
reproduzir-se a vida do grupo já não bastam o simples
crescimento físico e a consecução dos meios de subsistência.
Requer-se esforço deliberado e árdua reflexão. Os seres que
nasceram não só inscientes dos objetivos de seu grupo, como
também completamente indiferentes a esse respeito, precisam
conhecê-los e interessar-se ativamente pelos mesmos. A educação, e só a educação, suprime essa distância.
A sociedade subsiste, tanto quanto a vida biológica, por
um processo de transmissão. A transmissão efetua-se por
meio da comunicação — dos mais velhos para os mais novos
— dos hábitos de proceder, pensar e sentir. Sem esta comunicação de ideais, esperanças, expectativas, objetivos, opiniões,
entre os membros da sociedade que estão a sair da vida do
grupo, e os que na mesma estão a entrar, a vida social não
persistiria. Se os membros adultos de uma sociedade vivessem
indefinidamente, poderiam educar os novos membros mas seria
uma tarefa inspirada mais pelo interesse pessoal do que pelas
necessidades sociais. Como as coisas são, educar é uma questão de necessidade.
Se uma epidemia suprimisse de uma vez todos os membros de uma sociedade, é claro que esta desapareceria para
sempre. No entanto, sendo certa a morte de cada um de seus
membros, é como se uma epidemia os matasse a todos; mas
as diferenças de idade dos sobreviventes, o fato de alguns
nascerem enquanto morrem outros, torna possível a constante
reconstituição do organismo social por meio da transmissão
das ideias e dos costumes. Tal renovação não é, contudo,
automática. Se não nos esforçássemos para a efetuação
completa da transmissão mais necessária, a maioria dos indivíduos da comunhão civilizada soçobraria na barbárie e em
3
Democracia e educação
A educação como necessidade da vida
seguida no estado selvagem. De fato, os seres humanos novos
são tão incapazes que, abandonados a si mesmos, sem a direção
e o amparo dos mais velhos, nem mesmo adquiririam as habilidades rudimentares necessárias à existência material. Comparados com os filhos de muitos animais inferiores, os seres
humanos têm tão minguadas aptidões, que a própria habilidade requerida para a alimentação física precisa ser adquirida
por meio de ensino. Quanto mais no que diz respeito à aquisição das capacidades técnica, artística, científica e moral da
humanidade!
Não é por viverem em proximidade material que as pessoas constituem uma sociedade — e, semelhantemente, homem algum deixa de ser socialmente influenciado por estar
muitos palmos ou quilómetros distanciado dos outros. Um
livro ou uma carta podem estabelecer, entre seres humanos
afastados milhares de quilómetros um do outro, um elo mais
estreito do que o existente entre pessoas sob o mesmo teto.
Os indivíduos, também, não constituem, por outro lado, um
agrupamento social por trabalharem todos para um fim comum. As partes de uma máquina funcionam em conjunto
para a obtenção de um resultado comum, mas não formam
por isso uma comunidade. Se, entretanto, todas essas partes tivessem conhecimento do fim comum e se interessassem
na sua consecução, regulando, cada qual, com esse fito, sua
atividade especial, constituiriam então uma comunidade. Isto,
porém, envolveria comunicação. Cada qual precisaria saber
o que as outras tinham em vista; e precisaria também ter
meios de conservá-las informadas de seu próprio intento e do
andamento de seus trabalhos. Para tal consenso se requer
comunicação.
Somos assim forçados a reconhecer que, mesmo dentro
do grupo humano mais social, existem relações que não são
ainda sociais. Grande número de relações em todos os grupos sociais ainda se encontram no plano das peças das máquinas. Os indivíduos utilizam-se uns dos outros para obter
resultados desejados, sem atender às disposições emocionais
e intelectuais e ao consentimento' daqueles de quem se servem. Este uso subentende a superioridade física, ou de posição, habilidade, aptidão técnica e o domínio mecânico ou
financeiro da aparelhagem ou dos instrumentos de trabalho.
Enquanto estiverem neste pé as relações entre pais e filhos,
professores e alunos, patrões e empregados, governantes e
governados, não formarão eles verdadeiro grupo social, por
mais estreitamente que se toquem suas respectivas atividades.
Dar e receber ordens modifica a atividade e seus efeitos, mas
por si mesmo não constitui uma co-participação de escopos e
comunicação de interesses.
Não só a vida social se identifica com a comunicação de
interesses, como também toda a comunicação (e, por conseguinte, toda a genuína vida social) é educativa. Receber
a comunicação é adquirir experiência mais ampla e mais
variada. Participa-se assim do que outrem pensou ou sentiu
4
2. Educação e comunicação. — É em verdade tão
óbvia a necessidade de ensinar a aprender para a continuação da existência social, que há de parecer estarmos a repisar
desnecessariamente um lugar-comum. Justificamo-nos, porém, com a circunstância de que, com essa insistência, nos
libertaremos de uma noção imprópria escolástica e formal da
educação. As escolas são, com efeito, um meio importante
de transmissão para formar a mentalidade dos imaturos;
mas não passam de um meio •— e, comparadas a outros
agentes, são um meio relativamente superficial. Somente
quando nos capacitamos da necessidade de modos de ensinar
mais fundamentais e eficazes é que podemos ficar certos de
dar ao ensino escolar seu verdadeiro lugar.
A sociedade não só continua a existir pela transmissão,
pela comunicação, como também se pode perfeitamente dizer
que ela é transmissão e ê comunicação. Há mais do que
um nexo verbal entre os termos comum, comunidade e comunicação. Os homens vivem em comunidade em virtude
das coisas que têm em comum; e a comunicação é o meio por
que chegam a possuir coisas comuns. O que eles devem
ter em comum para formar uma comunidade ou sociedade
são os objetivos, as crenças, as aspirações, os conhecimentos
— um modo comum de compreender — mentalidade similar,
conforme dizem os sociólogos. Não se podem transmitir fisicamente tais coisas de uma a outra pessoa, do modo como se
passam tijolos de mão em mão; não se podem dividir, como
se parte um bolo em pedaços materiais. Para a comunicação
assegurar a participação em uma compreensão comum, necessitará assegurar análogas disposições emotivas e intelectuais
— isto é, modos análogos de reagir em face de uma atividade
em perspectiva e dos meios de realizá-la.
5
6
Democracia e educação
A ediicação como necessidade da vida
e, como resultado, se modificará um pouco ou muito a própria
atitude. E deste efeito não fica também imune aquele que
comunica. Tentai comunicar plena e cuidadosamente a outra
pessoa vossa experiência pessoal, principalmente em se tratando de algo complicado, que notareis mudar-se vossa própria atitude para com a referida experiência: a não ser que
tenhais recorrido a mera verbiagem bombástica. É mister,
com efeito, que se formule a experiência para que seja comunicada. Esta formulação requer colocarmo-nos fora da mesma,
vê-la como outra pessoa a veria, observarem-se os pontos de
contacto que ela tenha com a experiência pessoal da pessoa a
quem vai ser comunicada, a fim de ser apresentada em tal
forma, que a dita pessoa lhe apreenda a significação. A não
ser que se trate de lugares-comuns, precisamos conhecer, imaginando-a, a experiência de outras pessoas, para compreensivelmente lhe falarmos sobre nossa própria experiência. Toda
a comunicação é semelhante à arte. Por consequência, pode-se
perfeitamente dizer que, para aqueles que dela participam,
toda a prática social que seja vitalmente social ou vitalmente
compartilhada é por sua natureza educativa. Só quando lançada em um molde e tornada rotineira é que perde seu valor
educativo.
Em resumo •— não somente a vida social exige o ensino
e o aprendizado para sua própria continuação, como também
por si mesma é ela educativa. Amplia e ilumina a experiência ;
estimula e enriquece a imaginação ; gera o sentimento da responsabilidade. obrigando-nos a falar e a pensar com cuidado
e exatidão. Um homem que realmente vivesse só (mental ou
fisicamente) poucas ou nenhumas ocasiões teria oara refletir
sobre sua experiência passada ou para extrair-lhe a clara
significação. A desigualdade de eficiência dos adultos e dos
novos HPO só exige que se ensine a estes, como também a
necessidade deste ensino ê um poderoso estímulo para dar à
experiência ordem e forma que a torne mais facilmente
transmissível e, conseguintemente, mais utilizável.
mas não é o motivo expresso da associação. Pode-se, entretanto, dizer, sem exagero, que a medida do valor de qualquer instituição social, económica, doméstica, política, legal e
religiosa está em sua capacidade -de amplificar e ' aperfeiçoar a experiência, embora essa capacidade não faça parte
de seu motivo originário, que era mais restrito' e mais imediatamente prático. As associações religiosas começaram,
por exemplo, pelo desejo de garantir-se -o favor das potestades superiores e de preservar-se dos maus influxos; a vida
familiar, pelo desejo de saciar apetites-e assegurar a perpetuidade da família; o trabalho sistemático, em sua maior
parte, pela escravização a Doutras pessoas, etc. Só •lentamente
foi notado o subproduto da instituição, seu efeito sobre a
qualidade e a extensão da vida consciente e mais lentamente
ainda este efeito foi considerado como elemento orientador
do funcionamento da instituição. Mesmo hoje, em nossa vida
industrial, exceto quanto a algum merecimento na formação
de hábitos de diligência e de economia, pouca atenção é dada
em todo o mundo às reações intelectuais e emocionais provocadas pelas fornias de associação por que se conduz o trabalho
moderno, comparadas com a atenção merecida pela produção
material.
Mas, lidando-se com os mais novos, o fato associativo
aumenta de importância como fato humano. Se é fácil ignorarmos, em nosso contacto com eles, o efeito de nossos atos
sobre seu espírito, ou subordinar esse efeito educativo a
algum resultado externo e tangível, já não o é tanto quanto
ao se tratar com os adultos. É evidente a necessidade de
educar; demasiado urgente a necessidade de efetuar uma mudança em sua atitude e seus hábitos para que se possa deixar
de levar em conta as consequências. Desde que, em relação
a eles, nosso fim primacial é habilitá-los a participar da vida
em comum, não podemos deixar de examinar se estamos ou
não criando as aptidões que garantirão esse resultado. Se a
humanidade progrediu alguma coisa compreendendo que o verdadeiro valor de toda a instituição é seu efeito caracteristicamente humano — seu efeito sobre a experiência consciente —
podemos acreditar que esta lição foi, em grande parte, aprendida ao contacto com os jovens.
Somos assim levados a distinguir, dentro do vasto processo educacional que vimos considerando, uma espécie mais
formal de educação — a do ensino direto ou escolar. Nos
3. O papel da educação formal. — Existe, portanto. diferença bem acentuada entre a educação que se
granjeia a conviver com outras pessoas — enquanto verdadeiramente se convive, em vez de continuar-se apenas a viver
juntos — e a educação intencional dos mais novos. No •
primeiro caso a educação é casual; é natural e importante,
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8
Democracia e educação
grupos sociais não evoluídos encontramos muito pouco ensino
e adestramento formais. Para incutir nos mais novos as disposições necessárias, os povos selvagens contam principalmente
com os mesmos tipos de associação capazes de manter os
adultos fiéis à sua agremiação. Não usam artifícios especiais,
ou materiais, ou institutos de ensino, a não ser os que se
prendem às cerimónias de iniciação por meio das quais os
jovens se tornam plenamente membros da comunidade. Em
quase tudo eles contam com que os pequenos aprendam os
costumes dos adultos, adquirindo seu potencial de emoções
e seu lastro de idéras, participando daquilo que os mais velhos
fazem. Esta participação é, em parte, direta, associando-se às
ocupações dos adultos, o que lhes serve de aprendizado, e é,
em parte, indireta, por meio dos brinquedos — dramatizações
em que os meninos imitam os atos dos mais velhos, aprendendo assim a saber o que significam. Pareceria absurdo aos
selvagens reservarem algum lugar onde se cuidasse unicamente
de ensinar e aprender.
Mas, à medida que a civilização progride, aumenta a
diferença entre a capacidade dos mais novos e os interesses
dos adultos. Torna-se cada vez mais difícil aprender tomando parte direta na atividade dos mais velhos, salvo no caso
de ocupações muito elementares. Muito daquilo que os adultos
fazem torna-se-lhes tão remoto em significação, que os brinquedos-dramatízações se mostram cada vez mais inadequados
para reproduzir-lhes o sentido. A aptidão para participar
eficazmente .da atividade dos adultos dependerá, por isso, de
uma preparação anterior, na qual se tenha em vista esse fim.
Surgem então os fatores especiais — as escolas — e a matéria
determinada — os estudos. A tarefa de ensinar certas coisas
é cometida a um número especial de pessoas.
Sem essa educação formal é impossível a transmissão de
todos os recursos e conquistas de uma sociedade complexa.
Ela abre, além disso, caminho a uma espécie de experiência
que não seria acessível aos mais novos? se estes tivessem de
aprender associando-se livremente com outras pessoas, desde
que livros e símbolos do conhecimento têm que ser aprendidos.
Mas há grandes perigos nesta transição da educação indireta à formal. Tomar parte em atos reais, quer diretamente, quer simuladamente nos jogos, é coisa, pelo menos,
pessoal e interessante. Estas qualidades compensam, até certo
ponto, a escassez de oportunidades aproveitáveis. A educação
A educação como necessidade da vida
9
formal, ao contrário, se torna facilmente coisa distante e morta
—• abstrata e livresca, para empregarmos as palavras pejorativas habituais. Os conhecimentos acumulados das sociedades inferiores são, pelo menos, postos em prática; tornaramse-lhes feições características; existem com a profundidade de
significação que se prende a seu emprego nas urgentes necessidades de cada dia.
Mas, em uma cultura adiantada, muito do que se tem,
de aprender se encontra armazenado em símbolos. Achamonos longe, então, de sua aplicação a atos e objetos. Esse
material é relativamente técnico e superficial. Tomando como
craveira o tipo ordinário da realidade, é artificial também.
Pois a verdadeira craveira de valor é a conexão com os interesses práticos. Existem em um mundo à parte, não assimilado aos modos ordinários de reflexão e realização. O
perigo permanente, portanto, é que o cabedal da instrução
formal se torne exclusivamente a matéria do ensino nas escolas, isolado das coisas de nossa experiência, na vida prática.
Podem, assim, perder-se de vista os interesses permanentes
da sociedade. A preeminência é dada, nas escolas, exatamente
a conhecimentos que não são aplicados à estrutura da vida
social e ficam em grande parte como matéria de informação
técnica expressa em símbolos. Por esta forma chegamos à
noção ordinária de educação: a noção que ignora sua necessidade social e sua identificação com toda a associação humana
que influa na vida consciente e que a identifica, ao contrário,
com a aquisição de conhecimentos sobre matérias de interesse
remoto e com a transmissão do saber por meio de sinais verbais: a aquisição de letras.
Por essa razão, um dos mais ponderosos problemas
com que a filosofia da educação tem de arcar é o modo de
conservar conveniente equilíbrio entre os métodos de educação não formais e os formais, e entre os casuais e os intencionais. Quando a aquisição de conhecimentos e a aptidão
intelectual técnica não influem para criar uma atitude mental
social, a experiência vital ordinária deixa de ganhar maior
significação, ao passo que, na mesma proporção, o ensino
escolar cria homens meramente "eruditos", isto é, especialistas
egoístas. Evitar uma separação entre aquilo que os homens
sabem conscientemente por tê-lo aprendido por meio de uma
educação especial, e aquilo que inconscientemente sabem por
tê-lo absorvido na formação de seu caráter mediante suas ré-
Democracia e educação
lações com outros homens, torna-se tarefa cada vez mais melindrosa à proporção que se desenvolve, especializadamente, o
ensino.
Resumo. — É da própria essência da vida a luta para
se continuar a viver. Uma vez que esta continuação só pode
ser assegurada por meio de constante renovação, é a vida
um processo de auto r e novação. A educação é para a vida
social aquilo que a nutrição e a reprodução são para a vida
fisiológica. A educação consiste primariamente na .transmissão por meio da comunicação. A comunicação é o processo
da participação da .experiência para que se torne património
comum. Ela modifica a disposição mental das duas partes
associadas. Fato que mais facilmente se reconhece em se tratando com os imaturos, é que a importância de todos os modos
de agremiação humana está na proporção com que ela contribui para a melhoria da qualidade da experiência. É o
mesmo que dizer-se qxie, embora toda a organização social
produza efeito educativo, esse efeito começa a tornar-se parte
importante dos fins sociais, quando se tem em vista a associação dos elementos mais velhos com os mais novos. À proporção que a sociedade se torna mais complexa em estrutura
e recursos, aumenta a necessidade do ensino e aprendizado
formais ou intencionais. E quando progridem o ensino e
aprendizado formais, surge o perigo de criar-se indesejável separação entre a experiência adquirida em associações mais diretas e a adquirida nas escolas. Este perigo nunca foi maior
do que nos tempos atuais, em vista do rápido desenvolvimento,
nos últimos poucos séculos, dos conhecimentos e espécies de
aptidões técnicas.
CAPITULO 2
A educação como função social
1. Natureza e significação do meio. — Já vimos que
uma comunidade ou grupo social se mantém por uma contínua auto-renovação e que esta renovação se eíetua por meio
do crescimento educativo dos componentes imaturos do grupo.
Mediante vários fatores não intencionais ou voluntários, uma
sociedade transforma seus elementos não iniciados e aparentemente estranhos em ativos depositários de seus recursos e
ideais. A educação é, portanto, uma incentivação, um alimento, um cultivo. Todas essas palavras subentendem atenção a condições de crescimento. Como sinónimas de educar,
costumamos empregar em inglês palavras que significam elevar,
exprimindo-se assim a diferença de nível a que a educação visa
suprimir. Etimologicamente, a palavra educação significa
exatamente processo de dirigir, de conduzir ou de elevar. Se
tivermos em mente o resultado desse processo, diremos que a
educação é uma atividade formadora ou modeladora •— isto é,
modela os seres na forma desejada de atividade social. Neste
capitulo trataremos em linhas gerais do modo pelo qual um
grupo social conduz os imaturos à sua própria forma social.
Uma vez que o que se requer para isso é a transformação
da qualidade da experiência, para que nesta entrem os interesses, intuitos e ideias correntes no grupo social, o problema não
é,evidentemente, o da mera formação física. As coisas podem
ser materialmente transportadas no espaço; podem ser materialmente carregadas. Mas as crenças e as aspirações não
podem ser fisicamente extraídas e, depois, inseridas. De que
modo, então, se comunicam? Dada a impossibilidade do contágio direto ou da inserção material, nosso problema está em
descobrir o método pelo qual os seres humanos mais jovens
assimilam os pontos de vista dos mais velhos, ou pelo qual os
mais velhos tornam os jovens mentalmente semelhantes a eles.
Democracia e educação
A educação como função social
Em termos gerais o método consiste em provocar, pela
ação do meio, que as impõe, determinadas reações ou respostas. As crenças necessárias não podem ser embutidas a
força e as atitudes requeridas não podem ser plasmadas materialmente. Mas o meio, o ambiente particular em que o indivíduo vive, leva-o a ver e a sentir mais uma coisa do que
outra; leva-o a seguir certos planos com o fito de ter bom
êxito em suas relações com os outros; reforça-lhe algumas
convicções e enfraquece-lhe outras, como condição para obter
a aprovação de outras pessoas. Deste modo, põe-se a adotar
gradati vãmente certo modo de proceder, certas disposições
mentais para a ação. As palavras "ambiente" e "meio" denotam alguma coisa mais do que o lugar em que o indivíduo se
encontra. Indicam a particular continuidade entre o meio e
as próprias tendências ativas do indivíduo. Um ser inanimado
acha-se naturalmente em estado de continuidade com o seu
meio; mas as coisas que o cercam, a não ser metaforicamente,
não lhe constituem um ambiente, por isso que aos seres inorgânicos não importam as influências que os afetani. Ao contrário, certas coisas afastadas, no espaço e no tempo, de uma
criatura viva, especialmente de uma criatura humana, podem
constitui r-lhe com mais verdade o meio, do que as que estão
contíguas. As coisas pelas quais um homem varia é que
constituem seu verdadeiro ambiente. A atividade de um astrónomo varia em relação com as estrelas que observa ou a cujo
respeito faz cálculos. De tudo aquilo que o cerca, pois, é o
seu telescópio o seu meio mais chegado. O ambiente de um
antiquário, em sua qualidade de antiquário, consiste nas remotas
épocas da vida humana que o interessam e nos vestígios, inscrições, etc., por meio dos quais ele estabelece conexões com
aquela época.
Em suma — o meio ambiente consiste naquelas condições que desenvolvem ou embaraçam, estimulam ou inibem, a
atividade característica de um ser vivo. A água é o ambiente
do peíxe, por ser necessária à sua atividade — à sua vida.
O pólo norte é um elemento importante do meio de um explorador ártico, quer consiga ou não consiga atingi-lo, porque
determina seus atos, torna-os aquilo que distintamente são.
Exalamente porque vida não significa mera existência passiva
(a supor-se possível tal coisa) e sim um modo de proceder e
agir, — o ambiente ou o meio significa aquilo que influi nessa
atividade como condição para que se realize ou se iniba.
2. O ambiente social. — Um ser cuja atividade se
acha associada à de outros tem um ambiente social. O que
ele faz e pode fazer depende dos desejos, exigências, aprovação e reprovação dos outros. Um ser ligado a outros seres
não pode desenvolver a própria atividade sem tomar em linha
de conta a atividade dos outros. Esta constitui a condição
indispensável para a realização de suas tendências. Quando
se move, ele movimenta essa atividade alheia e vice-versa.
Conceber a possibilidade da atividade de um indivíduo como
consistindo em atos isolados seria o mesmo que tentar fazer
ideia de um comerciante a comprar e a vender, isolado dos
demais homens. É tão social o procedimento do industrial
quando se encontra só, em seu escritório, a traçar planos de
ação, como quando compra matérias-primas ou vende seus
artigos fabricados. Pensar e sentir desde que tenham qualquer
coisa a ver com ação associada à ação de outros é modo de
proceder tão social quanto á cooperação mais manifesta ou o
ato mais hostil.
• O que precisamos mais detidamente patentear é o modo
pelo qual o meio social desenvolve seus membros imaturos.
Não há grande dificuldade em ver-se como ele modela os
hábitos exteriores de ação. Até os cães e os cavalos têm
seus atos modificados pelo contacto com os seres humanos;
eles adquirem hábitos diferentes porque aos seres humanos interessa a referida mudança. Os seres humanos regulam os
atos dos animais, regulando os estímulos naturais que os
influenciam; por outras palavras — criando-lhes determinado
meio. Usam-se o alimento, o freio e as rédeas, os sons e os
veículos, para regular o modo por que se manifestam as reações naturais ou instintivas dos cavalgs. Agindo-se com firmeza para se provocarem certos atos, geram-se hábitos que se
manifestam com uniformidade igual ã dos estímulos que os
originam. Se pusermos um rato em um labirinto, de sorte a
só encontrar alimento se der certo número de voltas em determinado sentido, seus atos se modificam gradualmente até que,
pelo hábito, em se achando com fome, procede daquela forma,
de preferência a qualquer outra.
A atividade humana modifica-se de análoga maneira. Uma
criança que se queimou teme o fogo; se um pai preparasse as
coisas de modo que a criança se queimasse cada vez que tocasse em determinado brinquedo, essa criança aprenderia a
evitar esse brinquedo tão automaticamente como evitaria o
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14
Democracia e educação
fogo. Estamos, todavia, a tratar do que se pode chamar
adestramento, treino, para se distinguir do ensino educativo.
As mudanças consideradas o são mais de atos exteriores do
que de disposição mental ou emocional. A distinção não é,
contudo, muito grande. No espírito da criança pode gerar-se
violenta aversão não só por aquele brinquedo, senão também
pelas espécies de brinquedos que se lhe assemelhem. A aversão poderá persistir mesmo depois de esquecidas as primitivas
queimaduras; ulteriormente poderá chegar mesmo a inventar
alguma razão para explicar essa aversão aparentemente desrazoável. Em alguns casos, pois, a modificação dos hábitos
exteriores do proceder, por meio de mudança do ambiente,
que altere^ os estímulos da ação, também modifica a atitude
mental correspondente a essa ação. Isto, entretanto, não
acontece sempre; uma pessoa exercitada a desviar-se de um
golpe, desvia-se automaticamente sem qualquer correspondente
pensamento ou emoção. Precisamos, por isso, descobrir alguma diterença essencial entre o adestramento e a educação.
Podemos encontrar um fio condutor na circunstância de
que o cavalo não participa verdadeiramente da utilidade social
a que a sua atividade é destinada. Algumas pessoas podem
habituar o cavalo a praticar atos que são vantajosos a elas,
tornando vantajosa, também para o cavalo, a prática dos referidos atos fazendo-o ganhar o alimento, etc. Mas para o
cavalo, presumivelmente, não há outro interesse além deste.
Aquilo que o interessa é apenas o alimento e não o serviço que
está prestando. Não é % um companheiro em. uma atividade
associada. Se o fosse, ele.se empenharia na ação comum com
os mesmos interesses dos homens. Compartiria, também, das
suas ideias e emoções.
Ora, em muitos casos — muitíssimos — a atividade do
ser humano imaturo é simplesmente provocada para a aquisição de hábitos úteis. É mais adestrado como um animal
do que educado como um ser humano. Seus instintos ficam presos aos objetos que lhe originaram a dor ou o prazer.
Mas, para ser feliz ou evitar o desgosto do malogro, ele deve
proceder de modo agradável aos outros. Em outros casos,
porém, participa realmente da atividade comum. Modifica-se
então seu impulso originário. Não somente procede de um
modo que se harmoniza com a ação dos companheiros, como
também, procedendo assim, se despertam nele as mesmas ideias
e emoções que animam aqueles. Suponhamos que seja guerreira uma tribo. Os fins a que ela visa com seus esforços, as
A educação como junção social
15
realizações a que dá maior importância, são os que se relacionam
com a luta e com a vitória. A existência neste meio incentiva
as manifestações belicosas do menino, a princípio nos jogos e,
mais tarde, sendo bastante forte, em façanhas verdadeiras.
Quando luta, recebe aplausos e sobe no conceito geral; caso se
abstenha, é detestado, ridicularizado, cai no desfavor de todos.
Não admira, portanto, que suas originárias tendências e emoções belicosas se fortifiquem à custa das outras e que suas
ideias se voltem para coisas relacionadas com a guerra. Só
assim ele é perfeitamente reconhecido como um membro de
seu grupo. Desta maneira seus hábitos mentais se tornaram
gr a dati vãmente semelhantes aos de seu grupo.
Se formularmos o princípio envolvido neste exemplo,
notaremos que o meio social não implanta diretamente certos
desejos e ideias, nem se limita a .estabelecer meros hábitos
musculares de ação, como o ato "instintivo" de desviar-se de
um golpe. O primeiro passo consiste em estabelecer condições que estimulem certos modos patentes e tangíveis de
proceder; e o passo complementar é tornar de tal modo o
indivíduo participante ou companheiro na atividade comum
que ele sinta, como seus próprios, os triunfos e os maus êxitos
da mesma. Desde que esteja possuído da atitude emociona-l do
grupo, terá sempre o cuidado de procurar conhecer os fins
especiais a que o referido grupo aspira e os meios necessários
para garantir o triunfo. Por outras palavras — suas crenças
e ideais assumirão natureza análoga à dos demais de sua agremiação. E ele assimilará o cabedal de conhecimentos desta,
uma vez que conhecê-los contribui para o exercício da sua
atividade habitual.
A importância da linguagem para a aquisição de conhecimentos é, sem dúvida alguma, a causa principal da noção comum de que b conhecimento se pode transmitir diretamente de uma a outra pessoa. Figura-se-nos quase que,
introduzir uma ideia no espírito de alguém, seja como fazer
um som ferir os seus ouvidos. Desta maneira, a comunicação
do pensamento se assemelharia a um processo puramente físico. Mas se analisarmos o modo de aprender a linguagem,
veremos que ele confirma o princípio já estabelecido. Provavelmente se admitiria, com pouca hesitação, que uma criança
aprende, por exemplo, a ideia de chapéu, usando-o da forma
por que as outras pessoas o fazem: cobrindo com ele a cabeça,
dando-o a outras pessoas para o porem, vendo que, quando vai
16
Democracia c educação
sair, outros o põem na sua própria cabeça, etc. Todavia,
poder-se-á perguntar de que maneira esse princípio da atividade partilhada se pode aplicar à apreensão, por exemplo,
por meio da palavra falada ou escrita, da ideia de um capacete
grego, caso em que não se verifica nenhum uso direto. Que
atividade compartida existirá no aprender-se em livros a história da descoberta da América?
Uma vez que a linguagem tende a tornar-se o principal meio de aprenderem-se muitas coisas, vejamos o modo
por que ela atinge este resultado. A criança, naturalmente,
começa ouvindo simples sons, ruídos e modulações sem qualquer significação, isto é, sem exprimir para ela ideia alguma.
Os sons são precisamente uma espécie de estímulo para produzir-se reação imediata; alguns têm efeito tranquilizador,
outros tendem a fazer ficar alerta, e assim por diante. Os
sons da .palavra chapéu ficariam completamente sem sentido,
pareceriam ruídos inarticulados, se não fossem proferidos
quando associados a um ato de que se participa com alguma
outra pessoa. Quando a mãe vai levar a criança a passeio,
fala "chapéu" enquanto põe alguma coisa na cabeça do pequeno. Ser levado a passeio torna-se um interesse para este;
não só a mãe e o filho saem materialmente a passeio, como
se interessam ambos por esta saída, deleitam-se juntamente com
ela. Por essa associação com outros fatores em açãot os sons
de "chapéu" tomam logo para a criança a mesma significação
que têm para os pais; tornam-se um símbolo da atividade em que
ela toma parte. O simples fato de, que a linguagem consiste
em sons mutuamente inteligíveis basta para mostrar que sua
significação exige que haja uma experiência compartilhada.
Em suma — os sons do vocábulo '"chapéu" adquirem
sentido do mesmo modo que o adquire o objeto "chapéu",
por serem usados em determinadas situações. E tomam a
mesma significação para a criança e para o adulto por, serem
usados por ambos em um ato comum. A garantia para
a igualdade de uso está na circunstância de que a coisa
e os sons foram primeiro empregados em uma atividade conjunta, como um meio de estabelecer conexão operante entre a
criança e o adulto. As ideias ou significações se tornam
semelhantes por se acharem os dois associados em uma ação
na qual o que um faz depende do que o outro faz e influi
na ação deste. Se dois selvagens estivessem a caçar juntos e
certo aviso significasse para o que o fizesse: ''Fique do lado
A educação como função social
17
direito" e para o que o ouvisse: "Fique do lado esquerdo",
é claro que não lhes seria possível a caçada em comum.
Compreenderem-se duas pessoas significa que as coisas, inclusive os sons, têm para ambas o mesmo valor, ao se dedicarem
a uma empresa comum.
Depois que os sons adquiriram significação pela sua
conexão com outras coisas empregadas em uma atividade comum, podem ser utilizados em combinação com outros sons
similares para produzirem novas significações, exatamente
como se associam as coisas que eles representam. Desta fornia, por exemplo, as palavras que fizeram a criança saber o
que é um capacete grego adquiriram originariamente uma
significação (ou foram compreendidas) pelo uso em um ato
de interesse e finalidade comuns. Elas agora assumem novo
sentido incitando, àqueles que as ouvem ou lêem, a evocar
mentalmente a espécie de atividade em que se usa o capacete.
Quem compreende as palavras "capacete grego" torna-se, nesse
momento, em imaginação, partícipe da ação daqueles que usaram o capacete. Mentalmente se associa a uma ação comum.
Não é fácil, por isso mesmo, apreender a plena significação das palavras. A maioria das pessoas provavelmente
se satisfaz com a ideia de que "capacete" indica uma espécie esquisita de ornato que os gregos usavam na cabeça. Pode-se, pois, concluir pelo exposto que o uso da linguagem
para transmitir e adquirir ideias é uma extensão e aperfeiçoamento do princípio de que as coisas adquirem significação
quando usadas em uma experiência partilhada ou em uma
ação conjunta; de modo algum a aplicação da linguagem contravém àquele princípio. Quando as palavras não ^nti^m
como fatores em uma ação compartilhada •— quer real, quer
imaginariamente •— elas obram como puros estímulos físicos,
não tendo significação ou valor intelectuais. Fazem a atividade
correr em um dado leito, mas desacompanhada de intenção ou
significação consciente. Por exemplo, o sinal aritmético
"mais" pode ser um estímulo para o ato de escrever um número
debaixo de outro e de somá-los, mas a pessoa que pratica
este ato procederá como um autómato se não perceber o sentido daquilo que se acha a fazer.
3. O meio social como fator educativo, — O que
resulta, em suma, de tudo isto, é que o meio social cria as
atitudes mental e emocional do procedimento dos indivíduos,
18
Democracia e educação
A educação como função social
fazendo-os entregar-se a atividades que despertam e vigorizam determinados impulsos, que têm determinados óbjetivos e acarretam determinadas consequências. Uma criança
vivendo no seio de uma família de músicos terá inevitavelmente estimuladas, por menores que elas sejam, as suas
aptidões musicais, e as terá mais estimuladas, relativamente,
do que outros impulsos que poderiam despertar em diverso
ambiente. Com efeito, se não tomar interesse pela música e
não adquirir nessa arte alguma competência, será como um
elemento estranho, inábil para participar da vida do grupo a
que pertence. É, realmente, inevitável alguma participação na
vida daqueles com quem o indivíduo se acha em contacto; por
essa participação o ambiente social exerce um influxo educativo
ou formativo, independentemente de qualquer propósito intencional.
Nas sociedades selvagens e bárbaras essa participação
direta (que constitui a educação indireta ou casual a que
nos referimos) é, quase que só ela, a influência que inicia
os pequenos nos costumes e nas crenças de seu grupo. E
mesmo nas sociedades atuais é ela que fornece o alimento
fundamental ainda aos jovens que mais longamente recebem educação escolar. De acordo com os interesses e as
ocupações do grupo, algumas coisas tornam-se objeto de grande
estima; outras, de aversão. A associação não cria os impulsos
de predileção e desagrado mas proporciona os objetos a que
eles se aplicam. O modo por que nosso grupo ou classe faz
as coisas tende a determinar quais os objetos que necessitam
de atenção e a traçar assim as direções e limites da observação
e da memória. Aquilo que é estranho ou exótico (isto é,
alheio à atividade do grupo) propende a ser moralmente proibido e intelectualmente suspeito. Parece-nos, por exemplo, quase incrível que as coisas que hoje conhecemos perfeitamente tenham sido ignoradas nos séculos passados. Inclinamo-nos a
explicar isto atribuindo estupidez inata a nossos precursores e
presumindo, quanto a nós, termos inteligência inata superior.
Mas a explicação real é que seu modo de vida não lhes
reclamava a atenção para tais fatos, conservando-lhes os espíritos acorrentados a outras coisas. Exatamente como os sentidos requerem objetos sensíveis para estimulá-los, nossas faculdades de observar, recordar e imaginar não funcionam
espontaneamente, mas são movidas pelas exigências impostas
pelas ocupações sociais habituais, A urdidura essencial de
nossa disposição de espírito é formada, independentemente
dos cursos escolares, pelas referidas influências. O que o
ensino consciente e deliberado pode fazer é, no máximo, libertar as aptidões assim formadas para um mais amplo desenvolvimento, purgá-las de algumas de suas rudezas e fornecer
objetos que tornem sua atividade mais rica de significação.
Uma vez que este "inconsciente influxo do ambiente" .é
tão sutil e penetrante que impregna todas as fibras do caráter e do espírito, pode valer a pena especificar algumas direções
em que mais se lhe acentua o efeito. Primeiramente, os hábitos da linguagem. Os modos essenciais de falar, a abundância do vocabulário, formam-se nas relações ordinárias da
vida e se desenvolvem — não como um meio de instrução
mas como uma necessidade social. O infante aprende, como
bem o dizemos, a língua m&terna. Os hábitos de linguagem
assim contraídos podem ser corrigidos, ou mesmo suprimidos
pelo ensino consciente; mesmo assim, em momentos de exaltação desaparecem muita vez os modos de falar intencionalmente
aprendidos e as pessoas retomam sua verdadeira linguagem
primitiva. Em segundo lugar, as maneiras. Os exemplos valem evidentemente mais que as regras. Adquirimos boas maneiras, segundo dizemos, com a boa criação, ou antes, são elas
a boa criação; e esta é adquirida pelos atos habituais, como
reaçoes a estímulos habituais, e não como conhecimentos transmitidos. Apesar do processo indefinido da correção e instrução conscientes, o meio e a mentalidade ambientes são, afinal
de contas, o principal agente para a aquisição de boas maneiras. E as maneiras não passam de uma moral de menor
importância. E mesmo na verdadeira moral, a instrução
consciente só- terá possibilidade de eficácia na medida em
que se harmonizar com o procedimento daqueles que constituem o ambiente social da criança. Em terceiro lugar, o
bom gosto e a apreciação estética. Se o olhar for constantemente alegrado por objetos harmoniosos, graciosos de forma
e cor, desenvolve-se naturalmente o sentimento do bom gosto.
O efeito de um meio tosco, de quinquilharias, desordenado e
superenfeitado, produz a depravação do gosto, bem como o
viver-se em meios pobres e estéreis aniquila o amor ao belo.
Nessas circunstâncias desfavoráveis o ensino consciente mal
pode fazer qualquer coisa além de ministrar conhecimentos
por assim dizer de segunda mão, que constituem o modo de
pensar de outras pessoas. O bom gosto não se gera esponta-
19
Democracia e educação
A educação como- função social
neo como um predicado pessoal, mas é uma lembrança elaborada
das coisas que ensinamos alguém a ter em mais apreço. Dizer
que as mais fundamentais craveiras da apreciação dos valores
são forjadas pelas situações em que uma pessoa habitualmente
se encontra, será menos um quarto ponto a mencionar do que
a fusão dos três anteriormente referidos. Raras vezes reconhecemos em que extensão as ideias conscientes que temos do
valor de algumas coisas e do desvalor de outras são devidas a
padrões mentais de cuja existência absolutamente não temos
consciência. Mas pode-se generalizar dizendo-se que as coisas
que aceitamos como certas sem exame ou reflexão são precisamente as que determinam nosso pensamento consciente e
nossas conclusões. E estes hábitos que assim jazem abaixo
do plano da reflexão são justamente os que se formaram no
incessante dar e receber de nossas relações com outras pessoas.
ordinária. Conservam-se assim as -realizações' conseguidas
pelas gerações anteriores, mesmo que algumas delas estejam
desde algum tempo em desuso. Por conseguinte, uma vez que
urna comunidade depende em considerável extensão de coisas
jacentes além de seu próprio território e de sua geração atual,
precisa contar com a ação definida das escolas para assegurar
uma conveniente transmissão de todos os seus recursos. Num
claro exemplo: A vida dos antigos gregos e romanos influencia profundamente a nossa e, apesar disso, o modo por que
nos influencia não se patenteia na superfície de nossos atos
habituais. Analogamente, povos ainda existentes, mas afastados no espaço, os ingleses, os alemães, os italianos, interessam diretamente nossa atividade social, mas a natureza do
mútuo influxo não pode ser compreendida sem exposição e
atenção particulares. Semelhantemente, não podemos confiar
em nosso trato diário para patentear aos mais novos o papel
desempenhado em nossas espécies de atividade pelas remotas
energias físicas e pelas subestruturas invisíveis. Daí o fato
de instituir-se um modo particular de intercâmbio social — a
escola — para tratar dessas matérias.
Comparada com as associações ordinárias da vida, notam-se nesta espécie de associação três funções suficientemente especiais. Primeira —• uma civilização complexa não
pode ser assimilada in totó. Cumpre, por assim dizer,
fragmentá-la em vários pedaços e fazê-la assimilar aos poucos,
de modo gradativo. Tão numerosas e entrelaçadas são as funções de nossa presente vida social, que uma criança, colocada na posição mais favorável, não poderia prontamente
participar de muitas das mais importantes dentre elas. Não
co-participando das mesmas, não lhes apreenderia a significação
e elas não se tornariam parte de sua estrutura mental. Não
se veriam as árvores por causa da floresta. Os negócios, a
política, a arte, a ciência, a religião lhe reclamariam, a um
tempo, a atenção em alarida tal, que, como resultado, só se
teria a confusão. A primeira função do órgão social que
denominamos escola é proporcionar um ambiente simplificado,
Selecionando os aspectos mais fundamentais, e que sejam capazes de despertar reações da parte dos jovens, estabelece a escola, em seguida, uma progressão, utiíizando-se dos elementos
adquiridos em primeiro lugar como meio de conduzi-los ao sentido e compreensão real das coisas mais complexas.
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4. A escola como ambiente especial. — A principal
importância da exposição precedente sobre o processo educativo que prossegue involuntariamente, é levar-nos a notar
que o único processo de influírem os adultos sobre a espécie de educação que o imaturo recebe é o de influírem sobre
o meio em que eles agem e, portanto, pensam e sentem. Jamais
educamos diretamente e, sim, indiretamente, por intermédio
do ambiente. Grande diferença existirá em permitirmos a
ação casual do meio e em escolhermos intencionalmente o meio
para o mesmo fim. E será casual a influência educativa de
qualquer meio, a menos que de caso pensado não o regulemos
para a obtenção de um efeito educativo. A diferença entre
um lar inteligente e outro ininteligente está principalmente em
que os hábitos de vida e a convivência daquele são escolhidos,
ou, pelo menos, impregnados da ideia de seu influxo sobre o
desenvolvimento das crianças. As escolas, todavia, continuam
sendo o exemplo típico do meio especialmente preparado para
influir na direção mental e moral dos que as frequentam.
De modo geral, elas começam a existir quando as tradições sociais são tão complexas que parte considerável do
acervo social é confiada à escrita e transmitida por meio de
símbolos escritos. Ora, os símbolos escritos são ainda mais
artificiais ou convencionais do que os falados; não podem
ser aprendidos nas relações casuais com outras pessoas. Demais disto, a linguagem escrita tende a selecionar e registrar
matérias que são relativamente estranhas à nossa existência
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22
e educação
Em segundo lugar, é tarefa do meio escolar eliminar o
mais possível os aspectos desvantajosos do ambiente comum,
que exercem influência sobre os hábitos mentais. Cria um
ambiente purificado para a ação, A seleção, aqui, não só
aspira a simplificá-lo, como também a depurá-lo dos fatores
indesejáveis. Toda a sociedade vive atravancada, comumente,
com a galharia seca do passado e com outras coisas verdadeiramente perniciosas. É dever da escola omitjr tais coisas no
ambiente que proporciona, e deste modo fazer com que se
neutralize sua influência no âmbito social comum. Escolhendo
o melhor para usá-lo, exclusivamente, ela se empenha em reforçar o poder deste melhor. À proporção que uma sociedade
se torna mais esclarecida, ela compreende que importa não
transmitir e conservar todas as suas realizações, e sim unicamente as que importam para uma sociedade futura mais perfeita. A escola é seu principal fátor para a consecução
deste fim.
Em terceiro lugar, compete ao meio escolar contrabalançar os vários elementos do ambiente social e ter em vista
dar a cada indivíduo oportunidade para fugir às limitações
do grupo social em que nasceu, entrando em contacto vital
com um ambiente mais amplo. Palavras como "sociedade"
e "comunidade" são próprias a falsear-nos os juízos, pois
tendem a fazer-nos pensar que existe uma coisa única, correspondente a uma palavra única. O ° fato é que a sociedade moderna se compõe de muitas sociedades mais ou menos
frouxamente entrosadas entre si. Cada lar com seus amigos
mais íntimos constitui uma sociedade; a aldeia ou o grupo de
meninos que joga, em comum, numa rua é uma comunidade;
cada grupo do mundo dos negócios e cada clube são outras.
Além destes grupos de natureza mais privada, há em um país
como o nosso várias raças, seitas religiosas e «divisões económicas. No interior de uma cidade moderna, malgrado sua
nominal unidade política, existem provavelmente mais comunidades e diversidades de costumes, tradições, aspirações e espécies de governo ou de influência do que existiram em todo
um continente em uma era remota.
Cada um desses grupos exerce influxo formador nas
disposições ativas de seus componentes. Um corrilho, um
clube, uma quadrilha de ladrões, os presos de um cárcere,
fornecem meios educativos para aqueles que participam de
sua atividade coletiva ou conjunta, com força igual à de uma
A educação como função social
23
igreja, de uma cooperativa de trabalhadores, de uma sociedade industrial ou comercial, ou de um partido político.
Cada um deles é tão verdadeiramente uma espécie de vida
associada ou em comum como uma família, uma cidade ou
um país. Existem também comunhões cujos membros têm
pouco ou nenhum contacto uns com'os outros, como o mundo
dos' artistas, a república das letras, os membros de uma
douta classe profissional espalhados pelo mundo inteiro. Mas
eles têm objetivos comuns, e a atividade de cada um dos
membros é diretamente modificada pelo conhecimento daquilo
que os outros fazem.
Nos antigos tempos a diversidade de grupos era questão principalmente geográfica. Existiam muitas sociedades
mas, cada qual, em seu próprio território, era relativamente
homogénea. Mas com o incremento do comércio, dos meios
de transporte, da intercomunicação e da emigração, países
como os Estados Unidos são compostos de uma combinação
de diferentes grupos com diferentes costumes tradicionais.
Foi esta situação, talvez, mais do que qualquer outra causa,
que acarretou a exigência de institutos educativos que fornecessem uma coisa semelhante a um ambiente homogéneo e bem
equilibrado para as pessoas mais jovens. Só por este meio
poderiam ser contrabalançadas as forças centrífugas geradas
pela justaposição de diferentes grupos dentro de uma mesma
. unidade política. A convivência, na escola, de j ovens de
diversas raças e religiões, e de costumes dessemelhantes, proporciona a todos um meio novo e mais vasto. Os estudos
comuns acostumam a todos, por igual, a um descortino de
horizontes mais amplos do que os visíveis aos membros de
qualquer grupo, quando este se encontra isolado. A força
assimilado r a das escolas públicas americanas é eloquente
testemunho da eficácia de um interesse comum e bem dosado.
Á escola tem igualmente a função de coordenar, na vida
mental de cada indivíduo, as diversas influências dos vários
meios sociais em que ele vive. Um código prevalece na família; outro, nas ruas; um terceiro, nas oficinas ou nas lojas;
um quarto, nos meios religiosos. Quando uma pessoa passa
de um desses ambientes para outro, fica sujeita a impulsos
contraditórios e acha-se em risco de desdobrar-se em personalidades com diversos padrões de julgar e sentir, conforme as
várias ocasiões. Este risco impõe à escola uma função fortalecedora e integradora.
24
Democracia e educação
Resumo. — Não se pode efetuar pela transmissão
díreta de convicções, emoções e conhecimentos, o desenvolvimento, nos seres mais novos, das atitudes e estados mentais necessários à contínua e progressiva vida de uma sociedade. Ela efetua-se por intermédio do meio. O meio consiste na soma total das condições necessárias para a realização das atívidades características de um ser vivo. O meio
social consiste em todas as atividades de seres semelhantes
intimamente associados para a realização de seus fins comuns. Ele é. verdadeiramente educativo em seus efeitos, na
medida em que o indivíduo participa de alguma atividade
conjunta. Contribuindo com sua parte na atividade associada,
o indivíduo adota os fins que a estimulam, familiariza-se com
seus métodos e materiais, adquire a necessária habilidade e
impregna-se de seu modo de sentir.
A formação espiritual mais profunda e mais sólida se
origina, sem intuito consciente, da co-participação, por parte
dos elementos sociais mais novos, da atividadfe dos vários
grupos a que possa pertencer. Todavia, ao tornar-se a sociedade mais complexa, cumpre proporcionar um ambiente
social especial ^ que se dedique especialmente a desenvolver as.
aptidões dos imaturos. Três das mais importantes funções
deste meio especial são as seguintes: simplificar e coordenar
os fatores da mentalidade que se pretenda desenvolver; purificar e idealizar os costumes sociais existentes; criar um meio
mais vasto e melhor equilibrado do que aquele pelo qual os
imaturos, abandonados a si mesmos, seriam provavelmente
influenciados.
CAPÍTULO 3
A educação como direção
1. O meio como fator de direção. — Passaremos
agora a tratar de uma das formas especiais assumidas pela
função da educação: isto é, de servir de direção, controle ou
guia. A última destas ,três palavras — direção, controle
e guia — é a que melhor exprime a ideia de auxiliar, por
meio da cooperação, as aptidões naturais dos indivíduos guiados; controle lembra, antes, a noção de uma energia a atuar
exteriormente e a encontrar alguma resistência por parte do
objeto dominado; direção é um termo de significação mais
neutra e sugere o fato de que as tendências cativas dos dirigidos são orientadas uniformemente para certo sentido, em
vez de se dispersarem sem objetivo. Direção exprime a função fundamental que, em um dos extremos, tende a tornar-se
em um auxilio condutor e, no outro, em regulação ou regra.
Mas em todos os casos deveremos cuidadosamente evitar uma
significação às vezes implícita no vocábulo controle ou governo.
Já se presumiu, muitas vezes, explícita ou inconscientemente,
que as tendências do indivíduo são, por seu natural, puramente individualistas ou egoístas, e, portanto, anti-sociais.
Regulação ou controle denota então o processo pelo qual ele
é levado a subordinar seus impulsos naturais aos fins públicos
ou comuns. Desde que por esta concepção sua natureza é
completamente alheia a este processo e mais se lhe opõe do
que o auxilia, a função educativa tem neste ponto de vista um
cunho de coação ou compulsão sobre o indivíduo. De acordo
com esta noção que seriamente influiu nas ideias e na prática
educacionais têm sido arquitetados sistemas de governo e teorias políticas. Mas tal opinião não tem fundamento algum.
Não há dúvida de que, às vezes, aos indivíduos é vantajoso
cuidar de seus próprios interesses e que estes podem achar-se
em conflito com os interesses dos demais. Mas para eles
há igualmente vantagem, em conjunto maior do que qualquer
Democracia c educação
A educação como direção
outra, em participar da atividade dos demais, em agir conjuntamente, cooperando nas realizações comuns. De outra
forma, impossível seria a existência da coisa a que chamamos
comunidade. E nem teria qualquer sentido a própria polícia
que conservaria apenas uma aparência de ordem, a menos que
achasse alguém que por esse meio poderia conseguir pessoalmente qualquer vantagem. Controle, em verdade, significa
apenas um encarecimento da direção de forças ou capacidades
e compreende não só a regulação e domínio conseguidos por
algum indivíduo por meio de seus próprios esforços como
também a que se produz quando outros assumem a direção.
Em geral, todo o estímulo dirige a atividade. Não somente a suscita ou excita, como também a dirige para um
objeto.
A "resposta" ao estímulo, por sua vez, não é precisamente uma reação, um protesto, por assim dizer, motivado
por uma perturbação; é, como a palavra o indica, uma correspondência. Ela vai ao encontro do estímulo e entra em
correspondência com ele. Há uma recíproca adaptação do
estímulo e da resposta. A luz é o estímulo para os olhos
verem alguma coisa e o trabalho dos olhos é ver. Estando
os olhos abertos e havendo luz, ocorre o ato da visão; o estímulo é unicamente uma condição para o exercício conveniente
da função do órgão e, não, uma perturbação exterior. Por
isso, toda a direção ou regulação ou controle é, em certa
medida, o próprio ato de guiar a atividade para o seu próprio
fim; é um auxílio para ef etuar-se plenamente aquilo que algum
órgão já tende a fazer.
Esta exposição geral necessita, porém, ser examinada
sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar, tirante o caso de um número pequeno de instintos, os estímulos a que
um ser humano imaturo está sujeito não são suficientemente
definidos para provocarem, de começo, respostas específicas.
A energia é despertada sempre em profusão. Pode ela perder-se, sem atingir o ponto em mira; como pode, também, ser
contrária ao bom êxito completo do ato. Prejudica por atravancar o caminho. Compare-se o procedimento de um novato
em ciclismo com um ciclista experiente. Pouco elemento de
direção existe nas energias despendidas; são elas grandemente
dispersivas e centrífugas. Direção subentende, com efeito, o
focalizar e fixar a ação, de modo a ser ela verdadeiramente
uma resposta e isto requer a eliminação dos movimentos des-
necessários e desordenados. Em segundo lugar, embora não
se produza atividade alguma sem que, em certa extensão, a
pessoa coopere, pode a resposta ser de espécie inadequada à
sequência e continuidade da ação. Um pugilista pode evitar
receber certo golpe, mas de tal forma, que no instante imediato se exponha a um golpe mais violento. Um controle e
domínio adequados significam a prática dos atos sucessivos em
urna ordem contínua. Cada ato não só corresponde a seu
imediato estímulo, como também prepara os atos que se
seguem.
Em suma, a direção tanto é simultânea como sucessiva.
Em dado momento ela requer que, de todas as tendências
cuja manifestação parcialmente se provoca, sejam escolhidas
as que encentrarem a energia no ponto necessário. Sucessivamente, ela requer que cada ato se relacione devidamente
com o que precedeu e com o que o seguirá, de modo a conseguir-se a ordem da atividade. Focalizar e coordenar sãof portanto, os dois aspectos da direção — wm, espadai e o outro
temporal. O primeiro assegura o atingir-se o alvo; o segundo
mantém o equilíbrio para a ação ulterior. É óbvio que não se
podem separar na prática como se distinguem idealmente. A
atividade deve ser focalizada em dado momento de tal modo,
que esteja preparada para o que vem depois. O problema da
reação imediata complica-se com o de ter-se de atender às
ocorrências futuras.
Duas conclusões ressaltam desta exposição geral. Por
um lado, é impossível uma direção puramente exterior. O
ambiente, no máximo, pôde fornecer estímulos para provocacar respostas. Estas respostas procedem das tendências já
possuídas pelo indivíduo. Mesmo quando se intimida uma
pessoa com ameaças para fazer alguma coisa, essas ameaças
produzem efeito unicamente porque a dita pessoa já tem o
instinto do medo. Se não o tiver, ou se, caso o tenha,
souber dominá-lo, a ameaça não produzirá maior efeito do
que a luz para fazer que uma pessoa sem olhos veja alguma
coisa. Ao mesmo tempo em que os costumes e as normas
dos adultos proporcionam estímulos que tanto dirigem como
provocam a atividade dos mais novos, estes, afinal de contas,
contribuem para a direção que os seus atos tomam. Pode-se
estritamente dizer que intimamente eles não podem ser coagidos
em coisa alguma. Desprezar esta circunstância equivale a deformar e perverter a natureza humana. Tomar em conside-
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27
Democracia e educação
A educação como direção
ração a contribuição dos instintos e hábitos dos dirigidos
importa em dirigi-los económica e sabiamente. Para falar mais
precisamente — toda a direção é apenas redireção; ela modifica
o rumo da atividade que já fluía, por outra álveo. A não ser
que se conheçam as energias que já se acham a operar, toda
a tentativa para dirigir se tornará quase infalivelmente inútil.
Por outro lado, a regulação ou controle proporcionado
.pelos costumes e normas dos outros indivíduos pode carecer de visão, ser estreita e parcial. Pode efetuar um efeito
imediato, mas à custa de desordenar os subsequentes atos da
pessoa. Uma ameaça, por exemplo, pode impedir que um
indivíduo faça alguma coisa a que é naturalmente inclinado,
despertando-lhe, caso persista em seu procedimento, o temor
de desagradáveis consequências. Mas pode fazer que ele
fique em condições que o exporão mais tarde a influências
que o levarão a praticar até atos piores. Podem despertar
seus instintos de astúcia e dissimulação, de modo que, de
então por diante, na prática de seus atos, propenderá a usar
estratagemas e a recorrer a embustes, mais do que isso sucederia
se outras tivessem sido as condições de influência.
As pessoas encarregadas de dirigir as ações alheias correm sempre o perigo de esquecer o desenvolvimento ulterior
dos seus dirigidos.
cavalo até a água, não poderemos obrigá-lo a beber e que
poderemos trancar um homem em uma penitenciária, mas
não torná-lo arrependido. Nesses casos de ação direta sobre
os outros, precisamos distinguir os resultados físicos dos resultados espirituais. Pode uma pessoa achar-se em tal situação que convenha, em seu próprio benefício, forçá-la a alimentar-se ou conservá-la presa. Podemos afastar rudemente
do fogo uma criança, para que não se queime — mas não
se seguirá com isto um aperfeiçoamento mental ou efeito
educativo. Um tom de voz áspero e autoritário pode ser
eficaz para mante-la arredada do fogo, produzindo-se o mesmo
desejável efeito material de um empuxão violento. Mas no
segundo caso não há mais obediência mental do que no primeiro. Poderemos tolher que um larápio penetre em casas
alheias, conservando-o preso; mas com isto não modificamos
sua inclinação para a prática de roubos. Quando confundimos
resultado físico com resultado educativo, perdemos sempre as
probabilidades de fazer a própria pessoa contribuir, com sua
participação, para o efeito visado e de, por esse meio, desenvolver-lhe no espírito uma direção intrínseca e perseverante
no sentido conveniente.
A ocasião da prática de atos mais conscientes para se
influir em outrem deveria limitar-se, em geral, aos atos tão
instintivos ou impulsivos, que o agente não tenha meios de
prever os resultados. Se uma pessoa não pode prever as
consequências de um seu ato, e é incapaz de compreender o
que dizem as mais experientes sobre o resultado do mesmo,
é-lhe impossível guiá-lo inteligentemente. Nessas condições,
todos os atos lhe teriam significação igual. Aquilo que a faz
mover-se limita-se a fazê-la mover-se, e eis tudo. Em alguns
casos conviria que lhe permitissem fazer experiências para
descobrir as consequências que os atos terão para sí própria,
de modo que no seguinte ensejo, em similitude de condições,
possa proceder com inteligência. Mas certas espécies de atos
são muito incómodos ou prejudiciais aos outros para que se
consinta nessas experiências. Recorre-se então à reprovação
direta. Usa-se o vexame, o ridículo, o desfavor, a censura e
a punição. Ou se apela para as tendências contrárias do
educando a fim de afastá-lo de seu impróprio modo de proceder. Utilizam-se sua sensibilidade ao elogio, sua esperança
de cair nas boas graças de alguém por algum ato agradável,
para fazer-se a sua atividade mudar ae direção.
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2- Modalidades de direção social. — Os adultos
têm naturalmente mais consciência de seu influxo na conduta dos outros quando deliberadamente visam a essa influência. Em regra, têm conscientemente tal objetivo quando encontram resistência, quando outros estão a fazer coisas que
eles, adultos, não desejam. Os modos, entretanto, mais permanentes e influencíadores de direção são aqueles que atuam
continuamente, a cada instante, sem propósito intencional de
nossa parte. Senão, vejamos.
l — Quando outras pessoas não fazem o que desejaríamos que fizessem ou ameaçam desobedecer-nos, sobrevém-nos maior consciência da necessidade de influir em seu
procedimento e dos meios por que elas podem ser influenciadas. Em tais casos, nosso influxo é mais direto e há
mais probabilidades de incidirmos nos equívocos que acabamos de mencionar. É mesmo verossímil que acreditemos
ter influência reguladora ou controladora a ação de uma
força superior, esquecidos de que, embora possamos levar um
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30
Democracia e educação
2 — Estes meios de influir no educando são tão patentes (porque assim os empregamos intencionalmente) que
mal seriam dignos de menção, se não fosse o podermos agora
tratar, pelo contraste, do outro método de influir, bem mais
importante e permanente. Este outro método reside no modo
por que utilizam as coisas as pessoas com quem o imaturo convive; nos instrumentos e nos modos por que realizam seus
próprios fins. O meio social em que o indivíduo vive, move-se
e manifesta sua atividade, esse é o agente constante e eficaz
para orientar-lhe a atividade.
Esta circunstância nos força a um exame mais particularizado daquilo que se entende por ambiente social. Somos avezados a separar um do outro os ambientes físico e
social em que vivemos. A esta separação, por um lado, se
deve o exagero da importância moral dos modos mais diretos
ou pessoais de direção de que estivemos falando; e por
outra parte, o exagero, na psicologia e filosofia correntes,
das possibilidades intelectuais do contacto com um meio puramente físico. O fato é que não existe a influência direta de
um ser humano sobre outro, independentemente do uso do
ambiente físico como intermediário. Um sorriso, uma carranca, uma censura, uma palavra de advertência ou de encorajamento, tudo isso envolve alguma mudança fisica. Se assim
não fosse, a atitude de uma pessoa não modificaria a atitude
de outra. De um modo relativo esses meios de influir podem
ser considerados pessoais. O meio físico reduz-se a um simples instrumento de contacto pessoal. Contrastando com estes
modos diretos de mútua influência, encontram-se as associações para objetivos comuns que implicam o uso das coisas
como meios e como medidas dos resultados. Mesmo que a
mãe nunca dissesse à filha que a ajudasse, nem a repreendesse
pelo fato de não a ajudar, a filha seria dirigida tm sua atividade
pela simples circunstância de estar empenhada na vida em
comum do lar. A imitação, a emulação, a necessidade de
trabalhar juntos, reforçam a regulação ou o controle educativos.
Se a mãe precisa dar à filha alguma coisa, a última
deve estender as mãos para recebê-la. Onde há o dar, deve
haver o tomar. O modo por que a filha se comporta com
o objeto depois de recebê-lo, a maneira pela qual o utiliza,
são certamente influenciados pelo fato de ter observado os
atos de sua mãe. Quando a criança vê a mãe procurar
alguma coisa, é tão natural pára ela o procurá-la igualmente
A educação como direção
31
e entregá-la, se a encontrou, como o seria, em outras circunstâncias, o recebê-la. Multiplique-se este exemplo de
acordo com os mil pequenos incidentes do trato quotidiano e
ter-se-á o quadro do meio mais constante e duradouro de
dirigir a atividade dos mais novos.
Dizendo isto, estamos somente a repetir o já exposto
sobre a participação em atividade conjunta como o meio principal da formação do espírito. Entretanto, acrescentamos a
isso o reconhecimento do papel desempenhado na atividade
conjunta pelo uso das coisas. A filosofia do ensino tem sido
indevidamente dominada por uma falsa psicologia. Declara-se
com frequência que uma pessoa aprende simplesmente porque
as qualidades das coisas se lhe gravam no espírito, entrando
pelas portas dos sentidos. Tendo recebido certo número de
impressões sensoriaís, supõe-se que a associação ou alguma
faculdade de formar sínteses mentais as combina em ideias —
em coisas com uma significação. Supõe-se que um objeto,
uma pedra, uma laranja, uma árvore, uma cadeira, produzam
diferentes impressões de cor, forma, tamanho, dureza, cheiro,
gosto, etc., as quais, reunindo-se, constituem a significação característica de cada coisa. Mas o fato é que o uso característico
que damos às coisas, devido a suas qualidades particulares, é
que fornece a significação com que ela é identificada. Uma
cadeira é coisa para certo uso; uma mesa, é para outro uso;
uma laranja é coisa que custa certa quantia, só dá nos climas
quentes, serve para comer-se, e, quando comida, tem cheiro e
sabor agradáveis, etc.
A diferença entre a adaptação a um estímulo físico e
um ato mental corresponde a que o último importa na resposta
a uma coisa em sua significação — o que não se dá no primeiro caso. Um ruído pode fazer-me dar um pulo, sem que
o espírito participe desse ato. Se um ruído me faz correr
e procurar água e apagar um fogo, estou a reagir inteligentemente; os sons significavam fogo, e fogo significava a necessidade de ser apagado. Tropeço em uma pedra, e com um
pontapé a faço ir parar a um lado — procedo de modo meramente físico. Se a arredo para um lado do caminho, de
receio de que alguém nela tropece — procedo inteligentemente;
reajo a uma significação que a coisa tem. Assusto-me com
um trovão, sabendo ou não sabendo que é um trovão — mais
provavelmente não o sabendo. Mas se disser, alto ou comigo
mesmo, que é um trovão, reajo uo fato perturbador em sua
32
Democracia e educação
significação. Meu procedimento tem um valor mental.
Quando as coisas possuem para nós uma significação, temos
consciência do que fazemos; se não a possuem, procedemos
cega, inconsciente, ininteligentemente.
Nessas duas espécies de adaptação pela reação, nossa
atividade está dirigida ou regulada. Mas na resposta puramente cega, a direção é também cega. Pode ser adestramento, mas não educação. As respostas repetidas a estímulos também repetidos, podem de certo modo fixar um
hábito de ação. Todos nós temos muitos hábitos de cuja
importância não temos absolutamente consciência, porquanto
se formaram sem sabermos que isso estava a suceder. Em
consequência, eles nos possuem mais do que nós os possuímos.
Eles nos movem e dominam. E se não tivermos consciência de
sua ação e não pudermos formar juízos sobre o valor dos
resultados, não os dominaremos. Uma criança pode inclinar-se
cada .vez que encontra certa pessoa, por lhe fazer pressão
nos músculos do pescoço, e essas inclinações nos referidos
encontros podem tornar-se, afinal, automáticas; não serão,
contudo, sinal de reconhecimento ou de deferência, enquanto
não o fizer com algum fim em vista — como tendo certa
significação. E enquanto a criança não souber do que se trata
e não praticar'o ato por sua significação, não se poderá dizer
que a ensinaram a proceder de tal modo. Ter uma ideia da
coisa não é, portanto, ter determinadas sensações com a sua
presença. É ser capaz de reagir à coisa tendo em vista seu
lugar em um plano de ação, em que ela é incluída; é prever
as flutuações e a provável consequência da açãc da coisa sobre
nós e de nossa ação sobre ela.
Ter sobre. as coisas as mesmas ideias que os outros,
assemelhar-se espiritualmente a eles e ser, assim, verdadeiramente, membro de um grupo social, consiste, por conseguinte, em dar às coisas e aos atos as mesmas significações
que os outros dão. De outro modo não haveria compreensão
comum nem vida social. Mas, de fato, em uma atividade
partilhada cada pessoa relaciona o que está fazendo com
aquilo que as outras fazem e vice-versa. Isto é, a atividade de
cada um está incluída em uma mesma situação. Puxar uma
corda que outros estejam também a puxar não é atividade
partilhada ou conjunta., a menos que quem puxa o faça com
o conhecimento de que outros também estão puxando e com
um intuito de auxiliar ou embaraçar o que eles fazem. Du-
A educação como direçào
33
rante seu fabrico, pode um alfinete passar pelas mãos de
muitos, operários. Mas cada um destes pode fazer sua parte
do trabalho, inconsciente do que os outros fazem, ou sem
qualquer relação com a parte feita por estes; cada qual trabalha tendo apenas em vista dado resultado •— sua própria
paga. Neste exemplo não há uma consequência comum a que
se refiram os vários atos e, portanto, inexiste verdadeira
cooperação ou associação, malgrado a justaposição de pessoas e a circunstância de que seus respectivos atos contribuem
para um único resultado. Mas se cada um vir as consequências de seus atos em relação aos atos dos outros e tomar em
linha de conta as consequências dos atos dos outros sobre os
seus próprios, haverá então uma mentalidade comum, uma
intenção comum no procedimento de todos. Há mútuo entendimento entre os vários cooperadores e este entendimento comum dirige e controla a ação de cada um.
Suponhamos que se disponham as condições de forma
que uma pessoa automaticamente pegue uma bola, e a atire
em direção a outra pessoa que a apanha e automaticamente
a devolve; cada uma assim procedeu ignorando de onde a
bola vinha e para onde ia. É claro que esses atos seriam
sem objetivo ou significação. Poderiam ser fisicamente regulados ou controlados, mas não seriam socialmente dirigidos. Mas admitamos que cada um tenha acordo daquilo
que o outro faz e se interesse pelos atos dessa outra pessoa e, desta maneira, por aquilo que ele próprio faz, como
relacionado com os atos dessa pessoa. O procedimento dos
dois seria então inteligente, e inteligente e orientado socialmente. Vejamos mais um exemplo de natureza menos fictícia. Uma criança sente fome e chora enquanto lhe preparam
o alimento em sua presença. Se ela não relacionar seu
próprio estado com aquilo que os outros estão a fazer, nem
o que os outros fazem com a satisfação de sua fome, reagirá
simplesmente com crescente impaciência ao seu próprio crescente mal-estar. Sente-se fisicamente dominada pelo seu próprio estado orgânico. Mas se estabelecer referências com atos
anteriores e ulteriores, muda completamente de atitude.
Adquire um interesse, conforme dizemos; nota e observa o
que os outros fazem. Já não reage mais tendo em vista a
própria fome, e sim procede tendo em vista o que os outros
estão a fazer para sua futura satisfação. Desse modo a
criança já não reage à fome sem a conhecer, mas nota, ou
34
Democracia, e educação
reconhece, ou identifica seu próprio estado. Este se torna um
objeto de atenção para ela. Sua atitude para com o mesmo é
em certo grau inteligente. E observando, assim, a significação dos atos alheios e de seu próprio estado, acha-se socialmente orientada e dirigida.
Lembraremos agora que nossa proposição principal tem
dois aspectos. De um deles já tratamos, isto é — de que as
coisas materiais não influenciam o espírito (ou formam ideias
e convicções) exceto quando se associam à ação tendo em
mira consequências previstas. O outro ponto é que uma pessoa só modifica o estado de espírito de outras por meio do
emprego especial das condições físicas. Consídere-se primeiro o caso dos chamados "movimentos expressivos" a que
os outros são sensíveis; o corar, o sorrir, o franzir o cenho,
o cerrar os punhos, e outros gestos naturais de toda 'as espécies. Em si mesmos eles não são expressivos. São elementos orgânicos da atitude de uma pessoa. Ninguém enrubesce
para mostrar modéstia ou acanhamento aos outros, e sim
porque a circulação capilar se modifica reagindo a estímulos.
Mas os outros vêem no corar, ou na ligeiramente perceptível
contração dos músculos da pessoa com quem estão tratando, a
indicação do estado mental em que aquela pessoa se encontra
e da linha de ação que deverá seguir. O cerrar o cenho
significa iminente repreensão para a qual devemos estar de
sobreaviso, ou incerteza e hesitação que alguém deverá, se
possível, dissipar dizendo ou fazendo algo que restabeleça a
confiança.
A certa distância está um homem a brandir desesperadamente os braços. Se nos conservarmos indiferentes, esses
movimentos equivalem a uma remota mudança física que
casualmente notamos. Se não nos despertar interesse, aquele
brandir de braços nos será tão sem significação como os giros
das asas de um moinho. Mas se nos despertar o interesse,
começaremos a participar da ação. Atribuímos esta a alguma
coisa que estamos fazendo ou deveríamos fazer. Procuramos
julgar a significação daquele procedimento tendo em vista
resolvermos o que deveremos fazer. Com a sua gesticulação
estará aquele homem a pedir socorro? Estará a avisar-nos
de uma explosão, contra a qual nos deveremos precaver com a
fuga ? No primeiro caso, seu ato significaria correr para o
lado dele; e, no segundo, afastarmo-nos do lugar onde estivéssemos. Em qualquer dos casos é a mudança efetuada por
A educação como
35
ele no meio físico que nos indica o modo por que deveremos
proceder. Nossos ates são orientados socialmente porque nos
esforçamos a relacionar o que estamos a fazer com a mesma
situação em que ele está a agir.
É a linguagem, segundo já vimos, um caso desta relação de nossos atos com os de outras pessoas tendo em vista
uma situação comum. Daí a sua inigualável significação
como meio de direção sócia]. Mas a linguagem não seria
esse instrumento eficaz se não se sobrelevasse a usos mais
grosseiros e tangíveis de meios materiais para a consecução
de resultados que constituem as suas bases. Uma criança vê as
pessoas com quem mora usar de determinados modos cadeiras,
chapéus, mesas, pás, serras, arados, cavalos e dinheiro. Se
tomar alguma parte no que elas estão fazendo, será levada por
esse meio a usar aquelas coisas do mesmo modo ou usar
outras de modo que se harmonizem com elas. Se levam
uma cadeira para perto da mesa, é sinal de que se deverá
sentar na mesma; se alguém lhe estende a mão direita, a
criança também estende a sua — e assim por diante, em um
nunca acabar de pequeninas coisas. Os hábitos dominantes de
utilizarem-se os produtos da arte humana e as coisas da natureza têm todas as probabilidades de constituir o mais profundo e penetrante modo de regulação ou controle social.
Quando as crianças vão para a escola já possuem juízo —- têm
conhecimentos e aptidões para julgar, aos quais se pode recorrer
por meio do uso da linguagem. Mas estes juízos nada mais
são que os hábitos coordenados de reações inteligentes que
anteriormente foram necessárias para o uso das coisas em relação com o modo por que as outras pessoas as usavam. Essa
influência é inevitável; dela se impregnam as atitudes mentais.
O nítido resultado dessas considerações é que .o instrumento fundamental de direção não é pessoal e, sim, intelectual. Não é "moral" no seníido de que uma pessoa
procede por apelo pessoal e direto de outra pessoa, por mais
importante que seja esse método em conjunturas críticas. A
direção social consiste, realmente, nos hábitos àe compreensão
que se estabelecem usando-se os objetos em correlação com
outras pessoas, quer pela cooperação e auxílio, quer pela
rivalidade e concorrência, O espírito ou a mente como coisa
concreta, é precisamente a faculdade de compreender as coisas
tendo em vista o uso feito das mesmas; um espírito socializado
é a faculdade de compreendê-las tendo em mira o uso que lhes
36
Democracia e educação
é dado em situações conjuntas ou compartilhadas. E mente
ou espírito neste sentido é o método de direção social.
3. A imitação e a psicologia social. — Já notamos a deficiência de certa psicologia da educação, que coloca nua, por assim dizer, a mente ou inteligência do indivíduo, em contacto com os objetos materiais, acreditando
que os conhecimentos, as ideias e as convicções se lhe acrescentem por essa interação. Só em tempos relativamente recentes se notou o predomínio da influência da associação
com outros seres humanos para a formação mental e moral
dos educandos. Mesmo agora este método é tratado como
uma espécie de apêndice do pretenso método de aprender pelo
contacto direto com as coisas, e com o fim exclusivo de
completar o conhecimento das coisas com o conhecimento das
pessoas. Nosso intuito na discussão deste tema é mostrar que
semelhante opinião faz uma dissociação absurda e impossível
entre pessoas e coisas. A interação com as coisas pode criar
hábitos de adaptação externa. Mas só conduz a uma atividade
que tenha significação e propósito consciente quando se utilizam as coisas para a obtenção de algum resultado. E o único
meio por que uma pessoa pode modificar o espírito de outra é
usar as condições físicas, naturais ou artificiais, de modo a
provocar como resposta algum ato. Tais são as nossas
conclusões principais. É de bom alvitre ampliá-las e robustecê-las, pondo-as em contraste com a teoria que adota a psicologia das supostas relações díretas dos seres humanos entre si
como uma adição à psicologia das supostas relações diretas de
um indivíduo com os objetos materiais. Em sua essência esta
psicologia denominada social foi erigida sobre a noção da
imitação. Em consequência, passaremos a apreciar a natureza
e o papel da imitação na formação do espírito.
De acordo com esta teoria, a direção social dos indivíduos
repousa em sua tendência instintiva a imitar ou reproduzir
os atos alheios. Estes atos lhes servem de modelo. Tão forte
é o instinto imitativo, que as pessoas mais novas se esforçam
a aceitar os moldes de ação criados pelas mais velhas e a
reproduzi-los em seu próprio modo de proceder. Conforme
nossa teoria, chamar-se a isto imitação é dar nome erróneo à
co-participação com outras pessoas do uso de coisas conducentes a consequências de interesse comum.
A educação como âircfâo
37
O erro básico desta noção corrente da imitação é colocar o carro adiante dos bois. Toma tun efeito pela causa.
Não resta dúvida que os indivíduos que formam um grupo
social têm mentalidade semelhante; eles se compreendem uns
aos outros. Dadas circunstâncias similares, propendem a
proceder orientados pelas mesmas ideias, convicções e intenções.
Encarados externamente, pode-se dizer que procuram "imitar-se" uns aos outros. Seria isto uma verdade, no sentido
de que estão a fazer, do mesmo modo, as mesmas espécies de
coisas. Mas a "imitação" não projeta luz sobre o porquê de
assim procederem; para explicar um fato, ela se limita a reproduzir esse fato. É explicação da natureza daquela, célebre,
de que o ópio faz dormir por ter poder dormitivo.
A semelhança objetiva dos atos e a satisfação mental
sentida por proceder-se em harmonia com os outros são batizadas com o nome de imitação. Este fato social é então
tomado por uma força psicológica que produz a similitude.
Parte considerável daquilo que se chama imitação é simplesmente o fato de que pessoas de estrutura semelhante reagem
do mesmo modo a estímulos semelhantes. Independentemente
de qualquer imitação, o indivíduo insultado se encoleriza e se
atira contra o insultador. Pode-se refutar este exemplo alegando-se o fato indubitável de que a reação a um insulto se
opera de modos vários em grupos humanos de diferentes costumes. Em um, pode-se investir aos socos, em outro desafiar-se para um duelo e em um terceiro manifestar-se o desprezo. Assim sucede — já o disseram — por ser diverso o
modelo a se imitar. O simples fato de serem diferentes os
costumes significa serem também diferentes os estímulos que
atuam no procedimento. A instrução consciente desempenha
nisso o seu papeí; grande influência tem a prévia aprovação
ou reprovação. Ainda mais eficaz é o fato de que, se o indivíduo não proceder do modo usado no seu grupo, se achará
literalmente excluído dele. Só poderá associar-se a outro intimamente e em igualdade de condições procedendo cie modo
idêntico ao deles. É incessante a pressão social decorrente do
fato de apenas se admitir ao grupo quem participa de sua atividade e de se excluir do mesmo quem procede diferentemente.
O que se chama efeito da imitação é precipuamente o resultado
da instrução consciente e do influxo selecionador exercido
pelas confirmações e ratificações inconscientes, dos atos de
alguém, por parte daqueles com quem se associou.
íl
(2?
-4
38
Democracia e educação
A educação como direção
Suponhamos que uma pessoa joga uma bola para o lado
de uma criança; esta a apanha e a joga em sentido contrário,
e o brinquedo continua. Neste caso o estímulo não é a vista
da bola, nem do companheiro de brinquedo. É a situação
— o jogo da bola. A "resposta" não é apenas rolar a bola
para trás; é fazê-lo de modo que o companheiro possa pegá-la
e devolvê-la, a fim de que o brinquedo continue. O "padrão"
ou modelo não é o ato da outra pessoa. Toda a situação requer que cada qual adapte seus atos tendo em vista o que a
outra pessoa fez e vai fazer. Pode surgir a imitação, mas
seu papel é subalterno. A criança tem interesse próprio;
deseja conservá-lo desperto. Ela pode então observar o modo
por que a outra pessoa apanha e segura a bola, com o fim de
aperfeiçoar seus próprios atos. Ela imita os meios de fazer
e não o fim ou a coisa a ser feita. E imita os. meios porque
o deseja, e em benefício próprio, como parte de sua própria
iniciativa: conseguir jogar bem. Basta considerar como de
todo em todo a criança precisa, em seus primeiros tempos de
vida, para realizar com bom êxito o que pretenda, adaptar seus
atos aos dos outros, para ver-se como lhe importa proceder
como .os outros e desenvolver sua compreensão dos seus modos
de proceder para que o possa fazer igualmente. A compulsão
daí decorrente para a similitude de ação é tão grande, que se
torna completam ente supérfluo recorrer à imitação.
Realmente, a imitação dos fins, tão diversa da imitação
dos meios que auxiliam a atingir os fins, é coisa superficial
e transitória que pouco efeito produz na formação mental.
Os imbecis são particularmente aptos para esta espécie de imitação que adota os atos exteriores, mas não a significação de
sua prática. Quando vemos crianças empenhadas nesta espécie
de mímica, em vez de encorajá-las (o que faríamos se ela
fosse um meio importante de direção social) somos mais inclinados a repreendê-las, chamando-lhes macacos, papagaios ou
bichos ensinados. Contrariamente a isso, a imitação dos meios
de realizar é ato inteligente, que subentende observação acurada e seleção judiciosa daquilo que nos habilita a fazer melhor
alguma coisa que já tenhamos tentado fazer. Utilizado para
certos fins, pode o instinto imitativo, como qualquer outro,
tornar-se um fator para o desenvolvimento da ação eficiente.
Esta digressão, conseguintemente, produzirá o efeito de
reforçar a conclusão de que a verdadeira direção social
significa a formação de certa mentalidade — um modo de
compreender coisas, eventos e atos que habilitem alguém a
tomar parte eficaz em atividades associadas. Só o atrito
gerado pela resistência encontrada da parte de outras pessoas leva à opinião de que isso se efetua forçando-se alguém
a seguir um método de ação contrário às propensÕes naturais.
Apenas o fato de não se tomarem em conta as situações em
que há pessoas mutuamente interessadas em proceder em
correspondência aos atos de outras conduz a considerar-se a
imitação o principal agente promotor da direção ou controle
social.
39
4. Algumas aplicações à educação. — Por que razão
em um grupo selvagem se perpetua a selvageria e num
civilizado a civilização? Indubitavelmente a primeira resposta
que ocorre é que os selvagens são selvagens — seres de grau
inferior de inteligência e, talvez, faltos de senso moral. Mas
estudos cuidadosos tornaram duvidoso que suas faculdades
inatas sejam apreciavelmente inferiores às do homem civilizado.
Eles deram-nos a certeza de que as diferenças inatas não são
bastantes para explicar a diferença de cultura. De certo modo
o espírito dos povos selvagens é mais efeito, do que causa, de
suas atrasadas instituições. São de tal sorte suas atividades
sociais, que lhes restringem os objetos da atenção e interesse
e, por isso, limitam-lhes os estímulos para o desenvolvimento
mental. Mesmo em relação aos objetos que caem no campo
de sua atenção, os primitivos costumes sociais tendem a fazer
a observação e a imaginação fixar-se em qualidades que não
podem frutificar em seu espírito. A falta do domínio das
forças naturais significa que escasso número de coisas figura em sua atívídade conjunta. Somente é utilizado um número pequeno de recursos naturais e estes não são tão aproveitados como o mereceriam. O progresso da civilização significa que maior número de forças e coisas naturais foi transformado em instrumentos de ação, em meios para se atingirem
fins. Não é tanto pelo começarmos com capacidades superiores, mas, sim, devido aos estímulos superiores para provocar e dirigir a manifestação de nossas capacidades, que somos civilizados. Os selvagens têm ern grande escala estímulos
brutos; e, nós, estímulos apurados.
Os esforços anteriores dos homens modificaram as condições naturais. Estas, originariamente, não favoreciam os
empreendimentos humanos. Cada planta cultivada, cada ani-
40
Democracia ç educação
mal domesticado, cada utensílio, artifício ou objeto fabricado,
cada ornamentação estética ou trabalho de arte, significa a
transformação de condições a-princípio hostis ou indiferentes
à atividade caracteristicamente humana, em condições seguras
e favoráveis. Como a atividade das crianças é hoje dirigida
por esses estímulos selecionados e ricos, elas podem atravessar
em breve tempo o trajeto que a espécie humana levou lentos
e torturados séculos para vencer. Todos os sucessos precedentes "deram mais peso aos dados".
Por si mesmos, ou em seu conjunto, não constituem
uma civilização os estímulos geradores de "respostas" econômlcas e eficazes, tais como o nosso sistema de estradas
e meios de transporte, a faculdade de dispormos prontamente do calor, da luz e da eletricídade, e nossas máquinas
e aparelhos fabricados para qualquer fim. Mas o uso que
lhes damos é civilização e, sem aquelas coisas, seria impossível esse uso. Dispomos agora do tempo que no estado
selvagem nos seria necessário para obter penosamente, em um
ambiente hostil, os meios de subsistência, e para nos assegurarmos uma precária defesa contra a inclemência do referido ambiente. Transmite-se um acervo de conhecimentos
cuja eficácia é garantida pelo fato de que a base natural em,
que se apoiam conduz a resultados que se harmonizam com
os outros fatos naturais. Por esta causa, essas aplicações da
arte proporcionam protecão, talvez a principal proteção contra
a revivescência daquelas crenças supersticiosas, mitos fantasistas e imaginações estéreis sobre a natureza, devido às quais
se perdeu, no passado, o melhor da capacidade intelectual humana. Se acrescentarmos, a esse, outro fator, isto é, que tais
aplicações não somente foram usadas, senão também usadas
de acordo com os interesses de uma vida verdadeiramente
compartida otí associada, tornam-se, então, esses recursos, o
cabedal positivo da civilização. Se a Grécia, com um restrito
acervo de nossos recursos materiais, perfez uma digna e nobre
carreira intelectual e artística, foi porque trabalhou, para fins
sociais, com os recursos de que dispunha.
Mas seja qual for a situação, quer de barbaria, quer
de civilização, seja de domínio limitado sobre as forças físicas, ou de escravização parcial a uma mecanização que
ainda não se incorporou à experiência compartida, as coisas,
do inodo como entram na ação, fornecem as condições educativas da vida quotidiana e dirigem a formação mental e moral.
A educação como direção
41
A educação intencional significa, segundo já vimos, um
ambiente especialmente escolhido tendo-se em vista, para essa
escolha, materiais e métodos apropriados a incentivar o crescimento na direção desejada. Desde que a linguagem representa as condições físicas que sofreram a máxima transformação no interesse da vida social — coisas físicas que perderam sua qualidade originária tornando-se instrumentos sociais — é natural que a linguagem represente grande papel,
comparado ao dos outros recursos. Por meio dela, em caráter de substitutos, conseguimos participar largamente da passada experiência humana, dilatando e enriquecendo assim a
experiência do presente. Achamo-nos habilitados, simbólica e
imaginativamente, a antecipar situações. Por infinitos meios a
linguagem condensa significações que registram resultados sociais e pressagiam perspectivas sociais. De tal arte ela importa
em uma liberal participação em tudo o que é de valor na vida,
que iletrados e não educados passaram quase a ser duas expressões sinónimas.
Apresenta, porém, os seus perigos insistir-se nas escolas neste instrumento particular educativo — perigos não apenas teóricos, mas que também se manifestam na prática.
Qual a razão por que, apesar de geralmente condenado, o
método de ensino de verter conhecimentos — o mestre — e
absorvê-los passivamente — o aluno — ainda persiste tão
arraigadamente na prática? Que a educação não consiste unicamente em "falar" e "ouvir", e sim em um processo ativo e
construtor, é princípio quase tão geralmente violado na prática,
como admitido em teoria. Não é essa deplorável situação devida ao fato de ser a matéria meramente exposta por meio da
palavra? Prega-se; leciona-se; escreve-se. Mas para se por
a matéria ou a teoria em ato ou em prática exige-se que o meio
escolar esteja preparado, em extensão raramente atingida, como
locais e condições para agir e fazer com utensílios e materiais
de natureza física. Exige-se, ainda, que se modifiquem os
métodos de instrução e administração de modo a permitir e
assegurar o contacto direto e contínuo com as coisas. Não
que se deva restringir o uso da linguagem como recurso educativo ; e sim que esse uso será mais vital e fecundo normalmente
articulado com a atividade exercitada em comum. "Deveis
fazer estas coisas, sem todavia desfazer as outras". E para a
42
Democrad-a e educação
escola "estas coisas" significam o aparelhamento^cow os instrumentos para a atividade cooperadora ou conjunta.
Pois quando as escolas se afastam das condições educacionais eficazes do meio extra-escolar, elas necessariamente substituem um espírito livresco e pseudo-intelectual a um espírito
social. As crianças vão, sem dúvida, à escola para aprender,
mas resta ainda provar-se que o aprender ocorra mais adequadamente quando se torna uma ocupação conscientemente isolada. Quando, tratado assim, tende a excluir o senso social
derivado da participação em uma atividade de interesse e
valor comuns, o esforço para o aprendizado intelectual isolado
contraria seu próprio escopo. Conservando um indivíduo isolado, conseguiremos garantír-lhe a atividade motora e a excitação sensorial: mas não poderemos desse modo fazê-lo compreender a significação das coisas na vida de que faz parte.
Conseguiremos dar-lhe especial aptidão técnica em álgebra, latim ou botânica, mas não a espécie.de compreensibilidade que
orienta as aptidões para fins úteis. Só se consegue mentalidade
social dedicando-se os homens à atividade conjunta, na qual o
uso de materiais e utensílios, por parte de uma pessoa, se relaciona conscientemente com o uso que outras pessoas fazem de
suas aptidões e recursos.
Resumo. — Os impulsos naturais ou inatos das pessoas não adultas não se harmonizam com os hábitos de vida
da sociedade onde nasceram. Por consequência, deverão ser
dirigidas ou guiadas. Esta direção não se confunde com a
coação física; ela consiste em fazer convergir os impulsos
que se manifestam em dado tempo para algum fim especial,
e em introduzir continuidade na sucessão dos atos. Os atos
dos outros são sempre influenciados se escolhermos os estímulos que lhes provoquem "respostas". Mas em certos casos,
como ordens, proibições, aprovações e desaprovações, os estímulos partem de pessoas que têm a intenção de influenciar
diretamente a atividade alheia. Como em tais casos é mais
conscientemente que influímos nas ações de outrem, é provável
exagerarmos a importância deste modo de influir ou educar, em
prejuízo de um método mais eficaz e de mais duradouros
efeitos. Esta direção básica reside na natureza da situação
em que o imaturo toma parte. Nas situações sociais, o jovem
põe seu modo de proceder em relação com o dos outros,
adaptando-o ao mesmo. Isto lhe orienta a ação para um re-
A educação como direção
43
sultado comum e dá uma compreensão comum da atividade
aos seus co-particípantes. A significação c a mesma^ para
todos, malgrado executem atos diferentes. A essência ^ da
direção social é esta compreensão comum dos meios e dos fins.
Ela é indireta, ou sentimental e intelectual, e não direta ou
pessoal. Além disso, é disposição intrínseca da pessoa e, não,
externa e coercitiva. O fim da educação é conseguir esta
direção interna por meio de identidade de interesse e compreensão. Os livros e a conversação podem fazer muito,
mas o mal é contarmos excessivamente com esses _fatores.
Para sua plena eficiência, as escolas precisam de mais oportunidades para atividades em conjunto, nas quais os educandos
tomem parte, a fim de compreenderem o sentido^ social de suas
próprias aptidões e dos materiais e recursos utilizados.
A educação como crescimento
CAPÍTULO 4
A educação como crescimento
l. Condições do crescimento. — Dirigindo a ativividade de seus membros mais novos, e determinando-lhes, por
esse modo, o futuro, a sociedade determina o seu próprio.
Uma vez que em dada época, mais tarde, esses jovens constituirão a sociedade de seu tempo, a natureza desta última dependerá em grande escala da direção dada anteriormente à
atividade infantil. Esta marcha cumulativa de ação para um
resultado ulterior é o que se chama crescimento (growth).
A primeira condição para haver crescimento é que haja
imaturidade. Parecerá tautologia dizer que um ser só se
pode desenvolver em algum ponto ainda não desenvolvido.
Mas o prefixo "im" de "imaturidade" significa algo de positivo e, não, simples carência ou vacuidade. É .conveniente
assinalar que os termos "capacidade" e "potencialidade" têm
duplo sentido — um negativo e outro positivo. Capacidade
pode denotar mera receptividade, como a capacidade de um litro.
Como se pode significar por potencialidade um mero estado de
adormecimento ou quietude — a capacidade de tornar-se coisa
diferente pelo influxo de condições exteriores. Mas também
indicamos, com a palavra capacidade, uma aptidão, um poder;
e com a de potencialidade, energia, força. Ora, quando dizemos que imaturidade significa a possibilidade de crescimento,
não nos referimos à ausência de aptidões que poderão surgir
mais tarde; referimo-nos a uma força positivamente atual — a
capacidade e aptidão para de senvolver-s e.
Nossa tendência a considerar a imaturidade como mera
falta, ou ausência e crescimento, como alguma coisa que
preenche o vazio entre o adulto e o imaturo, é devida a encararmos a criança relativamente, e não intrinsecamente. Consideramo-la unia falta ou privação, por estarmos a medir a
idade adulta, considerada como uma craveira fixa ou está-
45
tica. Prende-se a atenção naquilo que a criança não tem,
e que não terá enquanto não se tornar um homem. Esta
aferição relativa é legítima para alguns intuitos; mas se a
tornarmos última e final será o caso de perguntarmo-nos se
não seremos culpados de excessiva presunção. Se as crianças
se pudessem exprimir clara e sinceramente contar-nos-iam
coisas mui diversas; e entre os adultos acha-se bastante autorizada a convicção de que, para certos fins morais e intelectuais,
devem eles, os adultos, tornar-se verdadeiras crianças.
Manifesta-se a gravidade da suposição de que são puramente negativas as possibilidades do imaturo, ao refletirmos
que tal suposição prefixa como ideal e padrão um fim estático. Conseguir-se o desenvolvimento, crescer, é considerado
como terminar o mesmo, isto é, tomar-se ele um não desenvolvimento, uma coisa que não se desenvolve e não cresce mais.
Patenteia-se a futilidade dessa presunção corri a circunstância
de os adultos protestarem contra a afirmativa de não mais
terem eles a possibilidade de desenvolver-se; e, caso o aceitem,
lastimarem o fato, considerando verdadeira perda, e, não, sinal
de superioridade, o estar finda a sua educação. Por que usar
medidas desiguais com a criança e com o adulto?
Considerada absoluta e não relativamente, a imaturidade
significa uma força ou aptidão positiva — a aptidão para
desenvolver-se. Não teremos que extrair atividades positivas
de uma criança, ou fazê-las surgir, consoante o entendem
algumas teorias educacionais. Onde existe a vida, existem já
atividades ardentes, afervoradas. Desenvolvimento, crescimento, não é alguma coisa que fazemos a estas atividades: é
alguma coisa que as referidas atividades fazem. O aspecto
positivo e construtor dessas possibilidades proporciona a chave
para se compreenderem os dois traços principais da imaturidade : a dependência e a plasticidade.
Parecerá absurdo ouvir falar-se de dependência como de
uma qualidade positiva e, ainda mais absurdo, como uma força,
um poder. Entretanto, se incapacidade fosse tudo que existisse
em dependência, nenhum desenvolvimento se poderia efetuar.
Um ser simplesmente impotente teria de ficar eternamente a
cargo de outros. O fato de que a dependência é acompanhada
pelo desenvolvimento de aptidões, e não por uma sempre
crescente tendência ao parasitismo, sugere ser ela, já, uma
força construtora. Se fosse unicamente protegida, carregada
e amparada pelos outros não se manifestaria o desenvolvimento.
Democracia e educação
A educação como crescimento
Pois essa proteção equivaleria unicamente a uma muralha construída em torno da impotência. Em relação ao mundo material, é certo, a criança nada pode por si. Falta-lhe ao nascer, e
depois, durante muito tempo, a capacidade de se conservar
fisicamente, de procurar a própria subsistência. Se tivesse de
fazer isso por si mesma, dificilmente teria uma hora de vida.
A esta luz, sua impotência é quase completa. Os filhotes dos
animais são-lhe infinitamente superiores a tal respeito. Fisicamente fraca, a criança é incapaz de empregar as outras
forças que possui para lutar com o meio material.
seus instintos sociais são empregados em seu próprio interesse
e não que esses instintos não existam. Mas semelhante afirmação não corresponde à verdade. Os fatos geralmente citados em apoio do pretenso egoísmo infantil mostram em verdade a intensidade e retidão com que as crianças se dirigem a
seu alvo. Se este alvo ou fim parece acanhado e egoísta para
os adultos, é unicamente porque estes (por meio de idêntico
procedimento na puerícia) já realizaram os tais fins, que por
essa razão deixaram de interessá-los. A maioria dos outros
pretensos atos egoísticos da criança denotam apenas um egoísmo em conflito com o egoísmo dos adultos. A estes adultos,
que se acham mui absorvidos com suas próprias preocupações
para se interessarem pelas preocupações das crianças, estas
parecerão, com certeza, desrazoav^elmente dominadas pelos seus
próprios desejos. .
46
I — Não obstante, a natureza desta impotência completa
sugere a existência de alguma força compensadora. A relativa
habilidade dos filhos dos irracionais para adaptarem-se perfeitamente às condições físicas de seus primeiros tempos de vida,
entremostra o fato de que a "vida dos mesmos não se acha
intimamente ligada à dos seres entre os quais eles vivem. São
forçados, por assim dizer, a ter aptidões físicas, por lhes
faltarem aptidões sociais. Por outro lado, os infantes humanos podem viver, apesar de sua incapacidade física, exatamente
por causa de sua capacidade social. Falamos e pensamos, às
vezes, como se simplesmente sucedesse acharem-se eles fisicamente em um ambiente social; como se as forças sociais existissem exclusivamente nos adultos que lhes dão seus cuidados,
sendo os infantes meros seres de receptividade passiva. -Se
disséssemos que as crianças são por si mesmas maravilhosamente
dotadas da faculdade de atrair a atenção cooperadora das outras
pessoas, pensar-se-ia ser isto um modo indireto de afirmar que
as outras pessoas são maravilhosamente atentas às necessidades
das crianças. Mas a observação nos mostra serem estas dotadas de um equipamento de primeira ordem para as relações
sociais. Poucos adultos conservam toda a plástica e sensível
aptidão das crianças para vibrarem em harmonia com as atitudes e atos das pessoas entre as quais vivem. A desatenção
para com as coisas materiais (associada à sua incapacidade
para dominá-las) é acompanhada de uma proporcional intensificação de interesse e de atenção pelos atos das outras pessoas. O mecanismo vital e inato da criança, e seus impulsos,
tudo contribui para facilitar a correspondência de natureza
social. Mesmo que fosse verdade o que se afirma, de serem
as crianças egoístas antes da adolescência, isso não invalidaria
a verdade do que expusemos. Indicaria, simplesmente, que
47
Sob o ponto de vista social, a dependência denota, portanto, mais uma potencialidade do que uma fraqueza; ela subentende interdependência. Existe sempre o perigo de que a
crescente independência pessoal faça decrescer a capacidade
social de um indivíduo. O tornar-se mais confiante em si pode
fazê-lo bastar-se mais a si mesmo; pode levá-lo ao insulamento
e à indiferença. Isto torna muitas vezes o indivíduo tão insensível em suas relações com os outros, que lhe faz nascer a
ilusão de ser realmente capaz de manter-se e agir isolado —
forma esta, ainda sem nome, de insanidade mental que é responsável por grande parte dos sofrimentos remediáveis deste
mundo.
II — A aptidão especial de um imaturo para crescer
constitui sua plasticidade. Esta é coisa mui diversa da plasticidade do mástique ou da cera. Não é a propriedade de
mudar de forma de acordo com a pressão exterior. Parece-se
mais com a elasticidade com que algumas pessoas assumem a
cor de seu ambiente, conservando, ao mesmo tempo, as próprias inclinações. Mas é algo mais profundo do que isto. Em
sua essência, é a aptidão de aprender com a experiência, o
poder de reter dos fatos alguma coisa aproveitável para solver
as dificuldades de uma situação ulterior. Isto significa —
poder modificar seus atos tendo em vista os resultados de fatos
anteriores, o poder de desenvolver atitudes mentais. Sem isto
seria impossível contraírem-se hábitos.
Democracia e educação
A educação como crescimento
É familiar o fato de que os filhos dos animais superiores,
e especialmente os dos humanos, precisam aprender a utilizar-se
de suas reações instintivas. O ser humano nasce com maior
número de tendências instintivas do que os outros animais.
Mas os instintos destes se aperfeiçoam por si mesmos, para a
ação conveniente, pouco tempo depois do nascimento, ao passo
que a maioria dos do infante humano pouco lhe valem do
modo como eles existem. Uma aptidão inata especializada
para determinada adaptação assegura uma eficiência imediata
— mas, como um bilhete de via férrea, só' serve para dado
percurso. O ser que, com o fim de se utilizar dos olhos, dos
ouvidos, das mãos e das pernas, tem que experimentar fazer
variadas combinações de suas reações, consegue maleável e
variado domínio dos mesmos. Um pinto, por exemplo, aprende
a bicar com perfeição o alimento poucas horas depois de sair
do ovo. Isto significa que, com poucas tentativas, ele consegue
perfeita coordenação das funções dos olhos, para ver, e do
corpo e da cabeça para dar as bicadas. Já unia criança necessita de seis meses para calcular com alguma perfeição os
movimentos coordenados com sua atividade visual, para alcançar alguma coisa — isto é, de ser capaz de saber se pode
atingir o objeto visto e como executar este ato com justeza.
O resultado é que a atividade do pinto se restringe devido à
relativa perfeição de seu equipamento inato, ao passo que a
criança tem a vantagem da multidão de reações instintivas
feitas em tentativas sem-fim e da experiência obtida com isto,
sem embargo da temporária desvantagem de se prejudicarem
aquelas mutuamente. O aprender a prática de um ato, quando
não se nasce sabendo-o, obriga a aprender-se a variar seus
fatores, a fazer-se combinações sem conta destes, de acordo
com a variação das circunstâncias. E isso traz a possibilidade
de um contínuo progresso, porque, aprendendo-se um ato,
desenvolvem-s e métodos bons para outras situações. Mais
importante ainda é que o ser humano adquire o hábito de
aprendçr. Aprende a aprender.
A significação, para a vida humana, das duas circunstâncias — dependência e modo variável de resolver e controlar
situações — foi posta em destaque na teoria da importância
da infância prolongada (1). Este prolongamento é impor-
tante, não só do ponto de vista dos membros adultos da comunidade, como também no das crianças. A presença de
seres dependentes de nós e a aprenderem as coisas é um
estímulo à criação e à afeição. A necessidade de cuidados incessantes com a prole foi provavelmente o principal fator, para
transformar as coabitações temporárias em uniões permanentes. Primacial foi também sua influência para fazer surgir
os hábitos de vigilância afetuosa e simpática — esse interesse
real e ativo pelo bem-estar alheio, interesse essencial à vida
em comum. Intelectualmente, tal desenvolvimento moral significa o aparecimento de novos objetos de atenção -— significa
estimular-nos a ser previdentes e a formar planos para o
futuro. E, daí, por conseguinte, uma influência recíproca,
A crescente complexidade da vida social requer cada vez mais
prolongado período de infância para se adquirirem as necessárias aptidões; e prolongamento da dependência corresponde a
prolongamento da plasticidade ou faculdade de se adquirirem
novos e vários modos de direção. E, em consequência, maior
impulso ao progresso social.
48
I j Encontram-se em vários escritores referências, à sua importância, mas John Fiske, em seu livro " Excursões de um Evolucionista",
apresenta a primeira, exposição sistemática da matéria. N. do A.
49
2. Os hábitos como manifestações de crescimento.
— Já observamos que a plasticidade é a faculdade de reter
e extrair da experiência anterior elementos que modificarão
os atos subsequentes. Isto significa a capacidade de contrair
hábitos ou desenvolver determinadas atitudes. Consideremos
agora as características essenciais dos hábitos. Em primeiro
lugar, um hábito é uma habilitação, uma aptidão executiva,
uma capacidade de fazer. Um hábito significa a capacidade
de utilizar as condições naturais como meios para a realização
de objetivos. É um domínio ativo sobre o ambiente, por meio
do comando dos nossos órgãos de ação. Somos, talvez, inclinados a dar maior importância a esse domínio e comando do
corpo, do que ao comando e domínio do ambiente. Encaramos
os atos de andar, falar, tocar piano, as aptidões especiais
características do gravador, do cirurgião, do engenheiro, conio
se fossem simplesmente habilidade, perícia e perfeição da parte
do organismo.
São-no, sem dúvida, mas a medida do valor destas qualidades reside no domínio eficaz e económico sobre o ambiente,
que elas asseguram. Ser capaz de caminhar é ter ao nosso
dispor certas propriedades da natureza — e o mesmo sucede
em relação aos demais hábitos.
51
Democracia e educação
A educação como crescimento
Não raro define-se a educação como a aquisição dos hábitos indispensáveis à adaptação do indivíduo a seu ambiente.
Esta definição se aplica a um aspecto fundamental do crescimento. Mas é essencial que se entenda tal ajustamento ou
adaptação no sentido ativo de assenhoreamento de meios para
a realização de fins em vista. Se julgarmos seja um hábito
mera modificação realizada no organismo, abstraindo da circunstância de que esta modificação consiste na aptidão para
efetuar subsequentes modificações do ambiente, seremos levados a considerar que "adaptação" é uma conformidade com
o meio, igual à da cera em relação ao sinete que se grava nela.
Subentender-se-ia que o ambiente fosse algo de fixo, que
proporcionasse, em sua fixidez, o fim e o modelo das mudanças
que se efetuam tio organismo; e a adaptação seria o nos ajustarmos exatamente a esta fixidez das condições externas (1).
Hábito, em certo sentido, é em verdade algo relativamente
passivo; habituam-nos às coisas entre as quais vivemos, às
nossas roupas, ao nosso calçado e às nossas luvas; ao clima,
quando mantém certa uniformidade; aos companheiros de cada
dia, etc. Conformidade com o meio, mudança no organismo
sem se criar a aptidão para modificar aquele meio, é o traço
saliente de tais hábitos. Além do fato de que não somos capazes de converter os resultados desses ajustamentos (que bem
se poderiam chamar acomodações, para diferençarem:se da
adaptação ativa) em hábitos operantes e ativos sobre o nosso
meio, são dignos de registro dois aspectos de tais hábitos
passivos.
Em primeiro lugar, nós nos acostumamos às coisas, usando-as antes. Consideremos o fato de nos habituarmos a uma
cidade desconhecida. A princípio, excessivos estímulos e respostas excessivas e mal adaptadas. Gradativamente certos estímulos se selecionam por sua relevância, ao passo que outros
se enfraquecem. Poderíamos então dizer — que não correspondemos mais aos mesmos, ou, mais verdadeiramente, que estabelecemos uma correspondência permanente com eles — um equilíbrio de adaptação. Em segundo lugar, é essa adaptação definitiva que fornece o fundamento sobre o qual ocorrerão outras
adaptações especiais, quando surgir o ensejo. Nunca nos in-
teressamos, de fato, em transformar todo o ambiente; consideramos definitiva grande parte dele e a aceitamos tal qual é.
Com esta base, passam as nossas atividades a se focalizarem
sobre certos pontos, esforçando-se por implantar mudanças necessárias. A acomodação ou hábito passivo é, assim, nossa
adaptação a uma parte do meio que, no momento, não nos
interessa modificar, adaptação que serve de ponto de apoio para
a formação dos nossos hábitos ativos.
A adaptação, finalmente, é tanto a adaptação do meio à
nossa atividade, como a de nossa atítuidade ao meio. Uma
tribo selvagem procura viver em uma planície deserta. Ela
adapta-se. Mas a sua adaptação se faz com o máximo de
conformidade, de tolerância, de utilização .das coisas tal qual
existem, o máximo de aquiescência passiva e o mínimo de
influxo ativo, de domínio das coisas a serem usadas. Entra
em cena um povo civilizado. Ele também se adapta. Introduz a irrigação, pesquisa em todo o mundo plantas e animais
que resistam àquelas condições; aperfeiçoa, por uma cuidadosa
stleção, os já existentes no lugar. A consequência é que o
deserto floresce como uma roseira. O selvagem apenas se
habituou; o civilizado tem hábitos que transformam o ambiente.
A significação de hábito não se esgota, porém, com os
seus aspectos executivo e motriz. Importa na formação de
uma disposição intelectual e emocional tanto quanto um acréscimo de facilidade, economia e eficácia de ação. Todo o hábito indica uma inclinação — uma preferência e escolha positivas das condições necessárias à sua manifestação. Um hábito não espera, como o personagem MICAWBER, de DICKENS,
que algum estímulo apareça para se dar a alguma tarefa; ele
procura ativamente ocasiões para se exercer. Se esse exercício for indevidamente tolhido, a tendência e inclinação para
ele manifestam-se por um mal-estar e intenso anseio de agir.
Um hábito significa, por outro lado, uma atitude de inteligência. Onde existe um hábito, existe o conhecimento dos materiais e do aparelhafnento a que se aplica a atividade. Há
uma compreensão certa das situações em que o hábito atua.
Modos de pensar, de observar e de refletir constituem formas
de habilidade e de desejo inerentes aos hábitos que fazem um
homem ser engenheiro, arquiteto, médico ou negociante. Nas
modalidades de trabalho que exigem menos aptidões, os fatôres intelectuais se reduzem ao mínimo porque não são de tipo
elevado os hábitos que elas subentendem. Mas tanto existem
50
1) Esta concepção está, naturalmente, em correlação lógica com
as concepções das relações exteriores entre estímulo e resposta, ^considerados no último capítulo, e com as concepções negativas de imaturidade e de plasticidade, de que tratamos no presente capítulo.
52
Democracia e educação
hábitos de julgar e de raciocinar, como de manejar um utensílio, pintar um quadro ou conduzir uma experiência.
Essas considerações estão, entretanto, aquém da realidade.
O que, em verdade, dá importância aos hábitos dos olhos e
das mãos, são os hábitos intelectuais que eles subentendem.
Mais do que tudo, é o elemento intelectual de um hábito que
lhe garante o uso variado e elástico e, por conseguinte, o seu
contínuo crescimento. Falamos, muitas vezes, de hábitos -fixos,
Tal expressão pode significar forças e capacidades tão bem
implantadas que delas podemos sempre dispor em caso de
necessidade. Mas a frase é também usada para exprimir
exatamente processos rotineiros, sem frescura, sem largueza de
vistas e sem originalidade. Fixidez de hábitos significa, então,
que alguma coisa nos mantém sob o seu domínio em vez de
sermos nós que podemos livremente lançar mão das coisas.
Este fato explica dois pontos da noção comum relativa aos
hábitos: sua identificação com as modalidades da ação mecânica e externa, em detrimento das atitudes morais e mentais,
e a tendência a dar-lhes significação pejorativa equivalente a
"maus hábitos". Muitas pessoas se surpreenderiam ao ouvir
chamar "hábitos" sua aptidão na profissão escolhida, e pensariam naturalmente no seu hábito de fumar, de beber ou em
outras coisas da linguagem profana com a típica significação
de hábitos. Um hábito, para elas, é alguma coisa que as tem
sob seu domínio e de que não se libertam facilmente mesmo
que, pela razão, a condenem.
Os hábitos se reduzem a rotineiros modos de proceder,
ou degeneram em modos de proceder a que nos escravizamos
na medida em que a inteligência se dissocia dos mesmos. Hábitos rotineiros são hábitos irreflexivos; "maus" hábitos são
hábitos tão apartados da razão que se acham em conflito com
as conclusões da deliberação e decisão conscientes. Segundo
já vimos, a aquisição de hábitos é devida à plasticidade de
nossa natureza: à nossa aptidão para variar as reações ou
respostas, até encontrarmos um apropriado e eficiente modo
•de proceder, uma conduta adequada. Hábitos rotineiros ou
hábitos que nos possuem em vez de serem possuídos por nós,
são hábitos que põem termo a tal plasticidade. Eles assinalam
o fim da aptidão para variar. Não pode ser posta em dúvida
a tendência da plasticidade orgânica, de base fisiológica, em
diminuir com o decurso do tempo. A ativídade instintivamente
móvel e inquieta ou ansiosa cie variedade, da idade infantil, o
A educação como crescimento
53
gosto pelos novos estímulos e novas experiências resvala depressa para uma estabilidade que significa aversão às mudanças
e o contentar-se com as realizações e conquistas passadas. Só
pode contrastar e deter esta tendência um ambiente que assegure o pleno funcionamento da inteligência no processo de
contrair hábitos. Por certo, o emperramento das estruturas
orgânicas afeta as funções fisiológicas que intervêm no ato
de pensar. Mas esta circunstância patenteia exatamente a necessidade de perseverantes cuidados para que a função da inteligência seja levada a seu máximo de possibilidades. O método de vistas curtas que recorre à rotina e repetição maquinais
para garantir a eficácia exterior do hábito e a habilidade motora, sem correspondente esforço mental, significa uma voluntária supressão de horizontes ao crescimento.
3. A significação educacional do conceito do desenvolvimento, — Até aqui, pouco temos tido que dizer,
neste capítulo-, acerca de educação. Ocupamo-nos com as
.condições de crescimento e com o que este subentende. Se
nossas conclusões são justas, elas acarretam consigo determinadas consequências educacionais. Quando se diz que educação é desenvolvimento, tudo depende do como se concebe
este desenvolvimento. Nossa conclusão essencial é que vida é
desenvolvimento e que o desenvolver-se, o crescer é a vida.
Traduzido em termos educacionais equivalentes, isto significa: 1.°) que o processo educativo não tem outro fim além
de si mesmo: ele é seu próprio fim; e que, 2.°) o processo
educativo é um contínuo reorganizar, reconstruir, transformar,
1.° — Considerado comparativamente, isto é, com referência às características especiais da vida infantil e da vida
adulta, o desenvolvimento significa a orientação da energia e
das forças latentes para canais especiais: a formação de hábitos implicando capacidade prática executiva, interesses definidos e certos e objetivos específicos para a observação e a
reflexão. Mas essa apreciação relativa não diz tudo. A criança é possuidora, por certo, de aptidões especiais: desprezar esta
circunstância é mutilar ou deformar os órgãos de que depende
seu desenvolvimento. Mas, por seu lado, o adulto utiliza-se de
suas aptidões para transformar o ambiente em que vive, ocasionando com isso o aparecimento de novos estímulos que reorientam suas energias e as mantêm em desenvolvimento. A
A educação como crescimento
ignorância deste fato significa parada de crescimento ou simples
acomodação passiva ao ambiente. Logo, por outras palavras
— tanto as crianças normais como os adultos normais se estão
a desenvolver. A diferença entre eles não é a que existe entre
desenvolver-se e não se desenvolver, e sim a que existe entre
modos de desenvolvimento adequados a condições diferentes.
Com relação ao desenvolvimento de aptidões destinadas a lidar
e resolver problemas especiais científicos e económicos, poderemos dizer que a criança se desenvolve para tornar-se cada
vez mais adulta. E com referência à curiosidade simpatizante,
às reações francas e à receptividade mental poderemos dizer
que o adulto se desenvolve à medida que se reaproxima da infância. Tão verdadeira é uma afirmativa quanto a outra.
Três ideias que já criticamos — o considerar-se a imaturidade uma simples deficiência, a adaptação um ajustamento estático a um ambiente fixo e o hábito como coisa
rígida e mecânica — se ligam e se prendem, todas elas, a
uma falsa ideia de crescimento ou desenvolvimento, isto é,
ser este uma evolução, uma marcha para um alvo fixo. Considera-se que o desenvolvimento tem um fim, em vez de ser
ele próprio um fim. Os equivalentes educacionais daquelas
três falsas ideias são: primeiro, não se tomarem em conta
as forças ou capacidades instintivas ou inatas dos educandos;
segundo, não se desenvolver o espírito de iniciativa para com
as situações novas; terceiro, um injustificável exagero dos
métodos mecânicos de ensino (drill) ou de outros artifícios
que asseguram a habilidade automática, em prejuízo da percepção pessoal. Em todos os três casos toma-se o ambiente do
adulto como modelo e alvo para o imaturo. Este deve ser levado até ao adulto.
Os instintos naturais não são tomados em conta ou são
tratados como coisas nocivas — como traços prejudiciais a
serem suprimidos, ou, pelo menos, a serem postos em conformidade com os padrões externos adotados. Uma vez que essa
conformidade é o objetivo, tudo o que é caracteristicamente individual em uma pessoa nova deve ser posto à margem, ou
considerado como fonte de mal e de anarquia. Torna-se a
conformidade uma coisa equivalente à uniformidade. Em
consequência disto, origina-se falta de interesse pelo novo,
aversão ao progresso e temor do incerto e do desconhecido.
Uma vez que a finalidade do desenvolvimento se acha fora
e além do processo do desenvolvimento, recorre-se a agentes
55
exteriores para provocar a marcha para aquela finalidade.
Sempre que for estigmatizado como mecânico algum método
educativo, podemos ter a certeza da existência da compulsão
externa para fazer atingir um fim externo.
2.° — Desde que em realidade o desenvolvimento ou crescimento é apenas relativo a um maior desenvolvimento ou
crescimento, a nada se subordina a educação, a não ser a mais
educação. É lugar-comum dizer-se que a educação não cessa
ao sair-se da escola. O sentido deste lugar-comum é ser o
intuito da educação escolar assegurar a continuação da educação coordenando as energias e organizando as capacidades
que asseguram o permanente desenvolvimento. A tendência a
aprender-se com a própria vida e a tornar tais as condições da
vida que todos aprendam com o processo de viver, é o mais
belo produto da eficiência escolar.
Quando desistimos de tentar definir a imaturidade por
uma comparação rígida com as realizações dos adultos, somos
forçados a desistir de considerá-la como denotando a falta
de característicos desejados. Abandonando esta noção, somos
também forçados a desistir de nosso hábito de considerar a
instrução como um meio de suprir essa falta, despejando os
conhecimentos em um vazio mental e moral que aguardava a
ocasião de ser preenchido. Se a significação da vida é desenvolvimento, tão verdadeira e positivamente vive uma criatura
em uma fase como noutra, com a mesma plenitude intrínseca
e as mesmas exigências absolutas. Daqui se infere que educação significa a empresa de suprir as condições que asseguram o crescimento ou desenvolvimento, — a adequação da vida
— independentemente da idade. Com efeito, se encaramos com
impaciência a imaturidade, considerando-a uma coisa que deve
findar o mais cedo possível, logo depois, quando adultos, por
isso que fomos formados por esses métodos educativos, volvemos o olhar com viva saudade para a infância e adolescência
passadas, como se contemplássemos um cenário de oportunidades perdidas e energias esperdiçadas. Veremos ironicamente
esta situação perdurar até reconhecermos que a vida em qualquer tempo tem suas próprias qualidades intrínsecas e que a
tarefa da educação é aplicar-se a essas qualidades.
A compreensão de que vida é crescimento, é desenvolvimento, protege-nos contra essa "idealização" da infância, que
em verdade não passa de uma ociosa fantasia. Não se pode
identificar a vida com qualquer ato e interesse superficiais.
57
Democracia e educação
A educação como crescimento
Embora não seja sempre fácil saber se o que parece mera
peraltice sem significação não será um indício do surgir de
alguma energia ainda indisciplinada, deveremos lembrar-nos
de que essas manifestações não devem ser tomadas como fins
em si mesmas. São sinais de possível crescimento. Devem
ser convertidas em meios de crescimento, de transmissão de
energia para a frente, e não toleradas ou cultivadas por si
mesmas. A atenção excessiva aos fenómenos superficiais (não
só por meio da censura como também pelo do incitamento)
pode causar a sua fixação e, portanto, a parada do desenvolvimento. O importante para o pai ou para o mestre é saber
para onde esses impulsos se dirigem e não aquilo que eles são.
O verdadeiro princípio do respeito à imaturidade não pode ser
melhor expresso do que com as palavras de EMERSON : "Respeitai a criança. Não sejais em excesso pais dela. Não a
perturbeis em sua solidão. Mas ouço a grita dos que me
replicam: — Isso é abandonar as rédeas da disciplina pública
e particular; desejais que a criança se entregue loucamente a
suas paixões e caprichos e dais a esta anarquia o nome de
respeito pela natureza infantil? — Responderei: — Respeitai
a criança, respeitai-a até o fim, mas também respeitai-vos a
vós mesmos,.. Os dois pontos essenciais na educação de um
adolescente são: conservar o que lhe é natural e desprezar tudo
o mais; conservar seu natural, .mas reprimir suas algazarras,
travessuras e brinquedos abrutados; resguardar seu natural e
arma-lo de conhecimentos em todas as direções para onde esse
natural se incline". E prosseguindo EMERSON a mostrar seu
respeito pela puerícia e pela adolescência, em vez de rasgar
para os professores uma senda fácil de trilhar, diz sobre a
educação que "ela muito exige do tempo, e muito da reflexão
do mestre. É coisa que requer tempo, hábito, clarividência,
oportunidade e todas as grandes lições e auxílios de Deus; e
só o pensar em aplicá-la subentende caráter e profundeza
de vistas".
fins humanos. Os hábitos tomam uma forma passiva ou de
equilíbrio geral e persistente da atividade orgânica com p
meio — e uma forma ativa de aptidões para readaptar a atividade a condições novas. A primeira fornece a base para o
crescimento, o desenvolvimento; a segunda constitui o desenvolvimento. Os hábitos ativos subentendem reflexão, invenção e iniciativa para dirigir as aptidões a novos fins. Eles são
o contrário da rotina, que assinala uma parada do desenvolvimento. Uma vez que este é a característica da vida, educação
e desenvolvimento constituem uma só coisa. O desenvolvimento não tem outro fim a não ser ele próprio. O critério do
valor da educação escolar está na extensão em que ela suscita
o desejo de desenvolvimento contínuo e proporciona meios
para esse desejo.
56
Resumo. — Capacidade de crescer decorre do estado
de dependência de outras pessoas, e de plasticidade. Estas
duas condições encontram-se em sua plenitude na infância e
na adolescência. Plasticidade ou capacidade de aprender com
a experiência significa formação de hábitos. Os hábitos dãonos o domínio sobre o meio e a capacidade de utilizá-lo para
Preparação e disciplina formal
CAPITULO 5
Preparação, desdobramento e disciplina
formal
l. A educação como preparação. — Já deixamos
exposto que o processo educativo é um processo de contínuo
desenvolvimento, tendo como objetivo, em cada fase, uma
capacidade aumentada de desenvolvimento. Esta concepção
contrasta vivamente com outras ideias que têm influenciado
a prática do ensino. Tornando-se bem patente o contraste,
ver-se-á mais claro a significação deste conceito. O primeiro
contraste é com a ideia de que a educação é um processo
de preparação ou de ficar-se preparado. Preparado, naturalmente, para as responsabilidades e regalias da idade adulta.
As crianças não são encaradas como membros sociais em situação definida e regular. Encaram-nas como candidatos; colocam-nas na lista dos que esperam. Esta mesma ideia é levada um pouco mais longe quando se considera não ter, a vida
do adulto, significação por si mesma e ser apenas provação
preparatória para a "outra vida". Trata-se, no fundo, de
outro aspecto da noção já criticada do caráter negativo do
desenvolvimento, ísto é, de consistir em preencher um vazio,
por isso não repetiremos a argumentação e passaremos a tratar das más consequências que advêm do assentar-se a educação sobre" tais cimentes.
Em primeiro lugar, subentende perda de impulso. Não
é utilizada a energia motriz. Como é proverbial, as crianças
vivem no presente; não só é circunstância a não ser omitida,
como também é uma excelência. O futuro, em sua qualidade
de futuro, não tem para elas estímulos nem realidade. Preparar-se para alguma coisa, não se sabe qual, nem porque, é
desprezar a energia motora existente para confiar-se na de
uma vaga probabilidade. Em tais circunstâncias, favorece tal
concepção a vacilação e a procrastinação. E essa é a segunda
59
má consequência da ideia da educação como preparação.
Muito remoto é o futuro para que se prepara o educando;
levará muito tempo para tornar-se presente. Para que pressas
no aprontarmo-nos para ele? a tentação de protelar cresce ainda
mais em face das muitas maravilhosas oportunidades de aventuras, para que o presente convida irresistivelmente. É natural que a atenção c a energia se dirijam para elas; a educação
se enriquece em resultado disso, mas esta educação é inferior
à que se conseguiria caso se houvesse empregado todo o
esforço para tornarem-se as condições do presente o mais
educativas possível. Um terceiro resultado indesejável é a
substituição de um padrão relativo às aptidões especiais do
educando, pelo padrão médio convencional de requisitos e exigências. O rigoroso e nítido julgamento baseado nos pontos
fortes e fracos do indivíduo é substituído por uma vaga e hesitante opinião relativa ao que se pode, em geral, esperar que o
jovem se torne em um futuro mais ou menos remoto — isto
é, no fim do ano, por ocasião das promoções, ou no tempo em
que esteja preparado para ingressar em uma academia ou penetrar naquilo que, em contraste com o estágio da preparação, é
considerado o lado serio da vida. É impossível exagerar a perda
resultante de desviar-se a atenção do ponto verdadeiramente
estratégico, que é o presente, para esse outro relativamente infecundo. Falha o processo exatamente no que procura, intencionalmente, conseguir: — a preparação de alguém para
o futuro.
Finalmente, a teoria da preparação obriga-nos a recorrer
em grande escala ao uso de motivos artificiais de prazer e de
dor. Como o futuro não tem poder estimulante e orientador
quando separado das possibilidades do presente, algo .deve ser
descoberto para exercer aquela função. Empregam-se então
promessas de recompensa e ameaças de punição. Trabalho
sadio, realizado por motivos atuais e inerente ao próprio processo de viver, é, por assim dizer, automático e inconsciente.
O estímulo se acha na situação que se depara atualmente a
alguém. Mas desde que se atende a esta situação, precisa-se
dizer aos alunos que, se não procederem do modo prescrito,
sofrerão a imposição de penas; e, caso obedeçam, podem esperar daí a algum tempo, no futuro, recompensas a seus sacrifícios presentes. Todos sabem quão fartamente se houve de
recorrer aos sistemas de punições nos métodos educativos que
esquecem as possibilidades presentes, em proveito da prepa-
61
Democracia e educação
Preparação e disciplina formal
ração para o futuro. Para que, depois, o desgosto pela rudeza
e esterilidade desse método faça o pêndulo oscilar para o extremo oposto e já agora, não são penas, mas atrações artificiais, engodos, rebuçados de açúcar, que faraó com que os
alunos aceitem as doses de informações por que não se interessam, mas que lhes devem ser ministradas em virtude das
necessidades futuras.
A questão, por conseguinte, em debate Jião é que a
educação prepare para o futuro. Se educação é desenvolvimento, ela deve progressivamente realizar as possibilidades
presentes, tornando assim es indivíduos rríais aptos a lidar mais
tarde com as exigências do futuro. O desenvolvimento não
é coisa que se torne completa em determinada ocasião; é um
contínuo conduzir para o futuro. Se o ambiente, na escola
ou fora dela, fornecer as condições que ponham adequadamente
em ação as aptidões do imaturo, é certo beneficiar-se com isso
o futuro, que é produto do presente. O erro não está propriamente em cuidar-se da preparação para as futuras necessidades e sim em tornar essa preparação a mola real do esforço
presente. Sendo grande a necessidade de preparação para uma
vida em contínua evolução, urge empregarem-se todas as energias para tornar-se a experiência presente a mais rica e significativa possível. E como o presente insensivelmente se transforma em futuro, segue-se que, assim procedendo, também teremos tomado em conta o futuro.
última fraqueza do espírito em sua transição da compreensão
estática da vida para a compreensão dinâmica. É uma simulação desta última concepção. Paga o tributo de falar muito
em desenvolvimento, processo, progresso. Mas todas estas
operações são meramente transitórias, não tendo, em si mesmas, significação. Apenas possuem significação como movimentos para chegar-se a alguma coisa remota para a qual nos
dirigimos. Uma vez que o desenvolvimento é simplesmente
um movimento para atingir-se um completo- modo de ser, o
ideal final é imóvel. Um futuro abstrato e indefinido é o que
prepondera, com tudo o que ele subentende, em detrimento
das energias e oportunidades atuais.
Como o alvo da perfeição, o alvo a que tende o desenvolvimento se encontra muito longe e muito para além de
nós próprios, a consequência rigorosa é ser inatingível. Por
isso, para ser utilizado como guia no presente, deverá ser traduzido em alguma coisa que o substitua. De outro modo,
seríamos compelidosj a considerar todas as manifestações da
criança como um expandir-se das faculdades latentes, e, por
essa causa, como coisas sagradas. Se não obtivéssemos algum
critério definido que representasse o fim ideal para julgar, por
meio dele, se dada atitude ou dado ato é, com referência
àquele fim, uma aproximação ou um recuo, nossa única alternativa seria suprimir todas as influências do' meio para que
não prejudicassem o desenvolvimento conveniente e adequado.
Não sendo isto exequível, cumpre recorrer-se a um substituto.
Em regra, naturalmente, esse substituto do ideal último é
alguma ideia que os adultos desejariam que a criança adquirisse.
Por conseguinte, recorrendo a "perguntas e respostas", ou a
outro artifício pedagógico, o professor trata de "extrair" dos
discípulos aquilo que é desejado. Se o conseguiu, isto demonstra que a criança se está desenvolvendo convenientemente.
Mas como o discípulo não tem geralmente inciativa própria
neste sentido, .o resultado é um tatear ao acaso para se encontrar o que se quer, e a formação de hábito de dependência das
"deixas" fornecidas por outros. Exatamènte porque estes métodos se baseiam simula dam ente num princípio verdadeiro e
proclamam ter a sanção deste princípio, podem causar mais
dano do que o método totalmente "verbal", onde resta, pelo
menos, muita coisa a que o aluno possa apegar-se.
Dentro da esfera do pensamento filosófico houve duas
tentativas típicas para proporcionarem um substituto eficaz do
60
2. A educação como desdobramento. — Existe uma
concepção de educação que se declara basear-se na ideia de
desenvolvimento. Ela, porém, toma com uma das mãos aquilo
que dá com a outra. Não se concebe o desenvolvimento
como um processo contínuo e sim como um desabrochar de
faculdades latentes até atingirem um alvo definido. Este alvo
é concebido como uma plenitude, urna perfeição. A vida em
qualquer estágio é apenas um evoluir para atingir essa plenitude. Logicamente esta teoria é apenas uma variante da
teoria da preparação. Praticamente diferem as duas, porque
os partidários da última insistem mais nos deveres práticos e
profissionais para os quais alguém se está preparando, ao
passo que a teoria do desdobramento tem em vista as qualidades ideais e espirituais da aptidão que se está a desenvolver.
A concepção de que o desenvolvimento e o processo consistem no aproximar-se de um último objetivo imutável é a
62
Democracia e educação
fim absoluto. Ambas partiram da concepção de um todo
—- de um absoluto — "imanente" à vida humana. O
ideal perfeito ou completo não é mero ideal; ele atua, é
uma força operante em cada lugar e em cada momento. Mas só implicitamente é que está presente: "potencialmente" ou em uma condição virtual. Aquilo que se chama
desenvolvimento é a ação gradual de descobrir e exteriorizar
o que assim se encontra rebuçado. FROEBEL e HEGEL, autores
das duas tentativas filosóficas a que nos referimos, têm ideias
diferentes do meio por que se efetua a progressiva realização
ou manifestação do princípio absoluto. Segundo Hegel, essa
manifestação se corporifica numa série de instituições históricas
que encarnam os diferentes fatores no Absoluto. De acordo
com FROEBEL., a força atuadora é a apresentação de símbolos,
em grande parte matemáticos, correspondentes aos traços
essenciais do Absoluto. Sendo eles apresentados à criança,
desperta o Todo ou a perfeição que dorme em seu íntimo. Um
simples exemplo esclarecerá o método. Todas as pessoas fa.miliarizada com os jardins de infância conhecem o modo de
reunir-se, em círculo, das crianças. Pois bem, o círculo não
é apenas um modo convencional de reunir as crianças; ele
deve ser usado íf por ser um símbolo da vida coletiva da
humanidade em geral".
O reconhecimento, por parte de Froebel, da importância
das aptidões inatas das crianças, sua carinhosa atenção para
com elas e -seu influxo para induzir os outros a estudá-las,
representam talvez a contribuição individual mais eficaz, na
moderna teoria educacional, para o reconhecimento amplo da
ideia do desenvolvimento. Mas a sua formulação da noção do
desenvolvimento e a organização de artifícios educativos para
incentivá-lo foram grandemente dificultadas pela circunstância
de que ele concebia o desenvolvimento como o desdobramento
de um princípio latente e já formado. Não conseguiu ver que
crescimento é crescer, desenvolvimento é desenvolver, e por
isso deu maior importância ao resultado, ao produto, do que ao
processo. Deste modo estabeleceu uma finalidade, um objetivo
que significada a parada do desenvolvimento e um critério não
aplicável à imediata orientação das aptidões a não ser pela
sua conversão em fórmulas abstratas e simbólicas.
Um objetivo último de completo desdobramento ou desenvolvimento é, conforme a linguagem técnica filosófica, transcendental, isto é, coisa à parte da experiência e percepção diretas. No que diz respeito à experiência, é vazio; representa
Preparação e disciplina fonnal
63
mais uma vaga aspiração sentimental do que alguma coisa que
possa ser inteligentemente apreendida e exposta. Esta imprecisão deve ser compensada com alguma fórmula a priori.
FROEBEL ligou os fatos concretos da experiência com o ideal
transcendental do desenvolvimento, considerando os primeiros
como símbolos do último. Considerar símbolos as coisas conhecidas, de acordo com alguma arbitrária fórmula a priori
—• todas as concepções a priori são arbitrárias — é um incitamento para a fantasia romântica se prender a analogias que
lhe agradem, tratando-as como leis. Depois de bem fixado
o plano do simbolismo, deve-se inventar alguma, técnica precisa por meio da qual se possa transmitir aos alunos a íntima
significação dos símbolos sensíveis. Como os adultos são os
formuladores do simbolismo, também são eles, naturalmente, os
criadores e íiscalizadores da técnica. O resultado foi que o
amor de FROEBEL ao simbolismo abstrato absorveu, muitas ve^
zes, o melhor de sua intuição profunda e natural; e o desenvolvimento infantil teve como substituto um plano autoritário tão
arbitrário e externamente imposto como nunca a história da
educação vira outro igual.
, Quanto a HEGEL, a necessidade de encontrar algum equivalente concreto e eficaz do inacessível Absoluto tomou aspecto
mais institucional do que simbólico. Sua filosofia, assim como
a de FROEBEL, faz, em certa direção, uma contribuição indispensável a uma válida concepção do processo da vida. Era
evidente para ele a fragilidade de uma abstraía filosofia individualista;, viu a impossibilidade de eliminar a influência das
instituições históricas, de tratá-las como formas de despotismo
geradas pelo artifício e sustentadas pela fraude. Em sua filosofia da história e da sociedade culminaram os esforços de
toda uma série de escritores alemães — LESSING, HERDER,
KANT, SCHILLER, GOETHE — para avaliarem a influência
formadora dos grandes produtos coletivos institucionais da
humanidade. Para os que aprenderam a lição desse movimento, seria de então por diante impossível conceber as instituições ou a cultura como coisas artificiais. Ele destruiu
por completo — em teoria, não de fato •— a psicologia que
considerava o "espírito uma coisa já completa, possuidora
pelo indivíduo, em si mesmo, mostrando a importância do
espírito objetivo" — a linguagem, o governo, a arte, a religião
— na formação mental dos indivíduos. Mas como HEGEL
estava obcecado pela concepção de uma finalidade absoluta,
64
Democracia e educação
viu-se íorçado a arranjar as instituições, tais quais existiam concretamente, em uma escala de crescentes aproximações. Cada
uma delas é em seu tempo e lugar absolutamente necessária,
porque constitui um estágio do processo de auto-realização do
espírito absoluto. Consideradas assim como graus ou estágios,
sua existência prova-lhes a perfeita raciomlidade, pois constituem um elemento integrante do total, que é a Razão. Contra
as instituições, tais como existem, os indivíduos não têm direitos espirituais; o desenvolvimento e a educação pessoais
consistem na assimilação passiva do espírito das instituições
existentes. A essência da educação é, pois, a conformidade e
não a transformação. Mudam-se as instituições, conforme a
história nos mostra, mas, sua mudança, o surgir e o decair
das nações, é obra do "Espírito do Tempo". Tirante os grandes "heróis", que são os escolhidos para órgãos do "Espírito
do tempo", os indivíduos não tomam parte naquelas mudanças. Nos fins do século XIX esta espécie de idealismo
fundiu-se com a teoria da evolução biológica. A "Evolução"
era uma força em atividade para a realização de seus próprios
fins. Contra ela, ou relativamente a ela, são impotentes as
ideias conscientes e as preferências individuais. Ou antes, são
apenas o meio pelo qual a evolução se manifesta. O progresso
social é um "crescimento orgânico" e não uma seleção experimental. A Razão é todo-poderosa, mas só a Razão Absoluta
é dotada de tal poder.
O reconhecimento (ou a redescoberta, pois a ideia era familiar aos gregos) de que as grandes instituições históricas
são fatores ativos do desenvolvimento intelectual foi grande
contribuição para a filosofia da educação. Significou um genuíno progresso sobre ROUSSEAU, que havia prejudicado sua
asserção de que a educação deve ser um desenvolvimento natural e não uma coisa exteriormente implantada ou enxertada
à força nos indivíduos, com a noção de que as condições sociais não são naturais. Mas em sua noção de uni objetivo final
e absoluto para o desenvolvimento completo e que tudo incluísse
em si, a teoria hegeliana destruiu as individualidades, embora
enaltecendo o Indivíduo, em abstraio. Alguns continuadores
de HEGEL procuraram conciliar as exigências do Todo e do
indivíduo pela concepção da sociedade como um todo orgânico
ou um organismo. Não se pode pôr em dúvida que a organização social pressuponha o adequado exercício da capacidade individual. Mas, organismo social, considerado de acordo
e disciplina formal
65
com as relações dos órgãos do corpo uns com os outros e com
todo o corpo, significa que cada indivíduo tem seu papel e
funções limitados, e requer ser completado com os papéis e
funções dos outros. Assim como se diferenciam as partes dos
tecidos do corpo de modo que uma seja mão, e mão apenas,
e outras olhos, e assim por diante, e constituindo todas juntas
o organismo, também se supõe que um indivíduo se diferencie
para os trabalhos materiais da vida social, outro para a função de estadista, outro para a de letrado, etc. Usa-se, deste
modo, a noção de "organismo" para dar-se uma sanção filosófica à distinção de classes no organismo social — noção que,
em suas aplicações educacionais, significa compressão exterior
e, não, desenvolvimento.
3. A educação como o adestramento das faculdades. — Uma teoria que teve grande voga, e que surgiu
antes que a noção do desenvolvimento assumisse grande importância, é conhecida pelo nome de teoria da "disciplina
formal". Tinha ela em vista o ideal legítimo de que o resultado do processo educativo seria o criarem-se aptidões especiais para as realizações. Uma pessoa adestrada é a que
pode fazer melhor as coisas que mais lhe importam, do que
sucederia se não se tivesse adestrado; "melhor" aqui significa
—• com maior facilidade, eficiência, economia, prontidão, etc.
Que isto seja um resultado da educação subentende-se do que
já foi dito sobre os hábitos como o produto do desenvolvimento
educativo.
Mas a teoria em questão toma, por assim dizer, um
atalho; considera certas capacidades (que são atualmente discriminadas) como fins ou objetivos diretos e conscientes da
educação e não simplesmente como resultados do desenvolvimento. Há um número determinado de capacidades a serem
formadas, como se poderiam enumerar as espécies de golpes
que um jogador de golfe teria de aprender. Por consequência, a educação deve diretamente visar ao exercício ou treino
dessas capacidades. Mas isto subentende o já existirem elas
em alguma forma não exercitada; de outro modo, sua criação
seria o resultado indireto de outras espécies de atividade e
de outros fatores. Já que existem numa forma bruta, basta o
trabalho de adestrá-las em repetições constantes e gradativas,
para que inevitavelmente se aperfeiçoem. Na frase "dis-
Democracia e educação
Preparação e disciplina formal
ciptina formal' 1 aplicada a esta concepção, "disciplina" tanto
se refere ao resultado das faculdades exercitadas, como ao
método de aperfeiçoá-las por meio de exercícios repetidos»
As espécies de capacidades em questão são tais coisas
como as faculdades de perceber, decorar, recordar, associar,
dar atenção, querer, sentir, imaginar, pensar, etc., que se modelam exercitando-se com o material apresentado. Em sua
forma clássica, esta teoria foi expressa por LOCKE, De um
lado o mundo exterior apresenta o material ou conteúdo do
conhecimento por meio de sensações passivamente percebidas.
Por outro lado, no espírito já existem certas faculdades como
a atenção, a observação, as de reter, comparar, abstrair,
combinar, etc. Resultará conhecimento se o espírito discriminar e combinar as coisas do modo como estão elas unidas e
separadas na própria natureza. Mas o que importa para a
educação é o exercício ou prática das faculdades do espírito
até que de todo se tornem hábitos arraigados. As commrações frequentemente empregadas são a do jogador de bilhar
e a do acrobata, que pelo emprego repetido e uniforme de
certos músculos conseguem afinal uma habilidade automática.
Até a faculdade de pensar se pode aperfeiçoar e converter em
hábito por meio de exercícios reiterados de fazer e combinar
simples distinções, para o que, no entender de LOCKE, as matemáticas apresentam inigualável material.
As ideias de LOCKE se ajustavam perfeitamente ao dualismo de seu tempo. Pareciam dar quinhões iguais ao espírito e à matéria, ao indivíduo e ao mundo. "Uma fornecia
a matéria do conhecimento e o objeto sobre o qual o espírito
deveria atuar, a outra proporcionava determinadas faculdades
mentais, que eram em número pequeno e podiam aperfeiçoar-se
por meio de exercícios especiais. O plano parecia tomar na
devida conta a matéria do conhecimento e ainda insistia em
afirmar que o fim da educação não era a simples absorção e
armazenagem de conhecimentos e sim a formação das faculdades pessoais da atenção, memória, observação, .abstração e generalização. Era realista em sua asserção categórica de que,
qualquer que fosse o material, provinha este do exterior —
e idealista, por ter como meta educativa a formação das faculdades intelectuais. Mostrava-se objetivo e impessoal em
sua asseveração -de que o indivíduo, por sí próprio, não pode
ter nem gerar quaisquer ideias verdadeiras; e individualista,
por colocar a finalidade da educação no aperfeiçoamento de
certas faculdades possuídas, desde o começo da vida, pelos
indivíduos. Esta espécie de distribuição de valores caracterizou, com exatidão, as ideias correntes nas gerações que se
sucederam a LOCKE; converteu-se, sem expressa referência a
LOCKE, em lugar-comum da teoria e psicologia educacionais.
Parecia, virtualmente, traçar ao professor uma tarefa definida
e, não, imprecisa. Tornou-se relativamente fácil a elaboração
de uma técnica da educação. O necessário era somente tratar-se de submeter ao necessário exercício cada uma daquelas
faculdades. Este exercício consistia em aios repetidos de
prestar atenção, observar, decorar, etc. Graduando-se a dificuldade destes atos, tornando cada série de repetições um
tanto mais difícil que a série precedente, organizava-se um
completo esquema educativo.
Existem vários meios, todos eles concludentes, de criticar
esta concepção em seus pretensos fundamentos e em sua aplicação educacional.
l — Talvez que o mais direto método de ataque consista
em evidenciar que as supostas faculdades inatas de observar,
decorar, querer, pensar, etc., são puramente mitológicas. Não
existem as tais faculdades já formadas a esperarem ser exercitadas. Há, em verdade, um grande número de tendências originárias, inatas, modos instintivos de proceder, baseados nas
relações originárias dos neurónios no sistema nervoso central.
Há a tendência instintiva dos olhos, de acompanharem e fitarem a claridade; dos músculos do pescoço, de se voltarem para
a luz e para os sons; das mãos, de estender-se e agarrar as
coisas; e virar, torcer, fazer girar os objetos, torcê-los e bater-lhes; do aparelho vocal, de emitir sons; da boca, de lançar
fora as substanciasse sabor desagradável; de fechar e franzir
os lábios, e assim por diante, tendências, essas, em número
quase infinito. Mas estas tendências, a) ao invés de serem
em número pequeno e bem distintas entre si, são de variedade
indefinida, entrelaçando-se mutuamente por todas as espécies
de meios sutis; fr) e ao invés de serem faculdades intelectuais latentes, necessitando apenas de exercício para seu
aperfeiçoamento, são tendências que reagem de determinados
modos às mudanças do meio, de forma a acarretarem outras
mudanças. Uma coisa na garganta faz-nos tossir; a tendência é para expelir a partícula prejudicial e modificar, por esse
modo, o estímulo subsequente. A mão toca em um objeto
quente; é impulsivamente afastada, sem nenhuma participação
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r&c :a e educação
da inteligência. Mas a retirada modifica os estímulos atuadores e tende a torná-los mais concordes com as necessidades
do organismo. É por essas mudanças especiais de atividades
orgânicas, como reação a mudanças especiais no ambiente, que
se efetua o domínio do ambiente a que já nos referimos. E
da mesma natureza são todos os nossos primeiros atos de ver,
ouvir, tocar, cheirar e provar. Faltam-lhes qualidades mentais,
intelectuais ou cognitivas, tomadas estas palavras em seu legítimo sentido, e não há quantidade de exercícios reiterados que
lhes comuniquem quaisquer propriedades intelectuais de observação, de formar juízos ou de ação intencional (volição).
2 — Por consequência, o "adestramento" de nossas inatas
atividades instintivas não é uma melhoria ou aperfeiçoamento
obtidos pelo "exercício", a exemplo do que a ginástica pode
operar com os músculos. Consiste antes em a) selecionar
entre as reações difusas provocadas em dado momento aquelas que são especialmente aptas à utilização do estímulo. Por
exemplo, entre as reações do corpo em geral (1), e da mão
em particular, que ocorrem instintivamente quando os olhos
são estimulados pela claridade, todas são gradativamente eliminadas, exceto as especialmente adequadas a atingir e segurar os objetos — do contrário não haveria "adestramento".
Como já o observamos, as primeiras rcoções, salvo pouquíssimas
exceções, são mui difusas e gerais, no caso do infante humano,
para que possam ser praticamente utilizadas. Daí a identidade
entre "adestramento" ou "treino" com reações ou "respostas"
selecionadas.
b) Igualmente importante é a coordenação especial que
se processa dos diferentes fatores componentes da "resposta".
Esta não é simplesmente a seleção das reações da mão que
resultam no ato de segurar, mas também dos estímulos visuais
particulares que provocam essas reações e não outras, e estabelecem conexão entre as duas coisas. Mas não se limita a
isto a coordenação. Podem produzir-se reações características de tempéfatura quando o objeto é segurado. Estas entra1) A ínterconexão é de fato tão grande, há tantos modos de construção, que cada estímulo traz alguma mudança em todo o organismo.
Estamos, porém, costumados a esquecer a maioria dessas modificações
da atividade orgânica total, concentrando a atenção naquela mais especificamente adaptada aos mais fortes estímulos do momento.
Prepafpção
e disciplina formal
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rão também em linha de conta; mais tarde a reação de
ratura pode articuiar-se diretamente com o estímulo óptico
e desaparecer a reação da mão — como no caso em que uma
chama, independentemente de contacto, mantém uma pessoa a
distância. Se uma criança, quando tem um objeto na mão,
bate com ele em alguma parte ou o amarrota, fazendo produzir-se um som, a reação auditiva penetra, por sua vez, no
sistema das reações. Se certo som (o nome convencional)
for produzido por outras pessoas justamente com determinado
ato, as reações do aparelho auditivo e do aparelho vocal relacionadas com o estímulo auditivo serão também outros fatores
que se associarão para a "resposta" completa e total (1).
3 — Quanto mais especializada for a mútua adaptação
da reação e do estímulo (pois, erri vista da sequência das
atividades, os estímulos se adaptam às reações assim como
as reações aos estímulos), mais rígido e, em geral, menos
proveitoso ou utilizável é o "adestramento"-ou "treino1' conseguido. Ou, em termos equivalentes: menos qualidade intelectual ou educativa terá o referido adestramento. O modo
habitual de expor-se este fato é dizer-se que quanto mais
especializada for a reação, menos transferível se torna a outros
modos de procedimento a aptidão adquirida com a prática e
aperfeiçoamento dessa reação. De acordo com a teoria ortodoxa da disciplina formal, um aluno, estudando sua íição de
leitura, adquire, além da aptidão para ler as palavras da mencionada lição, um aumento de suas faculdades de observação,
atenção e memória, aumento que lhe será de proveito quando
tiver de empregar essas faculdades em todas as outras coisas
que as exigirem. O fato, porém, é que, quanto mais ele se
limite a observar e a gravar na memória as formas das palavras, independentemente de sua conexão com outras coisas
(tais como a significação das palavras, as frases em que habitualmente são empregadas, a derivação e a classificação das
formas verbais, etc.), menos provável é que adquira aptidão
que possa aplicar em outras coisas que não seja a mera observação das formas visuais das palavras. Pode suceder que
nem mesmo esteja a aumentar sua capacidade de distinguir
perfeitamente as formas geométricas; para nada dizermos só1) Compare-se esta afirmação com o que foi dito mais atrás sobre
a ordem seriada das "respostas". Lá está mais explícito o modo por
que ocorrem esses arranjos consecutivos.
71
Democracia e educação
Preparação e disciplina formal
bre a aptidão gera] para observar. Está unicamente a selecionar os estímulos fornecidos pelas formas das letras e as reações motoras da reprodução oral ou escrita. O campo de
coordenação (para empregarmos nossa terminologia anterior)
é extremamente limitado nesse caso. As conexões empregadas
em outras observações e evocações (ou reproduções) são deliberadamente eliminadas quando o aluno se exercita unicacamente com formas de letras e de palavras. Uma vez que
foram eliminadas, não se podem manifestar quando se tornar
necessário. A aptidão conseguida para observar e recordar
formas de palavras não é útil para a percepção e recordação
de outras coisas. Não é transferível — como se diz na terminologia comum. Mas quanto mais amplo for o contexto da
ação — isto c, quanto mais variados forem os estímulos e
reaçoes coordenados — tanto mais a aptidão adquirida será
proveitosa para a execução eficaz de outros atos: não, estritamente falando, por existir alguma "transferência", mas porque a abundância de fatores empregados no ato especial corresponde a um largo campo de atividade, e a uma coordenação
flexível, em vez de limitada e rígida.
Além disso, a diferença entre o exercitar-se a habilidade
para soletrar por meio da observação das formas visuais das
palavras de um breve trecho e o exercício em que se observam essas formas visuais, ao mesmo tempo em que se procura aprender a significação do trecho lido, as derivações das
palavras, etc., pode ser comparada à diferença entre exercícios ginásticos com aparelhos de tração para se "desenvolverem'* certos músculos, e um jogo ou esporte. Os primeiros
são uniformes, mecânicos, rigidamente especializados. No
último caso, varia-se a cada momento; nunca dois atos são
perfeitamente semelhantes; têm-se de enfrentar novas emergências ; as coordenações que se formam necessitam manter-se
flexíveis e elásticas. Por consequência, o adestramento é
muito mais "geral" -— isto é, ocupa mais vasto terreno e
encerra mais fatores. Dá-se o mesmo, exatamente, com a
educação especial e geral do espírito.
Um exercício monotonamente uniforme pode, com a repetição, dar grande habilidade para certa espécie de atos
mas a habilidade limita-se a essa atividade, seja ela escrituração mercantil, ou cálculos com logaritmos, ou experiências
com hidrocarbonetos. Pode-se ser autoridade num terreno
especial e, ser, entretanto, perfeitamente ignorante em matérias não ligadas de perto com aquela, a não ser quando o
exercício na referida matéria particular foi feito de forma a
ramificar-se pelo terreno de outras matérias.
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4 — Penetrando o âmago do assunto, diremos que o
equívoco fundamental da referida teoria consiste em seu dualismo, isto é, no separar a atividade e as faculdades, do objeto
ou matéria da atividade. Não existe a coisa que se chama
aptidão para ver, ouvir, ou recordar em geral; há aptidões
para ver, ouvir e recordar alguma coisa. Ê disparate falar
em exercitar-se, em geral, uma aptidão mental ou física, separadamente da matéria implicada em seu exercício. O exercício pode reagir sobre a circulação, a respiração e a nutrição
de modo a desenvolver a robustez ou a força, mas este armazenamento de energia é utilizável para fins especiais somente
quando o seu uso se fizer em relação com os meios materiais
indispensáveis à realização daqueles fins. O vigor muscular
habilitará um homem a jogar ténis ou golfe ou a dirigir um
barco de vela melhor do que se ele fosse fraco; mas só se
utilizando de determinados modos a bola e a raqueta do ténis,
ou a bola e o taco do golfe, ou manejando-se a vela e o
leme, é que uma pessoa adquire perícia em algum desses desportos ; e perícia em um deles só garante a perícia em outros
quando ela significa apti*dão para delicadas coordenações musculares ou quando todos requerem a mesma espécie de
coordenação.
5 — Por conseguinte, as capacidades como as de observação, memória, raciocínio, gosto estético, representam resultados organizados da ocupação de nossas inatas tendências ativas, em determinadas matérias. Se um homem observa acurada e plenamente alguma coisa, não é, por assim dizer, por ter
apertado um botão para fazer funcionar a faculdade da observação (em outras palavras: por "querer" observar); o fato
é que, se ele precisar fazer alguma coisa que só possa ser feita
com bom êxito mediante o uso intensivo e extensivo dos olhos
e das mãos, naturalmente observará bem as coisas. A observação é um produto, uma consequência da interação dos órgãos
dos sentidos e da matéria a que se aplicam. Varia, conseguintemente, de acordo com a matéria em questão.
É portanto inútil empreender mesmo o desenvolvimento
ulterior das faculdades de observação, memorização, etc., se
não tivermos determinado primeiro a espécie da matéria na qual
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Democracia e educação
Preparflçâo e disciplina formal
queremos que nosso discípulo se torne hábil a observar e a
recordar o observado e qual o fím visado com esse exercício.
E será o mesmo que repetir por outras palavras o que já foi
dito, o declararmos que esse fim deve ser social. O necessário é que uma pessoa observe, grave na memória e adote para
matéria de seus juízos as coisas que a tornarão um membro
competente e eficiente da comunidade em que se acha associada
a outras pessoas; se não fosse assim, faria o mesmo efeito
mandar o aluno observar cuidadosamente as fendas da parede
ou mandá-lo decorar listas de palavras de uma língua para
ele desconhecida. É isso mais ou menos o que fazemos ao
adotar a teoria da disciplina formal. Se melhores do que os
hábitos assim formados são os de um botânico, químico ou
engenheiro, a razão é que se dedicam a matérias mais importantes para a vida.
Concluindo esta parte dar exposição do assunto, notaremos que a distinção entre a educação geral e a especial
nada tem que ver com transferibilidade de função ou de capacidade. Literalmente considerada, toda a transferência seria
miraculosa e impossível. Mas algumas espécies de ativídade
são de grande amplitude, subentendendo a coordenação de
numerosos fatores. Seu desenvolvimento exige contínuas modificações e readaptações. Ao mudarem-se as condições, certos elementos assumem papel subordinado, ao passo que outros
de menor valor passam para o primeiro plano. Há um constante deslocar-se do foco da ação, como se viu no exemplo
do jogo ou desporto, em contraste com o exemplo da ginástica
de aparelho, com o ato de levantar um peso, em uma série
de movimentos uniformes. Por isso, no primeiro caso, adquire-se a prática de fazer novas combinações, uma vez que se
mudava de contínuo o foco da ação, de acordo com as alterações apresentadas pela matéria a que a referida ação se
aplicava. Quando uma atívidade abrange, por seu objetivo,
grande extensão (isto é, quando implica a coordenação de maior
variedade de subatividades) e determina, assim, constante e
inesperadamente, mudanças de direção em seu progressivo
desenvolvimento, é fatal que dela resulte uma educação geral.
Porque isto é o que "geral'' significa: amplitude e plasticidade.
Na prática escolar a educação satisfaz a essas condições e por
isso será geral, na proporção em que tomar em conta as reíações sociais. Uma pessoa pode tornar-se competente em
filosofia, ou filologia, ou matemáticas, ou engenharia, ou fi-
nanças, e ser inepta ou inconsiderada em seus atos e juízos
sobre matéria alheia à sua especialidade. Se, todavia, o seu
interesse nessas matérias se relacionar com atividades humanas de significação social, de muito mais alcance e de amplitude muito maior serão as í£respostas" provocadas e flexivelmente integradas por aquela ativídade especializada. Na
prática corrente, o principal obstáculo para uma educação
geral do espírito provém de achar-se .a matéria do ensino isolada da contextura social. Dissociadas destarte, a literatura,
a arte e a religião operam um tão constritor efeito, quanto o
material técnico que ardentemente lhes contrapõem os pedagogos apologistas da educação geral.
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Resumo. — A concepção de que o resultado do processo educativo é a capacidade de se prosseguir ulteriormente
a educação, contrasta com outras ideias que influenciaram
profundamente a prática do ensino. A primeira concepção
contrária considerada foi a de educação como preparo para os
futuros deveres ou privilégios. Assinalamos os maus efeitos
especiais resultantes da circunstância de que com esse objetivo
a atenção, do professor e do aluno, se desvia do único ponto
para o qual poderia frutiferamente dirigir-se, que é o aproveitamento das necessidades e possibilidades do presente imediato. Por consequência, prejudica a realização de seus próprios fins. A teoria de que a educação é um desdobramento
de faculdades já existentes parece ter mais similitude com a
concepção já exposta do desenvolvimento. Mas, encarada nas
ideias de FROEBEL e de HEGEL, ela implica, tanto como a doutrina da preparação, a ignorância da interação das presentes
tendências orgânicas com o ambiente presente. Considera-se
já formado algum todo em estado latente, sendo meramente
transitória a importância do desenvolvimento; este não é um
fim em si mesmo e sim apenas um meio de exteriorizar aquilo
que já existia em estado latente. Como não nos podemos
utilizar de uma coisa não exteriorizada ainda, urge encontrarmos algo que a represente. De acordo com FROEBEL, o misterioso valor simbólico de certos objetos e atos (de natureza
matemática, em grande parte) substitui o Todo Absoluto que
está a "desdobrar-se".
Segundo HEGEL, as instituições existentes são seus eficazes representantes atuais. O encarecimento dos símbolos e
74
Democracia e educação
das instituições tende a desviar a atenção do desenvolvimento
direto das experiências em riqueza e precisão de sentido.
Outra teoria em voga, mas defeituosa, também, é a que entende
que o espírito possuí, desde o nascimento, certas faculdades
como a percepção, a memória, a vontade, o juízo, a atenção, o
poder de generalizar, etc., e que a educação consiste no aperfeiçoarem-se essas faculdades por meio de exercícios repetidos.
Esta teoria trata o material da educação como coisa relativamente exterior e indiferente, residindo seu valor unicamente no fato de que ele pode servir para se exercitarem as
faculdades gerais. Focalizou-se a crítica contra a separação
entre essas pretensas faculdades e destas com a matéria sobre
a qual atuam. Patenteou-se que na prática o resultado desta
teoria era um descabido exagero no aperfeiçoamento de modalidades restritamente especiais de habilidades, à custa das
qualidades de iniciativa, inventiva e readaptação — qualidades,
essas, que dependem da interação ampla e contínua de determinadas atividades umas com as outras.
CAPÍTULO 6
A educação conservadora e a progressiva
l. A educação como formação, — Chegamos agora a uma teoria que nega a existência das faculdades e exagera o papel exclusivo da matéria de estudo para o desenvolvimento mental e moral. De acordo com ela, a educação
não é um processo de desdobramento das qualidades internas
nem o aparfeiçoamento de faculdades existentes no espírito.
É antes a formação do espírito pelo estabelecimento de certas
associações ou conexões de conteúdo por meio da matéria
apresentada do exterior. A educação se efetua pela instrução tomada em sentido estritamente literal; é uma edificação
feita, de fora para dentro, no espírito. Que a educação seja
formadora do espírito, não há nenhuma dúvida; na teoria
que propomos, isso já foi afirmado. Mas formação, na concepção que estamos a criticar, tem significado técnico, importando em alguma coisa a atuar do exterior.
HERBAKT é o melhor representante histórico desta teoria.
Ele nega absolutamente a existência de faculdades inatas.
O espírito é simplesmente dotado do poder de produzir várias qualidades de reação segundo as várias realidades que
atuam sobre ele. Estas reações qualitativamente diferentes
chamam-se apresentações (Vorstellungen). Uma vez chamada à existência, toda a apresentação persiste; pode ser recaícada para baixo do "limiar" da -consciência, por novas
e mais fortes apresentações produzidas pela reação do espírito a um novo material, mas sua atividade persiste por
seu próprio e inerente impulso, abaixo da superfície da consciência. Aquilo a que chamamos faculdades — atenção, memória, pensamento, percepção, e até os sentimentos, são arranjos, associações e conjuntos ou conjugações formados pela
ação mútua dessas apresentações submersas, umas com as
outras, e com outras novas apresentações. A percepção, por
77
Democracia e educação
A educação conservadora e a progressiva
exemplo, é a conjugação de apresentações que resulta do surgir
de velhas apresentações que se harmonizam e combinam com
outras novas; a memória é a evocação de uma velha apresentação acima do "limiar" da consciência pela sua ligação com
uma outra apresentação, etc. O prazer é o resultado do reforço mútuo que as atividades independentes das apresentações
se podem prestar pela sua conciliação; a dor, de sua dispersão
por diversos modos antagónicos, etc.
O caráter concreto do espírito consiste, portanto, totalmente nos vários arranjos formados pelas várias qualidades
das apresentações. Esse "equipamento" do espírito ê o espírito.
O espírito é totalmente uma questão de "conteúdo". Em matéria educacional três coisas subentende esta doutrina, l -—
Esta ou aquela espécie de espírito é formada pelo uso de
objetos que despertam esta ou aquela espécie de reação e que
produzem este ou aqttele arranjo entre as reaçoes provocadas.
A formação do espírito passa toda ela a ser uma questão
de apresentação do material educativo conveniente. 2 — Uma
vez que as primeiras apresentações constituem os "órgãos aperceptivos" que regulam a assimilação de novas apresentações,
a qualidade daquelas apresentações é de máxima importância,
O efeito das novas apresentações é, apenas, o de reforçar os
agrupamentos anteriormente formados. Assim, a tarefa do
educador é primeiramente selecionar o material apropriado
de modo a fixar a natureza das primeiras reaçõés — e, em segundo lugar, ordenar a série de apresentações subsequentes na
base do lastro de ideias assegurado pelos processos anteriores.
A .direção virá de trás, do passado, em vez de estar, como
na teoria do "desdobramento", no objetivo final. 3 — Podem-se estabelecer certas fases formais de método para todo e
qualquer ensino. A apresentação de matéria nova é obvia-mente o eixo de tudo, mas, uma vez que o conhecer consiste
no modo por que essa matéria reage sobre o conteúdo já
submergido abaixo da consciência, a primeira coisa será o
passo da "preparação" — isto é, o de elevar ao plano da consciência, e por em ativíuade especial, aquelas velhas apresentações que vão assimilar as novas. Logo após a apresentação
destas, seguem-se os processos de interação entre as novas e
as velhas; depois vem a aplicação do conteúdo ou conjugação
nova recentemente formada à execução de algum trabalho.
Tudo segue forçosamente este curso; por conseguinte, há um
método de ensino perfeitamente uniforme para todas as matérias e para todos os alunos de todas as idades.
O grande mérito de HEKBART está em ter retirado a tarefa do' ensino da região da rotina e do acaso, e tê-la trazido
para a esfera do método consciente. Ensinar tornou-se uma
atividade consciente com escopo e processo definidos, em vez
daquele conjunto de inspirações casuais e de subserviência à
tradição. Mais do que isso, tudo no ensino e na disciplina
passou a poder ser especificado, em vez de nos termos de
contentar com vagas e mais ou menos místicas generalidades
sobre os últimos ideais e símbolos espirituais especulativos.
HEHBART aboliu a noção das faculdades inatas que se poderiam
aperfeiçoar pelo exercício com qualquer espécie de material e
tornou importante, acima de tudo, a atenção ao material concreto de ensino, ao conteúdo. HERBART indubitavelmente exerceu influência maior, do que qualquer outro filósofo de educação, no trazer a debate os problemas relacionados com o
objeto e as matérias de estudo. Apresentou os problemas de
método sob o ponto de vista da conexão dos mesmos com o
material do ensino:, o método tinha de cuidar do modo e da
sucessão com que o novo material deveria ser apresentado para
assegurar sua conveniente interação com o velho.
O defeito teórico fundamental desta concepção reside
em não tomar em conta a existência num ser vivo de funções ativas e especiais que se desenvolvem pela redireção e
combinação em que entram quando se põem em contacto ativo
com o seu ambiente.
Esta teoria representa o mestre-escola em seus próprios
domínios. E este fato exprime, ao mesmo tempo, a sua força
e a sua fraqueza. A concepção de que o espírito consiste
naquilo que foi ensinado e que a importância do que foi ensinado consiste em sua utilidade para o ensino ulterior, reflete
opinião do pedagogo sobre a vida. Esta filosofia é eloquente
sobre o dever do professor de instruir os discípulos •— e é
quase silenciosa sobre seu privilégio de aprender. Dá grande
vulto à influência do meio intelectual sobre o espírito — e
esquece a circunstância de que o meio subentende a participação pessoal em uma atividade comum. Exagera mais do
que o razoável as possibilidades de métodos conscientemente
formulados e empregados e não dá c devido apreço ao papel
das atitudes e disposições vitais e inconscientes. Insiste sobre
as coisas anteriores, sobre o passado, e aflora ligeiramente a
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Democracia, e educação
A educação conservadora e a progressiva
atuacão do que é genuinamente novo e imprevisível. Em suma
— toma em linha de conta tudo o que é educativo, menos a
essência da educação, que é a energia vital buscando oportunidades para seu eficaz exercício. Toda educação forma o
caráter, forma a personalidade mental e moral, mas a formação
consiste na seleção e coordenação das atividades inatas, de
modo que estas possam utilizar o material do ambiente social.
Mais ainda — a formação não é apenas a formação de atividades inatas — mas se efetua por meio dessas atividades. É
um processo de reconstrução, de reorganização.
Mas a idéía implícita da mesma é a de ser a educação essencialmente retrospectiva; de que ela encara sobretudo o passado
e, especialmente, os produtos literários do passado, e de que o
espírito só é convenientemente formado na proporção em que
se modela sobre a herança espiritual do passado. Esta ideia
exerceu tão considerável influência, principalmente na educação superior, que é digna de ser examinada em seus aspectos
extremos.
Em primeiro lugar, é ilusório seu fundamento biológico.
Não há dúvida de que o desenvolvimento embrionário do
infante humano apresenta alguns traços das formas inferiores
da vida. Mas, de fornia alguma, é uma rigorosa reprodução
dos períodos anteriores. Se houvesse alguma rigorosa "lei"
de repetição, é claro que não se verificaria o desenvolvimento
evolutivo. Cada nova geração se limitaria a reproduzir a existência de seus predecessores. O desenvolvimento, em suma,
realizou-se pela interferência de cortes e alterações no primitivo
plano de desenvolvimento, E isto sugere que o intuito da educação deve ser o de facilitar essa abreviação do ciclo do desenvolvimento, esses curtos-circuitos do crescimento. Edttcacionalmente, a grande vantagem da imaturidade é habilitar-nos a
emancipar os educandos da necessidade de permanecer nessa
projeção do passado, de um passado já morto.,. O mister da
educação é antes libertá-los da necessidade de reviver, de reatravessar o passado, do que levá-los a uma reiteração deste. O
ambiente social dos educandos é constituído pela presença e
ação dos hábitos de pensar e de sentir dos homens civilizados.
Não tomar em conta o influxo orientador do ambiente atual
sobre os jovens é simplesmente abdicar da função educadora.
Disse um biologista: "A história do desenvolvimento de diferentes animais... apresenta-nos... uma série de esforços
engenhosos, definidos, variados, porém mais ou menos malogrados, para refugir à necessidade de reproduzir os métodos
ancestrais e substituí-los por outros mais diretos". Seria, sem
dúvida, insensatez, a educação não tentar resolutamente facilitar
esforços análogos em atividades conscientes, de forma a obterem eles cada vez melhor êxito.
Podem-se facilmente desembaraçar os dois elementos verdadeiros dessa concepção, desvirtuados pela sua associação
com elementos falsos. Sob o ponto de vista fisiológico, o
fato é que toda criança nasce com determinada quantidade de
2. A educação como recapitulação e retrospecçâo.
— Uma combinação particular das teorias do desenvolvimento e da formação efetuados do exterior para o interior
deu origem à teoria da educação como recapitulação biológica e cultural. O indivíduo desenvolve-se, mas seu conveniente desenvolvimento consiste em repetir em estágios
ordenados a evolução passada da vida animal e da história
humana. A primeira repetição opera-se fisiologicamente; a
última se efetuaria por meio da educação. A pretensa verdade biológica de que o indivíduo em seu desenvolvimento
desde simples embrião até à maturidade reproduz a história
da evolução da vida animal no aperfeiçoamento das formas
desde as mais simples até às mais complexas (ou, em linguagem técnica, de que a ontogênese reproduz a filogênese) não
nos interessa a não ser no suposto fundamento científico
que se julga pode proporcionar à recapitulação cultural do
passado. Por essa teoria de recapitulação cultural afirma-se,
primeiro, que as crianças até certa idade estão na condição
mental e moral da selvageria; seus instintos são de vaguear e
depredar porque seus antepassados em determinada época viveram essa vida. Por consequência (concluem) a matéria
educativa apropriada a esse período é a produzida pela humanidade — principalmente a matéria literária dos mitos, do
folclore e das canções — em análogos estágios de desenvolvimento. Em seguida, dizem, o menino passa a um período
correspondente ao pastoril, e assim por diante, até à época em
que se acha pronto para tomar parte na vida contemporânea,
isto é, até chegar ao estado atual de cultura.
Com esta forma particularizada e coerente essa teoria
teve pouca voga a não ser em uma escola alemã — escola
constituída, em sua maior parte, de continuadores de HERBART.
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Democracia e educação
atividades instintivas e de que estas são cegas, muitas delas
em conflito umas com as outras, -casuais, esporádicas e não
adaptadas a seu ambiente imediato, O outro ponto verdadeiro
é ser sensato procedimento o utilizarmo-nos dos produtos do
passado enquanto forem proveitosos para o futuro. Como
representam o resultado de experiências anteriores, seu valor
para as experiências futuras pode, por conseguinte, ser considerável. A literatura criada no passado faz parte do ambiente
atual dos indivíduos na proporção em que estes a conheçam
e utilizem; mas há enorme diferença entre o aproveitá-la
como recurso atual e o toma-la como modelo em seu caráter
ancestral.
l — O desvio do primeiro ponto provém geralmente da
compreensão errónea da ideia de hereditariedade. Presume-se
que hereditariedade significa que a vida passada determinou de
certo modo os traços principais de um indivíduo e que esses
traços são tão fixos que pouca mudança séria se lhes pode
introduzir. Apreciada desta forma, a influência da hereditariedade se contrapõe à do meio, o que faz com que a atuação
desta última seja indevidamente diminuída. Mas para fins
educativos hereditariedade significa nada mais nada menos do
que os dotes originários do indivíduo. A educação tem que
tomar o ser tal qual ele é. O fato fundamental é que determinado indivíduo tem precisamente tal e tal equipamento de
atividades inatas. Que tenham estas sido ocasionadas deste
ou daquele modo, ou que provenham de antepassados, não tem
especial importância para o educador, embora a possa ter para
o biologista. O essencial para aquele é que elas agora existem.
Suponhamos que se tenha de aconselhar ou orientar alguém
com referência a uma sua propriedade herdada. O fato de
ter sido herdada, como é claro, não determina a sua futura
utilização. O conselheiro encarará unicamente o melhor uso
a ciar àquela propriedade existente — de fazê-la render nas
condições mais favoráveis. É evidente que ele não pode ter
em conta a utilidade daquilo que ali não existe; nem o poderá
fazer o educador. Neste sentido, a hereditariedade é o limite
da educação. O reconhecimento desta circunstância evita o
dispêndio de energia e a irritação resultantes do hábito muito
corrente de, pela educação, tentar fazer de um indivíduo
aquilo para o que ele por sua natureza não tem aptidão. Mas
essa teoria não determina o emprego a dar-se às aptidões
A educação conservadora e a progressiva
81
existentes, Kxcetuado o caso do imbecil, estas aptidões inatas são tão variadas e contêm, em estado potencial, tantas possibilidades, até no caso dos mais ininteligentes, que estamos longe
ainda de saber convenientemente o modo de utilizá-las. Por
conseguinte, se um cuidadoso estudo das aptidões e deficiências inatas de um indivíduo é sempre a primeira necessidade
do educador, o segundo passo importante é proporcionar um
ambiente que ackme adequadamente todas as energias existentes.
A relação entre a hereditariedade e o ambiente põe-se bem
manifesta tornando-se como exemplo a linguagem. Se um
ser não tiver órgãos vocais que produzam sons articulados, se
não tiver aparelho auditivo e outros sentidos receptores, ou
senão houver conexões entre esses aparelhos, será pura perda
de tempo procurar ensiná-lo a falar. Ele nasceu deficiente a
este respeito, e a educação deve conformar-se com essa limitação. Mas, porque tenha ele nascido com tais órgãos, o fato
de possuí-los não garante, de modo algum, que ele aprenda a
falar alguma língua, nem determina a língua que falará. O
que determinará essas coisas será o ambiente em que manifestar sua atividade e onde esta encontrar aplicação. Se ele
viesse a morar em um meio anti-social de mudos voluntários,
onde os homens se recusassem a falar uns com os outros e
usassem apenas, para fazer-se entender, o mínimo de gestos
necessários para conservar a sua vida em sociedade, a linguagem verbal lhe seria tão desconhecida como se ele não
possuísse órgãos vocais. Mas, se os sons que ele emitisse, os
emitisse em um meio em que só se falasse o chinês, os atos
que o fizessem produzir sons idênticos aos dos chineses viriam
a ser selecionados e coordenados. Pode-se aplicar este exemplo
a qualquer espécie'de educabilidade dos indivíduos. Colocarse-á, assim, a herança do passado em sua justa correlação com
as exigências e oportunidades do presente.
2 — A teoria de que a matéria apropriada à educação
se encontra nos produtos culturais dos séculos passados (quer
em geral, quer mais especialmente nas literaturas particulares
que foram produzidas na fase de cultura que se supõe corresponder à fase de desenvolvimento das pessoas que estão sendo
educadas), não fornece outro exemplo daquele divórcio entre
o processo e o resultado do desenvolvimento de que já fizemos
a crítica. Conservar vivo o processo de crescimento e de
desenvolvimento, conservá-lo vivo de modo a tornar mais
fácil o conservá-lo vivo no futuro, esta é a função da matéria
82
Democracia e educação
A educação conservadora e a progressiva
verdadeiramente educativa. Mas o indivíduo não pode viver
senão no presente; o presente não é precisamente uma coisa
que venha depois do passado; e muito menos uma coisa produzida por esse passado; ele é aquilo que é a vida ao deixar
o passado para trás. O estudo dos produtos do passado
não nos auxiliará a compreender o presente, porque o presente não é devido a esses produtos e sim à vida da qual
eles eram os produtos. O conhecimento do passado e sua herança é de grande importância quando esse conhecimento se
incorpora ao presente mas não por outro motivo. E o erro
de fazer os escritos e outras relíquias do passado constituírem
o material da educação é que seciona a conexão vital do presente e do passado e tende a tornar o passado um rival do
presente, e o presente uma imitação mais ou menos inútil do
passado. Em tais circunstâncias, a cultura torna-se um ornamento ou um consolo; um refúgio ou um asilo. Os homens
fogem às rudezas do presente para viver entre as imaginárias
perfeições do passado, em vez de usar o que o passado proporciona com um fator para aperfeiçoar aquelas rudezas.
O presente, em suma, gera os problemas que nos levam
a procurar sugestões no passado, problemas que dão sentido ao
que encontramos em nossas pesquisas. O passado é passado
justamente porque não encerra o nue é característico do presente. O presente, a transformar-se, inclui em si o passado
desde que dele se utilize para dirigir seu próprio movimento.
O passado é um grande recurso para a imaginação; ele acrescenta uma nova dimensão à vida, mas com a condição de que
seja visto como o passado do presente e não como outro mundo
sem relação com o presente. A doutrina que menospreza o
ato presente de viver e de crescer e desenvolver-se — que é
a única coisa sempre presente — volta-se naturalmente para
o passado, porque o alvo futuro que se determinou é remoto
e vazio. Mas por volver as costas ao presente não lhe será
possível retornar a este carregada com os despojos do passado.
Pelo contrário, um espírito razoavelmente sensível às necessidades e oportunidades do presente terá os mais fortes motivos
para interessar-se pelos antecedentes do presente e não terá
dificuldade em retornar a este, pois nunca perdeu sua conexão
corn ele.
para o interior, a ideia do desenvolvimento dá em resultado
a concepção de que a educação é um constante reorganizar ou
reconstruir de nossa experiência. Ela tem sempre um fim
" imediato, e, na proporção em que a arividade for educativa,
ela atingirá esse fim — que é a transformação direta da
qualidade da experiência. A infância, a adolescência, a idade
adulta — tudo fica no mesmo nível educativo, no sentido de
que aquilo que realmente foi aprendido em todos e em cada
um dos estágios da experiência constitui o valor dessa experiência, e também no sentido de que a principal função da
vida é, sob todos os pontos de vista, fazer que o ato de viver
contribua para o enriquecimento de sua própria significação
perceptível.
Chegamos assim a uma definição técnica da educação:
é it-ma reconstrução ou reorganização da experiência, que
esclarece e aumenta o sentido desta e também a nossa aptidão
para dirigirmos o curso das experiências subsequentes.
3. A educação como reconstrução. — Em seu contraste com as ideias do desdobramento do interior para o
exterior de faculdades latentes, e da formação do exterior
83
l — O aumento ou enriquecimento do sentido ou significação da experiência corresponde à mais aguda percepção
das conexões e das continuidades existentes no que estivermos
empreendendo. A atividade começa de uma forma impulsiva,
por assim dizer, cega. Não conhece o que existe ao seu
redor, isto é, quais são suas relações com outras ativídades.
Uma atividade que acarreta educação ou instrução faz a pessoa conhecer algumas das relações ou conexões que não eram
antes percebidas. Recorrendo ao nosso singelo exemplo —
uma criança queima-se ao pôr a mão numa chama. De então
por diante ela sabe que certo ato táctil em conexão com certo
ato visual (e vice-versa) significa calor e dor; ou que certa luz
significa fonte de calor. Os atos por meio dos quais um cientista aprende mais coisas em seu laboratório a respeito da
chama não diferem desse, em princípio, absolutamente nada.
Fazendo certas coisas ele torna perceptíveis certas relações,
dantes ignoradas, da chama como outras coisas. Por esta
forma, seus atos em relação a essas coisas adquirem mais
significação; ele sabe melhor o que está a fazer, quando sua
atividade se aplica a tais coisas; pode provocar intencionalmente consequências em vez de limitar-se a esperá-las surgir -— o que tudo quer dizer a rriesma coisa: passou a saber,
a conhecer, a entender melhor certas coisas. Ao mesmo tempo,
a chama ganhou mais significação; tudo o que se conhece sobre
85
Democracia c educação
A educação conservadora c a progressiva
a combustão, a oxidação, a luz e a temperatura pode tornar-se
parte intrínseca de seu conteúdo intelectual.
rotina, a açao, isto é, a ação automática, pode aumentar a habilidade para fazer dada coisa particular. Por esse lado, pode-se dizer que tem efeito educativo. Ela, porém, não conduz
a novas percepções de significações ou conexões; limita mais
do que amplia o horizonte das significações. E desde que o
ambiente pode mudar ou, melhor, está sempre a mudar, e nosso
modo de proceder precisa modificar-se de forma a manter-se
em conexão bem equilibrada com as coisas, um modo de proceder Isolado e uniforme como o consequente dessa aprendizagem de prática e rotina pode tornar-se desastroso em algum
momento crítico. A decantada "habilitação" do aluno converte-se então em grosseira inépcia.
O contraste essencial da ideia da educação como uma
reconstrução contínua, com as outras concepções unilaterais
que foram criticadas, neste capítulo e no antecedente, é que
ela identifica o fim (o resultado) com o processo. Verbalmente, isso parece contraditório, mas só o é verbalmente.
Em rigor significa que a experiência como um processo ativo
prolonga-se no tempo e que seu período ulterior completa o
período antecedente; projeta luz sobre as conexões nele implicadas mas até então despercebidas. O resultado final revela,
assim, a significação do antecedente, ao passo que a experiência
considerada como um todo estabelece uma determinada tendência ou disposição para com as coisas que possuam essa
significação. Toda a experiência ou atividade assim contínua
é educativa, e toda a educação consiste em ter tais experiências.
Resta somente assinalar (o que merecerá depois maior
atenção) que a reconstrução da experiência tanto pode ser
social como pessoal. Com o fim de simplificar, referimo-nos
nos capítulos antecedentes à educação dos imaturos, como se
essa educação que os impregna do espírito do grupo social a
que pertencem consistisse em trazê-los, sob o ponto de vista das
aptidões e dos recursos, até o nível dos adultos. Isto se aplica
em geral às sociedades estáticas, que adotam como medida de
valor a manutenção dos costumes estabelecidos. Mas não às
comunidades progressivas. Estas se esforçam por modelar as
experiências dos jovens de modo que, em vez de reproduzirem
os hábitos dominantes, venham a adquirir hábitos melhores,
de modo que a futura sociedade adulta seja mais perfeita que
as suas próprias sociedades atuais. Há já tempos que o homem
vem sentindo a extensão em que a educação conscientemente
praticada pode eliminar manifestos males sociais fazendo os
84
2 — O outro aspecto de uma experiência educativa é o
aumento da capacidade de direção ou regulação das experiências
subsequentes. Dizer que alguém sabe o que vai fazer ou que
pode provocar certas consequências é, naturalmente, dizer que
pode prever melhor o que vai acontecer; que pode, por isso,
preparar-se com antecipação para assegurar consequências benéficas e evitar as indesejáveis. Portanto, uma experiência
genuinamente educativa, que proporciona conhecimentos e
aumenta as aptidões, diferencia-se, de um íado, de uma atividade rotineira; e, do outro, de uma atividade caprichosa, a)
Na última, a pessoa (í não se preocupa com o que possa acontecer"; " deixa-se levar", evitando relacionar as consaqúências
de algum ato (as provas de suas conexões com outras coisas)
com o ato referido. Habitualmente vê-se com aborrecimento
alguém entregar-se a tais atos sem objetivo, que são considerados como prova de índole caprichosa, ou de descuido ou
indisciplina prejudiciais. Daí, a tendência de procurar a causa
dessa atividade sem escopo, nos estados de espírito próprios
do adolescente, isolados de tudo o mais. O fato, porém, é ser
essa atividade impulsiva devida a um mau ajustamento com
o ambiente. Os indivíduos procedem caprichosamente toda
a vez que são levados pela compulsão externa ou quando, obrigados ou acostumados a obedecer, agem de acordo com o que
os mandam fazer, sem ter um fito próprio nem perceber o
alcance, daquilo que estão fazendo, sobre outros atos. Alguém
pode aprender fazendo coisas que não compreende; até nas
atividades mais inteligentes fazemos rnuita coisa sem atenção
consciente, porque a maioria das conexões do ato que conscientemente intentávamos praticar não foram percebidas ou
previstas. Mas, se aprendemos, é só porque, depois do ato
praticado, observamos resultados que antes não observáramos.
Mas grande parte do trabalho nas escolas consiste em estabelecer regras para os alunos de tal forma que, mesmo depois
de praticado o ato, não podem eles ver ou não são levados a
ver a conexão entre o resultado — isto é, a resposta à questão
do professor — e o método seguido. Do modo como se lhes
apresentam as coisas, estas tomam para eles o aspecto de uma
espécie de mágica ou de milagre. Tal procedimento é essencialmente caprichoso e conduz a hábitos caprichosos, b) A
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86
Democracia e educação
jovens seguir caminhos que não produzam aqueles males —
como também não lhe tem faltado a intuição de que a educação pode tornar-se um instrumento para realizar as mais
belas esperanças humanas. Entanto, estamos sem dúvida longe
de compreender a eficácia potencial da educação como agente
edificador de uma sociedade melhor, de compreender que ela
não só representa o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, mas também da futura sociedade que será constituída
por eles.
Resumo. — A educação pode ser concebida retrospectiva ou prospectivamente. Isto é, pode-se considerar como o
processo de adaptar o futuro ao passado, ou como utilização
do passado como um dos recursos para o desenvolvimento do
futuro. A primeira concepção encontra seus padrões e modelos
naquilo que já existiu. Pode-se considerar o espírito como
um agregado de conteúdos resultantes de se lhe terem apresentado determinadas coisas. Neste caso, as primeiras apresentações constituem o material a que as últimas serão assimiladas. É importantíssimo encarecer o valor das primeiras
experiências dos imaturos, precipuamente por causa da tendência de se considerarem como de pouca monta. Mas estas
experiências não consistem em um material exteriormente
apresentado e sim na ação recíproca das atividades inatas
e do meio, interação que progressivamente modifica tanto as
atividades como o meio. O defeito da teoria herbartiana da
formação por meio de apresentações está em ter desprezado
esta contínua interação e mudança.
Aplica-se o mesmo princípio desta crítica às teorias que
encontram o primeiro material da educação nos produtos
culturais — principalmerite literários — da história humana.
Suprimida sua conexão com o meio atual em que os indivíduos
têm de agir, tornam-se eles uma espécie de meio rival e
perturbador. Seu valor reside em sua utilidade para aumentar a significação das coisas com que nos temos ativamente
de haver nos tempos presentes. As ideias sobre a educação
expostas nestes primeiros capítulos resumem-se formalmente
na concepção da contínua reconstrução da experiência, concepção que se distingue da educação como preparação para
um futuro remoto, como "desdobramento", como formação
externa e como repetição do passado.
CAPITULO 7
A concepção democrática da educação
Até este ponto quase que nos referimos exclusivamente
à educação tal como pode existir em qualquer grupo social.
Trataremos agora de salientar as diferenças que se produzem no espírito, no material e no método da educação, quando
esta opera em tipos diversos de organização social. Dizer
que a educação é uma Junção social que assegura a direção
e o desenvolvimento dos imaturos, por meio de sua participação na vida da comunidade a que pertencem, equivale,
com efeito, a afirmar que a educação variará de acordo com
a qualidade da vida que predominar no grupo. É particularmente verdade o fato de que uma sociedade que, não somente
rnuda, mas que, também, para estimulá-la, faz da mudança
um ideal, terá normas e métodos educativos diferentes dos
de outra que aspire meramente à perpetuação de seus próprios
costumes. Para tornar as ideias gerais estabelecidas aplicáveis à nossa peculiar prática educacional, é preciso, por
consequência, tratarmos mais detidamente da natureza da presente vida social.
1. O que subentende a associação humana. — Sociedade é uma só palavra, mas significa muitas coisas. Os
homens associam-se de tddos os modos e para todos os fins.
Um homem se acha incluído em uma multidão de grupos
diferentes, nos quais os seus consócios podem ser completamente distintos. Figura-se, com frequência, nada terem estes
grupos de comum, exceto o serem modos de vida associada.
Dentro de toda larga organização social existem numerosos
grupos menores: não somente subdivisões políticas, senão
também associações industriais, científicas e religiosas. Existem partidos políticos com diferentes aspirações, seitas sociais,
quadrilhas, conventículos, corporações, sociedades comerciais
88
Democracia c educação
e civis, grupos estreitamente ligados pelos vínculos do sangue,
e outros mais, em infinita variedade. Em muitos países modernos e em alguns antigos, há grande diversidade de nacionalidades, com diferentes línguas, religiões, códigos morais e
tradições. Sob este ponto de vista, muitas unidades políticas
menores, uma de nossas grandes cidades, por exemplo, são
mais um agregado de sociedades frouxamente unidas do que
uma compreensiva e bem amalgamada comunidade de ação
e de pensamento.
Os termos sociedade, comunidade, são, por esse motivo,
ambíguos. Têm dois sentidos: um laudatório ou normativo,
e outro descritivo; uma significação de jure e outra significação de facto. Ern filosofia social, a primeira acepção é
quase sempre a predominante. Concebe-se a sociedade como
uma pela sua própria natureza. As qualidades que acompanham esta unidade, a louvável comunhão de bons propósitos e
bem-estar, de fidelidade aos interesses públicos e reciprocidade
de simpatia, são postas em relevo e encarecidas. Mas quando,
em vez de fixar a atenção no significado intrínseco do termo,
observamos os fatos que esse termo indica ou a que se
refere, não encontramos a unidade e, sim, uma pluralidade de
associações boas e más. Incluem-se nela homens reunidos em
conluios criminosos, agremiações comerciais que mais saqueiam o público do que o servem e engrenagens políticas que
se mantêm unidas pelo interesse da pilhagem. Àqueles que
dizem que tais organizações não se podem chamar sociedades
por não satisfazerem as exigências ideais da noção de sociedade,
pode-se, por um lado, responder que se torna nesse caso tão
"ideal" a noção de sociedade, que fica sendo inútil, por não se
poder aplicar aos fatos; e, por outro lado, que cada uma dessas
organizações, por mais opostas que sejam aos interesses dos
outros grupos, tem um tanto das apreciáveis qualidades da
"sociedade" e são estas que as mantêm unidas. Há entre ladrões sentimento de honra e uma quadrilha de salteadores
tem um interesse comum a vincular todos os seus componentes.
Reina entre estes uma afeição fraterna, e nos grupos mais limitados há uma grande fidelidade a seus próprios códigos ou
pactos. A vida em uma família pode caracterizar-se por
grande segregação, desconfiança e ciúme em relação aos estranhos a ela e, entretanto, cultivar-se em seu seio um afeto
e auxílio mútuo modelares. Toda a educação ministrada por
um grupo tende a socializar seus membros, mas a qualidade e
A concepção democrática- da
89
Q valor da socialização dependem dos hábitos e aspirações
do grupo.
Daí se evidencia, mais uma vez, a necessidade de um
julgamento, de uma medida do valor dos diferentes modos
de vida social. Na pesquisa desse critério ou medida deveremos evitar dois extremos. Não poderemos criar, com as
nossas imaginações, alguma coisa que consideremos uma sociedade ideal. Nossa concepção deve basear-se em sociedades
que existam realmente, de modo a obtermos alguma garantia
da. exequibilidade de nosso ideal. Mas, por outro lado, o ideal
não pode limitar-se apenas a reproduzir os traços que encontramos na realidade. O problema consiste em extrair os
traços desejáveis das formas de vida social existentes e empregá-los para criticar os traços indesejáveis e sugerir melhorias.
Ora, em qualquer grupo social, mesmo em maltas de ladrões,
encontramos algum interesse comum e, além dele, certa porção
de interação e reciprocidade cooperativa com outros grupos.
Com estes dois característicos fixaremos o critério ou organizaremos um padrão de julgamento. Até que ponto são numerosos e variados os interesses conscientemente compartidos?
Até que ponto são intensas e livres as relações com outras
formas de associação? Se aplicarmos estas considerações a
uma quadrilha de malfeitores, por exemplo, verificaremos que
os elos que conscientemente lhe vinculam os membros são pouco
numerosos e quase que reduzidos ao só interesse comum do
roubo, e que são de natureza a isolar o grupo dos outros
grupos, no tocante ao mútuo dar e receber dos valores da
vida. Daí resulta que a educação proporcionada por uma tal
sociedade será parcial e falseada. Se, por outra parte, tomarmos, como exemplo, a vida familiar para ilustrar o nosso critério, acharemos que existem interesses materiais, intelectuais
e estéticos de que todos participam e que o progresso de um
de seus membros tem valor para a experiência dos outros membros — é facilmente comunicável — e que a família não é um
todo isolado e sim mantém íntimas relações com os grupos
econômjcos e comerciais, com as escolas, com as instituições de
cultura, assim como com outros grupos Semelhantes, e que
desempenha o papel devido na organização política, e desta, em
compensação, recebe amparo. Em uma palavra: há muitos
interesses conscientemente comunicados e compartilhados —
existem vários e livres pontos de contacto com outras modalidades de associação.
90
Democracia e educação
A concepção democrática da educação
I — Apliquemos, agora, o primeiro elemento deste critério a um país governado despoticamente. Nesse caso não é
verdade que não exista numa tal organização interesse comum
entre os governados e governantes. A autoridade deve apelar
de algum modo à atividade inata dos súditos e por em jogo
algumas de suas aptidões. Disse Talleyrand que um governo
podia tudo fazer com baionetas, menos assentar-se sobre elas.
Esta afirmação cínica encerra, pelo menos, o reconhecimento de
que o vínculo de união não é unicamente a força coercitiva.
Deve-se, entretanto, reconhecer que os impulsos para que se
apela são indignos e degradantes e que tal governo apenas
põe em ação a capacidade de temer. Esta afirmativa é, de
certo modo, verdadeira. Mas esquece a circunstância de que
o temor não é fator necessariamente indesejável na experiência.
A cautela, a circunspecção, a prudência, o desejo de prever
futuros acontecimentos para evitar o que c prejudicial — nestas
qualidades louváveis existe o instinto do medo, tanto quanto
na covardia e na abjeta subserviência. O mal está em apelar-se
unicamente para o medo. Provocando-se o temor e a esperança
de particulares recompensas tangíveis -— isto é, o conforto e o
bem-estar — deixam-se no abandono outras qualidades. Ou
antes, estas são postas em ação, mas de tal modo que se pervertem. Km vez de fazê-las atuar por sua própria conta,
reduzenvnas a meros instrumentos para conseguir o prazer e
evitar a dor.
Equivale isto a dizer que não há grande número de interesses comuns; não há livre reciprocidade do dar e receber
entre os membros do grupo social. O estímulo e a reaçao
mostram-se muito unilaterais. Para terem numerosos valores
comuns todos os membros da sociedade devem dispor de oportunidades iguais para aquele mútuo dar e receber. Deveria
existir maior variedade de empreendimentos e experiências de
que todos participassem. Não sendo assim, as influências que
a alguns educam para senhores, educariam a outros para escravos. E a experiência de cada uma das partes perde em significação quando não existe o livre entrelaçamento das várias
atividades da vida. Uma separação entre a classe privilegiada
e a classe submetida impede a endosmose social. Os males
que por essa causa afetam a classe superior são menos materiais e menos perceptíveis, mas igualmente reais. Sua cultura
tende a tornar-se estéril, a voltar-se para se alimentar de si
mesma; sua arte torna-se uma ostentação espetaculosa e arti-
ficial; sua riqueza se transmuda em luxo; seus conhecimentos
superespecializam-se; e seus modos e hábitos se tornam mais
artificiais do que humanos.
A falta do livre e razoável intercâmbio que promana de vários interesses compartidos desequilibra o livre jogo dos estímulos intelectuais. Variedade de estímulos significa novidade e novidade significa desafio e provocação à pesquisa e pensamento.
Quanto mais as atividades se restringem a umas tantas linhas
definidas — como sucede quando as divisões de classes impedem a mútua comunicação das experiências —• mais tendem a
se converter em rotina para a classe de condição menos favorecida, e a se tornar caprichosas, impulsivas e sem objetivos
para a classe em boa situação material. O escravo, no definir
de Platão, é o homem que recebe de outro 05 objetivos que
orientam sua conduta. Man i f esta-se esta condição mesmo
quando não haja escravidão no sentido legal desta palavra.
Ela existe sempre que um homem-se dedica a uma atividade,
cuja utilidade social ele não compreenda e que não encerre
para ele algum interesse pessoal. Muito se tem falado sobre
a organização científica do trabalho. Mas, uma visão acanhada
restringe o campo da ciência a assegurar a eficiência da atuação
por meio de acertados movimentos musculares ou físicos. A
principal oportunidade para a eficácia da ciência será a descoberta das relações do homem com seu trabalho — inclusive
as relações cem os demais que nele tomam parte — para que
o trabalhador ponha o seu interesse inteligente naquilo que
estiver fazendo. A eficiência da produção exige, com frequência a divisão do trabalho. Mas este se reduzirá a uma rotina
maquinal se o trabalhador não vir as relações* técnicas, intelectuais e sociais encerradas naquilo que está fazendo, em
relação às demais partes do trabalho, e não se dedicar a seu
trabalho por essa compreensão. A tendência a reduzir coisas
como a eficácia da atividade e a organização científica do trabalho a técnicas puramente externas, é a prova do ponto de
vista unilateral que possuem os que dirigem a indústria —
aqueles que lhe determinam os fins. Alheados de largos c
bem equilibrados interesses sociais não têm eles estímulo intelectual suficiente para se voltarem aos íatores e relações
humanos envolvidos na atividade industrial. As ideias a esse
respeito restringem-se aos elementos referentes à produção
técnica e à comercialização dos produtos. Não há dúvida de
••que nestes estreitos limites pode haver grande desenvolvimento,
91
92
Democracia e educação
A concepção democrática da educação
mas riem por isso a circunstância de não se tomarem em conta
importantes fatores sociais deixa de significar uma grande lacuna da colaboração espiritual, com um correspondente dano da
vida emocional dos que trabalham.
separação, pondo as nações e as classes sociais em mais íntimas
e perceptíveis conexões recíprocas. É comum, entretanto, não
se assegurarem plenamente as consequências intelectuais e
sentimentos desta supressão material do espaço.
II — Este exemplo (que se aplica, em sua essência, a
todas as associações em que não existe a reciprocidade de
interesses) conduz-nos ao nosso segundo ponto. O isolamento
e exclusivismo de uma quadrilha ou de um corrilho põe em
realce seu espírito anti-socíal. Mas encontra-se este mesmo
espírito onde quer que tenha algum grupo "interesses próprios",
que o privam de plena interação com outros grupos, de modo
que o objetivo predominante seja a defesa daquilo que já conseguiu, em vez de ser sua reorganização e progresso por meio
de relações cada vez de maior latitude. Isto é o que caracteriza as nações que se isolam uma das outras, as famílias que
se adstringem a seus interesses domésticos, como se estes não
tivessem conexão com uma vida mais ampla, as escolas quando
divorciadas dos interesses do lar e da comunidade, as divisões
em ricos e pobres, em doutos e incultos. A verdade fundamental é que o isolamento tende a gerar, no interior do
grupo, a rigidez e a institucionalização formal da vida, e os
ideais estáticos e egoístas. Não é por acidente que as tribos
selvagens consideravam como sinónimos os termos "estrangeiro" e "inimigo". Deriva isto do fato de terem elas identificado sabedoria com a rígida observância de seus antigos
costumes. Esta circunstância torna perfeitamente íógico recear a comunicação com outros povos, pois tal contacto poderia
dissolver aqueles costumes. Certamente ocasionaria a sua ré*
construção, É lugar-comum afirmar-se que a expansão de uma
intensa vida mental depende de crescentes séries de contactos
e experiências com o meio físico. Mas este princípio se aplica
mais significativamente ao campo em que mais costumamos
esquecê-lo, que é a esfera das relações sociais.
Toda a época de expansão na história da humanidade
coincidiu com a atuação de fatores que tenderam a eliminar o
afastamento entre povos e classes que dantes viviam isolados.
Até os alegados benefícios das guerras quando de todo reais
resultam do fato de que os conflitos entre as nações aumentam, pelo menos, as relações entre elas e assim, incidentemente,
habilita-as a aprenderem umas com as outras e a alargar, por
essa forma, seus respectivos horizontes. As viagens e a atividade económica e comercial já destruíram as barreiras de
2. O ideal democrático. — Os dois elementos de
nosso critério se orientam para a democracia. O primeiro
significa não só mais numerosos e variados pontos de participação do interesse comum, como também maior confiança
no reconhecimento de serem, os interesses recíprocos, fatores
da regulação e díreção social. E o segundo não só significa
uma cooperação mais livre entre os grupos sociais (dantes
isolados tanto quanto voluntariamente o podiam ser) como
também a mudar.ça dos hábitos sociais — sua contínua readaptação para ajustar-se às novas situações criadas pelos vários intercâmbios. E estes dois traços são precisamente os
que caracterizam a sociedade democraticamente constituída.
Quanto ao aspecto educativo, observaremos primeiro que
a realização de uma forma de vida social em que os interesses se interpenetram mutuamente e em que o progresso, ou
readaptação, é de importante consideração, torna a comunhão
democrática mais interessada que outras comunhões na educação deliberada e sistemática. O amor da democracia pela
educação é um' fato cediço. A explicação superficial-é que
um governo que se funda no sufrágio popular não pode ser
eficiente se .aqueles que o elegem e lhe obedecem não forem
convenientemente educados. Uma vez que a sociedade democrática repudia o princípio da autoridade externa, deve dar-lhe
como substitutos a aceitação e o interesse voluntários, e unicamente a educação pode criá-los. Mas há uma explicação mais
profunda. Uma democracia é mais do que uma forma de
governo; é, primacialmente, uma forma de vida associada, de
experiência conjunta e mutuamente comunicada.
A extensão, no espaço, do número de invivíduos que participam de um mesmo interesse de tal modo que cada um
tenha de pautar suas próprias ações pelas ações dos outros
e de considerar as ações alheias para orientar e dirigir as
suas próprias, equivale à supressão daquelas barreiras de
classe, raça e território nacional que impedem que o homem
perceba toda a significação e importância de sua ativídade.
Estes mais numerosos e variados pontos de contacto denotam
maior diversidade de estímulos a que itra indivíduo tem de
93
94
Democracia e educação
A concepção democrática da educação
reagir; e incentivam, por conseguinte, a variação de seus atos;
asseguram uma libertação de energias que ficam recalcadas
enquanto são parciais e unilaterais as incitações para a ação,
como ocorre com os grupos que com os seus exclusivismos
fecham a porta a muitos outros interesses,
A ampliação da área dos interesses compartilhados e a
libertação de maior diversidade de capacidades pessoais que
caracterizam a democracia não são, naturalmente, resultado de
deliberação e de esforço conscientes. Pelo contrário — suas
causas foram o desenvolvimento das indústrias e d*> comércio,
as viagens, migrações e intercomunicações que resultaram do
domínio da ciência sobre as energias naturais. Mas depois
que esses fatos fizeram surgir maiores possibilidades de formação individual, por um lado, e maior comunhão de interesses
por outro, será obra do esforço voluntário o conservá-las e
aumentá-las. É indubitável que uma sociedade para a qual sem
fatal a estratificação em classes separadas, deve procurar fazer
que as oportunidades intelectuais sejam acessíveis a todos os
indivíduos, com iguais acilidades para os mesmos Uma sociedade dividida em castas necessita unicamente preocupar-se
com a educação da casta dirigente. Uma sociedade móvel,
cheia de canais distribuidores de todas as mudanças ocorridas
em qualquer parte, deve tratar de fazer que seus membros
sejam educados de modo a possuírem iniciativa individual e
adaptabilidade. Se não fizer assim, eles serão esmagados pelas
mudanças em que se virem envolvidos e cujas associações ou
significações eles não percebem. O resultado seria uma confusão, na qual poucos somente se apropriariam dos resultados
da atividade dos demais — atividade cega e exteriormente
dirigida pelos primeiros.
tence) e que a tarefa da educação se limita a descobrir estas
aptidões e a exercitá-las progressivamente para seu uso social. Muito do que se tem dito a respeito é tomado de empréstimo das ideias que, primeiro que todos, PLATÃO ensinou
conscientemente ao mundo. Mas as condições sociais que
ele não podia modificar levaram-no a restringir estas ideias
em sua aplicação. Nunca chegou a poder conceber a pluralidade indefinida das espécies de atividade que podem caracterizar um indivíduo ou um grupo social — e, conseguintemente,
restringiu suas ideias a limitado número de categorias de aptidões e de organizações sociais.
O ponto de partida de PLATÃO é que a organização da
sociedade depende, em última instancia, do conhecimento da
finalidade da existência. Se desconhecermos esta finalidade,
ficaremos à mercê do acaso e do capricho; se desconhecermos a finalidade, que é o bem, não teremos um critério para
decidir racionalmente sobre as possibilidades que devem ser
acoroçoadas, ou como deve ser organizada a sociedade; sem
isso, não poderemos conceber qual a conveniente limitação e
distribuição das atividades — o que ele chamava justiça —
indispensável a caracterizar a organização tanto individual como
social. Mas como atingiremos o conhecimento do bem final
e permanente? Examinando esta questão chegaremos ao
obstáculo aparentemente insuperável de que não é possível esse
conhecimento a não ser em uma justa e harmoniosa ordem
social. De outro modo, o espírito se desorienta e extravia
com falsos valores e falsas perspectivas. Uma sociedade
desorganizada e cheia de facções estabelece diversos modelos
e ideais. Em tais condições é impossível a um indivíduo ser
coerente. Só um todo completo é perfeitamente coerente.
Uma sociedade que repousa na supremacia de um fator sobre
os demais, independentemente de suas exigências racionais ou
adequadas, falseará, sem dúvida alguma, o pensamento. Dignifica e eleva certas coisas e condena outras, criando uma mentalidade cuja aparente unidade é forçada e disforme. A educação se conduz, no final de contas, pelos modelos fornecidos
pelas instituições, costumes e leis. Só em um Estado justo
poderão esses modelos dar a educação conveniente; e só
aqueles que prepararam convenientemente o espirito estão aptoa
para reconhecer a finalidade e o princípio ordenador das coisas.
E, assim, presos em um círculo vicioso. Todavia^ PLATÃO sugere uma saída. Alguns poucos homens filósofos ou amantes
3. A filosofia educacional platónica. — Nos capítulos subsequentes trataremos de desenvolver e mostrar as
consequências das ideias democráticas sobre educação; no restante do presente capítulo, consideraremos as teorias educacionais que se desenvolveram em três épocas, quando era especialmente importante o alcance social da educação.
A primeira a ser examinada é a de PLATÃO. Ninguém
exprimiu melhor que ele o íato de que uma sociedade se
acha organizada estavelmente, quando cada indivíduo faz
aquilo para o que tem especial aptidão, de modo a ser útil
aos outros (ou a contribuir em benefício do todo a que per-
95
96
Democracia e educação
da sabedoria -^ ou da verdade — poderão, por meio
do estudo, conhecer ao menos os lineamentos das normas
apropriadas a uma verdadeira existência. Se um poderoso
soberano organizasse um estado de acordo com essas normas, a organização poderia conservar-se. Uma educação
poderia, então, ser desenvolvida no sentido de selecionar os
indivíduos, descobrindo aquilo para que cada um serve e proporcionando os meios de determinar a cada um o trabalho
para o qual a natureza o tornou apto. Fazendo cada qual sua
própria tarefa e nunca transgredindo esta regra, manter-se-iam
a ordem e a unidade do todo.
Impossível seria encontrar em qualquer sistema filosófico
um reconhecimento mais adequado da importância educativa
da organização social e, por outro lado, da dependência em que
essa organização ficaria dos meios utilizados para educar seus
jovens elementos. Seria impossível encontrar um sentido mais
profundo da função .da educação na descoberta e desenvolvimento das aptidões individuais e no exercitá-las e formá-las de
modo tal, a articulá-las com a atividade dos outros. No entanto, a sociedade em que se defenderam estas ideias era tão
pouco democrática que PLATÃO não procurou praticamente a
solução do problema cujos termos tão claramente via.
Quando PLATÃO afirmou incisivamente que o lugar do indivíduo na sociedade não deveria ser determinado pelo nascimento ou pela riqueza, ou por qualquer norma convencional
e sim por sua própria natureza descoberta no processo da
educação, ele não percebia a desigualdade das características
dos indivíduos, o caráter único de cada indivíduo. Para
PLATÃO os indivíduos se classificavam naturalmente em castas
e só em pequeníssimo número destas. Por conseguinte, a
função das provas selecionadoras da educação será a de revelar
unicamente a qual das três castas platónicas um indivíduo pertence. Não se reconhecendo a verdade de que cada- indivíduo
constitui sua própria casta, não se poderia reconhecer a existência da infinita variedade de tendências ativas e de combinações dessas tendências que um indivíduo é capaz de apresentar. O indivíduos eram unicamente dotados de três tipos de
faculdades ou aptidões. Por isso a educação logo atingiria um
limite estático em cada classe, pois só a diversidade cria a
mutação e o progresso.
Em alguns indivíduos predominam naturalmente os apetites, e por isso se distribuem pela classe dos trabalhadores
A concepção democrática da educação
97
manuais e dos que se dão a negócios, à qual compete conhecer
satisfazer as necessidades materiais humanas. Outros revelam, por obra da educação, que, em vez de apetites materiais,
sentem a predominância de um natural generoso, entusiasta e
valente. Tornam-se estes os servidores do estado, seus defensores na guerra, e zeladores internos na paz. A limitação dos
seus serviços é fixada pela deficiência de sua razão, que é
a capacidade de compreender o universal. Os que a possuem
recebem a mais elevada espécie de educação e se convertem
oportunamente em legisladores — pois as leis são os universais que regulam os particulares da experiência da conduta.
Não é verdade, assim, que PLATÃO pretendesse, intencionalmente, subordinar o indivíduo ao todo social. Mas é certo
que, não percebendo as diferenças individuais, em toda a sua
extensão, a verdadeira incomensurabilidade de cada indivíduo
e não reconhecendo, portanto, que uma sociedade pode mudar
e mesmo assim ser estável, sua teoria da limitação de aptidões
e de castas chegou, de fato, à consequência da subordinação
da individualidade à organização social.
(e
Não podemos ultrapassar a concepção platónica de que
o indivíduo é feliz e a sociedade bem organizada quando cada
qual se dedica às atividades para as quais está preparado pelo
seu natural, nem a sua ideia de que a primacial tarefa da educação é descobrir esta aptidão em seu possuidor e exercitá-la
para ser utilizada eficazmente. Mas o progresso dos conhecimentos fez-nos ver a superficialidade da ideia platónica de
acumular os indivíduos e suas aptidões naturais em poucas
classes bem determinadas; aquele progresso ensinou-nos que
as aptidões originárias são indefinidamente numerosas e variáveis. E a consequência deste fato é reconhecer-se que, à
proporção que a sociedade se torna democrática, a verdadeira
organização social está na utilização daquelas qualidades peculiares e variáveis do indivíduo e não na sua estratificação
em classes. Embora fosse revolucionária sua filosofia educacional, não se mostrou, por isso, menos escravizada aos ideais
estáticos. Ele pensava que as mudanças ou alterações fossem
provas de indisciplina e que a verdadeira realidade era imutável. Por isso, quando pensou em transformar pela raiz as
condições sociais existentes, sua aspiração foi edificar um
estado em que posteriormente não se verificasse qualquer
mudança. Fixara a finalidade última da vida; uma vez orga-
Democracia e educação
A concepção democrática da educação
nizado o estado tendo esta finalidade em vista, nem mesmo
as mínimas particularidades deveriam ser alteradas. Malgrado não tivessem estas importância por si mesmas, sua
modificação implantaria nos espíritos a ideia da mudança e,
portanto, seria dissolvente e anarquizadora. A fraqueza desta
filosofia revela-se no fato de que não se poderiam esperar
gradativas melhorias da educação que produzissem uma melhor
sociedade, a qual, por sua vez, melhoraria a educação, e assim
por diante, indefinidamente.. Só poderia surgir a verdadeira
educação quando existisse o estado ideal e depois a tarefa da
educação se limitaria exclusivamente à conservação do mesmo.
Para a existência deste estado dever-se-ia contar com algum
acaso feliz, que fizesse a sabedoria de um filósofo coincidir, em
um estado, com a posse do poder.
fectibilídade do homem e de uma organização social tendo
como amplo escopo a humanidade, O indivíduo emancipado
deveria converter-se em órgão e fator de uma sociedade
compreensiva e progressista.
Os pregadores deste evangelho tinham viva consciênch
dos males do estado social em que viviam. Atribuíam esses
males às restrições impostas ao livre exercício das faculdades
do homem. Essa restrição era simultaneamente perturbadora
e corruptora. Seus afervorados esforços para emancipar a
vida das restrições exteriores que atuavam para vantagem
exclusiva da classe que um passado sistema feudal tornara
senhora do poder, encontrou sua formulação intelectual no
culto da natureza. Dar plena expansão à "natureza" era
substituir unia ordem social artificial, corrupta e iníqua por um
novo e melhor reinado da humanidade. A confiança ilimitada
na Natureza não só como modelo, senão também como poder
operante, era fortalecida pelos progressos das ciências naturais.
Uma investigação liberta dos preconceitos e peias artificiais
da Igreja e do Estado revelara que o mundo era dominado por
leis. O sistema solar newtoniano, que revelava esse domínio
das leis naturais, mostrava-se como um quadro de maravilhosa harmonia, onde cada força era contrabalançada por
outras. As leis naturais chegariam ao mesmo resultado nas
relações humanas, se os homens quisessem desembaraçar-se das
artificiais restrições coactoras criadas por eles próprios.
Julgava-se que o primeiro passo para assegurar essa sociedade mais social era uma educação de acordo com a natureza.
Via-se claro que as limitações económicas e políticas dependiam, em última análise, das limitações do pensamento e do
sentimento. O primeiro passo para livrar os homens dessas
cadeias externas era emancipá-los das cadeias internas das
falsas crenças e dos falsos ideais. Aquilo a que se chamava
vida social, e as próprias instituições existentes, .eram demasiado falsas e corruptas para se lhes confiar essa tarefa.
Como esperar que elas a empreendessem, se isso significaria
sua própria destruição? Ao poder da Natureza, portanto, é
que se deveria deixar essa tarefa. Até a extremada escola
sensacionalista do conhecimento, então dominante, derivara-se
dessa concepção, Insistir em afirmar que o espírito é originariamente passivo e vazio era um modo de glorificar as possibilidades da educação. Se o espírito fosse como urna cera onde
se gravavam as coisas objetivas não haveria limites para as
98
4. O ideal "Individualista" do Século XVIII. — Na
filosofia do século XVIII, encontramo-nos em um círculo
bem diferente de ideias. "Natureza" significa ainda um
tanto a antítese da organização social existente; PLATÃO exerceu
grande influência em ROUSSEAU. Mas a voz da natureza fala
por intermédio deste em prol da diversidade dos talentos individuais e da necessidade do livre desenvolvimento de todas
as variedades da personalidade. A educação de acordo com
a natureza fornece o alvo e o método de instruir e disciplinar. Todavia, levando o caso a seu extremo, os dotes
inatos ou originários são por ele considerados como não sociais
ou mesmo anti-sociais. Conceberam-se as organizações sociais
como meros expedientes para que estes indivíduos insociais
pudessem assegurar-se para si próprios maior felicidade privada.
Esta exposição, todavia, proporciona apenas uma ideia
inadequada da verdadeira importância dessa corrente de ideias.
Seu principal interesse residia, na realidade, no progresso, e no
progresso social. A sua filosofia aparentemente anti-social
não passava de máscara um tanto transparente de um impulso
para a concepção de uma sociedade mais ampla e livre — para
o cosmopolitismo. O ideal colunado era a humanidade. Na
condição de membros da humanidade, e não apenas do estado,
líbertar-se-iam as aptidões dos homens, ao passo que nas organizações políticas existentes essas aptidões são reprimidas e
falseadas para satisfazerem as exigências e interesses egoísticos
dos detentores do governo. A doutrina -do individualismo
extremo era apenas uma aplicação das ideias da infinita per-
99
Democracia e educação
A concepção democrática da educação
possibilidades educativas pelo infhoo do meio ambiente. E
uma vez que o mundo objetivo natural é um cenário de harmoniosa "verdade", aquela educação produziria infalivelmente espíritos cheios de verdade.
referimos surgiram como últimas consequências das conquistas napoleõnicas, especialmente na Alemanha. Os estados germânicos pressentiram (e os acontecimentos ulteriores provaram
que eles tinham razão) que a atenção sistemática voltada para
a educação era o melhor meio de recuperar e manter a integridade e soberania política. Exteriormente eram fracos e divididos. Sob a direção dos estadistas prussianos, esses estados
tornaram essa condição um incentivo para o desenvolvimento
de um amplo e sólido sistema de educação pública.
Tal mudança na prática necessariamente daria origem a
uma mudança na teoria. A teoria individualista recuou para
um plano afastado. O estado forneceu não só os meios para
a manutenção de escolas públicas, como também os objetivos
dessas últimas. Se a prática era tal, que o sistema escolar,
desde os graus elementares até as faculdades universitárias,
fornecia o cidadão e o soldado patriotas e os futuros funcionários e administradores do estado, e promovia os meios
para a defesa e expansão militar, industrial e política, impossível se tornava para a teoria não encarecer para a educação o
ideal da eficiência social. E com a enorme importância 'dada
ao estado nacionalista, rodeado de outros estados rivais e mais
QU menos hostis, era igualmente impossível atribuir à eficiência
social o sentido de um vago humanitarismo cosmopolita. Desde
que a manutenção de uma soberania nacional determinada requeria a subordinação do indivíduo aos interesses superiores
do país, não só para a defesa militar, como também para a
luta pela supremacia internacional no comércio, tinha-se que
reconhecer que a eficiência social exigia análoga subordinação.
A educação foi considerada mais como um adestramento disciplinar do que como meio de desenvolvimento pessoal. Como,
entretanto, persistia o ideal da cultura como desenvolvimento
completo da personalidade, a filosofia educacional tentou conciliar as duas ideias. A conciliação se fundou na concepção
do caráter "orgânico" do estado. O indivíduo isolado nada
é; só mediante a assimilação das aspirações e da significação
das instituições organizadas atinge ele a verdadeira persona-
100
5. A educação sob o pomo de vista nacional e
social. — Apenas arrefeceu o primeiro entusiasmo pela
liberdade, patenteou-se a fragilidade dessa teoria em seu aspecto
construtivo. Confiar-se simplesmente tudo à natureza era,
afinal de contas, negar-se a própria ideia de educação, e entregá-la aos acasos das circunstâncias. Não só se precisava de
um método, como também de algum órgão próprio, de alguma
instituição administrativa que efetuasse o trabalho da instrução. Como o "desenvolvimento completo e harmonioso de
todas as faculdades" subentendia urna humanidade esclarecida
e progressiva, sua consecução requeria uma organização especial. Os particulares aqui e além podiam pregar o evangelho,
mas, não, executar o trabalho. Um PESTALOZZI poderia fazer
experiências e exortar a seguir seu exemplo as pessoas inclinadas à filantropia e possuidoras de riqueza e poderio; mas o
próprio PESTALOZZI reconheceu que um eficaz empreendimento
baseado no novo-ideal educativo exigia o amparo dos poderes
públicos. Pôr em prática ideias novas sobre educação, ideias
destinadas a criar uma nova sociedade, dependia, ao cabo de
tudo, da ação dos estados existentes. O movimento a favor
do ideal democrático tornou-se inevitavelmente ern uma campanha para a criação de escolas públicas.
Em relação à Europa, suas condições históricas identificaram a campanha a favor da educação mantida pelo estado
com a campanha nacionalista na vida política — fato este de
incalculável importância para ulteriores movimentos. Principalmente pela influência da filosofia germânica, a educação
converteu-se numa função cívica e a função cívica se identificou
com a realização do ideal do estado nacional. O "estado"
substituiu a humanidade; o cosmopolitismo cedeu o lugar ao
nacionalismo. Formar o cidadão, e não o "homem", tornou-se
a meta da educação (1). As condições históricas a que nos
1) Há muitos traços esquecidos, nas ideias de Rousseau, que tendem intelectualmente para esta direção. Ele se opunha ao então existente estado de coisas, sob o fundamento de qtie ele não formava nem
o cidadão, nem o homem. Naquelas referidas condições, ele optava
101
mais por tentar formar o último, do que o primeiro. Mas há muitas
de suas frases que denotam ser a formação do cidadão a formação
idealmente mais elevada, e que indicam que sua tentativa de reforma,
contida no Emite, era o melhor em remédio que a corrupção daqueles
tempos lhe permitia aconselhar.
102
Democracia e educação
A concepção democrática d-a educação
lidade. Aquilo que se antolha ser sua subordinação à autoridade política e a exigência do sacrifício de si próprio ante o
dever da obediência a seus superiores, não é, na realidade,
mais do que o tornar sua a razão objetiva manifestada no estado —• o único meio pelo qual pode ele tornar-se verdadeiramente racional. A noção do desenvolvimento que vimos ser
a característica do idealismo institucional (como na filosofia
hegeliana) era exatamente esse esforço consciente para combinar as duas ideias •— a da completa expansão da personalidade
e a da total subordinação "disciplinar" às instituições existentes.
A latitude da transformação da filosofia educacional processada na Alemanha pela g-eração empenhada na luta contra
NAPOLEÃO, pela independência nacional, pode-se inferir da
leitura de KANT, que bem exprime o primitivo ideal individualista-cosmopolita. Em seu tratado de pedagogia, constituído
por conferências feitas nos últimos anos do século XVIII,
ele define a educação como o processo pelo qual o homem se
torna homem. No começo da história da humanidade, o homem se acha submergido na Natureza, mas não como Homem,
que é criatura dotada de razão, enquanto a natureza apenas
lhe dá instintos e apetites. A natureza proporciona unicamente germes, que a educação deve desenvolver e aperfeiçoar.
A particularidade da verdadeira vida humana é que o homem
precisa criar-se por seus próprios esforços voluntários; tem
que se fazer um verdadeiro ser moral, racional e livre. Este
esforço criador desenvolve-se pela atividade educativa de numerosas gerações. Sua aceleração depende de se esforçarem
os homens conscientemente para educar seus sucessores —
educarem, não para o existente estado de coisas, mas para
tornar possível uma melhor humanidade futura. Mas essa é
a grande dificuldade. Cada geração propende a educar os
jovens para agir no seu tempo, em vez de atender à finalidade
mais própria da educação, que é* conseguir a melhor realização
possível da humanidade como humanidade. Os pais educam os
filhos simplesmente para que estes possam prosperar em suas
carreiras, e os soberanos educam os vassalos para instrumentos
de seus próprios fins.
Quem orientará, então, a educação para que a humanidade
melhore? Devemos contar com os esforços dos homens esclarecidos em suas iniciativas particulares. "Toda a cultura
principia com as iniciativas particulares e depois se propaga
na sociedade. Só é possível à natureza humana aproximar-se
gradualmente de seus fins por meio dos esforços de pessoas
capazes de compreender o ideal de uma futura condição
melhor... Os governantes só se. interessam pela educação
para converterem seus súditos em melhores instrumentos para
seus próprios fins". Até os auxílios dos governos para as
escolas particulares devem ser recebidos com cautela, pois o
interesse daqueles em beneficiar sua nação, em vez de terem
em vista o melhor para a humanidade, os fará, se subsidiarem
escolas, procurar utilizá-las na realização de seus planos.
Aqui temos, expressos nesta opinião, os traços característicos, do cosmopolitismo individualista do século XVIII.
Por ele se identifica o pleno desenvolvimento da personalidade
particular com os próprios fins da humanidade como um
todo e com a ideia do progresso. Temos aqui, além disso,
o receio expressamente manifestado da influência inibidora
de uma educação orientada e regulada pelo estado para a
realização daquele ideal. Mas pouco menos «te duas décadas
após essa época, os filósofos continuadores de KANT, FICHTF
e HEGEL exprimiram a ideia de que a principal função do
estado é a educativa — de que, especialmente no caso da Alemanha, o reerguimento nacional deveria ser efetuado por uma
educação dirigida de acordo com o interesse do estado, e de
que o indivíduo, particularmente considerado, é um ser egoísta
e irracional, escravo de seus apetites e das circunstâncias, a
não ser quando se submete voluntariamente à disciplina educativa das instituições e das leis nacionais. Com esse espírito a
Alemanha foi o primeiro país a empreender um sistema de
educação pública, geral e obrigatória, que se estendia desde
a escola primária até a universidade, e a submeter à regulamentação e fiscalização de um estado cioso de suas prerrogativas todos os institutos particulares de -educação.
Duas consequências derivam deste breve transunto histórico. A primeira é que expressões como concepção individual
e social da educação não têm significação alguma, quando isoladas ou destacadas da situação a que se referem. PLATÃO
concebeu o ideal de uma educação que conciliasse o cultivo
da individualidade com a coesão e estabilidade sociais. As
condições de seu tempo forçaram seu ideal a restringír-se na
noção de uma sociedade organizada por estratificações em
castas, em que os indivíduos eram absorvidos por estas. No
século XVIII, a filosofia pedagógica foi altamente individua-
103
Democracia e educação
A concepção democrática da educação
lista na forma, mas esta forma era inspirada por um nobre e
generoso ideal social: o de uma sociedade cuja organização
abrangesse a humanidade toda e fomentasse o indefinido aperfeiçoamento do género humano'. A filosofia idealista alemã
nos primórdios do século XIX pretendeu outra vez conciliar os
ideais de um livre e completo desenvolvimento da personalidade
cultivada, com a disciplina social e a subordinação política.
Ela fazia do estado nacional um intermediário entre a expressão da personalidade individual, de um lado, e da humanidade,
do outro. Por consequência, seria igualmente possível enunciar-se seu princípio inspirador com a expressão clássica, "desenvolvimento harmónico de todas as aptidões do indivíduo"
ou com a terminologia mais recente de "eficiência social".
Tudo isto robustece a afirmação que inicia este capítulo: a
concepção da educação como um processo e uma função
social não tem significação definida enquanto não definimos
a espécie de sociedade que temos em mente.
Estas considerações preparam o caminho para nossa segunda conclusão. Um dos problemas fundamentais da educação em e para uma sociedade democrática é estabelecido
pelo -conflito de um objetivo nacionalista com o mais lato objetivo social. A primitiva concepção cosmopolita e "humanitária'/ ressentia-se, ao mesmo tempo, de seu vago e da falta
de órgãos de execução e de administração. Na Europa, especialmente nos países continentais, a nova ideia da importância
da educação para o bem-estar e progresso humano foi captada
pelos interesses nacionalistas e aparelhada para produzir uma
obra cujo objetivo social era-nitidamente estreito e exclusivista.
Identificaram-se os objetivos social e nacional da educação e
o resultado foi um visível obscurecimento do sentido de objetivo social.
sunção de que cada uma tenha interesses exclusivamente seus.
Pôr isto em dúvida, equivale a pôr em dúvida a própria ideia
de soberania nacional que se admite ser ponto básico • da prática e da ciência políticas. Esta contradição (pois não é nada
menos do que isto) entre a esfera mais vasta da vida associada
e de mútua cooperação e a esfera mais restrita de empreendimentos e intuitos egoístas e, por isto mesmo, potencialmente
hostis, exige dá teoria educativa uma concepção mais clara
do que a que se tem até hoje conseguido, da significação de
"social" como função e teste do que é educação.
Será possível, para um sistema educativo, ser dirigido
pelo estado nacional, e mesmo assim, conseguir-se que não seja
restringida, constringida e deturpada a perfeita finalidade social da educação? Internamente, tem-se de arrostar a tendência, motivada pelas atuais condições económicas, de se
dividir a sociedade em classes, fazendo-se que algumas destas
se convertam em meros instrumentos para a maior cultura
de outras. Externamente, a questão se relaciona com a conciliação da fidelidade nacional, do patriotismo, com a superior
dedicação a coisas que unem todos os homens para fins comuns, independentemente das fronteiras políticas nacionais.
Nenhum aspecto do problema pode ser resolvido por meios
simplesmente negativos. Não basta fazer-se que a educação
não seja usada ativamente como instrumento para facilitar a
exploração de uma classe por outra. Devem assegurar-se as
facilidades escolares com tal amplitude e eficácia que, de fato,
e não em nome somente, se diminuam os efeitos das desigualdades económicas e se outorgue a todos os cidadãos a igualdade de preparo para suas futuras carreiras. A realização
deste objetivo exige não só que a administração pública proporcione facilidades para o estudo e complete os recursos da
família, para que os jovens se habilitem a auferir proveito
dessas facilidades, como também uma ta! modificação das
ideias tradicionais de cultura, matérias tradicionais de estudo
e métodos tradicionais de ensino e disciplina, que se possam
manter todos os jovens sob a influência educativa até estarem bem aparelhados para iniciar as suas próprias carreiras
económicas e sociais. Pode figurar-se que essas ideias serão
de remota execução, mas o ideal democrático da educação
será uma ilusão tão ridícula quanto trágica enquanto tais
ideias não preponderarem mais e mais, em nosso sistema de
educação pública.
104
Esta confusão corresponde à situação presente do intercâmbio humano. Por um lado, a ciência, o comércio e
a arte transpõem aã fronteiras nacionais. São grandemente
internacionais em qualidade e métodos. Subentendem interdependência e cooperação entre os povos que habitam vários
países. Mas, ao mesmo tempo, nunca a ideia da soberania
nacional se acentuou tanto na política como presentemente.
Cada nação vive em estado de hostilidade recalcada e de guerra
incipiente com as nações vizinhas. Cada qual supõe ser o árbitro supremo de seus próprios interesses, e admite-se a pre-
105
Democracia e educação
A, concepção democrática da educação
Aplica-se o mesmo principio às considerações referentes às relações das nações entre si. Não basta patentear os
horrores da guerra e evitar tudo o que possa suscitar a inveja e a animosidade internacionais. Deve-se ainda insistir
em tudo aquilo que vincula os povos para os empreendimentos e os resultados coletivos que a todos beneficiam, sem
nos preocuparmos com fronteiras geográficas, E para a consecução de mais eficiente atitude mental, deve-se incutir o
caráter secundário e provisório da soberania nacional, relativamente à colaboração e mútuas relações mais ricas, mais
livres e mais fecundas de todos os seres humanos. Se estas
conclusões parecerem muito estranhas às considerações próprias da filosofia da educação, essa impressão revelará que as
ideias sobre a educação desenvolvidas nas páginas precedentes
não foram convenientemente compreendidas. Tais conclusões
prendem-se ao ideal genuíno da educação como a expansão das
aptidões do indivíduo em um desenvolvimento progressivo
orientado para fins sociais. Não sendo assim, só poderia haver
incoerência na aplicação de um critério democrático da educação.
dicado em sua realização por fazer das castas, e não do indivíduo, a sua unidade social. Verificou-se que o chamado individualismo do racionalismo do século XVIII continha em si a
noção de uma sociedade tão ampla como a humanidade e de
cujo progresso o indivíduo seria o fator. Mas faltava um
organismo executor para assegurar o desenvolvimento de seu
ideal, como o provou com seu retorno à Natureza. As filosofias idealistas institucionais do século XIX supriram essa
falta cometendo ao estado nacional aquela função executora;
mas, assim procedendo, restringiu a concepção do objetivo social àqueles que faziam parte da mesma unidade política e
restabeleceu o ideal da subordinação do indivíduo às instituições.
106
Resumo. •— Como a educação é um processo social e
há muitas espécies de sociedade, um critério para a crítica
e a construção educativa subentende um ideal social .determinado. Os dois critérios escolhidos para aferir-se o valor
de alguma espécie de vida social são a extensão em que os
interesses de um grupo são compartidos por todos os seus
componentes e a plenitude e liberdade com que esse grupo
colabora com outros grupos. Por outras palavras: uma sociedade indesejável é a que interna e externamente cria barreiras para o livre intercâmbio e comunicação vda experiência.
Uma sociedade é democrática na proporção em que prepara
todos os seus membros para com igualdade aquinhoarem de
seus benefícios e em que assegura o maleável reajustamento
de suas instituições por meio da interação das diversas formas
da vida associada. Essa sociedade deve adotar um tipo de
educação que proporcione aos indivíduos um interesse pessoal
nas relações e direção sociais, e hábitos de espírito que permitam
mudanças sociais sem o ocasionamento de desordens.
Três típicas filosofias da história da educação foram
consideradas sob este ponto de vista. Viu-se que a platónica
tinha um ideal teoricamente semelhante ao exposto, mas preju-
107
Objetivos da educação
CAPÍTULO 8
Objetivos da educação
l. A natureza de um objetivo. — As ideias expostas nos precedentes capítulos sobre a educação anteciparam
virtualmente a apresentação dos resultados a que se chega
em uma análise da finalidade da educação em uma comunidade democrática. Pois delas se infere que o objetivo da
educação é habilitar os indivíduos a continuar sua educação — ou que o objeto ou recompensa da educação é a capacidade para um constante desenvolvimento. Mas esta ideia
só se pode aplicar a todos os membros de uma sociedade
quando há mútua cooperação entre os homens e existem convenientes e adequadas oportunidades para a reconstrução dos
hábitos e das instituições sociais por meio de amplos estímulos
decorrentes da equitativa distribuição de interesses e benefícios.
E isto significa sociedade democrática. Por isso em nossa
investigação das finalidades do processo educativo .não nos
preocupamos com encontrar um fim exterior ao mesmo, ao
qual a educação ficasse subordinada. Toda a nossa concepção
o proíbe. Interessamo-nos de preferência no contraste existente nos casos em que os objetivos ou fins são intrínsecos ao
processo sobre o qual atuam e aqueles em que os mesmos são
estabelecidos externamente. Verifica-se o último estado de
coisas quando as relações sociais não se contrabalançam equitativamente. Pois neste caso algumas partes do grupo social
total terão seus fins prescritos por uma imposição exterior;
seus fins não surgirão do livre desenvolvimento de sua experiência pessoal e seus pretensos objetivos serão antes meios de
realizar os objetivos alheios do que verdadeiramente os seus
próprios.
Nosso primeiro problema é, por conseguinte, definir a
natureza de um objetivo ou fim que exista no interior de
uma atividade em vez de lhe ser exteriormente fornecido..
Confrontemos, para isso, os sentidos de meros resultados e
de fins. Toda a manifestação de energia produz resultados.
Um vendaval carrega as areias do deserto; mudou-se com isto
a posição dos grãos de areia. Eis um resultado, um efeito,
mas não um fim. Pois nada existe no resultado que complete
ou realize o que vem antes. O que há é uma simples redistribuição espacial da areia. O último estado de coisas é tão bom
como qualquer outro. Por conseguinte, não há uma base para
considerar-se o primeiro como um começo e o último como
um fim e para achar-se que haja ocorrido um processo de
transformação e realização.
Considere-se, agora a atividade das abelhas, em confronto
com a mudança de lugar das areias carregadas pelo vento.
Os resultados dos atos das abelhas podem chamar-se fins,
não porque sejam intencional ou conscientemente produzidos,
mas por serem verdadeiras terminações ou remates daquilo
que os precede. Quando as abelhas colhem o pólen, fazem
cera e constróem alvéolos, cada ato prepara o caminho para
o ato seguinte. Prontos os alvéolos, as rainhas põem ovos
neles; finda a postura, as abelhas fecham esses alvéolos e os
"chocam" mantendo-os na temperatura requerida para os ovos
vingarem. Quando as larvas saem dos ovos, as abelhas alimentam-nas até que elas possam cuidar de si mesmas. Ora,
somente porque tais fatos não são excessivamente familiares, é
que nos sentimos dispostos a esquecê-los, ou a considerá-los,
assim como a vida e o instinto, coisas um tanto milagrosas.
E por isso não observamos que as características essenciais de
tudo aquilo são principalmente a importância da ordem de
sucessão de cada ato, o modo pelo qual cada ato anterior
orienta o ato posterior, e esse ato posterior toma o que lhe é
fornecido e o aproveita para outra fase, até se chegar ao fim,
o qual, por assim dizer, resume e remata toda a série de atos.
Uma vez que os objetivos ou fins^se relacionam sempre
com a natureza dos resultados, a primeira coisa a considerar-se
para se saber se há fins ou objetivos é a continuidade intrínseca do trabalho ou atividade em questão. Porque se se tratar
de mera série de atos justapostos, dos quais uns devem ser
feitos primeiros e outros depois, já não há problemas de fins.
Falar-se em objetivo ou fim da educação quando quase todog
os atos de um discípulo são impostos pelo professor, quando a
única ordem na sequência de seus atos é a proveniente das
no
Democracia e educação
Objetivos da educação
lições marcadas e das direções dadas por outrem, é absurdo.
Como se torna igualmente ridículo falar-se em fins ou objetivos quando se permite a atividade caprichosa ou descontínua,
sob pretexto da manifestação espontânea da personalidade.
Um objetivo ou um fim importa em atívidades seriadas e
ordenadas, atívidades cuja ordem consiste no progressivo completar-se de um processo. Dada uma espécie de atividade que
deva durar certo tempo è seja cumulativa em seu desenvolvimento no decurso desse tempo — fim ou objetivo significa
a previsão do termo ou do possível resultado. Se as abelhas
previssem as consequências de seus atos, se percebessem antecipadamente seu termo, em imaginação, teriam possuído o elemento essencial para um objetivo. Por essa causa é disparate
falar-se em objetivo da educação — ou de outra qualquer
empresa — se as condições não permitirem a previsão dos
resultados e nem incitarem uma pessoa a encarar o futuro,
procurando prever as consequências de determinado modo de
proceder.
Em segundo lugar, o objetivo, em sua qualidade de fim
previsto, dirige a atividade; não é uma coisa que um mero
espectador contempla ociosamente; influencia os passos dados
para se chegar ao termo. A previsão funciona de três modos.
Primeiro, subentende cuidadosa observação das condições dadas, para ver quais os meios úteis para atingir-se o fim e
descobrir os obstáculos existentes no caminho. Segundo, sugere a conveniente ordem ou sequência na utilização dos meios.
Facilita a seleção e os arranjos mais económicos. Terceiro,
torna possível a escolha entre as diversas alternativas. Se pudermos predizer o resultado 'de procedermos deste ou daquele
modo, poderemos comparar o valor de dois modos de proceder
e formar juízos sobre sua relativa desejabilidade. Se soubermos que nas águas estagnadas se geram pernilongos e que
estes provavelmente são transmissores de moléstias, poderemos,
por desagradar-nos esse resultado previsto, dar providências
para evitá-lo. Quando não antevemos os resultados como simples observadores de fora, mas como pessoas interessadas nos
mesmos, passamos a participar do processo que produz aqueles
resultados. Intervímos para produzir esta ou aquela consequência.
Estes três pontos, naturalmente, associam-se de perto um
com o outro. Só podemos prever determinados resultados
quando examinamos cuidadosamente as condições presentes, e
é a importância do resultado que motiva essas observações.
Quanto: mais adequadas forem nossas observações, mais variado será o quadro de condições e embaraços que se apresentam
e mais numerosas serão as alternativas entre as quais deveremos
escolher. Por outro lado, quanto mais numerosas forem as
possibilidades reconhecidas da situação, ou alternativas à escolha, mais importância possuirá a atividade escolhida e mais
plasticamente se poderá dirigi-la. Quando se pensar só em
um resultado, o espírito não terá que pensar em outra coisa;
limita-se à significação ligada ao ato. A pessoa segue diretamente para a meta. Algumas vezes pode bastar esse trajeto
fácil. Mas se surgirem, nesse trajeto, inesperados embaraços,
não teremos à disposição os recursos que teríamos se houvéssemos escolhido o mesmo modo de proceder depois de detido
exame das possibilidades do campo de ação. Não poderemos
fazer de pronto as necessárias readaptações.
A conclusão irretorquível do exposto, é que agir com um
objetivo é o mesmo que agir inteligentemente. Prever o termo
de um ato é ter 'uma base para observar, escolher e ordenar
as coisas e os nossos próprios atos ou aptidões. E fazer tais
coisas, isto é, observar, escolher e ordenar quer dizer ter inteligência, espírito ou razão, porque razão ou juízo é precisamente atividade intencional e com um propósito, controlada
pela percepção dos fatos e de suas relações recíprocas. Ter
em mente fazer uma coisa é prever uma possibilidade futura;
é ter um plano para a realização; é notar os meios para a
exeqúibilidade do plano e os obstáculos do caminho; — ou, se
realmente temos em mente fazer a coisa e não apenas uma vaga
aspiração — é ter um plano que leva em conta os recursos
disponíveis e as dificuldades da execução. Mente, capacidade
mental, é a aptidão para relacionar as condições presentes a
resultados futuros, e futuras consequências a condições presentes. E isso é exatamente a significação das palavras •—
ter um objetivo ou propósito. Um homem é estúpido, obtuso
ou ininteligente — deficiente de espírito, sem juízo, — na
proporção em que em qualquer espécie de atividade ele não
conhece bem o que está fazendo, e principalmente as prováveis
consequências de seus atos. Um homem é pouco inteligente
quando se satisfaz com conjeturas mais vagas da que eo"iivÍria
sobre o resultado de seus atos, contando sempre com a sorte,
ou então quando faz planos sem observar as condições atuais,
inclusive suas próprias aptidões. Essa ausência relativa de
111
112
Democracia e educação
Objetivos da educação
inteligência significa que se deixa guiar mais pelos sentimentos,
em relação àquilo que vai acontecer. Para sermos inteligentes
devemos "parar, olhar, escutar", a fim de conceber um plano
de ação.
Identificar a — ação com um objetivo — com atividade
inteligente basta para mostrar-lhe o valor — sua função na
experiência. Somos muito propensos a transformar em uma
entidade o nome abstraio "consciência", Esquecemo-nos de
que ele deriva do adjetivo "consciente". Ter consciência é
saber aquilo que temos de fazer; conscientes são os traços da
atividade eni que se delibera, observa e planeja. Consciência
não é uma coisa que possuímos para olhar ociosamente o cenário que nos cerca ou para que seja impressionada pelas
coisas do mundo exterior; consciência é a denominação da
qualidade intencional de uma linha de ação, da qualidade da
atividade que é orientada por um objetivo. Em outros termos,
ter um objetivo é dar significação aos aios, e não proceder
como máquina; é ter em mente, ter a intenção de fazer alguma
coisa e compreender a significação das coisas à luz dessa
intenção,
exterior, não deixando, à inteligência, outra coisa a não ser uma
escolha maquinal de meios.
2. O critério para o conhecimento dos bons objetivos. — Podemos aplicar o resultado de nossa discussão à
consideração do critério necessário para um adequado estabelecimento de objetivos.
l — O objetivo a estâbelecer-se deve gerar-se nas condições existentes. Necessita basear-se na consideração do que
já está sucedendo, e nos recursos e obstáculos de uma situação.
Com frequência violam este princípio as teorias educacionais
e morais que se propõem a definir as verdadeiras finalidades de
nossos atos. Elas pressupõem a existência de fins exteriores
a nossa atividade — fins estranhos ao aspecto concreto da situação, fins derivados de uma fonte externa. Neste caso o
problema é levar nossos atos a conseguirem a realização desses
fins fornecidos do exterior. Eles são alguma coisa pela qual
devemos agir. Pelo menos., tais "objetivos" limitam a ação da
inteligência; não constituem a. manifestação do espírito no seu
esforço de prever, observar e escolher a melhor das alternativas
possível. Limitam a ação da inteligência, porque, previamente
elaborados, lhe devem ser impostos por alguma autoridade
113
2 — Estivemos a falar em objetivos como se estes pudessem formar-se completam ente antes de tentar-se sua realização. Devemos esclarecer agora este ponto. O objetivo,
do modo que primeiro surge, é um mero esboço a tentasse
executar. O esforço necessário para tentar realizá-lo põe em
prova o seu valor. Se ele é capaz de dirigir a atividade
com êxito, nada mais se requer, uma vez que toda a sua
função é plantar à frente um marco; e às vezes pode bastar
uma simples sugestão. Mas geralmente — pelo menos nas
situações complicadas — as primeiras de acordo com esse fim
esboçado trazem à luz condições que passaram despercebidas.
Isto exige uma revisão do objetivo originário; necessita de
acrescentar ou tirar qualquer coisa. Um objetivo deve, portanto, ser plástico, capaz de alterações para adaptar-se às
circunstâncias. Ora, uma finalidade estabelecida exteriormente
pára o desenvolvimento de uma ação é sempre rígida. Sendo
inserida ou imposta do exterior, não se pode supor que tenha
relações reais e operantes com as condições concretas da
situação. O que sucede no curso da ação, não a confirma,
repele ou altera. Limitamornos a insistir na sua realização.
O malogro resultante de sua inadaptação atribuímo-lo unicamente às más condições e não ao fato de que o dito fim não
é razoável nas referidas circunstâncias. O valor de um legítimo objetivo reside, ao contrário, no fato de que podemos
utilizá-lo para mudar as condições. É um meio de se tratarem
as condições de modo a se conseguirem, nas mesmas, alterações
desejáveis. Um agricultor que aceitasse passivamente as coisas
tais quais as encontra, cometeria tão grande erro como o que
formasse seus planos sem ter absolutamente em conta o que
permitem o solo,, o clima, etc. Um dos males de um abstrato
ou remoto fim externo em educação é que sua real inaplicabilidade na prática resulta habitualmente no considerar abrupta
ou desastradamente as condições imediatas presentes. Um
bom objetivo, pelo contrário, é aquele que leva a observar a
experiência atual do aluno, e, concebendo um esboço de plano
de desenvolvimento dessa experiência, conserva este constaiitemente em vista e modifica-o conforme as condições se apresentarem. O objetivo, em suma, é experimental, e por isso
evolui continuamente à medida que vai sendo provado na ação.
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115
Democracia e educação
Objetivos da educação
3 — O objetivo deve sempre representar uma expansão,
uma libertação de atividades. A expressão fim em vista
é sugestiva, pois coloca em frente do espírito a terminação ou
conclusão de algum desenvolvimento. O único meio pelo qual
podemos determinar uma atividade é ter à nossa frente as
coisas em que ela desfecha ou termina — como um alvo em
frente do atirador. Mas devemo-nos lembrar de que o objetivo é unicamente um marco ou sinal por meio do qual o
espírito determina a espécie de atividade que deseja pôr em
ação. Para falar com rigor —- o fim em vista não é o alvo, e,
sim, atingir-se o alvo; uma pessoa, ao fazer pontaria, visa
o alvo, mas precisa igualmente ter a vista em sua arma. Os
diferentes objetos ern que pomos o pensamento são os meios
de orientar a atividade. Deste modo, por exemplo, visamos
um coelho; assim fazendo, o que queremos é acertar o tiro:
uma certa espécie de atividade. Ou, se o que queremos é o
coelho, não será este só por si, independentemente de nossa
atividade, e sim como fator em nossa atividade: queremos
comê-lo, ou mostrá-lo como prova de nossa perícia de atirador
— desejamos fazer alguma coisa com ele. Nossa finalidade
é o que faremos com a coisa e não a coisa por si mesma.
Atingir o objeto visado constituía apenas um aspecto do fim
ativo — a continuação da atividade com bom êxito. É o que
quis dizer com a frase usada atrás: "expansão, libertação de
atividade".
Contrastando com este modo de realizar-se um processo
para que a atividade possa prosseguir, está a natureza estática
de um fim imposto externamente â atividade. Tem, primeiro,
que ser sempre concebido como coisa rígida: algo a ser atingido
e possuído. Quando se tem uma tal noção, a atividade é um
simples meio inevitável para se conseguir outra coisa; não
tem significação ou importância por si mesma. Em comparação com o fim, ela é unicamente um mal necessário — uma
coisa que se deve fazer antes de alcançar o objeto que, só ele,
tem valor. Por outras palavras — a ideia exterior de um
objetivo conduz a separar os meios do fim ao passo que um
fim que se desenvolve dentro da própria atividade como um
plano para sua direção tem sempre a natureza de fim e de
meio, fazendo-se a distinção entre uma e outra coisa por simples
comodidade. Cada meio é um fim temporário até que o atinjamos. Cada fim, assim que atingido, torna-se um meio de
transportar a atividade para mais além. Chamamo-ío fim
quando marca a direção futura da atividade em que nos empenhamos — e meio, quando marca a direção atual. Toda a
separação entre fim e meio diminui na proporção do afastamento a significação da atividade e propende a reduzi-la a
um aborrecimento, a uma tarefa, que de boa mente evitaríamos
se pudéssemos. Um lavrador tem que lançar mão de plantas
e de animais para fazer a sua lavoura. Dar-se-á certamente
grande diferença ern sua vida se plantas e animais forem coisas que ele aprecie e ame ou se as considera simples meios a
que tem de recorrer para conseguir alguma outra coisa que,
só essa, a ele interessa. No primeiro caso, todo o curso de
sua atividade é significativo; cada uma de suas fases tem
valor próprio. Ele experimenta realizar seu fim em todos os
estágios, pois o objetivo ulterior, ou fim em vista, é simplesmente uma coisa que vê à sua frente, para manter sua atividade
em plena e livre manifestação. Pois se ele não olhar para a
frente, encontrará, mui verossirnilmente, o caminho obstruído.
O objetivo é tão definidamente um meio para a ação, como
qualquer outro elemento da atividade.
3. Aplicação à educação. — Nada encerram de particular os objetivos em ou da educação. São análogos aos
de qualquer outra espécie de atividade. O educador, bem
como o fazendeiro, tem certas coisas a fazer, certos recursos
com que o fazer e certos obstáculos a vencer. As condições
com que o fazendeiro se tem de avir, quer sejam obstáculos,
quer recursos, têm sua estrutura e atuaçao próprias, independentemente de qualquer propósito dele. As sementes germinam, cai a chuva, brilha o sol, os insetos praguejam a plantação, sobrevêm outras pragas, muda-se o tempo. Seu fim é
simplesmente utilizar-se destas várias condições, fazer sua própria atividade e 'as energias delas trabalharem concordemente
em vez de se contrariarem. Seria absurdo que o fazendeiro se
resolvesse a dedicar-se à lavoura sem tomar na devida conta
as condições do solo, estações do ano, característicos do crescimento das plantas, etc. Seu intento é simplesmente prever
as consequências de sua energia em relação com as das coisas
que o rodeiam, e essa previsão é empregada cada dia para
orientar seus atos. A previsão de possíveis consequências leva
à mais meticulosa e extensa observação da natureza e efeitos
das coisas com que se tem de avir, e organização de um plano
— isto é, de certa ordem nos atos a praticar.
Democracia e educação
Objetivos da educação
Dá-se o mesmo com o educador, seja o pai, ou seja o
mestre. É tão absurdo eles estabelecerem seus "próprios"
objetivos como o fator adequado ao desenvolvimento das crianças, como o lavrador conceber seu ideal da lavoura independentemente daquelas condições. Ter objetivos ou fins significa a
aceitação da responsabilidade das observações, previsões e disposições necessárias para o exercício de uma função — quer
o cultivo da terra, quer a educação. Todo o objetivo tem
valor na medida em que auxilia a observação, a escolha e a
elaboração de planos, hora a hora, instante a instante, quando
nos dedicamos a alguma atividade; se ele for de encontro ao
nosso próprio senso comum nessas observações e escolhas (o
que certo sucederá se imposto exteriormente ou aceito pelo
influxo da autoridade) já não é um fim válido e útil, mas
prejudicial.
E é bom que nos lembremos de que a educação, considerada como tal, não tem objetivos. Só as pessoas, os pais e os
professores, etc., é que os têm, e não uma ideia abstrata
como a de educação. E por conseguinte esses fins ou propósitos são indefinidamente variados, diferindo de acordo com
as 4í±"erentes crianças, mudando à proporção que as crianças
crescem e à proporção que cresce a experiência da pessoa que
ensina. Até os mais válidos objetivos ou fins que se possam
formular em palavras farão, como palavras, mais dano do que
bem, a não ser que se reconheça que não são objetivos, mas,
antes, sugestões para os educadores, sobre o modo de observar,
de olhar para o futuro, e como proceder para libertar e dirigir
as energias das situações determinadas em que .elas se encontram. Bem o disse recentemente um escritor: "Levar tal
adolescente a ler romances de SCOTT em vez das antigas narrativas de SLEUTH ; ensinar tal menina a costurar; desarraigar
o hábito de valentias de JOÃO ; preparar tal classe para estudar
medicina — eis alguns exemplos dos milhões de objetivos que
ternos atualmente ante nós na obra concreta da educação".
Com estas considerações em mente, passaremos a expor
alguns característicos existentes em todos os bons objetivos
educacionais.
vimos, esquecer as aptidões existentes e fixar-se como fim
alguma remota realização ou responsabilidade. Há em regra
o pendor de terem-se em mira coisas agradáveis ao coração
dos adultos e escolhê-las como fins, independentemente das
aptidões dos educandos. Há também a propensão de propor
objetivos tão uniformes que desprezam as aptidões especiais e
exigências ,de um indivíduo com o esquecimento da circunstância de que toda aprendizagem é coisa que acontece a um indivíduo em lugar e tempo determinados. A percepção mais
ampla do adulto é de grande valor para observarem-se as
aptidões e deficiências dos mais novos, e a fim de caleular-se
o alcance das mesmas. Assim, as habilidades artísticas dos
adultos manifestam aquilo de que serão capazes certas tendências da criança. Se não existissem as realizações dos adultos, não saberíamos ao certo o que significariam os atos de
desenhar, copiar, modelar e colorir da idade infantil. Semelhantemente, se não existisse a linguagem dos adultos, seríamos incapazes de compreender a significação do instinto infantil de balbuciar sons. Mas uma coisa é uti Hz armo-no s das
realizações do adulto como o contexto dentro do qual colocamos e examinamos os atos da puerícia e da adolescência, e
coisa totalmente diversa o escolhê-los como objetivos fixos, sem
atender à atividade concreta e atual dos educandos.
116
l — Um objetivo educacional deve alicerçar-se nas atividades e necessidades intrínsecas (inclusive os instintos inatos e os hábitos adquiridos) do indivíduo que vai ser educado.
A tendência de um objetivo como a preparação é, como já
117
2 — Um objetivo deve ser passível de converter-se- em
um método de cooperação com a atividade daqueles que recebem a instrução. Deve sugerir a espécie de meio necessário para a expansão e organização de suas aptidões. Se
ele não se prestar à construção de processos especiais e se
estes processos não provarem, corrigirem e ampliarem o objetivo, este não terá valor. Ao invés de auxiliar a tarefa especial do ensino, evitará até o uso do senso comum para
observar e avaliar a situação. O efeito disto é fazer esquecer
todas as circunstâncias, exceto as que se enquadrem com a
meta fixa que se tenha em vista. Todo o objetivo rígido, exatamente pelo fato de ser rígido, torna desnecessário prestar
cuidadosa atenção às condições concretas. Uma vez que devemos aplicá-lo de qualquer modo, que adianta observar particularidades que não entrarão em linha de conta?
O mal dos fins exteriormente impostos tem profundas
raízes. Os professores recebem-nos das autoridades superiores ; estas autoridades professam o que é corrente na comu-
Democracia e educação
Objetivos da educação
nidade. Os professores impõem-nos às crianças. A primeira
consequência é a de não ser livre a inteligência do professor;
é "f orçado a receber os objetivos que lhe mandam do alto. Mui
raramente é o professor suficientemente livre das imposições
da autoridade fiscalizadora, sobre métodos a adotar, programas
de estudos, etc., para poder deixar seu espírito comunicar-se
de perto com o espírito do aluno e com as matérias do estudo.
Esta desconfiança d* experiência do professor reflete-se, por
sua vez, na falta de confiança nas respostas eu reações dos
alunos. Estes recebem seus objetivos mediante dupla ou tríplice imposição e sentem-se constantemente perturbados pelo
conflito entre os objetivos naturais da sua própria experiência
no momento e aqueles que lhes ensinam a aceitar. Enquanto
não for reconhecido o critério democrático da importância intrínseca de toda a experiência que se desenvolve, sentir-nos-emos
intelectualmente desnorteados pela exigência de adaptação a
objetivos exteriores.
um pequeno número de alternativas. Se uma pessoa tivesse
conhecimentos integrais das coisas, poderia, quase, partir de
qualquer ponto e manter-se em atividade contínua e frutiferamente.
Entendendo-se, assim, o objetivo geral ou compreensivo,
isto é, no sentido de um amplo descortino do campo da atividade presente, examinaremos alguns dos mais amplos fins
em voga nas .-teorias pedagógicas atuais e consideraremos
que luz eles projetam nos objetivos imediatos, concretos e diversos, que constituem sempre o verdadeiro interesse do educador. Admitiremos (e em verdade é o que diretamente se
infere do que já dissemos) não ser necessário escolher
entre eles ou considerá-los como uns excluindo os demais.
Quando temos de agir praticamente precisamos escolher
ou preferir um ato determinado em determinado tempo;
mas pode coexistir sem antagonismo certo número de fins
gerais ou compreensivos, desde que signifiquem simplesmente vários modos de contemplar o mesmo cenário. Uma
pessoa não pode subir simultaneamente ao cimo de várias
montanhas, mas, tendo-se ascendido várias montanhas, as
paisagens vistas se completam mutuamente; não mostram
mundos incompatíveis antagónicos. Ou, para apresentar a
matéria de modo ligeiramente diverso, um fim proposto pode
sugerir certas questões e observações, e outro fim nova série
de questões a reclamar outras espécies de observações. Por
isso, quanto mais fins gerais tivermos, tanto melhor. Um dará
relevo àquilo sobre o que outro passou por alto. Uma pluralidade de objetivos determinados pode fazer pelo educador o
que faz, para o cientista pesquisador, uma pluralidade de
hipóteses.
118
3 — Os educadores devem pôr-se em guarda contra os
fins que se alegam serem gerais e últimos. Toda a atividade, por mais especializada que seja, é, naturalmente, geral
em suas associações ramificadas, pois conduz indefinidamente
a outras coisas. Na medida em que uma ideia geral nos torna
mais conscientes destas associações, ela é útil e deixa de ser
demasiadamente geral. Mas "geral" também significa "abstrato" ou desprendido de toda a contextura específica. E tal
abstração significa distância remota e faz-nos retrogradar,
mais uma vez, ao ensinar e aprender como simples processo
de preparar-se alguém para um fim divorciado dos meios.
Dizer que a educação, literalmente, durante todo o tempo em
que dura, deve ser a sua própria recompensa, significa que
nenhum estudo ou disciplina é educativo a não ser que tenha
valor o seu conteúdo imediato. Mas, objetivo verdadeiramente
geral amplia a perspectiva do espírito; estimula a pessoa a
tomar em conta mais consequências (associações). Significa
uma observação de meios e recursos mais vasta e flexível. Por
exemplo, quanto mais forças, das que interatuam, o agricultor
tomar em conta, na sua lavoura, mais variados serão seus
recursos imediatos. Verá maior número de pontos de partida
e de meios de realizar o que deseja fazer. Quanto mais completa for a concepção, de alguém, das futuras realizações possíveis, menos sua atividade presente se sentirá manietada por
119
Resumo. — Um objetivo corresponde ao resultado de
algum processo natural trazido à consciência e tornado em
fator para determinar a observação e a escolha dos meios
de prossegui-lo. Ter-se um objetivo significa, pois, que uma
determinada atividade se tornou inteligente. Especificamente
significa a previsão das consequências alternativas resultantes
de diferentes meios de ação em dadas circunstâncias, e a utilização daquelas previsões para orientar a observação e experimentação. Um verdadeiro objetivo contrasta, por esse motivo, de todo em todo, com um objetivo imposto exteriormente.
120
Democracia e educação
Este último é fixo e rígido; não é um estímulo para a inteligência em determinada situação, e sim uma ordem dada do
exterior para fazer-se esta ou aquela coisa. Em vez de
associar-se diretamente à atividade atual, é remoto e divorciado
dos meios pelos quais deve ser atingido. Em vez de sugerir
uma atividade mais livre e melhor equilibrada, é uma restrição
imposta a essa atividade. Em matéria de educação, a voga
desses objetivos externamente impostos é causadora do relevo
dado à ideia da preparação para um futuro remoto, e <ia
circunstância de se tornar mecânico e escravizado o trabalho
tanto do professor como do aluno.
CAPITULO 9
O desenvolvimento natural e a eficiência
social como objetivos
l. O objetivo fornecido pela natureza. — Acabamos de mostrar a inutilidade de tentar estabelecer o objetivo
da educação, isto é, algum objetivo final e último'que subordine a si todos os outros. Dissemos também que, sendo os objetivos gerais pontos de descortino para passarem-se
em revista as condições existentes e avaliarem-se suas possibilidades, podemos ter qualquer número deles, pois todos
podem ser coerentes entre si. De fato, grande número dos
objetivos foram adorados em diversas épocas, tendo todos
grande valor na ocasião e nos lugares onde foram adotados.
Com efeito, a formulação de um objetivo é matéria de
grande importância em determinado momento. Habitualmente, não encarecemos coisas que não precisam de encarecimento, isto é, que mostram por si mesmas perfeitamente bem
a própria importância. Tendemos antes a encarecer e a formular expressamente as deficiências e necessidades da situação
contemporânea; tomamos como coisa certa, sem explícitas
declarações que não teriam utilidade, tudo o que está bem ou
que o esteja aproximadamente. Os objetivos que formulamos
são os relativos às mudanças que devem ser efetuadas. Não
bá, portanto, paradoxo que requeira explicação, a afirmação
de que cada época ou geração se inclina a dar realce, em seus
projetos conscientes, àquilo exatamente que menos possui em
sua condição presente. Num período de predomínio da autoridade surgirá como reação a aspiração de grande liberdade
individual; num de desordenada atividade individual, a da necessidade da direção social como objetivo educacional.
A prática real e tácita e o objetivo consciente ou manifesto contrabalançam-se, destarte, reciprocamente. Predominaram, revelando-se úteis em diferentes oportunidades, obje-
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123
Democracia e educação
O desenvolvimento e a eficiência
tivos como viver plenamente, ter melhores métodos para o
estudo da língua, substituição das palavras por coisas, eficiência social, cultura pessoal, serviço social, completo desenvolvimento da personalidade, conhecimentos enciclopédicos, disciplina, contemplação estética, utilidade, etc.
A seguinte exposição apreciará três objetivos de influência recente; alguns outros já foram examinados nos capítulos
antecedentes e outros serão incluídos mais adiante em um
exame dos conhecimentos e dos valores dos estudos. Começaremos com a ideia de que a educação é um processo de
desenvolvimento de acordo com a natureza, segundo afirma
ROUSSEAU, que contrapunha o natural ao social e em seguinda
passaremos para a concepção contrária da eficiência social que,
com frequência, contrapõe o social ao natural.
Aborrecidos com o convencionalismo e o artificialismo dos
métodos escolásticos que encontraram dominando em toda a
parte o ensino, os reformadores da educação tenderam a arvorar a natureza como modelo e padrão. Admitiram que a natureza fornecesse as leis e a finalidade do desenvolvimento; a
nós, competindo segui-la e viver conformemente a seus ditames. O valor prático desta concepção está no modo insistente
com que chama a atenção para a impropriedade dos objetivos
que não tomam em conta as qualidades inatas dos educandos.
Seu ponto fraco reside na facilidade com que o natural, no
sentido de normal, se confunde com o físico. Omite-se portanto a utilização da inteligência para prever e aperfeiçoar;
procuramos arredar-nos do caminho, para deixar a natureza
fazer sua ,obra. Como ninguém, melhor do que ROUSSEAU,
expôs a verdade e falsidade desta doutrina, é a ele que recorremos.
"Recebemos a educação de três fontes", diz ROUSSEAU,
"da natureza, dos homens e das coisas. O desenvolvimento
espontâneo de nossos órgãos e aptidões constitui a educação
da natureza. O uso que nos ensinaram a dar a este desenvolvimento, devemo-lo à educação dada pelos homens. A aquisição de experiência pessoal por meio dos objetos que nos
cercam constitui a das coisas. Somente quando estas três espécies de educação se harmonizam e se orientam para o mesmo
fim é que um homem se dirige para seu verdadeiro destino..,
Se nos perguntarem qual é este fim ou destino, a resposta
será que é o da natureza. Pois sendo necessário o concurso
das três espécies de educação para que haja a educação com-
pleta, a espécie que é inteiramente independente de nossa
vontade deve necessariamente dirigir-nos na determinação das
outras duas". Em seguida ele define a natureza como o conjunto de nossas aptidões e tendências inatas, "do modo como
elas existem antes da modificação trazida pelos hábitos constritores e pelo influxo da opinião das outras pessoas".
As palavras de ROUSSEAU exigem detido exame. Tanto
encerram verdades fundamentais já expressas sobre educação, como, de mistura, um curioso equívoco. Impossível seria
exprimir melhor o que ele disse nas primeiras sentenças. Os
três fatores do desenvolvimento educativo são: fl) a estrutura inata de nossos órgãos corporais e sua atividade funcional; b) a utilização da atividade desses órgãos pelo influxo
de outras pessoas; c) a ação mútua, direta, entre eles e o
ambiente. Esta exposição, certamente, exprime o essencial.
Suas outras duas proposições são igualmente aceitáveis, isto é,
a) que só quando os três fatores da educação se harmonizam
e atuam em cooperação sobrevêm o conveniente desenvolvimento do indivíduo e b) que sendo inata a atividade natural
dos órgãos é ela essencial para determinar a harmonia.
Não obstante, basta ler um bocado nas entrelinhas, e
completar essa leitura com algumas outras afirmações de
ROUSSEAU, para se perceber que, em vez de considerar essas
três coisas corno fatores que devem, em certa extensão, colaborar conjuntamente, a fim de que cada um deles atue educativamente, considera-as corno operações separadas e independentes. E, principalmente, ROUSSEAU acredita que haja um
desenvolvimento independente e, segundo ele diz, "espontâneo"
dos órgãos e faculdades inatos. Pensa que esse desenvolvimento se produza independentemente do uso que se lhes dê.
E a este desenvolvimento separado é que deve ser subordinada
a educação proveniente do contacto social. Ora, é enorme
a diferença entre o emprego das atividades inatas de acordo
com aquelas próprias atividades — como coisa diversa de
forçá-las e pervertê-las — e supor-se que as mesmas se desenvolvam normalmente à parte de qualquer uso ou emprego, desenvolvimento esse que fornecerá o modelo e a norma para todo
o aprendizado por meio do uso. Para recorrer a nosso exemplo anterior — o processo da aquisição da linguagem é um
modelo praticamente perfeito do apropriado desenvolvimento
educativo, O ponto de partida é a atividade inata do aparelho
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Democracia e educação
O desenvolvimento e a eficiência
vocal, dos órgãos da audição, etc. Mas é absurdo supor-se que
eles tenham um peculiar desenvolvimento independente, e que
entregues a si mesmos evoluam até aprender-se a falar com
perfeição. Considerado ao pé da letra, o princípio de ROUSSEAU
significaria que os adultos devem adotar e repetir os balbucies
e outros ruidos emitidos pelas crianças não como o início do
desenvolvimento da linguagem articulada — pois isto é que
eles são — mas como verdadeira linguagem '— modelo para
todo o ensino de linguagem.
Pode-se resumir este ponto dizendo-se que ROUSSEAU
tinha razão e introduzia na educação uma reforma muito necessária, ao sustentar que a estrutura e atívidade dos órgãos
fornecem as condições de todo o ensino do uso dos órgãos; mas
errava profundamente afirmando que esses órgãos fornecem
não só as condições, como também os fins de seu desenvolvimento. O fato é que as atividades inatas se desenvolvem,
não pelo exercício casual e caprichoso, mas pelo uso que delas
se faz. E a função do meio social é, como já vimos, orientar
o desenvolvimento dando às aptidões o melhor uso possível.
As atividades instintivas podem chamar-se, metaforicamente,
espontâneas, no sentido de que os órgãos proporcionam forte
tendência para que as atividades sejam de certa natureza •—
propensão tão forte que não podemos contrariá-la pois tentar
contrariá-la seria, provavelmente, pervertê-las, atrofiá-las e
corrompê-las. Mas a concepção de um espontâneo desenvolvimento normal dessas atividades é puro mito. As aptidões
naturais ou inatas proporcionam as energias iniciais e limitadoras de toda a educação — mas não seus fins ou objetivos.
Em todo o aprendizado começa-se com aptidões não exercitadas — mas aprender não consiste em uma espontânea expansão
das aptidões não exercitadas. O fato de ROUSSEAU pensar
contrariamente é devido, sem dúvida, à circunstância de identificar Deus e a Natureza; para ele as aptidões originárias
são perfeitamente boas, por provirem diretamente de um Criador sábio e bom. Parafraseando o velho dito popular sobre
o campo e a cidade, poder-se-ia dizer que Deus criou os órgãos
e aptidões humanas inatas, e o homem criou o uso que lhes é
dado. Por consequência, o desenvolvimento dos órgãos e
aptidões fornece o modelo a que o uso deve subordinar-se.
Quando os homens tentam determinar os usos a serem dados
às atividades inatas, vão de encontro a um plano divino. A
interferência nesse plano, por meio de arranjos sociais das
coisas da natureza, obra de Deus, é a fonte primária da
corrupção dos homens. A veemente asseveração de ROUSSEAU,
do bem intrínseco de todas as tendências naturais, era uma
reação contra a ideia então dominante da depravação absoluta
da inata natureza humana, e teve poderosa influência na modificação de atitudes com relação aos interesses das crianças.
No entanto, é quase desnecessário dizer-se que os impulsos
primitivos não são, por si mesmos, bons ou maus, mas tornam-se uma ou outra coisa, de acordo com os objetos em que
forem empregados. O que não deixa dúvida é que o abandono,
o recalcamento e o prematuro exercício forçado de alguns
instintos, à custa dos demais, são a causa de muitos males evitáveis. O que é moral, porém, não é o abandoná-los a sós,
para que tenham seu "desenvolvimento espontâneo" e, sim, o
proporcionar-se um meio adequado para sua organização e
desenvolvimento.
125
Voltando aos elementos de verdade existentes nas ideias
de ROUSSEAU, verificaremos que o desenvolvimento natural
como objetivo da educação habilitou-o a indicar os meios de
debelar muitos erros das práticas então dominantes e aconselhar
certo número de desejáveis objetivos específicos.
l — O desenvolvimento natural como o objetivo ou fim
da educação dirige a atenção para os órgãos do corpo e para
a necessidade de saúde e robustez. O objetivo referido diz aos
país e professores: Tornem a saúde um f i m ; não se pode
conseguir o desenvolvimento natural sem se atender à robustez
do corpo — fato esse perfeitamente óbvio, mas seu reconhecimento na prática iria quase automaticamente revolucionar
muitos de nossos usos educacionais. " Natureza" é, por certo,
um termo vago e metafórico, mas uma coisa que se pode dizer
que a "natureza" nos ensina é que existem condições para a
eficiência educativa e que, enquanto não aprendermos qur.is
são essas condições, e também não aprendermos a pôr de acordo
com elas as nossas práticas educativas, os mais nobres e ideais
dos nossos objetivos hão de se ressentir — pois serão mais
verbais e sentimentais do que eficazes.
' 2 — O objetivo do desenvolvimento natural converte-se
no objetivo do respeito da mobilidade física. Diz ROUSSEAU:
"As crianças estão sempre em movimento; a vida sedentária
é prejudicial". Quando ele diz que "a intenção da natureza é
127
Democracia e educação
O desenvolvimento e a> eficiência
fortificar o corpo antes de exercitar o espírito", deixa de
enunciar o fato com exatidão. Mas se houvesse dito que a
"intenção" da natureza (adotemos seu modo poético de falar)
é desenvolver o espírito principalmente por meio do exercício
dos músculos do corpo, haveria afirmado um futo verdadeiro.
Por outras palavras —- o objetivo de seguir a natureza significa, nos casos concretos, ter em conta o papel efetivo do
uso dos órgãos do corpo nas explorações, no manejo de materiais e nos brinquedos e jogos.
pois o desenvolvimento nunca é geral e sim, acentua-se ora
num, ora noutro lugar... Os métodos educativos que reconhecerem, ante as enormes diferenças de dons pessoais, os
valores dinâmicos das desigualdades naturais do desenvolvimento, e as utilizarem, preferindo a desigualdade à uniformidade obtida pela podadura, acompanharão de mais perto
aquilo que se passa no corpo, e se mostrarão assim mais
eficazes (1)".
Difícil é a observação das tendências naturais sob condições que constranjam a criança. Elas se revelarão mais de
pronto no que a criança diz e faz espontaneamente — isto
é, naquilo que faz quando não tem tarefas marcadas e não
sabe que está sendo observada. Não se infere daí que essas
tendências sejam todas desejáveis, pela circunstância de serem
naturais e sim que, sendo certo que existem, são operantes e
devem ser tomadas em linha de conta. Devemos dispor as
coisas de forma que as desejáveis tenham um ambiente que
as conserve ativas e que essa atividade atue e dirija as demais,
fazendo por esse modo com que não sejam usadas as que
nenhum proveito trazem. Muitas tendências que ao surgirem
impressionam os pais são com frequência transitórias e, em
certos casos, dar muita atenção a elas apenas leva a fixar
também a atenção da criança nas mesmas. De um modo
gerai, os adultos adotam mui facilmente como modelo seus próprios hábitos e desejos, e consideram todos os impulsos infantis
que deles se afastam como coisas más que devem ser eliminadas. Este artificialismo contra o qual a concepção de seguir
a natureza traz um tão veemente protesto, provém das tentativas para se comprimirem diretamente as crianças nos moldes dos ideais das pessoas adultas.
Em conclusão: observamos que a história primitiva da
ideia de obedecer à natureza associava dois fatores sem conexão
inerente um com o outro. Antes do tempo de ROUSSEAU os
reformadores da educação tinham sido inclinados a acentuar a
importância da educação atribuindo-lhe virtualmente uma eficácia ilimitada. Dizia-se que todas as diferenças entre os
povos e entre as classes e pessoas do mesmo povo eram devidas
à diferença de adestramento, de exercícios e de prática. Originariamente o espírito, a razão e o entendimento são, para
todos os fins práticos, os mesmos em todos. Esta identidade
126
3 — O objetivo geral do desenvolvimento natural converte-se no objetivo de ter em consideração as diferenças individuais entre as crianças. Ninguém pode tomar em conta o
princípio de atender-se às qualidades inatas sem se impressionar com a circunstância de que essas qualidades diferem nos
diversos indivíduos. A diferença não só consiste em sua diversidade, como também na qualidade e arranjo. Disse ROUSSEAU :
"Cada indivíduo nasce com um temperamento distinto. Nós
submetemos indiferentemente crianças de várias tendências aos
mesmos exercícios; sua educação destruirá a propensão especial, produzindo uma monótona uniformidade^ Por isso, depois
de empregarmos nossos esforços para atrofiar os verdadeiros
dons da natureza, vemos desaparecer o efémero e ilusório
brilho que criamos em sua substituição; e as aptidões naturais
que recalcamos não ressurgirão".
Em último lugar, o objetivo de obedecer à natureza significa observar a origem, o crescimento e o declínio das preferências e interesses. As aptidões abotoam e desobrocn«uu
irregularmente; nem mesmo existe desenvolvimento paralelo.
Devemos malhar o ferro enquanto quente. Particularmente
precioso é o despontar das energias. Os modos por que tratamos as tendências da primeira infância fixam, mais do que
se imagina, as suas disposições fundamentais e condicionam
a direção das qualidades que se manifestarão mais tarde. O
interesse educacional pelos primeiros anos da vida — coisa
diversa da imposição do aprendizado de artes úteis — data
quase que inteiramente do tempo em que PESTALOZZI e FROEBEL,
continuadores de ROUSSEAU, puseram em relevo as leis naturais do desenvolvimento. A irregularidade deste e sua importância são indicadas no seguinte trecho de um investigador do
desenvolvimento do sistema nervoso. "No desenvolvimento
tanto das coisas corporais como mentais, há falta de simetria,
1)
Donaldson, O Desenvolvimento do Cérebro3 pág. 356.
Democracia õ Educação
O desenvolvimento e a eficiência
essencial de espírito significa a igualdade essencial de todos e
a possibilidade de erguê-los ao mesmo nível. Como protesto
contra esta opinião, a teoria de seguir a natureza constituía
uma opinião muito menos formal e abstraia do espírito e de
suas faculdades. Ela substituiu as faculdades abstraías do
discernimento, da memória e da generalização, por instintos
especiais diferindo de indivíduo a indivíduo, exatamente como
diferem, segundo ROUSSEAU o salientou, até nos cães da mesma
ninhada. Neste seu aspecto a teoria da harmonia educativa
com a natureza foi robustecida pelo desenvolvimento da biologia, da fisiologia e da psicologia modernas.
Ela significava, com efeito, que grande como é a significação do desenvolvimento, da modificação e da transformação por meio do esforço educacional direto, a natureza ou
as aptidões não exercitadas é que proporcionam os fundamentos e os recursos essenciais para tal desenvolvimento.
Por outro lado, a teoria de obedecer à natureza era um
dogma político. Ela significava uma revolta contra as instituições sociais, costumes e ideais existentes, A afirmação,
de ROUSSEAIT, de que tudo é bom do modo que sai das mãos
do Criador, tem sua significação somente pelo contraste com
a parte final do mesmo período: "Tudo degenera nas mãos
do homem". E ele diz novamente: "O homem natural tem
um valor absoluto; ele é uma unidade numérica, um número
inteiro completo e não tem relações a não ser consigo mesmo
e com os seus semelhantes. O homem civilizado é apenas
uma unidade relativa, o numerador de uma fração cujo valor
depende de seu denominador, o qual é a sua relação com o
corpo integral da sociedade. Boas instituições políticas são
aquelas que tornam o homem antinatural". É sobre esta concepção do caráter artificial e malfazejo da vida organizada
social, tal como ela agora existe (1), que ele baseava a noção
de que a natureza não só fornece as primeiras forças que dão
impulso ao desenvolvimento, como também o seu plano e sua
finalidade. É bem verdade que as instituições e costumes maus
atuam quase automaticamente para dar uma educação má, que
o mais cuidadoso regime escolar não pode evitar; mas a conclusão não é educar fora do meio e sim proporcionar um meio
no qual seja dado o melhor uso às faculdades inatas.
328
1) Não devemos esquecer que Rousseau tinha a ideia de uma
sociedade radicalmente diferente, uma sociedade fraternal j:ujo fim
fusse o bem de todos os seus membros, que ele pensava ser tão melhor
que os estados existentes quanto esses eram piores do qite o estado de
naturuza.
129
2, A eficiência social como o objetivo da educação.
— Uma concepção que fazia a natureza fornecer a finalidade de uma verdadeira educação e a sociedade a finalidade de
uma educação má, não poderia passar sem provocar algum
protesto. Sua contradita veemente tomou a forma da teoria
de que a função da educação é fornecer precisamente aquilo
que a natureza deixa de proporcionar, isto é, fazer o indivíduo
habituar-se à influência social e subordinar as faculdades
inatas às regras sociais.
Não será de surpreender verificar-se que o valor do
ideal de eficiência social está em grande parte em seu protesto contra os pontos que a teoria do desenvolvimento natural tratou erradamente, ao passo que se torna defeituoso
quando esquece o que existe de verdade naquela concepção.
É um fato que precisamos encarar as atividades e realizações
da vida em sociedade para saber o que significa o desenvolvimento das faculdades — isto é, o que significa eficiência. O
erro está em subentender que devemos adotar medidas de subordinação de preferência às de utilização para assegurar a
eficiência daqueles poderes ou energias. Torna-se aceitável a
teoria quando reconhecemos que conseguimos a eficiência social não pelo constrangimento negativo mas pelo uso positivo
das faculdades individuais inatas, em ocupações que tenham
significação 'social.
l — Traduzida em objetivos específicos, o objetivo geral
de eficiência social revela a importância da' capacidade industrial ou económica. Ninguém pocle viver sem meios de
subsistência; o modo por que estes meios são empregados e
consumidos têm profunda influência sobre todas as relações
recíprocas entre as pessoas. Se um indivíduo não for capaz de
ganhar sua própria subsistência e a dos filhos que dele dependem, será um fardo para os outros, um parasita da ativídade
dos demais. Falta-lhe unia das mais educativas experiências
da vida. Se não está exercitado a fazer bom uso dos produtos
da indústria, há o grande perigo de que se possa perverter e
prejudicar, com a sua posse das riquezas, os outros homens.
Nenhum plano de educação pode esquecer estas considerações
130
Democracia c educação
básicas. Entretanto, em nome de ideais superiores e espirituais,
as disposições para a educação superior com frequência não só
as negligenciam, como também as encaram com desprezo, por
julgá-las abaixo do nível das preocupações educativas. Com a
mudança de uma sociedade oligárquica para outra democrática,
é natural que seja dado reulce à significação de uma educação
cujo resultado será a capacidade para se prosperar economicamente e utilizarem-se eficazmente os recursos económicos,
em vez de empregá-los, em mera ostentação e luxo.
Existe, contudo, o grave perigo de que, insistindo-se
neste fim, se considerem como definitivas as condições e craveiras económicas existentes. Um critério democrático exige
que desenvolvamos nossas capacidades até nos tornarmos competentes para escolher e seguir a nossa própria carreira. Viola-se este princípio quando previamente se tentam adaptar os
indivíduos a determinadas profissões industriais, não escolhidas de acordo com as aptidões inatas exercitadas, e sim de
acordo com a fortuna ou categoria social dos pais. O fato é
que a indústria atualmente sofre rápidas e abruptas mudanças
devidas ao aparecimento de novas invenções. Surgem indústrias novas e as velhas .sofrem uma revolução. Por consequência, as tentativas de se exercitarem os indivíduos para
modos muitos especializados de eficiência vêem malogrado seu
propósito. Quando a ocupação muda seus métodos, esses indivíduos ficam em atraso e com menos aptidão ainda para
readaptar-se do que se tivessem tido educação menos especializada. Todavia, mais do que tudo, a presente organização
industrial da sociedade é, como toda sociedade que haja existido, cheia de iniqúidades. É objetivo da educação progressista contribuir para abolir os privilégios indevidos e as injustas privações e, não, para perpetuá-las. Onde quer que a
direção social importe na subordinação das atividades individuais às classes detentoras da autoridade, existe o risco de
ser a educação industrial dominada pela conformidade cora o
status quo. As. diferenças de oportunidades económicas determinam compulsoriamente, nesse caso, as futuras profissões dos
indivíduos. Temos um inconsciente ressurgir dos defeitos do
plano de PLATÃO, sem seu inteligente método de seleção.
2 — A eficiência cívica, ou a qualidade de bom cida-lão.
É arbitrário, naturalmente, separar-sè a capacidade industrial
O desenvolvimento c a eficiência
131
ou económica da capacidade de ser-se bom cidadão. Mas
pode-se usar esta expressão para indicar certo número de característicos mais vagos do que a vocação para cada espécie de
habilidade. Estes característicos representam tudo aquilo que
torna um indivíduo melhor companheiro no sentido político: a
aptidão para julgar sensatamente os homens públicos e as
medidas tomadas, e para tomar parte saliente não só no fazer
as leis como também no obedecer-lhes.
O objetivo da eficiência cívica tem pelo menos o mérito
de resguardar-nos da noção da educação das faculdades mentais de um modo geral. Chama-nos a atenção para o fato de
que essas faculdades devem relacionar-se com alguma coisa a
fazer e para o fato de que as coisas que mais precisamos fazer
exigem, entre as pessoas, relações recíprocas.
Temos aqui, novamente, de ficar em guarda contra a
compreensão muito estreita desse objetivo. Uma interpretação limitada em excesso impediria, em certos períodos, as
descobertas científicas, apesar da circunstância de que, em
última análise, a segurança do progresso social depende delas.
Pois os cientistas poderiam vir a ser considerados meros sonhadores de coisas abstratas, totalmente incapazes de revelar eficiência social. Deve-se ter em mente que, afinal de contas,
eficiência social significa nada mais nada menos do que capacidade para compartilhar do dar e receber da experiência comum. E, portanto, abrange tudo aquilo que torna a experiência de uma pessoa mais valiosa para as outras, e tudo o que
habilita alguém a participar mais abundantemente das experiências valiosas dos demais. A aptidão para criar e admirar obras
de arte, para divertir-se ou recrear-se e para uma significativa
utilização dos lazeres, são elementos de mais importância sob
aquele ponto de vista, do que os elementos convencionais
associados com frequência à cidadania.
Em seu sentido mais vasto, eficiência social é nada menos do que a socialização do espírito ou da inteligência que
contribua ativamente para tornar a experiência mais comunicável e para derrubar as barreiras das separações sociais que
tornam os indivíduos impenetráveis aos interesses dos demais.
Quando a eficiência social se limita a serviços prestados por
atos manifestos, fica esquecido o seu principal componente
(principal por ser sua garantia única) — isto é, a inteligente
simpatia ou a boa vontade. Pois essa simpatia, como qualidade
Democracia c educação
O desenvolvimento e a eficiência
desejável, é alguma coisa mais do que um simples sentimento;
é a imaginação consciente e cultivada daquilo que os homens
têm de comum e a revolta contra tudo aquilo que desnecessariamente os divide. O que se chama, às vezes, interesse benevolente pelos outros, pode não ser mais do que a inconsciente
máscara do desejo de impor-lhes a ideia do que deva ser o
seu bem, em vez de um esforço para emancipá-los, de forma
a poderem procurar e encontrar o bem de sua própria escolha.
A eficiência social e até os serviços sociais são coisas duras
e ásperas, quando separadas de um reconhecimento ativo da
diversidade dos bens que a vida pode proporcionar às diferentes
pessoas e da fé na utilidade social de encorajar-se cada indivíduo
para fazer sua própria escolha inteligente.
são em superiores c inferiores. Acredita-se que os primeiros
dispõem de tempo e de oportunidade para se desenvolver
como seres humanos, ao passo que os últimos se limitam a
fornecer produtos materiais. Quando se mede a eficiência
social por estes produtos ou se considera esta produção como
o ideal, em uma sociedade que se diz democrática, isto significa que se aceita e se pratica a estimação depreciativa das
massas, que é característica das comunidades aristocráticas.
Mas ,se a democracia tem significação moral e ideal, é porque
se exige de todos uma retribuição social e porque se proporciona, a todos, oportunidade para o desenvolvimento das
suas aptidões distintivas. O divórcio dos dois objetivos na
educação é fatal à democracia; a adução da significação mais
restrita de eficiência priva-a de sua justificação essencial.
O objetívo da eficiência (bem como qualquer outro objetivo educacional) deve u ser incluído no processo da experiência.
Ele torna-se materialista quando medido por produtos exteriores tangíveis e não pela realização de uma experiência qualitativamente valiosa. Os resultados expressos em uliliclades
materiais, que possam provir de uma personalidade eficiente,
são, no sentido mais estrito, subprodutos da educação,; subprodutos indispensáveis e importantes, porém, mesmo assim,
subprodutos. Estabelecendo-se essa finalidade exterior para
a eficiência, fortalece-se, como reação, a falsa concepção de
cultura, como uma coisa exclusivamente "interior". E a ideia
de aperfeiçoar a personalidade "interior" é seguro indício de
divisões sociais. Aquilo que se chama interior é simplesmente
o que não se relaciona com outras pessoas — o que não é
suscetível de livre e plena comunicação. A chamada cultura
espiritual tem sido comumente bem inútil, e de conteúdo algo
maléfico, precisamente por ter sido concebida como coisa que
um homem pode ter intimamente — e, por isso, exclusivamente.
Somos como pessoas aquilo que nos mostramos ser quando
associados a outras pessoas, numa livre reciprocidade de dar
e receber. Isto transcende a esfera da eficiência, que consista
em fornecer produtos aos outros -— e a da cultura, que seja
uni solitário requinte e polimento.
132
3. A cultura como o objetivo da educação. — Nas
considerações que se seguem procuraremos saber se a eficiência social é ou não um objetivo coerente com a cultura.
Cultura significa, pelo menos, alguma coisa tratada, alguma
coisa amadurecida; opõe-se ao que é "bruto" ou "cru".
Quando se identifica o "natural" com esta bruteza, a cultura
se opõe ao que chamamos desenvolvimento natural. A cultura
é também algo de pessoal; é o cultivo da apreciação das ideias,
da arte e dos interesses humanos mais gerais. Quando se
identifica a eficiência com uma restrita série de atos, ou operações, em vez de identificar-se com o espírito e a significação
da atividade, a cultura opõe-se à eficiência. Mas, quer se
chame cultura ou desenvolvimento completo da personalidade,
o seu resultado se identifica com o da verdadeira significação
de eficiência social sempre que se prestar atenção ao que é
único, exclusivo em cada indivíduo — e não seria ele um
individuo se nele existisse algo de incomensurável. O seu
contrário é a formação, em série, por um tipo médio. Sempre
que se buscar o desenvolvimento das qualidades características
resulta a formação de personalidades distintas e, por conseguinte, esperanças de serviços sociais bem maiores do que o
simples fornecimento quantitativo de utilidades materiais.
Pois como pode existir sociedade realmente digna de que a
sirvam, se não for constituída de indivíduos de significativas
qualidades pessoais?
A circunstância de se julgarem coisas opostas o alto
valor de uma personalidade e a eficiência sorial, deriva de
uma sociedade organizada feudalmente com sua rígida divi-
Erraram sua vocação
dores, médicos, professores
deram que as realizações
acompanham sempre um
133
todos o.s indivíduos, sejam lavraou estudantes, que não compreende resultados úteis para outrem
processo de experiência que tem
Democracia e educação
O desenvolvimento c a eficiência
valor por si mesmo. Porque, então, pensar-se que a pessoa
deve escolher entre sacrificar-se para fazer coisas úteis aos
outros ou sacrificar esses outros para demandai' seus próprios e
exclusivos fins, quer sejam a salvação da própria alma ou a
edificação interior de uma vida e personalidade espirituais?
O que acontece é que, não sendo possível devotar-nos perseverantemente a qualquer de&sas coisas, transigiremos e recorreremos a alternativas tentando cada coisa por seu turno.
Não há maior tragédia do que o fato de terem as concepções
espirituais e religiosas do mundo dado tanto relevo aos dois
ideais do sacrifício pessoal e do auto-aperfeíçoamento espiritual, em vez de combater este dualismo na vida. Esse
dualismo já se arraigou muito profundamente para ser facilmente extirpado; mas, por esta razão, a tarefa especial da
educação nos tempos atuais é lutar em prol de uma finalidade
em que a eficiência sócia! e a cultura pessoal sejam coisas
idênticas e, não, antagónicas,
espírito, ela contrastará com uma dispo^ic/io <le serviço social.
Mas a 1 eficiência social, como finalidade educativa, deve significar o cultivo da faculdade de participar-se livre e plenamente
de atividades comuns. Isto é impossível sem cultura e, ao
mesmo tempo, nos recompensa com mais cultura, porque não
podemos colaborar com outrem sem aprendermos com isso alguma coisa — sem nos alçarmos a um ponto de mais largo descortino e perceber coisas que, se não fosse isso, ignoraríamos.
Por essa causa não há talvez melhor definição de cultura
do que dizer-se que é a capacidade de expansão contínua da
quantidade e profundidade de nossas percepções e ideias.
134
Resumo. — Os objetivos gerais ou compreensivos são
pontos de vista para se focalizar a tarefa da educação. Por
conseguinte, a prova do valor do modo por que é apresentada alguma ampla finalidade, é verificar-se se ela se inclui
pronta e coerentemente nos processos sugeridos por alguma
outra. Aplicamos esta prova a três grandes objetivos: o do
desenvolvimento de acordo com a natureza, o da eficiência
social e o da cultura 001 enriquecimento mental e pessoal.
Vimos em todos os casos que esses objetivos, quando parcialmente formulados, entram em conflito uns com os outros.
Considerada unilateralmente, a teoria do desenvolvimento natural adota como finalidade total o desenvolvimento espontâneo das faculdades originárias. Sob este 'ponto de vista, o
exercício que as torna úteis aos outros é uma coação anormal;
perverte-as quem as modifica profundamente pelo desenvolvimento voluntário. Mas desaparecerá esse conflito se reconhecermos que atividades naturais significam atividades inatas
que se desenvolvem unicamente por meio dos usos com os
quais são aperfeiçoadas. Analogamente, se tomarmos a eficiência social no sentido estrito de prestar serviços exteriores
às outras pessoas, ela necessariamente se oporá ao objetivo de
enriquecer a significação da experiência, ao mesmo tempo em
que, considerando-se a cultura o aperfeiçoamento interior do
135
Interesse c disciplina
CAPÍTULO 10
Interesse e disciplina
l. A significação das palavras interesse e disciplina. — Já notamos a diferença de atitude de um espectador
e de um agente ou participante da ação. Ao primeiro é
indiferente o que sucede; tão bom ê um resultado quanto
outro, uma vez que cada qual continua a ser coisa observável. O último está associado ao que se faz; o resultado da
ação tem para ele importância. Sua sorte ou bem-estar estarão
mais ou menos em jogo com o resultado dos acontecimentos.
Por consequência, ele fará o que puder para influir na direção
tomada pelos acontecimentos. Um é como um homem em
uma prisão a olhar a chuva pela janela; para ele tanto faz
chover como não chover. O outro é um homem que vai no dia
imediato a um piquenique que a chuva, se persistir, poderá
frustrar. Ele não pode, é verdade, com seus sentimentos
atuais, influir no estado do tempo do dia seguinte, mas poderá
ciar alguns passos que influam em acontecimentos futuros,
como o adiamento do piquenique. Se alguém vir ayizinhar-se
um automóvel que o poderá atropelar, se não ihe for possível
fazê-lo parar, ser-lhe-á possível', pelo menos, sair de seu caminho, se previr, com tempo, aquela consequência. Em muitos
casos poderá intervir mais diretamente. A atitude de quem
toma parte em alguma espécie de atividade é, conseguint emente,
clupla: há o cuidado, a ansiedade pelas futuras consequência s,
e a tendência para agir, no sentido de assegurar as melhores
e evitar as piores consequências.
Há uma palavra para exprimir essa atitude: é interesse.
Ela sugere que uma pessoa se acha presa às possibilidades
inerentes às coisas; que, portanto, se encontra vigilante a
observar aquilo que tais coisas lhe poderão fazer; e que, fundada nessa expectativa ou previsão, está ansiosa por agir. de
modo a lhes dar uma direção, de preferência a outra. Interesse e objetívos, interesse e intenção ou propósito, estão
137
necessariamente em estreita conexão. Palavras como objetivo,
intento, finalidade apontam para os resultados desejados que
nos esforçamos por obter; presumem como existentes a atitude
de solicitude e de atenta ansiedade por parte de alguma pessoa.
Vocábulos como interesse, afetar, motivação, acentuam o alcance daquilo que é previsto sobre a sorte do indivíduo e o vivo
desejo, que este tem,, de assegurar um possível resultado. Todas
aceitam como coisas certas as mudanças objetivas. A diferença
é apenas de força expressiva; a significação velada em uma
série de palavras acha-se clara na outra. Aquilo que se prevê
é objetivo e impessoal: chover no dia seguinte; a possibilidade
de ser atropelado. Mas, para um ser ativo, um ser que participa das consequências em vez de ficar estranho às mesmas,
existe ao mesmo tempo uma reação pessoal. A diferença
imaginativamente prevista cria uma diferença atual que se exprime pelo cuidado, pelo esforço. Apesar de palavras tais
como afetar, interesse e motivo indicarem uma atitude de
preferência pessoal, são também atitudes para com objetos,
ou coisas exteriores — para com aquilo que se prevê. Poderemos denominar o aspecto de previsão objetiva, intelectual
e o aspecto cie interesse pessoal, emocional e volitivo, mas não
há separação entre os fatos constitutivos da situação.
Tal separação só poderia existir se as atitudes pessoais
pudessem existir independentemente. Elas, porém, são sempre reações ao que sucede na situação em que tomam parte,
e o bom êxito ou malogro de sua manifestação depende da ação
recíproca entre elas e outras mudanças. As atividades vitais
surgem e se extinguem sempre em relação com as mudanças
do ambiente. Estão literalmente presas a estas mudanças;
nossos desejos, emoções e paixões não passam de vários modos
pelos quais nosso procedimento se liga ao das coisas e pessoas
que nos cercam. Em vez de assinalarem um terreno puramente pessoal ou subjetivo, separado do terreno objetivo e
impessoal, indicam a inexistência desse mundo à parte. Ministram prova convincente de que as mudanças das coisas
não são alheias às atividades do eu e de que a evolução e
bem-estar do eu se acham associados ao procedimento das
pessoas e das coisas. "Interesse" significa que o eu e o
mundo exterior se acham juntamente empenhados em uma
situação em marcha.
A palavra interesse, na acepção comuniente usada, exprime I) a atividade considerada em seu todo, TT) os
138
í 39
Democracia c educação
Interesse c disciplina
resultados objetivos previstos e desejados e III) a pessoal
propensão emocional. i.° — Com frequência referimo-nos a
uma ocupação, a um emprego, a uma pesquisa, a um negócio,
como sendo um interesse. Dizemos, desta forma, que o interesse de alguém é a política ou o jornalismo, ou a filantropia,
ou a arqueologia, ou colecionar pinturas japonesas, ou a àtividade bancária. 2.° — Com a palavra interesse também
exprimimos o ponto em que alguma coisa afeta a uma pessoa;
o ponto em que a influencia. Em alguns atos legais uma
pessoa tem que provar seu "interesse" para o fim de ser
admitida em juízo. Precisará .provar que algum ato judicial
proposto interessa a seus negócios. Um sócio que nada faz
pode ter interesse em um negócio (embora não tome parte
ativa no mesmo) porque a prosperidade ou declínio do referido
negócio influirá em seus lucros ou prejuízos. 3.° — Quando
dizemos estar uma pessoa interessada nisto ou naquilo, acentua-se com isso diretamente sua atitude pessoal. Estar interessado em alguma coisa é achar-se absorvido, envolvido, levado
por essa coisa, Tomar interesse é ficar alerta, cuidadoso,
atento. Dizemos de uma pessoa interessada que ela se enterrou em algum negócio ou que se encontrou nele. Estas
frases exprimem a absorção, o apaixonamento da pessoa pela
coisa.
procurar-sc alguma isca agradável para se pendurar no material
estranho e intragável. É descobrir objetos e modos de agir que
se relacionem com as aptidões existentes. Fazer este material
acionar a atividade para ela exercer-se com coerência e continuidade — eis o interesse do mesmo. Desde que o material
atue desta maneira, não há necessidade de recorrer-se a artifícios
que o tornem interessante, ou apelar-se para o esforço arbitrário e semícoagido.
Quando se fala de modo depreciativo sobre o papel do
interesse na educação, verificar-se-á que foi porque se exagerou e, em seguida, isolou a segunda significação mencionada.
Considera-se o interesse simplesmente como significando o
efeito de uma coisa sobre a vantagem ou desvantagem pessoal,
sobre o triunfo ou o mau êxito. Isoladas do curso objetivo
dos sucessos estas coisas se reduzem a meros estados pessoais
de prazer ou de dor. Pedagogicamente, conclui-se que dar
importância ao interesse significa repassar de algum atraente
aspecto um material que de outro modo seria indiferente;
garantir a atenção e o esforço, com a perspectiva de uma paga
em prazer. Estigmatiza-se este processo dizendo-se ser pedagogia "mole" ou uma teoria educacional "efeminada".
Mas a objeção baseia-se no fato — ou presunção —
de que as espécies de aptidão a serem adquiridas e a matéria
a ser assimilada não têm interesse por si mesmas; em outras
palavras — supõe-se "serem t-slranhas à atividade normal dos
discípulos. O remédio não é culpar a teoria do interesse nem
A palavra interesse sugere, etimológica mente, aquilo que
está entre — inter - esse, que reúne duas coisas que de
outra forma ficariam distantes. Em educação essa distância
a ser suprimida deve ser considerada como uma distância de
tempo. Tão óbvia é a circunstância de que um processo leva
tempo a perfazer-se, que raramente precisaremos enunciá-lo.
Esquecemo-nos, assim, de que no desenvolvimento há uma
distância a ser vencida entre seu estágio inicial e o período
em que se completa; de que existe alguma coisa entre
um e outro. No aprendizado, as energias ou poderes
atuais do aluno são o estágio inicial; o objetivo do professor representa o limite remoto. Entre os dois ficam os
meios — isto é, as condições intermediárias: atos a ser praticados; obstáculos a superar; instrumentos a usar e aplicações a fazer. Somente por meio deles, no sentido literal de
tempo, as atividades iniciais chegarão a um remate satisfatório.
Estas condições intermediárias são de interesse precisamente porque delas depende o desenvolvimento da atividade
existente para atingir o fim previsto e desejado. Ser o meio
de realizar as presentes tendências, ficar "entre" o agente
e seu fim, ser de interesse — são nomes diversos para exprimir a mesma coisa. Se foi preciso tornar o material interessante, isto significa que do modo por que foi apresentado não
se relacionava com os fins e capacidades atuais: ou que, se
existia relação, esta não foi percebida. Torná-lo interessante
levando-se alguém a compreender a conexão existente, é coisa
de simples bom senso; e torná-lo interessante por meio de
expedientes estranhos e artificiais, é merecer todos os maus
nomes, com que tem sido chamada a teoria do interesse na
educação.
Isto quanto à significação do termo "interesse". Passemos agora à do de "disciplina". Quando uma atividade
exige tempo, quando muitos meios e obstáculos ficam entre seu
Democracia c educação
Interesse c disciplina
início c seu completar-se, resolução e persistência bão indispensável à sua realização. É claro que grandíssima parte da significação corrente de vontade é exatamente a de disposição deliberada ou consciente para perseverar e sofrer em determinada
linha de conduta, malgrado as dificuldades e as solicitações
contrárias. Um homem de força de vontade, conforme o uso
popular desta expressão, é o que nem é volúvel nem se desalenta
na prossecução dos fins que escolheu; tem capacidade de
ação, isto é, esforça-se com perseverança e energia para executar ou levar avante seus planos. Uma vontade fraca é tão
instável como a água.
Existem dois elementos na vontade: um é o da antevisão
dos resultados e o outro é o do vigor e profundidade com que
os resultados previstos prendem e apaixonam a pessoa que os
prevê.
II — Existe também a consideração meramente especulativa dos resultados. Prevêem-se perfeitamente os fins,
mas a pessoa não se prende, suficientemente, a eles. São
mais uma coisa para análise e para aí se repastar a curiosidade,
do que para realizar-se. Não há o que se poderia chamar
superíntelectualidade, mas existe o intelectual unilateral. Uma
pessoa põe-se a analisar as consequências e resultados de
determinado modo de proceder. Mas certa frouxidão da fibra
da vontade impede que se apegue ao objeto contemplado e
comece a agir. Mas, a maioria das pessoas ê naturalmente
desviada de determinadas atividades que se havia proposto
por obstáculos excepcionais, inprevistos, ou por seduzi-las outras
atividades que lhes são imediatamente mais agradáveis.
140
I — A obstinação é persistência, mas não é força volitiva.
A obstinação pode ser mera inércia e insensibilidade animais.
Se um obstinado está a fazer alguma coisa, é só porque a
começou e não por algum escopo claramente previsto e desejado.
Com efeito, geralmente o obstinado se esquiva (embora possa
não ter perfeita consciência dessa esquivança) a ver claramente
qual seja o fim que se propôs; como que pressente que, se
resolvesse ter nítida e plena percepção do mesmo, poderia não
o julgar digno de seu esforço. A teimosia revela-se ainda mais
em sua relutância a examinar os fins que se apresentem, do
que na persistência e energia com que emprega rneios para
atingir sua própria meta. Ó verdadeiro homem de ação é o
que pesa seus fins o mais possível, e procura o mais possível ver claro as consequências de seus atos. As pessoas a
quem chamamos de vontade fraca ou caprichosas sempre se
iludem (como os obstinados, embora por outros motivos)
sobre os consequências de seus atos. Aprendem algum aspecto
que lhes seja agradável e desprezam todas as outras circunstâncias conexas. Quando começam a agir, também começam a se patentear as desagradáveis consequências em que não
haviam pensado. Desanimam, então, ou queixam-se de que
um fado cruel se atravessa a seus propósitos, e tratam de tomar nova direção. Jamais haverá exagero no afirmar-se que
a diferença essencial entre a vontade forte e a fraca é intelectual, consistindo no grau de perseverante firmeza e profundeza com que se pensam as consequências dos atos.
141
Uma pessoa é disciplinada na medida em que se exercitou
a pesar suas ações e a empreendê-las resolutamente. Acrescente-se a este dom uma capacidade de resistência, sem uma
empresa inteligentemente escolhida, à distração, às perturbações e aos obstáculos e tereis assim a essência da disciplina.
Disciplina significa energia à nossa disposição; o domínio dos
recursos disponíveis para levar avante a atividade empreendida.
Saber o que se deve fazer e fazê-lo prontamente e com a utilização dos meios requeridos, significa ser disciplinado, quer se
trate de um exército, quer de um espírito. A disciplina é
positiva. Humilhar o espírito, domar as propensões, compelir
à obediência, mortificar a carne, fazer um subalterno executar
um trabalho desagradável — estas coisas são ou não disciplinadoras, na medida em que desenvolverem a compreensão
daquilo que se tenha em vista, e em que dêem perseverança
para a ação.
Agora parece desnecessário frisar que interesse e disciplina
são coisas conexas e, não, opostas. 1) Até o aspecto mais
puramente intelectual de uma capacidade disciplinada — a
compreensão do que se está fazendo em face das consequências dessa atuação — não é possível sem o interesse. Na
ausência deste, a deliberação será perfunctória e superficial.
É frequente queixarem-se — e com razão — os pais e os
mestres de que os meninos "não querem ouvir nem compreender o que se lhes ensina". Seus espíritos não se prendem à matéria, porque esta não lhes diz nada; porque não
faz parte de seus interesses. É este um estado de coisas
que se precisa remediar, mas o remédio não está no uso cie
142
Detnowticia c educação
métodos que aumentem a indiferença c a aversão. Até o
castigar-se um menino por sua desatenção ainda é um modo
de tentar fazê-lo compreender que a matéria não é uma coisa
destituída completamente de interesse; é um modo de despertar o "interesse" ou de fazer surgir um senso de conexão.
No final de contas, o seu valor se medirá com o saber-se se
o castigo foi uma simples excitação física para proceder do
modo desejado pelo adulto ou se levou o menino a "pensar",
isto c, a refletir sobre seus atos e impregná-los do sentido dos
seus fins. 2) É ainda mais evidente que se requer interesse
para a perseverança nos atos de natureza executiva. Os patrões
não procuram empregados que não ,se interessem naquilo que
estão fazendo. E se alguém contrata um advogado ou chama
um médico, nunca lhe ocorrerá pensar que a pessoa contratada executará mais conscienciosamente seu trabalho se este
não estiver tão em desacordo com seus gostos que se limita a
fazê-lo unicamente por ser essa a sua obrigação. O interesse
mede — ou melhor, o interesse é — a intensidade da influência
do fim previsto para fazer uma pessoa empreender a sua
realização.
2. A importância da ideia do interesse na educação. — O interesse representa a força que faz mover os
objetos — quer percebidos, quer representados em imaginação em alguma experiência provida de um objetivo. Nos
casos concretos, o valor de se reconhecer a função dinâmica
do interesse em um desenvolvimento educativo é que leva a
considerar individualmente as crianças em suas aptidões, necessidades e preferências especiais. Quem reconhecer a importância do interesse não presumirá que todos os espíritos
funcionam do mesmo mo-do pela razão de acontecer-lhes terem
o mesmo professor e o mesmo compêndio. As atitudes e os
modos de "ataque" e de reação variam com a sugestão específica do mesmo material e essa sugestão também varia de acordo
com a diferença das aptidões naturais, da experiência passada,
do modo de vida, etc. Mas os fatos referentes ao interesse
fornecem, além disso, considerações de valor geral à filosofia
da educação. Quando bem entendidos, eles nos põem em guarda
contra certas concepções sobre o espírito e a matéria de estudos,
que tiveram grande voga no pensamento filosófico do passado
e cuja influência constitui sério estorvo à boa direção da ins-
Intcfcsw
c disciplina
143
trução e da disciplina. Com grande frequência o espírito é
anteposto ao mundo de coisas e de fatos a serem conhecidos.
Considera-se esse mundo de coisas como algo existente à
parte dos estados mentais e operações intelectuais, por sua
vez tam,bém isolados e independentes. Julga-se ser o conhecimento a aplicação exterior de entidades puramente mentais
às coisas a serem conhecidas, ou então o resultado das impressões que essa matéria exterior de estudos faz no espírito
-— ou uma combinação das duas coisas. A matéria é tída nesse
caso como coisa completa por si mesma — alguma coisa a ser
aprendida ou conhecida, seja pela aplicação voluntária da mente
ou espírito a esse objeto exterior, seja pelas impressões feitas
por ele no espírito.
Os fatos referentes ao interesse mostram que estas concepções são falsas. Na realidade, mente ou espírito é a
aptidão para reagir aos estímulos ocorrentes, com fundamento
na previsão de possíveis consequências e tendo em vista determinar as consequências (dentre aquelas possíveis) que se vão
produzir. As coisas, o objeto do conhecimento, consistem
em tudo aquilo que se reconheceu ter influxo antecipado no
curso dos acontecimentos, já auxiliando-os, já retardando-os.
Estas ponderações, por serem muito abstratas, se tornam menos
inteligíveis. Um exemplo esclarecerá sua significação.
Empreendemos certo trabalho, como escrever à máquina.
Se temos prática, os nossos hábitos se encarregam dos movimentos físicos necessários e deixam-nos livre o pensamento,
para refletir sobre o que escrevemos. Suponhamos, porém
que não temos prática, ou que, no caso de termos, a máquina
não funcione bem. Deveremos então utílízar-nos da inteligência. Não queremos bater nas teclas ao acaso, pouco nos
importando com as consequências; nossa intenção é escrever
certas palavras em certa ordem- para fazerem sentido. Temos
que dar atenção ao teclado, àquilo que escrevemos, aos nossos
movimentos, à fita ou ao mecanismo da máquina. Nossa atenção não se divide indiferente e confusamente por todas as particularidades. Ela concentra-se naquilo que esteja influindo
eficazmente para a continuação ou não de nosso trabalho.
.Nosso pensamento está voltado para a frente, e o interesse de
observar as circunstâncias presentes só existe enquanto e na
medida em que essas circunstâncias são fatores para a consecução do resultado em vista. Precisamos saber de que ré-
145
Democracia e educação
Interesse c disciplina
cursos dispomos, quais as condições modificáveis por nós e
quais as dificuldades e obstáculos. Esta previsão e este exame
com referência ao que é previsto constituem o que chamamos
de mente, intelecto ou espírito, A atividade que não subentende esta ponderação dos resultados e este exame dos meios
e obstáculos é automática, ou é cega. Em nenhum desses
casos é inteligente. Ver de um modo vago e incerto o que
se pretende fazer, e observar descuidadamente e mal as condições de realização, é ser, conforme o caso, obtuso ou parcialmente ininteligente.
Quando se considera o caso em que a mente ou espírito
não se tenha de preocupar com a manipulação material de
condições ou aparelhos, mas, digamos., com o que se tenciona
escrever, o caso é idêntico. Há uma atividade em marcha;
a pessoa empreende o desenvolvimento de um assunto. A menos que se escreva como fala um fonógrafo, isso importa em
inteligência; quer dizer, vigilância na previsão das várias
conclusões a que conduzem os dados e considerações atuais,
junto com a observação e a recordação continuamente renovadas, para apreender a matéria que possa influir nas conclusões a
que se pretende chegar. Toda a atitude é a de interesse por
aquilo que vai ser e por aquilo que é, na proporção ertí que
aquilo que é influi sobre o desenvolvimento da matéria em direção ao fim visado. Se não houver direção que dependerá
da previsão de possíveis resultados futuros, não haverá inteligência em nosso procedimento. Se existir antevisão imaginativa, mas se não se der atenção às condições de que a realização depende, resultará frustração ou ocioso devaneio —- e
teremos o caso de inteligência malograda.
Se este exemplo é típico, mente ou espírito não é denominação a dar-se a alguma coisa completa em si mesma; é o
nome de uma atividade em desenvolvimento na proporção em
que seja inteligentemente dirigida; na proporção, quer dizer,
conforme nela entrem objetivos, fins, com a seleção dos meios
para favorecer a realização dos mesmos. A inteligência não é
uma coisa particular que alguém possua; mas uma pessoa é
mais ou menos inteligente, na proporção em que as atividades
de que é participante tenham mais ou menos as qualidades
mencionadas. Nem são as atividades em que uma pessoa se
empenha, inteligentemente ou não, exclusiva propriedade sua;
são alguma coisa em que a referida pessoa se empenha e toma
parte. Colaboram com ela ou a embaraçam outras coisas, os
movimentos independentes de outras coisas e pessoas. O indivíduo pode iniciar uma série de atos, mas o resultado depende
da interação de suas reações e das energias dos outros agentes.
Conceba-se o espírito como alguma coisa que não seja um fator
cooperando com outros para a produção de consequências, e
espírito ou mente torna-se coisa sem sentido.
O problema da instrução é, portanto, o de encontrar
matéria à qual o educando aplique sua atividade especial,
tendo um fim ou objetivo de importância ou de interesse
para ele, valendo-se das coisas, não como aparelhos de ginástica e, sim, como condições para atingir fins. O remédio
para os inconvenientes da teoria da disciplina formal de que
já falamos não está em substituí-la por uma teoria de disciplinas especializadas, mas em refazer a noção do espírito e de
sua educação. O remédio é a descoberta de modos típicos
de atividade, quer se trate de jogos, quer de ocupações úteis,
em que.os indivíduos tomem interesse, em cujo resultado reconheçam ter alguma coisa em jogo, e que não se pratiquem
sem a reflexão, a análise, o uso do raciocínio no escolher e
determinar as condições e o material a observar e a reter na
memória. Em suma, as raízes do erro, longo tempo dominante na concepção da educação do espírito, consistem em não
se ter em consideração que espírito ou mente é certa qualidade
que se empresta às coisas em marcha para futuros resultados
quando o indivíduo participa dessa marcha e em sua direção
emprega a observação, a imaginação e a memória. O erro
consiste em considerar o espírito uma coisa completa por si
mesma, pronta a ser aplicada imediatamente à matéria
apresentada.
Na história da prática educacional esse erro obstruiu
dois caminhos. Por um lado, escudou e protegeu estudos
tradicionais, forrando-os à crítica inteligente e a necessárias
revisões. O fato de dizer-se que eram "disciplinares", isto é(
formadores do espírito, os pôs a salvo de qualquer crítica.
Não foi bastante o mostrar-se que não eram de utilidade para
a vida ou que não contribuíam realmente para o cultivo do
espírito. O fato de serem "disciplinas" — disciplinas do espírito — atalhava a todas as questões, acabava com quaisquer
dúvidas e afastava o assunto do terreno da discussão racional.
Pela sua própria natureza, não se podia confutar aquela alegação. Mesmo quando nenhuma disciplina fosse obtida e o
146
Democracia e educação
aluno se mostrasse cada vez menos aplicado, e perdesse, cada
vez mais, a capacidade para uma diligente autodireção, a culpa
não .era das matérias ou dos métodos de ensino, e, sim, do
aluno. Seu mau êxito apenas provava a necessidade de mais
disciplina, e assim proporcionava um motivo para a conservação dos velhos métodos. Transferia-se a responsabilidade
do professor para o aluno porque a matéria do estudo não era
submetida a nenhuma verificação; não se precisava provar que
ela satisfizesse alguma necessidade particular ou servisse para
algum fim especial. Era destinada, em geral, a disciplinar, e,
se não surtisse efeito, era porque o educando não queria ser
disciplinado.
O outro mau resultado da teoria foi o de estabelecer
uma concepção negativa da disciplina, em vez de identificá-la
corn o desenvolvimento da capacidade de realização. Como já
vimos, vontade significa uma atitude em direção ao futuro,
em direção à produção de possíveis consequências, atitude
que subentende esforço para prever clara e compreensivamente os prováveis resultados de modos de agir e uma identificação ativa e operante com algumas das consequências
antevistas. A vontade torna-se mero esforço material quando
o espírito constitui uma entidade em si mesma, dotada de
faculdades, que se têm apenas de aplicar-se à matéria presente. A pessoa quererá ou não quererá aplicar-se ao material
apresentado. Quanto mais indiferente for a matéria, quanto
menos se harmonizar com os seus hábitos e preferências, tanto
maior esforço exigirá da pessoa para fazer o espírito voltar-se para ela — disto resultará maior disciplina da vontade.
Dedicar-se a certa matéria porque a pessoa se interesse por
alguma coisa que vai ser feita nessa matéria, não é ato disciplmador, segundo esta opinião, nem mesmo se resultar num
desejável aumento de capacidade construtora. Aplicar-se a
uma coisa, apenas por se aplicar, com o fim único de exercitar-se — só isto é disciplinador. Mais provável ainda de
ocorrer este efeito será, se a matéria apresentada não se harmonizar com os gostos do educando, pois então (dizem) não
há motivo para agir, a não ser a consciência do dever ou o
valor disciplinante do ato. A consequência lógica desta doutrina foi exatamente expressa por estas palavras de um humorista americano: "Pouco importa o que se ensine a um
menino, desde que ele não goste da matéria".
Interesse c disciplina
147
O isolamento ou separação do espírito de ativídade aplicada a um objeto para a realização de um fim, é o isolamento,
por sua vez, da matéria a ser aprendida. Nos planos de educação tradicionais a matéria do estudo consistia em certas
coisas a serem estudadas. Os vários ramos dos estudos representavam outros tantos ramos de conhecimentos independentes,
cada qual com sua particular e completa organização. A história é um desses grupos de conhecimentos; a álgebra outro, a
geografia outro e assim por diante, até percorrermos todo o
currículo. Existindo por si mesmas e completas em si mesmas,
essas matérias resumiam suas relações com o espírito nos conhecimentos que lhe davam a adquirir. Esta ideia corresponde à
prática em uso, na qual os programas dos trabalhos escolares
para o dia, para o mês e para anos sucessivos consistem em
"matérias" todas separadas umas das outras, no pressuposto
de ser cada qual completa por si mesma — pelo menos para os
fins educativos.
Mais adiante há um capítulo dedicado à consideração
particular da significação da matéria do estudo. Neste ponto
precisamos apenas dizer que, ao contrário do que afirma a
teoria tradicional, tudo o que a inteligência estuda são coisas
no papel que desempenham, em atividades empreendidas com
o estímulo do interesse. Assim como uma pessoa "estuda"
sua máquina de escrever, como parte do ato de utilizar-se dela
para conseguir bons resultados, também fará o mesmo com
qualquer fato ou verdade. Este fato ou verdade tornam-se
objetos de estudo — isto é, de investigação e reflexão —
quando figuram como fatores com que se deve contar no
desenvolvimento da atividade ern que alguém se empenhou e
de cujo resultado compartilha.
Os números não são objetos de estudo pela simples razão
de serem números já constituindo um ramo das ciências chamadas matemáticas, e sim porque representam qualidades
e relações do mundo em que se exerce nossa atividade, porque
são fatores de que depende a realização de nossos intentos.
Expressa nestes termos gerais a fórmula pode parecer abstrata.
Observada em suas particularidades, significa que o ato de
aprender ou estudar é tanto mais artificial e inoperante, quanto
mais apresentem aos alunos meras lições para estudar. O estudo só é eficaz quando o aluno compreende o papel da verdade
numérica que está estudando em atividades que o referido
aluno empreende com interesse para conseguir determinado
Democracia e educação
Interesse e disciplina
resultado. Esta conexão de um objeto e de uma matéria com
o andamento de uma ativídade que tenha determinado objctivo,
é a primeira e a última palavra de uma lídima teoria do interesse na educação.
futuras relações ativas com o mundo. A própria palavra arte
vem associar-se não às transformações específicas das coisas,
para torná-las mais significativas para o espírito, mas aos estímulos para fantasias excêntricas e às fraquezas emocionais.
A separação e o mútuo desprezo entre o homem "prático" e o
homem de teoria e cultura, o divórcio das belas-artes e das
artes industriais, são indicativos dessa situação. Deste modo
o interesse e o espírito são restringidos ou pervertidos. Compare-se o que foi dito em um dos capítulos anteriores sobre as
significações unilaterais que se vieram prender às ideias de
eficiência e de cultura.
Tal estado de coisas existirá enquanto a sociedade for
organizada com fundamento na divisão em classes trabalhadoras e classes não trabalhadoras. A inteligência daqueles que
fabricam e produzem torna-se espessa ern sua incessante luta
com as coisas; e a dos que se emanciparam da disciplina do
trabalho torna-se amante dos prazeres, ostentadora e afeminada. Além disso, a maioria dos seres humanos ainda não
goza de Uberdade económica. Suas ocupações são escolhidas
pelo acaso e pela premência das circunstâncias; não são a
expressão normal de suas aptidões em atuação recíproca com
as necessidades e recursos do ambiente. As nossas condições
económicas ainda reduzem muitos homens a uma condição
servil. A consequência é não ser liberal a inteligência daqueles que são os senhores da situação, na vida prática. Em vez
de pugnarem resolutamente pela submissão do mundo aos fins
humanos eles dedicam-se a utilizar-se dos outros homens para
fins tanto mais anti-humanos, quanto mais egoístas.
348
3. Alguns aspectos sociais da questão. — Ksses erros
teóricos que vão desfechar na prática do ensino as suas consequências são, por sua vez, o resultado das condições da
vida social. Uma mudança que se limite às ideias doutrinárias
dos educadores não removerá os obstáculos, embora torne
mais eficazes os esforços para se modificarem as condições
sociais. As atitudes fundamentais dos homens perante o
mundo são fixadas pelo alcance e qualidades das atividades
de que participam. Ao ideal do interesse serve de exemplo
a atitude artística. A arte não é puramente interior, nem puramente exterior; nem meramente mental, nem simplesmente
material. Como qualquer outra espécie de atividade, ela produz mudanças no mundo. Mas, as mudanças operadas por
algumas outras atividades (as que por contraste podem chamar-se mecânicas), consistem apenas em fazer as coisas mudarem de lugar. Não as acompanham nenhuma recompensa
espiritual, nem enriquecimento sentimental ou intelectual. Além
dessas puramente mecânicas, há outras igualmente exteriores
que contribuem para a mantença da vida, para orná-la exteriormente ou para ostentações. Ora, muitas de nossas atividades
sociais, industriais e políticas encaixam-se nessas duas classes.
Nem as pessoas que delas participam, nem aquelas diretamente
afetadas por elas, são capazes de pleno e livre interesse no
seu trabalho. Por não haver nenhum objetivo próprio de quem
executa o trabalho, ou pela natureza restrita desse objetivo, a
inteligência não intervém convenientemente na atividade em
curso. Essas condições obrigam muitas pessoas a voltarem-se
para si mesmas. Refugiam-se em uma representação interior
de sentimentos e de fantasias. São estetas, e não artistas,
porquanto seus sentimentos $ ideias se voltam para eles mesmos,
em vez de serem meios para atividades que modifiquem as
condições referidas. Sua vida mental é sentimental; consiste
na contemplação de uma paisagem interior. Até as pesquisas da ciência podem tornar-se vim refúgio nas árduas vicissitudes da vida — e não um retiro temporário para se recobrarem
as forças e se esclarecerem as ideias tendo-se em vista as
149
Semelhante estado de coisa explica muitos fatos de
nossas tradições históricas educacionais; projeta luz sobre a
contradição de objetivos entre as diferentes partes do sistema
escolar, sobre a natureza estreitamente utilítarísta da educação elementar e sobre o caráter estreitamente disciplinar ou
cultural da educação superior. Contribui para a tendência a
isolar as matérias intelectuais até os conhecimentos tornarem-se
escolásticos, académicos ou técnicos e para a convicção dominante de que a educação liberal é contrária às exigências de
uma educação que atenda aos reclamos da vida prática.
Mas, por outro lado, esse estado de coisas contribui para
definir o problema particular da educação hodierna, A escola
não pode refugir diretamente nos ideais implantados pelas ante-
w
m
150
Democracia e educação
Interesse c disciplina
riores condições sociais. Mas a escola pode contribuir para s
melhoria dessas condições, por meio do tipo de mentalidade
intelectual e sentimental que formar.
E justamente neste ponto as verdadeiras concepções de
interesse e disciplina são da máxima importância. As pessoas
cujos interesses se ampliaram e cuja inteligência foi exercitada
ao contacto com coisas e fatos, em ocupações ativas com finalidade (seja no jogo, seja no trabalho), poderão com mais
probabilidades escapar às alternativas de uma cultura puramente académica e ociosa, de uma prática dura, áspera, acanhada de vistas e simplesmente "prática". Aquilo que mais
precisa ser feito para melhorar as condições sociais é organizar
a educação de modo que as tendências ativas naturais se empreguem plenamente na feitura de alguma coisa, alguma coisa que
requeira observação, a aquisição de conhecimentos informativos e o uso de uma imaginação construtora. Oscilar entre
exercícios seriados e intensivos para se conseguir a eficiência
em atos exteriores sem o concurso da inteligência, e uma
acumulação de conhecimentos que se supõe bastarem-se a si
mesmos, significa que a educação aceita as presentes condições
sociais como definitivas e por esse meio assume a responsabilidade de perpetuá-las. Uma reorganização da educação de
modo que a instrução se efetue em conexão com a inteligente
realização de atividades com um escopo, será um trabalho lento.
Ele só pode efetuar-se aos poucos, dando-se um passo de cada
vez. Mas isto não é uma razão para aceitarmos nominalmente
uma filosofia educacional e adotarmos outra na prática. Será
antes um incentivo para empreendermos o trabalho de reorganização animosamente e nele prosseguirmos com perseverança.
empregar-se esforço, para efetuar-se a transformação; isto
exige, também, atenção e paciente perseverança. Esta atitude
é o que virtualmente significamos com a expressão "força de
vontade". Seu resultado é disciplina ou o desenvolvimento da
capacidade de prestar-se atenção contínua, desdobrar-se esforço perseverante.
Resumo. — Interesse e disciplina são aspectos correlativos da atividade provida de um objetivo. Ter uma pessoa
interesse significa que ela se identificou com os objetos que
determinam a atividade e que fornecem os meios e originam
os obstáculos para a sua realização. Toda a atividade com
um objetivo subentende uma distinção entre uma fase incompleta anterior e outra fase que a completa; e, portanto, subentende atos intermediários. Ter um interesse é tomar as coisas
como fazendo parte dessa situação que se desenvolve com continuidade em vez de considerá-las isoladamente. No lapso
de tempo que medeia entre um determinado estado de coisas
incompleto e o desejado estado de coisas completo, é necessário
151
Dupla é a importância desia doutrina para a teoria da
educação. Por urn lado preserva-nos da noção de que o
espírito e os estados mentais são coisas completas em si mesmas,
as quais aplicamos a objetos e matérias já preparadas, de rnpdo
a resultar conhecimento. Ela mostra-nos que são coisas idênticas o espírito e a atividade de uma pessoa que se empenha
inteligentemente, ou com um objetivo, num curso de ação em
que entrem coisas materiais. Daqui se infere que desenvolver
e exercitar o espírito será fornecer um meio que provoque
tal atividade. Por outra parte, preserva-nos da ideia de que a
matéria do estudo, pelo seu lado, seja coisa isolada e independente. Mostra-nos que a referida matéria se identifica com
todos os objetos, ideias e princípios que entram como recursos
ou obstáculos no esforço continuado e intencional para se levar
a cabo alguma espécie de atividade. Essa atividade a desenvolver-se, e cuja finalidade e condições percebemos, é a unidade que mantém reunidas -as coisas que muitas vezes separamos, como se consistissem — por uni lado, em um espírito
independente, e, por outro lado, em um mundo independente de
ideias e de fatos.
Experiência e pensamento
CAPITULO n
Experiência e pensamento
l. A natureza da experiência. — Só pode ser compreendida a natureza da experiência, observando-se que encerra em si um elemento ativo e outro passivo, especialmente
combinados. Em seu aspecto ativo, a experiência é tentativa
— significação que se torna manifesta nos termos experimento,
experimentação que lhe são associados. No aspecto passivo,
ela i sofrimento, passar por alguma coisa. Quando experimentamos alguma coisa, agimos sobre ela, fazemos alguma coisa
com ela; em seguida sofremos ou sentimos as consequências.
Fazemos alguma coisa ao objeto da experiência, e em seguida
ele nos faz em troca alguma coisa: essa é a combinação específica, de que falamos. A conexão dessas duas fases da experiência mede o fruto ou o valor da mesma. A simples atividade
não constitui experiência, É dispersiva, centrífuga, dissipadora.
A experiência na sua qualidade de tentativa subentende mudança, mas a mudança será uma transição sem significação se
não se relacionar conscientemente com a onda de retorno das
consequências que dela definam. Quando uma atividade continua pelas consequências que dela decorrem a dentro, quando
a mudança feita pela ação se reflete em uma mudança operada
em nós, esse fluxo e refluxo são repassados de significação.
Aprendemos alguma coisa. Não existe experiência quando
uma criança simplesmente põe o dedo no fogo; será experiênch quando o movimento se associa com a dor que ela sofre,
em consequência daquele ato. De então por diante o fato de
se pôr o dedo no fogo significa uma queimadura. Ser queimado será apenas uma simples modificação física, como o
queimar-se um pedaço de lenha, se não for percebido como
consequência de uma outra ação.
Os impulsos cegos e caprichosos impelem-nos irreflexivamente de uma coisa para outra. Enquanto isto acontece, é
153
como se escrevêssemos na água. Nada existe daquele desenvolvimento acumulativo que constitui uma experiência em qualquer dos sentidos vitais deste termo. Por outra parle, acontecem-nos muitas coisas que constituem prazer e dor e que
não associamos a qualquer ato nosso anterior. Elas são mais
ou menos simples acidentes, na proporção em que nos interessem. Nada existe antes ou depois desta experiência; nenhuma vista retrospectiva nem previsão, e por consequência
nenhuma significação, nenhum sentido. Nada aprendemos
que possamos utilizar para prever o que poderá suceder em
seguida, nem adquirimos nenhuma nova aptidão para nos
adaptarmos àquilo que vai acontecer —- não há aumento do
nosso dominio sobre o meio. Só com muita condescendência
pode-se chamar tal coisa uma experiência. "Aprender da
experiência" é fazer uma associação retrospectiva e prospectiva
entre aquilo que fazemos às coisas e aquilo quê em consequência
essas coisas nos fazem gozar ou sofrer. Km tais condições a
ação torna-se uma tentativa; experimenta-se o mundo para se
saber como ele é; o que se sofrer em consequência torna-se
instrução — isto é, a descoberta das relações entre as coisas.
Disto decorrem duas conclusões importantes para a educação. 1) A experiência é, primariamente, uma ação ativopassiva; não é, primariamente, cognitiva. Mas 2) a medida
do valor de uma experiência reside na percepção das relações
ou continuidades a que nos conduz. Ela inclui a cognição na
proporção em que seja cumulativa ou conduza a alguma coisa
ou tenha significação. Os que recebem instrução nas escolas
são habitualmente considerados como se adquirissem conhecimentos na qualidade de puros espectadores, de espíritos que
absorvem os conhecimentos pela energia direta da inteligência.
A própria palavra aluno quase chega a significar uma pessoa
que não está a passar por experiências frutíferas, senão que
está a absorver diretamente os conhecimentos. Costumamos
separar a coisa que se chama espírito ou consciência, dos
órgãos físicos da atividade. Considera-se o espírito ou a
consciência como faculdade puramente intelectual e cognitiva, e
aqueles últimos como fatores físicos instrusos e sem importância. Rompe-se a união íntima da atividade com as consequências que nos faz reconhecer o sentido das coisas; temos, em
vez dela, dois fragmentos; de uma parte, a simples ação do
corpo; e, por outro lado, as significações e sentidos hauridos
diretamente pela atividade "espiritual".
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155
Democracia e educação
Experiência c pensamento
Impossível seria expor perfeitamente os maus resultados
que dimanaram desse dualismo — espírito e corpo — e, muito
menos, exagerá-los. Podem-se, todavia, enumerar alguns dos
seus efeitos mais visíveis.
a) A atividade corporal torna-se em parte uma intrusa.
Como se acredita que ela nada tem que ver com a atividade
mental, torna-se uma dístração, um mal que se deve combater,
Mas, o aluno tem um corpo e Jeva-o à escola juntamente com
seu espírito, E o corpo é, por sua natureza, uma fonte de
energia; ele tem que fazer alguma coisa. Como, entretanto,
essa atividade não está sendo utilizada em coisas significativas,
ela deve ser contrariada e impedida. Ela faz o aluno esquecer-se da lição com que seu "espírito" se deve ocupar; é fonte
de malefícios. A principal fonte do "problema da disciplina"
nas escolas é que o professor tem quase sempre de passar a
maior parte do tempo impedindo a atividade corporal que alheia
o espírito do objeto da lição. Prometem-se prémios para os
que ficarem fisicamente mais quietos, para os que guardarem
mais silêncio e mais rígida uniformidade de postura e movimentos, e melhor simularem atitudes maquinais de inteligente
interesse. O problema dos professores é obter dos alunos tal
procedimento e punir os desvios que inevitavelmente ocorrem.
A tensão e a fadiga nervosas, para o professor e para
o aluno, são a consequência necessária da anormalidade da
situação de estar a atividade corpórea divorciada da atividade
perceptiva. Alternam-se então a indiferença total e explosões
intermitentes de caprichos. Como o corpo esquecido não encontra o derivativo de uma atividade frutífera, desmanda-se,
sem saber como nem porque, em turbulência inútil, ou em
peraltices igualmente sem significação — coisas essas mui
diversas dos brincos normais das crianças. As fisicamente
ativas tornam-se irrequietas e indisciplinadas; quanto às mais
acomodadas, a quem chamam de ajuizadas, gastam a energia
de que dispõem na tarefa negativa de recalcar seus instintos e
suas tendências ativas, em vez de empregá-las na tarefa positiva de planejar e de agir construtivamente; não são, assim,
educadas para a responsabilidade do uso significativo e harmonioso das aptidões corpóreas, e sim no dever imposto de
não lhes dar livre expansão. Pode-se asseverar firmemente
que uma das causas principais dos notáveis frutos da educação
grega é que nunca esta se deixou desviar por falsas noções
para uma separação impossível entre o espírito e o corpo.
6) No entanto, mesmo com referência às lições que
têm de ser aprendidas por meio da "mente" ou "espírito" é
indispensável usar algumas atividades corporais. Cumpre
empregar os sentidos — especialmente a vista e o ouvido —
no que dizem o livro, o mapa, o quadro-negro, o professor.
Necessita-se usar os lábios, os órgãos vocais, e as mãos, para
reproduzir, faiando ou escrevendo, o que foi armazenado no
espírito. Consideram-se então os sentidos como espécies de
misteriosos condutos por meio dos quais os conhecimentos são
veiculados do mundo exterior para o espírito; fala-se deles
como de portas e avenidas para o conhecimento. Manter o
olhar preso ao livro e ter os ouvidos abertos para as palavras
do mestre, é uma fonte misteriosa de milagres intelectuais.
Mais'ainda; ler, escrever e contar — importantes artes escolares — exigem adestramento muscular ou motor. De acordo
com isso, necessitam-se exercitar os músculos dos olhos, da
mão e dos órgãos vocais como canais para fazerem os conhecimentos voltarem do espírito, transformando-se em atos exteriores. Pois acontece que usar do mesmo modo e repetidamente os músculos fixa neles uma automática tendência pára
a repetição.
O resultado patente de tudo isto é o uso maquinal da
atividade corpórea que (a despeito do caráter geralmente
obstrutor e metedíço do corpo nos atos mentais) tem de ser
mais ou menos empregado. Com efeito, os sentidos e os músculos são usados não como os participantes orgânicos de uma
experiência educativa, mas como condutos exteriores de entrada e saída para o espírito. Antes de ir a criança para a
escola, ela aprende a usar de suas mãos, de seus olhos e
ouvidos porque são fatores no processo de fazer-se alguma
coisa com sentido, alguma coisa de que resultam novas significações. O menino que "empina" um papagaio tem de conservar o olhar fixo neste e de notar as variações da pressão
do fio em sua mão. Seus sentidos são avenidas para os conhecimentos, não porque os fatos exteriores sejam de certo modo
"veiculados" para o cérebro, e sim por serem usados para fazer
alguma cotsa com determinado objetivo. As qualidades das
coisas vistas e sentidas têm alcance sobre o que está fazendo e
são, por isso mesmo, vivamente percebidas; possuem uma significação, possuem sentido. Mas quando se fazem os discípulos
utilizar-se da vista para observar as formas das palavras,
Democracia e educação
Experiência e pensamento
independentemente de sua significação, com o fim de reproduzi-las escrevendo ou lendo, o adestramento resultante desse ato
é simplesmente o de órgãos dos sentidos ou de músculos isolados. É a circunstância de isolar-se assim um ato de seu
cbjetivo que torna o referido ato maquinal. Os professores
costumam insistir com os alunos para lerem com expressão, a
fim de porem em relevo o sentido de que lêem. Mas se desde
o começo aprenderam a técnica sensório-motora da leitura —
a aptidão de reconhecer as formas das palavras e reproduzir os
sons que elas substituem <'— por meio de métodos que não
chamavam a atenção para a significação, estabeleceu-se um
hábito maquinal que torna em seguida difícil ler compreendendo-se o sentido daquilo que se lê. Os órgãos vocais foram
exercitados para desempenharem sua função automaticamente
e isolados, e não podemos, por isso, associar, a essa função,
quando o quisermos, a significação das frases. Q. desenho,
o canto e a escrita podem ser ensinados pelo mesmo processo
mecânico; pois, repetimos, é 'mecânico todo o processo de ensino
que restringe a atividade corpórea ao ponto de chegar-se à
separação do corpo e do espírito — isto é, da percepção do
sentido do que se está fazendo. Do mesmo mal sofrem as
matemáticas até em seus mais altos ramos, quando se insiste
indevidamente na técnica do cálculo, e também as ciências,
quando os exercícios de laboratório são ministrados pelo mérito
que têm em si mesmos.
c) Quanto ao aspecto intelectual, a separação do "espírito", do trato direto com as coisas, dá exagerada importância
às coisas, em detrimento de suas relações ou associações. Ê
muito comum separarem-se dos juízos as percepções e até
mesmo as ideias. Pensa-se que aqueles venham depois das
últimas, com o fim de compará-las. Alega-se que o espírito
percebe as coisas, independentemente de suas relações — e
que concebe ideias dessas coisas, sem atender às suas associações — ao que as anteceda ou suceda. Apela-se em seguida para o ato de julgar ou de raciocinar, para combinar
os elementos destacados do "conhecimento", de modo que se
patenteie sua semelhança ou associação casual. O fato é, entretanto, que toda a percepção e toda a ideia nada mais é do
que o senso do alcance, dó uso e da causa de alguma coisa.
Nós não conhecemos uma cadeira ou temos dela uma ideia
catalogando e enumerando seus vários e isolados característicos, e sim, unicamente, pondo esses característicos em conexão
com alguma outra coisa — com o seu destino, que faz dela
uma cadeira e não uma mesa — ou com a diferença entre a
espécie de cadeira a que estamos acostumados, ou com a
"época" que ela representa, e assim por diante. Não reconhecemos um carro depois de juntarmos todas as suas partes;
é a relação característica entre essas partes que faz que ele seja
um carro. E essas relações não são as de meras justaposições
físicas; elas subentendem a associação com os animais que o
puxam, com as coisas nele transportadas, e assim por diante.
Emprega-se o ato de julgar na própria percepção; de outro
modo, a percepção seria simples excitação sensorial, ou então
reconhecimento do resultado de um juízo anterior, como no
caso de objetos familiares.
As palavras, fichas das ideias, são, entretanto, facilmente
tomadas pelas ideias. E exatamente na proporção em que a
atividade mental se separa de um interesse ativo pelo mundo,
em que se separa, do ato de se fazer alguma coisa e de se
relacionar essa coisa com aquilo que se está sentindo, as palavras, os símbolos tomam o lugar das ideias. A substituição é
tanto mais sutil quanto subsiste algum sentido, alguma significação. Mas habituamo-nos facilmente a contentar-nos com
um mínimo de sentido e a deixar de notar quão restrita é nossa
percepção das relações que dão às coisas as suas verdadeiras
significações. Acostumamo-nos tão completamente a uma espécie de pseudo-idéia, de meia percepção, que não temos acordo
de quanto é semimorta nossa atividade mental e quanto mais
penetrantes e extensas seriam" nossas observações e ideias, se as
formássemos em meio às condições de uma experiência vivificante que requeresse, de nossa parte, o esforço de pensar e
o uso do raciocínio: fazendo-nos procurar as conexões das
coisas com que nos ocupamos.
Não há divergências de opinião quanto à parte teórica
desta matéria. Todas as autoridades estão de acordo sobre
o ponto de que discernirem-se as reíações é a parte genuinamente intelectual — e, portanto, genuinamente educativa. O
erro provém de acreditar-se que se possam perceber as relações sem a experiência — sem a combinação do tentar e do
sofrer as consequências a que já nos referimos. Presume-se
que para o "espírito" apreendê-las basta-lhe prestar atenção e
que se pode prestar essa atenção à vontade, independentemente
da situação. Daí a infinidade de meias observações, de ideias
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Democracia e educação
verbais e de "conhecimentos"' inassimilados que assolam o
mundo. Uma onça de experiência vale mais que uma tonelada
de teorias simplesmente porque é só pela experiência que qualquer teoria tem importância vital e verificavel. Uma experiência, uma humílima experiência, é capaz de originar ou de
conduzir qualquer quantidade de teoria (ou conteúdo intelectual), mas uma teoria, à parte da experiência, não pode nem
mesmo ser definidamente apreendida como teoria. Ela tende
a converter-se em meras fórmulas.verbais, numa série de "deixas" utilizadas para tornar desnecessários e impossíveis o ato
de pensar ou a elaboração de verdadeiras teorias. Devido à
nossa educação, empregamos palavras, pensando que elas são
ideias para expor as questões, acarretando essas exposições um
tal obscurecimento da percepção, que nos impede de ver a
dificuldade mais a fundo.
2. . A reflexão na experiência. — O pensamento ou
a reflexão, conforme virtualmente (se não expressamente)
já vimos, é o discernimento da relação entre aquilo que tentamos
fazer e o que sucede em consequência. Sem algum elemento
intelectual não é possível nenhuma experiência significativa.
Mas podemos diferençar duas espécies de experiências conforme a proporção de reflexão que elas contenham.
Todas as nossas experiências passam pela fase do "cortar
para experimentar", que os psicólogos denominam o método de
"experiência e erro". Limitamo-nos a fazer alguma coisa,
e, se esta se malogra, fazemos alguma outra coisa, diversa e
continuamos a tentar até atingir algo operante, e, então, passamos a adotar essa "solução" em nossa conduta posterior.
Algumas experiências contém em si pouquíssima coisa mais
além desse método de tentativas de erro ou acerto. Vemos
qtíe se associam certo modo de proceder e certa consequência,
mas ignoramos como se associam. Escapam-nos as particularidades da conexão; faltam elos na corrente. Nosso discernimento foi muito grosseiro. Em outros casos, porém, levamos
mais longe a observação. Analisamos para ver com justeza o
que existe entre as duas coisas, de modo a ligar a causa ao
efeito, a atividade e a consequência. Esta extensão de nossa
compreensão das coisas torna a previsão mais completa e compreensiva. A ação que repousa unicamente no método de
tentativas e erros fica à mercê das circunstâncias; podem estas
mudar, de forma que o ato praticado não atue do modo que
159
é esperado. Mas se soubermos mi n u deliciosamente do que
depende o resultado, poderemos verificar se existem as circunstâncias requeridas. Este método amplia nosso domínio
sobre as coisas; pois, se faltar alguma das condições, poderemos,
desde que saibamos quais são os necessários antecedentes de um
efeito, tratar de suprir-lhe a falta; semelhantemente, se as
condições forem tais que produzam indesejáveis efeitos, poderemos eliminar algumas das causas supérfluas e com isso poupar
esforços.
Na descoberta minuciosa das relações entre os nossos atos
e o que acontece em consequência deles, surge o elemento
intelectual que não se manifestara nas experiências de tentativa
e erro. À medida que se manifesta esse elemento aumenta
proporcionalmente o valor da experiência. Com isto muda-se
a qualidade desta; e a mudança é tão significativa, que poderemos chamar reflexiva esta espécie de experiência — isto é,
reflexiva por excelência. O cultivo deliberado deste elemento
intelectual torna o ato de pensar uma experiência característica.
Por outras palavras — pensar é o esforço intencional para
descobrir as relações especificas entre uma coisa que fazemos
e a consequência que resulta, de modo a haver continuidade
entre ambas. Desaparece seu isolamento, e, por conseguinte,
sua justaposição puramente arbitrária: e toma seu lugar uma
situação unificada a desenvolver-se. Compreende-se agora a
ocorrência; esta ficou explicada"; e achamos razoável, como
costumamos dizer, que as coisas aconteçam de tal modo.
Pensar equivale, assim, a patentear, a tornar explícito o
elemento inteligível de nossa experiência. Tornar possível o
proceder-se tendo um fim em vista. É a condição para podermos ter objetivos. Logo que um infante, para dar um
exemplo, começa a esperar, começa a considerar alguma coisa
atual como sinal de alguma coisa que se vai seguir, está, embora
de modo muito simples, a formar juízos. Pois toma uma coisa
como prova de uma outra, reconhecendo, assim, uma relação
entre ambas. Qualquer futuro desenvolvimento, por mais apurado que seja, será apenas um prolongamento e um aperfeiçoamento daquela simples inferência. Tudo o que o homem mais
sábio pode fazer é observar o que estú ocorrendo com mais
amplitude e minudência, e em seguida selecionar com mais
cuidado, daquilo que notou, precisamente aqueles fatores que
indicam alguma coisi a acontecer. Mais uma vez diremos
c educação
160
o oposto de uma ação reflexiva é a rotina e o procedimento
caprichoso. A primeira admite aquilo que é de hábito suceder como a medida completa das possibilidades e esquece
de tomar em conta as relações das coisas determinadas que se
estão fazendo. O último dá valor a um ato momentâneo,
desprezando as associações de nossa atividade pessoal com as
energias do ambiente. Quem assim procede é como se dissesse:
"Devo fazer as coisas como neste momento o quero", ao passo
que a rotina diz de fato: ''Deixemos que as coisas continuem
a ser como as encontramos". Ambos recusam-se a reconhecer
sua responsabilidade pelas futuras consequências oriundas da
ação atual. A reflexão é a aceitação dessa responsabilidade.
O ponto de partida de todo o processo de pensar, de
todo pensamento, é alguma coisa em marcha, alguma coisa
que, do modo em que está, é incompleta ou não realizada.
Seu ponto principal, sua significação, reside literalmente naquilo
que vai suceder, e em como vai suceder. Enquanto isto está
sendo escrito (1), o mundo está cheio do fragor de exércitos
em luta. Para quein participa ativamente da guerra, é claro
que o importante é o desenlance, são as futuras consequências
disto ou daquilo que está a acontecer. Ele identifíca-se, pelo
menos nessa ocasião, com o desenlace; seu destino depende
do curso que as coisas estão tomando. Mas até para um
observador em um país neutro, a significação de todos os
movimentos feitos, de um avanço aqui e de uma retirada ali,
está naquilo que os mesmos prognosticam. Pensar sobre as
notícias que nos chegam é tentar ver o resultado provável t>u
possível sugerido por elas* Converter nossas cabeças em livros
de pregar recortes de jornais, ehchendo-as com estas e aquelas
informações, considerando-as como coisas completas por si
mesmas, não é pensar. É transformar-nos em máquinas, registradoras. Pensar é considerar o influxo da ocorrência sobre
o que pode suceder, mas ainda não sucedeu. Não será diferente a natureza reflexiva da experiência se substituirmos a
distância no espaço pela distância no tempo. Imaginemos que
a guerra já tenha terminado e que um futuro historiador a
esteja a referir. Os episódios, pela nossa hipótese, são já
passados. Mas ele não pode fazer uma narração compreensível da guerra, se não respeitar a sequência dos acontecimentos no tempo; a significação de cada fato a que se refere
1)
Este livro foi escrito em 1916 (N. do E.).
Experiência e pensamento
161
está naquilo que era o futuro para o mencionado f a t o , embora
já não o fosse para o historiador. Considerá-lo em si mesmo
como uma coisa completa, será apreciá-lo irreflexivamente.
A reflexão subentende também .interesse pelo desenlace
— uma certa identificação simpática de nosso próprio destino, pelo menos imaginativamente, com o resultado do curso
dos acontecimentos. Para o general, em plena guerra, para
um simples soldado, ou para um cidadão de um dos países
beligerantes, o estímulo para pensar é direto e urgente. Para
os neutros é indireto e depende da imaginação. Mas o flagrante pendor para o partidarismo, da natureza humana, é
prova da tendência a identificar-nos com um possível curso de
acontecimentos, e repelir outro, como se nos fosse estranho.
Se não podemos tomar partido em plena açjío e arremessar
nosso pequeno peso para contribuir a determinar o restiltado
final, tomamo-lo sentimental e imaginariamente. Desejamos
este ou aquele desfecho. Uma pessoa a quem seja totalmente
indiferente o resultado não acompanha os acontecimentos nem
pensa absolutamente a respeito. Desta dependência em que
se acha o ato de pensar de um senso de participação nas consequências, deriva um dos principais paradoxos do pensamento.
Gerado na parcialidade para que possa realizar o seu trabalho,
ele deve conseguir uma certa imparcialidade indiferente. Cometerá seguramente erros em seus cálculos o general que permitir que suas esperanças e desejos influam em suas observações e interpretações das situações existentes. Se as esperanças e os temores forem o principal motivo para um observador, e' num país neutro, acompanhar reflexivamente os sucessos da guerra, também suas reflexões serão ineficazes na
proporção em que suas preferências modificarem a matéria
de suas observações e raciocínios. Não há, contudo, incompatibilidade alguma entre a circunstância de que a reflexão se
manifesta com a participação pessoal naquilo que está ocorrendo
e a circunstância de que o valor da reflexão depende de conservar-se a pessoa alheia à mesma situação. A quase insuperável dificuldade de conseguir-se esta imparcialidade é prova
de que a reflexão se origina em situações em que o ato de
pensar é parte no curso dos acontecimentos e se destina a
influir no resultado destes. Só aos poucos, e com o crescer
do tempo de visão, 'por meio do desenvolvimento das simpatias
sociais, o ato de pensar se expande até incluir o que se acha
162
Democracia c educação
além de nossos interesses direi os: fato este de grande monta
para a educação.
Dizer que a reflexão se manifesta em situações incompletas que ainda evoluem, é dizer que a mesma reflexão ocorre
quando as coisas são incertas, duvidosas ou problemáticas. Só
é perfeitamente seguro o que está acabado e completo. Onde
há reflexão há incerteza. O objeto do ato de pensar é contribuir para chegar-se a uma conclusão, para planejar-se uma
possível terminação tomando por base aquilo que é já conhecido. Outros fatos relativos ao ato de pensar se prendem,
ainda, a este mesmo aspecto. Uma vez que o ato de pensar
surge em situação em que existe dúvida, esse ato é um meio
de investigar, de inquirir, de perquirir, de observar as coisas.
Adquirir é sempre ato secundário, e sempre serve de instrumento para o ato de inquirir. Este é uma procura, uma pesquisa daquilo que não se acha à mão. Falamos algumas vezes
como se a "pesquisa original" fosse prerrogativa particular de
cientistas ou, pelo menos, de estudantes adiantados. Mas todo
o ato de pensar é investigação, é pesquisa e pesquisa pessoal,
original, da pessoa que faz, mesmo que todo o resto do
mundo já conheça aquilo que ela procura descobrir.
Conclui-se, ainda, que todo o ato de pensar encerra em
si um risco. Não se pode garantir antecipadamente a certeza.
A penetração no desconhecido é por sua natureza uma aventura;
não podemos ter antecipada segurança. As conclusões da reflexão, até que os acontecimentos as confirmem, são, por consequência, mais ou menos tateantes ou hipotéticas. Afirmar
dogmaticamente sejam unia perfeita verdade não é coisa que
se possa fazer antes da sua manifestação como um fato. Os
gregos formularam incisivamente a questão: Como poderemos
saber as coisas? Pois ou já sabemos o que buscamos saber ou
então não sabermos. Em nenhum desses casos é possível saber-se; no primeiro, porque já sabemos; no segundo» porque não sabemos o que estamos a procurar,
de modo que, mesmo se por acaso o encontrássemos, não
saberíamos dizer se era aquilo o que buscávamos. O dilema não abre margem para o vir a saber, para o aprender; ele
presume o conhecimento completo, ou a completa ignorância.
No entanto, existe a zona crespuscular da investigação, da
reflexão. O dilema grego esqueceu-se da possibilidade de
conclusões hipotéticas, de tentativas de obtenção de resultados.
As incertezas da situação sugerem certos caminhos a seguir.
Experiência c pensamento
163
Tentamos trilhar esses caminhos e ou chegamos ao cabo de
um deles, no caso de encontrarmos aquilo que procurávamos,
ou a situação se torna mais sombria e confusa — e, neste
caso, sabemos que continuamos na ignorância. Fazer tentativas significa experimentar, seguir provisoriamente algum caminho. Considerado em si mesmo, o argumento grego é um
belo fragmento de lógica formal. Mas é também verdade que,
enquanto os homens mantiveram nítida separação entre o conhecimento e a ignorância, a ciência fez apenas lentos e casuais
progressos. Começou o progresso sistemático das invenções
e descobertas quando os homens reconheceram que poderiam
utilizar-se da dúvida para fins de pesquisa, fazendo conjeturas
para guiar a ação em explorações-tentativas, cujo desenvolvimento confirmaria, desmentiria ou modificaria as conjeturas
guiadoras. Ao passo que os gregos tinham o saber em maior
conta que o aprender, a ciência moderna considera os conhecimentos armazenados simples meios para aprender, para
descobrir.
Recorramos ao nosso exemplo. Uni general, comandante
de um exército, não pode basear seus atos em uma absoluta
certeza, nem na absoluta ignorância. Ele dispõe de certo
acervo de informações, que presumiremos ser razoavelmente
fidedignas. Ele infere das mesmas certos movimentos possíveis, dando assim significação à nudez dos fatos da situação dada. Sua ilação é mais ou menos duvidosa e hipotética.
Mas o general procede de acordo com ela. Traça um plano
de ação, um meio de proceder naquelas circunstâncias. As
consequências que se seguem diretamente a esse seu modo de
proceder, que adotou de preferência a outro, põem em prova e
revelam o valor de seus raciocínios. Aquilo que ele já sabe
tem atuação e valor para aquilo de que ele está a ter conhecimento. Mas aplicar-se-á, o que foi exposto, ao caso de
alguém num país neutro, que a refletir acompanhe do melhor
modo que pode o desenrolar dos acontecimentos? Abstratamente, na forma, sim, embora não, naturalmente, no conteúdo.
É por si mesmo evidente que suas conjeturas sobre o futuro,
orientadas pelos dados atuais, conjeturas por meio das quais
ele tenta dar significação a grande número de dados desconexos, não podem servir de base a um método de proceder
que surta efeito na campanha. Esse não é o seu problema.
Mas na proporção em que ele esteja atívamente a refletir, não
104
Democracia c
se limitando a acompanhar o curso dos sucessos, as inferências.
que tenta tirar surtirão efeito -em um modo de proceder adequado à situação dele. Preverá certos futuros movimentos,
e alerta ficará para ver se acontecem ou não. Quanto mais
ele estiver intelectualmente interessado ou atento tanto mais
ativa-mcnte estará em expectativa; ele dará passos que, embora
não influam na campanha, modificam de algum modo seus
próprios atos subsequentes. De outro modo, ao dizer mais
tarde: "Eu não lhes disse"! essa frase não teria absolutamente inteligibilidade; não indicaria nenhuma comprovação ou
verificação do pensamento anterior, mas apenas uma coincidência que produz satisfação emocional — e encerra um grande
fator de auto decepções possíveis.
Este caso é comparável ao de uni astrónomo que de determinados dados foi levado a prever (inferir) um futuro eclipse.
Por maiores que sejam as probabilidades matemáticas, a inferência é hipotética — é questão de probabilidades (1). A
hipótese sobre a data e lugar do eclipse previsto torna-se um
material para elaboração de uma ação futura. Preparam-se
os aparelhos; é possível que se faça alguma expedição a algum
lugar longínquo do globo. Em qualquer caso são dados ativainentê alguns passos que mudam, concretamente, algumas condições físicas. E a não ser com tais passos e a consequente
modificação da situação, não se completa o ato de pensar.
Este .fica suspenso. Os conhecimentos já adquiridos dirigem a
reflexão e a tornam frutífera.
Isto é o que se refere aos aspectos gerais de uma experiência reflexiva. São eles: 1) perplexidade, confusão e
dúvida, devidas ao fato de que a pessoa está envolvida em
uma situação incompleta cujo caráter não ficou plenamente
determinado ainda; 2) uma previsão conjetural — tuna tentativa de interpretação dos elementos dados, atribuindo-lhes
uma tendência para produzir certas consequências; 3) um
cuidadoso exame (observação, inspeção, exploração, análise)
de todas as considerações possíveis que definam e esclareçam o
problema a resolver; 4) a consequente elaboração de uma
í) P. da máxima importância para a prática cientifica o poderem
os homens, cm muitos casos, calcular o grau de probabilidades de
acerto e de prováveis erros implicados em uma solução, mas isso não
modifica os aspectos da situação que descrêVCHIO.S. Torna-os mais
latentes.
Experiência e pensamento
165
tentativa de hipótese para torná-lo mais preciso e mais coerente,
harmonizando-se com unia serie maior de circunstâncias; S)
tomar como base a hipótese concebida, jxira o plano de ação
aplicável ao existente estado de coisas; fazer alguma coisa
para produzir o resultado previsto e por esse modo pôr em
prova a hipótese, A extensão e a perfeição dos atos terceiro
.e quarto são que distinguem uma experiência claramente reflexiva de outra no nível do método de experiência e erro.
Eles tornam o ato de pensar em uma experiência. Todavia,
nunca nos livraremos totalmente das situações de tentativas e
erros. Nossos pensamentos mais lúcidos é racionalmente mais
coerentes têm que ser postos em prova no mundo e, por esse
meio, experimentados. E, como jamais se podem tomar em
linha de conta todas as relações, aqueles pensamentos nunca
poderão prever com perfeita exatidão todas as consequências
das coisas. Mesmo assim, sendo um re/lexjvô exame das condições e a previsão dos resultados, feitos com cuidado, temos
o direito de diferençar a experiência reflexiva, dos mais grosseiros métodos de investigar que são os de "experiência e erro".
Resumo. — Determinando o papel da reflexão na experiência, observamos primeiramente que esta subentende uma
associação do fazer ou experimentar, com alguma coisa que em
consequência a pessoa sofre ou sente. A separação do aspecto
ativo do fazer, do aspecto passivo do sofrer ou sentir, destrói
a significação vital de uma experiência. Pensar é o ato cuidadoso e deliberado de estabelecer relações entre aquilo que se
faz e as suas consequências. Por ele nota-se não somente que
estas coisas estão relacionadas, como também as particularidades da sua associação. Tornam-se patentes, em forma de
relações, os elos existentes. Aparece o estímulo do ato de
pensar quando queremos determinar a significação de algum
ato realizado ou a realizar-se. Pelo pensamento nós prevemos as consequências. Isto subentende que a situação do
modo que ela é, quer por si mesma, quer para nós,
é incompleta e, por isso, indeterminada, A antevisão de
consequências significa uma solução proposta ou tentaria. Para se aperfeiçoar esta hipótese, devem ser cuidadosamente analisados as condições existentes e o conteúdo da hipótese adotada —• ato que se chama raciocínio.
Então a solução sugerida — a ideia ou a teoria — tem que ser
posta em prova, procedendo-se de acordo com ela. Se acarretar
J66
Democracia e educação
certas consequências, determinadas mudanças no mundo, admite-se como valiosa. Se tal não se der, modificamo-la e fazemos
novas experiências. O ato de pensar implica todos estes atos
— a consciência de um problema, a observação das condições,
a formação e a elaboração racional de uma conclusão hipotética
e o ato de a pôr experimentalmente em prova. Ao mesmo
tempo em que o ato de pensar resulta em conhecimento, em
última análise o valor do conhecimento subordina-se ao seu
uso no ato de pensar. Pois não vivemos em um mundo fixo
e acabado, e sim, em um mundo que evolui e onde nossa principal tarefa é a visão prospectiva e onde a visão retrospectiva
—• todo o conhecimento como coisa distinta da reflexão é retrospectivo — tem valor na proporção da solidez, segurança
e fecundidade com que garante os nossos negócios com o futuro.
CAPÍTULO 12
O ato de pensar e a educação
1. A essência do método. — Teoricamente ninguém
duvida da importância de incentivar na escola os bons hábitos de pensar. Mas, além de não se reconhecer tanto isso
na prática quanto em teoria,, mesmo em teoria não se reconhece
suficientemente que tudo o que a escola pode ou precisa fazer
pelos alunos no que visa à sua mente ou seu espírito (isto é,
salvo certas habilidades musculares especializadas) é desenvolver a sua capacidade de pensar. A fragmentação da instrução em vários fins separados, como a aquisição de certas
habilidades (ler, escrever, desenhar, recitar), a aquisição de
conhecimentos de natureza informativa (história e geografia)
c o exercício do ato de pensar, evidencia por si mesma o modo
ineficaz com que se cumprem estas três coisas.
Ato de pensar que não se prenda a aumento de eficiência
na ação e a aprender-se mais coisas sobre nós e sobre o mundo
em que vivemos, será muito pouco pensamento. E aptidões
obtidas independentemente da reflexão não se associam com
sentido algum dos objetivos para os quais elas próprias têm que
ser utilizadas. Consequentemente, deixa um homem à mercê
de seus hábitos rotineiros e da direção autoritária dos outros,
que sabem aquilo que estão fazendo e não são muito escrupulosos quanto aos meios a empregar em suas realizações. E,
ainda, conhecimentos informativos separados da ação reflexiva
são conhecimentos mortos, peso esmagador para o espírito".
Como simulam os verdadeiros conhecimentos, segregam o veneno do preconceito, e são poderoso obstáculo para o ulterior
desenvolvimento de inteligência. O único caminho direto para
o aperfeiçoamento duradouro dos métodos de ensinar e aprender
consiste em centralizá-los nas condições que estimulam, promovem e põem em prova a reflexão e o pensamento. Pensar é o
método de se aprender inteligentemente, de aprender aquilo
que utiliza e recompensa o espírito. Nós falamos, com bas-
168
Democracia e educação
O aio de pensar c a educação
taute propriedade, cm métodos de pensar, mas o importante a
termos cm mente, a este respeito, é que o ato de pensar é por
si mesmo um método, o método da experiência inteligente em
seu curso.
víduo deve experimentar, nos jogos ou no trabalho, fazer
alguma coisa com determinado material, dando realização aos
impulsos da sua própria atividade, e observar então a interação
da sua energia com a do material empregado. É isto o que
sucede quando primeiro uma criança começa a fazer construções
com blocos e é igualmente o que acontece quando um cientista
em seu laboratório principia a fazer experiências com objetos
não familiares.
.
'• . 4
Por isso, se tivermos em vista despertar a inteligência
e o pensamento e, não, meras aquisições de palavras, a primeira apresentação de qualquer matéria na escola deve ser o
menos académica ou escolástica possível. Para compreender
o que significa uma experiência ou uma situação empírica, o
espírito precisa evocar a espécie de situação que se apresenta
naturalmente fora da escola — as espécies de ocupações que
na vida comum provocam o interesse, pondo em jogo a atividade. E um exame bonesto dos métodos que dão sempre
resultados na educação formal, quer em aritmética, quer para
se aprender a ler, ou para se estudar geografia, ou física, ou
uma língua estrangeira, revelará que a sua eficácia depende da
circunstância de. reproduzirem de certo modo o tipo das situações que, fora da escola, na vida ordinária, provocam a
reflexão. Todos esses métodos dão aos alunos alguma coisa
para fazer e não alguma coisa para aprender; e o ato de fazer
é de tal natureza que exige a reflexão ou a observação intencional das relações; daí, naturalmente, resulta aprendizagem.
Para que a situação suscite reflexão ou pensamento é
indispensável que seja de tal natureza que provoque fazer-se
qualquer coisa que não seja nem rotineira nem caprichosa;
por outras palavras, alguma coisa que seja nova (e por essa
razão incerta ou problemática), mas, ainda assim, suficientemente relacionada aos hábitos já existentes para que possa
ser encaminhada eficazmente nos seus desenvolvimentos posteriores. Esse encaminhamento eficaz é aquele que realiza um
resultado perceptível e que se distingue de atividade puramente
casual, cujas consequências não se possam mentalmente relacionar com aquilo que se faz. Por conseguinte a questão mais
importante que possa ser proposta a respeito de qualquer
situação ou experiência que tenham o fim de fazer-nos aprender
alguma coisa, é a qualidade do problema implicado nelas.
À primeira vista, poderia parecer que os métodos escolares comuns estão perfeitamente de acordo com o modelo
I — ' Q estágio inicial do ato de pensar é experiência.
Esta observação pode figurar-se sovado lugar-comum. Deveria
ser; mas infelizmente não é. Pelo contrário, o ato de pensar
é com frequência considerado na teoria filosófica e na prática
educativa como alguma coisa independente da experiência e
capaz de ser cultivado isoladamente. É bem verdade que as
limitações inerentes à experiência são muitas vexes indicadas
com encarecimento, como o terreno próprio para o exercício do
pensamento. Mas, considera-se neste caso a experiência como
se limitando aos sentidos e apetites, ao simples mundo material,
ao passo que o que se entende por pensamento deriva de uma
faculdade mais elevada (a razão) e ocupa-se com coisas espirituais ou pelo menos literárias; •'Deste modo faz-se a miúdo
nítida distinção entre as matemáticas puras como matérias particularmente próprias para o exercício do pensamento (uma vez
que ela nada tem que ver com as existências materiais ou físicas) e as matemáticas aplicadas, que têm valor utilitário, mas
não intelectual.
De um modo geral, o erro fundamental nos métodos
educativos está em supor-se que se pode presumir experiência
da parte dos discípulos. Aquilo por que insistimos, aqui, é
que é indispensável uma situação empírica atual para a fase
inicial do ato de pensar. E experiência tem o sentido com que
já foi definida: tentarmos fazer alguma coisa, e essa coisa
fazer-nos perceptivelmente outra em retorno. O erro consiste em supor-se que possamos começar com matérias ou disciplinas, completas por si mesmas, sejam aritmética, geografia,
ou qualquer outra, independentemente de alguma experiência
pessoal direta, em determinada situação. Até os jardins de
infância e as técnicas Montessori se mostram tão ansiosos de
chegar a objetivos intelectuais "para não perder tempo" que
tendem a omitir ou a reduzir o manejo direto do material bruto
da experiência comum, e a adotar imediatamente, para os alu^
nos, materiais que exprimem as distinções intelectuais organizadas pelos adultos. Ora, os primeiros contactos com qualquer
material novo, seja qual for a época da vida, deverão ser inevitavelmente da espécie de "experiência e erro". Um indi-
169
170
t-jnocracia c educação
aqui estabelecido. Dar problemas, formular questões, marcar
tarefas, aumentar progressivamente as dificuldades constituem
grande parte dos trabalhos escolares. Mas é indispensável distinguir entre verdadeiros problemas e problemas simulados ou
ridículos. As seguintes perguntas podem auxiliar a fazer essa
distinção, a) Será outra coisa que não apenas um problema?
A questão apresentou-se naturalmente por si mesma, em alguma
situação da experiência pessoal? Ou é coisa remota da experiência, um problema cujo único fim é instruir sobre algum
ponto do programa escolar? É da espécie das tentativas que
despertam a observação e provocam a experimentação fora da
escola? b) É um problema do próprio aluno, ou é do professor ou do compêndio, tendo sido formulado para o aluno
unicamente porque ele não poderá conseguir uma necessária
nota, ou ser promovido, ou merecer a aprovação do professor caso não resolva o mesmo? É claro que essas duas
questões se equivalem. São dois meios de chegar ao mesmo
ponto. — Ê a experiência uma coisa pessoal, de natureza própria a estimular e a dirigir a observação das relações existentes,
e a conduzir a uma conclusão e à prova da mesma? Ou é
imposta exteriormente e o problema do aluno o de simplesmente satisfazer a exigência de caráter exterior e compulsório?
Estas questões nos farão hesitar para decidir em que
extensão a atual prática do ensino é apta a desenvolver hábitos
reflexivos. O aparelhamento material e o aspecto de uma
sala de aulas comum são adversos à existência das situações
reais da experiência. Que existe aí de semelhante às condições
da vida quotidiana, que possa ocasionar dificuldades e o desejo
e a necessidade de vencê-las? Quase tudo comprova que o
que mais se exige é ouvir, ler e reproduzir aquilo que foi dito
e lido. Será difícil exagerar-se o contraste entre tais condições e as situações de contacto ativo com as coisas e pessoas,
no lar, no campo de jogos ou ao satisfazer as responsabilidadês do curso ordinário da vida. Muito do que se passa na
escola nem mesmo se pode comparar em importância com as
perguntas que surgem no espírito de um menino ou de uma
menina conversando com outros meninos ou meninas ou lendo
livros fora da escola. Ninguém ainda explicou porque as
crianças fazem tantas perguntas fora da escola (o que até
aborrece as pessoas adultas, se encorajam um pouco os perguntadores) e a completa ausência de curiosidade sobre os
O ato ãc pensar e a educação
171
assuntos das lições. A reflexão sobre este frisante contraste
projetará luz na questão, fazendo-nos ver quão longe estão
as usuais condições escolares de fornecer um acervo de experiências em que os problemas surjam naturalmente, por si
mesmos. Nenhuma melhoria da técnica pessoal do professor
remediará totalmente este estado de coisas. Para se preencher
essa lacuna é necessário mais material aplicável, mais "estofo",
mais instrumentos e aparelhos e mais oportunidades para se
fazerem coisas. E quando as crianças estão interessadas em
fazer coisas e discutem a respeito daquilo que surge no curso
desse fazer, verifica-se, mesmo com métodos educativos relativamente sem valor, que suas perguntas e investigações são
espontâneas e numerosas, e as soluções propostas, variadas e
engenhosas.
Devido à ausência de materiais e ocupações que gerem
problemas reais, os problemas do aluno não são seus; ou
antes, são seus unicamente em sua qualidade de alunos, mas
não em sua qualidade de seres humanos. Daí uma lamentável decepção quando se procura aplicar fora do âmbito da
escola os conhecimentos adquiridos por essa forma. O discípulo tem um problema, é certo, mas é o de satisfazer certas
exigências determinadas pelo professor; seu problema é o de
descobrir aquilo que o professor quer, de conseguir contentar a
este no dar a lição, nos exames e no seu comportamento, em
geral. Não são diretas, por conseguinte, as relações com a
matéria estudada. Não se encontram ensejos nem material
para a reflexão na aritmética, ria história ou na geografia em
si mesmas, e sim em habilmente adaptar o estudo dessas matérias às exigências do professor. O aluno estuda, mas, sem
disto ter consciência, os objetos de seu estudo são as convenções
e modelos do sistema escolar e dá autoridade es-colar e não os
"estudos" cm si mesmos. A reflexão assim provocada é, na
melhor das hipóteses, artificialmente unilateral. Na pior, o
problema do aluno não será o de satisfazer as exigências da
vida escolar e sim o de aparentar satisfazê-las — ou o de
avizinhar-se de sua satisfação o suficiente para deslizar sobre
as mesmas sem muito forte atrito. A espécie de senso criada
por estes expedientes não é um desejável elemento para a
formação do caráter. Se esta exposição dá em cores excessivamente vivas um quadro dos"habituais métodos de ensino, sirva
este exagero, pelo menos, para salientar o nosso ponto: a
necessidade de empreendimentos reais implicando o uso de
Democracia c educação
0 aio de pensar e a educação
material para a realização de dados fins, se é que desejamos
ter, nas escolas, situações tais que gerem normalmente problemas ocasionadores de reflexão e de pensamento investigador.
•portar consigo um museu de todas as coisas cujas propriedades
auxiliem o ato da reflexão. Uma inteligência vigorosa e bem
treinada é a que possui, por assim dizer, um grande lastro
de recursos, e que está habituada a recorrer a essa experiência
passada, para ver o que a mesma pode fornecer-lhe. Mas, de
outro lado, pode-se ter deixado de ver uma qualidade ou relação até mesmo de um objeto familiar, e ser exatamente essa
coisa que teria utilidade para resolver a questão ocorrente.
Neste caso, requer-se a observação direta. O mesmo princípio
que se aplica à utilização da observação, aplica-se à utilização da
leitura e comunicação verbal. A observação direta é naturalmente mais viva e vital. Mas também tem as suas limitações
— e, de qualquer modo, é parte necessária da educação adquirir
a aptidão de suprir a deficiência das experiências imediatamente
pessoais com a utilização das experiências alheias. Confiar
excessivamente nos dados alheios (obtidos pela leitura ou audição) é, entretanto, prejudicial. Mas, o que é absolutamente
inconveniente é que os outros, o livro ou o professor, forneçam
soluções já prontas, em vez de proporcionarem material que o
estudante haja de adaptar e aplicar por si mesmo à questão
a resolver.
172
II — Depois dessa verificação da necessidade de uma
situação real de experiência, em que se revele, naturalmente,
um problema, a segunda necessidade que vamos estudar é a
de dados para suprir as considerações indispensáveis à análise
e percepção da dificuldade específica que se apresentou por
si mesma naquela situação de experiência. Mestres que adotam, ao que afirmam, o método do "desenvolvimento" dizem
algumas vezes aos alunos que "pensem", como se eles pudessem
tirar de suas próprias cabeças os elementos para os raciocínios.
Ora, o material para o pensamento não são os pensamentos, e
sim as ações, os fatos, os acontecimentos e as relações entre as
coisas. Por outras palavras, para pensar-se produtivamente
devem-se ter tido, ou ter atualmente, experiências que forneçam
os recursos para se vencerem as dificuldades que se trata de
resolver. Uma dificuldade é indispensável estímulo para a
reflexão, mas nem todas as dificuldades a provocam. Algumas
sobrepujam ao esforço e abatem e desalentam. A situação que
gera perplexidade deve ser suficientemente parecida às situações em que já tenham empregado a atividade, de modo que
os alunos tenham de certo modo ao seu dispor os meios de se
avirem com ela. Grande parte da arte da educação reside em
tornar a dificuldade dos novos problemas suficientemente grande
para dar trabalho ao espírito, mas suficientemente pequena
para que, ao lado da confusão natural originada pelos seus
elementos novos, existam pontos claros e familiares, de que
possam brotar sugestões utilizáveis.
Em certo sentido, são indiferentes os meios psicológicos
pelos quais é fornecida a matéria para a reflexão. A memória, a observação, a leitura, a comunicação com outras pessoas,
são outros tantos canais de suprimentos de dados. A proporção relativa a ser obtida de cada um deles depende do aspecto
especial do problema particular de que se trata. É tolice
insistir-se na observação de objetos apresentados aos sentidos,
se o estudante estiver tão familiarizado com eles que possa,
independentemente de sua presença, lembrar-se de seus característicos respectivos. É possível, c:iso se insista sobre isso,
ocasionar-se uma inconveniente e inibidora dependência de
apresentação das coisas aos sentidos. Ninguém pode trans-
173
Não há contradição no afirmar-se que nas escolas há comumente excesso e, ao mesmo tempo, falta de informações
ou conhecimentos fornecidos por outrem. Toma-se >em demasiada conta a acumulação e aquisição de conhecimentos com
o intuito de sua reprodução no darem-se as lições, ou nos
exames. "Conhecimento", no sentido de informação, significa
o capital atuador, os indispensáveis recursos para ulteriores
investigações — para descobrirem-se ou aprenderem-se mais
coisas. Com frequência é, porém, considerado um fim em si
mesmo, e então o fim visado fica sendo amontoá-lo quando
se for provocado a fazê-lo. Este frio e estático ideal de armaxenamento de conhecimentos é hostil ao desenvolvimento educativo. Não somente deixa inaproveitadas as ocasiões de refletir, como também embaraça o raciocínio. Ninguém pode
edificar uma casa em solo atravancado de várias espécies de
coisas. Os alunos que atocharam os seus "espíritos" com toda
a espécie de materiais a que nunca darão emprego intelectual,
, sentir-se-ão com toda a certeza embaraçados quando tentarem
refletir. Não adquiriram a prática de selecionar o mais apropriado e nem critério para empregá-lo; tudo se conserva no
Democracia, c educação
0 ato de pensar c a educação
mesmo nível inerte c estático. Mas, se assírn é em relação a
informações e "conhecimentos" ministrados por si mesmos e
pelo seu próprio imaginário mérito, é discutível se os conhecimentos empregados eficazmente em atos para a realização dos
fíns do próprio estudante não teriam necessidade de completar-se com mais recursos da natureza de livros, de imagens e
conversações, do que os habitualmente disponíveis.
tificatn a originalidade com o extraordinário e o fantasioso; as
outras reconhecem que a mesma consiste em dar às coisas ordinárias usos que ainda não haviam ocorrido a outras pessoas.
É nova a operação, mas não são novos os materiais com que
aquela é feita.
III — No ato de pensar, depois de considerarmos a
necessidade de fatos, dados, conhecimentos já adquiridos, devemos examinar os seus correlates, que são sugestões, inferências, interpretações conjeturais, suposições, explicações tentadas : em suma — ideias. A observação cuidadosa e a cuidadosa recordação revelam o que já se acha nas coisas, o que já
está presente, e, por isso, os dados. Aqueles atos não podem
fornecer aquilo que esteja faltando. Definem, esclarecem e
localizam a questão; não podem proporcionar uma resposta.
Surgem, então, pára este fim, os recursos dos planos, da invenção, da sagacidade. Os dados despertam as sugestões, e só
em relação com esses dados especiais é que poderemos apreciar
a propriedade das sugestões. Mas as sugestões, por outro lado,
se projetam para além dos dados da experiência. Elas prevêem
resultados possíveis, coisas a fazer e, nãb, fatos (coisas já
feitas). A inferência é sempre uma invasão no desconhecido,
um salto dado daquilo que é conhecido para o desconhecido.
Neste sentido um pensamento (o que uma coísa sugere,
e não a coisa tal qual se apresenta) c criador, é uma incursão
no que é novo. Ele subentende alguma inventividade. Aquilo
que é sugerido deve, é verdade, ser-nos .familiar sob alguma
forma; a inovação, o artifício inventivo, voltam-se para a nova
luz com que aquele elemento familiar é visto, para o diferente
uso dado ao mesmo. Quando Newton ideou sua teoria da
gravitação, o aspecto criador de sua ideia não se encontrava
nos materiais, a que se aplicava a mesma teoria. Estes eram
familiares; muitos deles coisas comuns: o sol, a lua, os planetas,
peso, distância, massa, quadrados de números. Estas coisas
não eram ideias originais; eram fatos estabelecidos. A originalidade da teoria de Newton estava no emprego que ele deu a
estas coisas familiares, fazendo que se associassem a um contexto não familiar. A mesma coisa dá-se com todas fis notáveis descobertas científicas, todas as grandes invenções, todas
as admiráveis produções artísticas. Só as pessoas tolas iden-
175
A conclusão pedagógica a tirar-se disto c que todo o
ato de pensar é.original quando faz surgir considerações que
ainda não tinham sido anteriormente apreendidas. A criança
de três anos que descobre o que pode ser feito com blocos,
ou a de seis que sabe qual o resultado de cinco tostões acrescentados a outros cinco tostões são, verdadeiramente, descobridoras, mesmo que as mais pessoas do mundo não ignorassem
aquilo que elas descobriram. Houve um genuíno acréscimo de
experiência; unia coisa não se justapôs maquinalmente a outra,
e sim houve seu enriquecimento com uma nova qualidade. O
encanto dos observadores inteligentes pelas crianças provem da
percepção desta originalidade intelectual. A alegria, habitualmente sentida pelas próprias crianças, é a alegria da "operosidade" intelectual — da criação, se, sem nial-entendidos,
pudermos empregar esta palavra.
A moral educacional que estou, principalmente, interessado
em retirar do exposto, não é que os professores achariam o
seu trabalho bem menos exaustivo e penoso se as condições
escolares favorecessem o estudo no sentido de descobertas e
não no de armazenar aquiío que outras pessoas despejam
no espírito do educando; nem de rjue seria possível dar até
a crianças e adolescentes o pr,azer da produtividade intelectual
pessoal — por mais verdadeiras e importantes que sejam tais
coisas. O que desejo sobretudo concluir é que nenhum pensamento ou ideia pode ser transferido corno ideia de uma pcssou
para outra. Quando uma ideia é dita, ela é para a pessoa a
quem foi dita um fato e, não, uma ideia. A comunicação pode
servir de estímulo para a outra pessoa compreender a questão
e conceber uma ideia semelhante, ou pode abafar seu interesse
intelectual e aniquilar seu incipiente esforço para pensar. Mas
aquilo que ela aprende diretamente não pode ser uma ídéia.
Só refletirá, só obterá ideias lutando, de primeira mão, com
as condições do problema, procurando e encontrando seus
próprios caminhos. Se o pai ou o professor proporcionou as
condições que estimulam o pensamento e assumiu atitude interessada para com a atividade de quem aprende, participando
17o
da experiência comum ou conjunta, fez, com isso, tudo o
que uma segunda pessoa pode fazer uma incentivar o aprendizado de outra. O resto é com a pessoa diretamente interessada. Se ela própria não puder conseguir a solução do
problema (é claro que não isolada e sim em correspondência
com seu professor e outros discípulos) e descobrir seu próprio
caminho, não aprenderá, nem mesmo que possa dar resposta
perfeitamente certa. Podemos e fazemos transmitir "ideias"
preparadas, ideias "feitas", aos milheiros; mas geralmente não
nos damos muito trabalho para fazer com que a pessoa que
aprende participe de situações significativas onde sua própria
atividade origina, reforça e prova ideias — isro é, significações
ou relações percebidas. Isto não quer dizer que o docente
fique de lado, como simples espectador, pois o oposto de
fornecer ideias já feitas e matéria já preparada e de ouvir se
o aluno reproduz exatamente o ensinado, não é inércia e sim
a participação na atividade. Em tal atividade compartida, o
professor é um aluno e o aluno é, sem o saber, um professor
— c, tudo bem considerado, melhor será que, tanto o que dá
como o, que recebe a instrução, tenham o menos consciência
possível de seu papel.
IV — As ideias, segundo vimos, quer sejam humildes
conjeturas ou ponderosas teorias, são previsões de soluções
possíveis. São previsões de alguma continuidade ou conexão
entre uma atividade e uma consequência que ainda não se apresentou, e são postas em prova quando agimos com base nelas.
Servem para guiar e organizar observações, recordações e
experimentações ulteriores. Constituem elemento intermediário e, não, final do aprendizado. Como já tivemos ocasião de
dizer, todos os reformadores educacionais atavam a passividade
da educação tradicional. Mostram-se contrários ao despejar
exterior de conhecimentos para os alunos absorvê-los corno esponjas; malsinam o processo do ensino por meio de "exercícios" das matérias como se essas fossem rijos, resistentes
penedos. Não é fácil, porém, assegurar condições que façam
adquirir ideias do mesmo modo por uma experiência que
amplia e torna mais íntimo nosso contacto com o ambiente.
Acredita-se facilmente que a atividade, e até mesmo a atividade
espontânea, seja coisa puramente mental, encerrada na cabeça,
e que apenas se manifesta por meio dos órgãos vocais,
A necessidade da aplicação das ideias adquiridas com o
estudo é reconhecida por todos os métodos de ensino eficazes.
O ato de pensar e a educarão
177
Mas, mesmo nesse casos, os exercícios de aplicação são algumas
vezes tratados como artifícios para fixar o que já foi aprendido
e para adquirir-se maior habilidade prática em seu emprego.
Tais resultados são verdadeiros e não devem ser desdenhados.
Mas a aplicação prática do que foi adquirido com o estudo deve,
primeiro que tudo, ter qualidade intelectual. Pensamentos,
simplesmente como pensamentos, são coisas incompletas. Na
melhor das hipóteses, são tentativas de solução; são sugestões,
indicações. São pontos de vista e métodos para alguém lidar
com as situações práticas. Faltam-lhes precisão e certeza enquanto não forem aplicados nessas situações. Somente a aplicação os põe em prova e somente essa comprovação lhes confere pleno significado e o sentido de sua realidade. Se, assim,
não os utilizamos, tendem a segregar-se em um mundo seu
todo especial. Pode-se perguntar seriamente se as filosofias
(a que fizemos referência no cap. X, seção 2) que isolam o
espírito e o colocam acima do mundo e cm contraste com ele,
não se originaram, exatamente, na circunstância de terem os
pensadores ou teorizadores elaborado grande acervo de ideias
que as condições sociais não lhes permitiram submeter à prova
da prática. Em consequência disso, aqueles homens se voltaram
para seus próprios pensamentos, considerando-os fins em si
mesmos.
Seja como for, não há dúvida de que uma singular artificialidade se liga a muito do que se aprende nas escolas.
Será, talvez, demasiado afirmar que muitos estudantes julgam
conscientemente serem coisas irreais as matérias dos estudos;
mas é certo não possuírem estas para eles a mesma espécie de
realidade que a matéria de suas experiências vitais. Não
aprendem a encará-las como sendo desta espécie de realidade;
habituam-se a considerá-las como tendo realidade para o fim
de dar lições e de passar em exames. E admitem, pacificamente, que tais conhecimentos sejam inúteis e inertes para os
atos da vida quotidiana. Dois são os maus efeitos que resultam.
A experiência ordinária dos estudantes não adquire o enriquecimento que poderia ter; não é fecundada pelos estudos escolares. E as atitudes advindas de costumarem-se a isso e de
absorver material semicompreendido e semidigerido enfraquecem
o vigor e d eficiência mentais.
Se insistimos especialmente em considerar esses aspectos
negativos, foi com o fim de sugerir medidas práticas ade-
178
Democracia c educação
O tifo de pci!.\nr c a educação
quadas ao eficaz desenvolvimento Ha reflexão e dos hábitos
de pensamento. Nos lugares em que as escolas são providas
de laboratórios, oficinas e jardins, e em que se usam livremente dramatizações, brinquedos e jogos, existem oportunidades
para se reproduzirem as situações da vida, e para adquirir e
aplicar informações e ideias na realização de experiências progressivas. As ideias não ficam segregadas, a formarem uma
ilha isolada. Elas animam e enriquecem o curso da vida comum. Os conhecimentos vitalizam-se com o ser postos em
ação, com o exercerem a sua função na direção das atividades.
estudantes ensejo para adquirirem c provarem as ideias e os
conhecimentos em trabalhos ativos reproduzindo importantes
situações sociais — é, ao mesmo tempo, certo que longo tempo
decorrerá antes que se apetrechem convenientemente todos
eles. Mas este estado de coisas não serve cie desculpa aos
professores para cruzarem os braços e persistirem em métodos
que afastam, isolam e tornam inúteis os conhecimentos escolares. Cada lição de dada matéria fornece ocasião de estabelecer associações estreitas entre o assunto tratado e as mais
amplas e diretas experiências da vida quotidiana. Três são
as espécies de instrução dadas em aulas, a) A menos desejável trata cada lição como um todo independente. Não dá
ao estudante a responsabilidade de descobrir pontos de contacto
entre ela e as outras lições da mesma matéria ou de matérias
diversas, b) Os docentes mais bem avisados fazem que o
estudante seja sistematicamente levado a utilizar-se de suas
lições anteriores para auxiliar a compreender a lição do dia,
e também a utilizar o presente para deitar mais luz sobre aquilo
que já foi aprendido. Os resultados são melhores, embora
ainda continue o isolamento da matéria escolar. A não ser por
um acaso, deixa-se a experiência extra-escolar em seu estado
bruto e relativamente irreflexivo. Não fica sujeita ao influxo
aperfeiçoador e amplificador do material mais apurado e
compreensivo da instrução direta. Esta última não é motivada nem impregnada com o senso da realidade, porquanto
não se entrelaça com as realidades da vida quotidiana, c) A
melhor espécie de ensino é a que tem em mente o desejo de
conseguir esta interconexão. Ela coloca o estudante na atitude
habitual de procurar pontos de contacto e influências mútuas.
A frase "existem oportunidades" foi propositadamente
usada. Pode ser que não as aproveitem; é possível que empreguem a atividade manual e construtora de modo material,
apenas como meio de adquirir habilidade corporal; ou podem
ser quase que exclusivamente usadas para fins "utilitários",
isto é, pecuniários. Mas a tendência dos sustentadores <la
educação "cultural", para presumir que tais atividades sejam
de qualidade meramente material ou profissional, é ela própria
um resultado das filosofias que separam o "espírito" da direção
do curso da experiência e, desse modo, da ação sobre as coisas
e com as coisas. Quando se considera o "mental" como um reino constituído por si só, o mesmo, por contrapeso, acontece com
a atividade e os movimentos corporais. Na melhor das hipóteses consideram-se estes como simples anexos externos ao
espírito. Podem ser necessários para a satisfação das necessidades corpóreas e para obter-se decência e conforto exteriores,
mas não ocupam um lugar necessário na vida mental, nem
desempenham um papel indispensável no funcionamento do
pensamento. Por isso, não lhes reservam lugar em uma educação liberal, isto é, em uma educação tendo em vista os interesses intelectuais. Se acaso nela têm ingresso, é como concessão às necessidades materiais das massas. Seria intolerável
que lhes permitissem invadir a educação das elites. Esta
conclusão dimana irresistivelmente da concepção do espírito
como coisa independente e isolada, mas com a mesma lógica
desaparece quando percebemos o que é realmente o espírito
— isto é, o fator que orienta com determinado fito o desenvolvimento da experiência.
Se é, indiscutivelmente, desejável que todos os institutos
educativos sejam aparelhados de modo a proporcionar aos
179
Resumo. — Dá-se a unificação dos processos de ensino
na medida em que estes adotam como ideia central a aquisição
de bons hábitos de pensar. Se, com propriedade, falamos em
"método de reflexão", o importante a tomar-se em conta é
que a reflexão é o método de uma experiência educativa, o
método de educar. Os pontos essenciais do método coincidem,
portanto, com os pontos essenciais da reflexão. Estes são:
primeiro, que o aluno esteja em uma verdadeira situação de
experiência —- que haja uma atividade contínua a interessá-lo
por si mesma; segundo, que um verdadeiro problema se desenvolva nesta situação como um estímulo para o ato de pensar;
180
Democracia e educação
terceiro, que ele possua os conhecimentos informativos necessários para agir nessa situação e faça as observações necessárias para o mesmo fim; quarto, que lhe ocorram sugestões para a solução e que fique a cargo dele o desenvolvê-las
de modo bem ordenado; quinto, que tenha oportunidades para
por em prova suas ideias, aplicando-as, tornando-lhes clara a
significação e descobrindo por si próprio o valor delas.
CAPITULO 13
A natureza do método
l. A unidade da matéria e do método. — A trindade, em assuntos escolares, são as matérias do estudo, os
métodos e a administração. Tratamos dos dois primeiros
nos últimos capítulos anterioras. Resta desprendê-los da situação em que se achavam contidos e examinar-lhes explicitamente a natureza. Cqmeçaremos com a questão do método,
uma vez que é ele que se liga mais estreitamente às considerações do último capítulo. Antes, porém, de debater esse
tema, poderá haver vantagem em chamar a atenção sobre unia
das coisas que nossa teoria subentende: a mútua conexão entre
o método e a matéria do estudo. A ideia de que a mente e o
mundo das coisas e pessoas são dois domínios distintos e independentes — teoria que filosoficamente se chama do dualismo
— obriga à conclusão de que o método e a matéria da instrução
são coisas separadas. A matéria torna-se então uma completa
classificação sistematizada dos fatos e princípios sobre o mundo
natural e sobre o homem. O domínio próprio do método seria
a consideração dos meios pelos quais essa matéria possa ser
apresentada ao espírito e gravada no mesmo — ou a consideração dos meios com os quais o espírito possa ser externamente
levado a entrar em contacto com essa matéria, de modo a facilitar sua aqiiisição e sua posse.
Pelo menos teoricamente pode-se deduzir de uma ciência
do espírito como coisa existente por si mesma uma teoria
completa de métodos educativos, sem conhecimento algum das
matérias a que os métodos vão ser aplicados. Como a maioria
dos homens que possuem, atualmente, a mais alta proficiência
em vários ramos das matérias de ensino ignoram absolutamente tais métodos, este estado de coisas abre ensejo para
redarguir-se que a pedagogia, como pretensa ciência de métodos de ensino, é inútil; é mera máscara para ocultar a neces-
182
Democracia c educação
A natureza do método
sidade em que se encontra o professor, de um profundo e
acurado conhecimento da matéria a ensinar.
Como, porém, o ato de pensar é um movimento dirigido
da matéria para um resultado ulterior, e como a mente ou o
espírito é o aspecto deliberado e intencional desse processo,
radicalmente falsa é a noção daquela solução de continuidade.
O fato de serem organizados os conhecimentos ou o objeto de
uma ciência comprova já terem sido eles submetidos à ação da
inteligência, isto é, foram metodizados. A zoologia, como um
ramo sistemático das ciências, apresenta os fatos brutos e esparsos de nosso conhecimento ordinário dos animais, após terem
sido sujeitos a cuidadoso exame, e a serem deliberadamente
completados e arranjados para facilitar associações que auxiliem a observação, a recordação e ulteriores investigações. Ern
vez de fornecer um ponto de partida para o -estudo, assinala
um remate. Método significa esse arranjo da matéria para
tornar mais eficaz sua utilização. Nunca é o método alguma
coisa exterior ao objeto, à matéria.
E que dizer sobre o método do ponto de vista de um
indivíduo que está a aplicar-se à matéria do estudo? Novamente afirmaremos que não é alguma coisa externa. É
meramente «m tratamento eficaz do material — e eficácia
aqui significa um tal tratamento que se reduza ao mínimo
a perda de tempo e de energia ao utilizar-se o material (com
determinada meta). Podemos distinguir um modo de proceder
e discuti-lo isoladamente; mas esse modo só existe como um
modo de tratar o material. Método não é a antítese de matéria de estudo; é a eficaz orientação da matéria para desejados resultados. É a antítese da ação casual e mal considerada — tomando-se mal considerada no sentido de mal
adaptada.
Afirmar-se que método significa um movimento dirigido
da matéria de estudo para determinados fins, é coisa abstrata.
Um exemplo esclarecerá melhor o caso, tornando-o concreto.
Todo o artista deve ter um método, uma técnica, para fazer o
seu trabalho. Tocar piano não é bater ao acaso nas teclas.
É um modo ordenado de se utilizarem estas e essa ordem não
é coisa que já exista pronta nas mãos ou no cérebro do pianista, anteriormente a haver uma atividade a aplicar-se ao piano.
A ordem acha-se na disposição dos atos que utilizam o piano, as
mãos e o cérebro, para conseguir o resultado ern vista. A ação
do pianista é orientada para realizar a finalidade do piano como
instrumento musical. O mesmo se dá com o método "pedagógico". A única diferença é ser o piano um mecanismo
construído de caso pensado para um só objetivo, ao passo
que o material dos estudos é susceptível de indefinido número
de aplicações. Mesmo a este respeito o exemplo tem propriedade, se considerarmos a infinita variedade de músicas
que o piano pode fazer ouvir e as variações de técnica requeridas pelos diferentes resultados musicais que se podem obter.
Em qualquer desses casos o método é unicamente um meio
eficaz de empregar algum material com algum determinado fim.
Poderemos generalizar estas considerações revertendo à
concepção de experiência. A experiência, em sua qualidade
de percepção da associação entre alguma coisa tentada e alguma
coisa em consequência disso sentida ou sofrida, é um processo. Independentemente do esforço para orientar o curso
tomado pelo processo, não há distinção entre o objeío e o
método da experiência.' Existe simplesmente uma atividade
que encerra a- ação do indivíduo e a ação do meio. Um pianista perfeitamente senhor de seu instrumento não teria ocasião
de distinguir entre sua contribuição e a do piano. Em quaisquer atividades bem organizadas e desempenhadas sem embaraços — a patinação, a conversação, a audição de música, o
prazer de coitfemplar-se uma paisagem — não existe a consciência da separação do método da pessoa e do material. Nos
brinquedos a que a pessoa se entrega animadamente e com
prazer, ocorre o mesmo fenómeno.
183
Quando refletimos, entretanto, sobre uma experiência em
vez de a estarmos tendo, distinguimos inevitavelmente a nossa
atitude e os objetos perante os quais mantemos essa atitude.
Se um homem está ,a comer, está comendo alimento. Não
se divide seu ato, em comer e alimento. Mas se ele empreender
uma análise científica desse ato, essa discriminação é a primeira coisa que fará. Observará, por uni lado, as propriedades
das substâncias nutritivas e, por outro lado, os atos de apropriar-se delas o organismo e digeri-las. Esta reflexão sobre
a experiência dá origem á uma distinção entre aquilo que
experimentamos (a coisa experimentada) e o ato de experimentar — o como. Dando nomes a estas coisas diferençadas,
a essas distinções mentais teremos a matéria e o método, consoante nossas expressões. Haverá a coisa vista, ouvida, amada,
Democracia e educação
A natureza do método
odiada, imaginada e o ato de ver, ouvir, amar, odiar, imaginar, etc.
melhor êxito. Isto é unicamente um modo mais rebuscado de
dizer que se um homem observar com cuidado o desenvolvimento de diversas plantas, por exemplo, algumas das quais
viçam muito, e outras pouco, ou então nada, será ele capaz
de perceber as condições especiais de que depende o melhor
desenvolvimento das plantas. Enumeradas estas condições em
série ordenada, constituem o método ou modo de seu desenvolvimento. Não há diferença entre o desenvolvimento de uma
planta e o de uma experiência. Em qualquer desses casos não
é fácil reconhecerem-se exatamente os fatores que mais contribuem para esse fim. Mas a observação dos casos de bom
êxito e de malogro e comparações minuciosas e em grande
extensão, auxiliam-nos a descobrir as causas. Quando dispomos essas causas em ordem, temos um método para agir ou
uma técnica.
A consideração de alguns malefícios para a educação
derivados do isolamento do método e do material tornará
este ponto mais claro.
J84
Esta distinção é tão natural e tão importante para certos
fins, que temos grande propensão e encará-la como uma se-'
paração real e não como uma distinção mental. Então separamos o eu e o meio ou o mundo. Esta separação constitui a
raiz do dualismo do método e do objeto a que ele se aplica.
Isto é, presumimos que conhecer, sentir, querer, etc., são coisas
pertencentes ao eu ou espírito em seu insulatnento e que
podem ser aplicadas a uma matéria, também, por sua vez
independente. Presumimos igualmente que as coisas isoladadas que pertencem ao eu ou espírito têm suas próprias leis de
atuação independentemente das espécies de energia atíva do
objeto. Supõe-se que essas leis proporcionam o método. Não
seria menos absurdo imaginar-se que os homens podem comer
sem comer alguma coisa e que a estrutura e movimentos das
maxilas, os músculos da garganta, a ativídade digestiva do
estômago, etc., não são o que são, por cansa ao material a
que se aplica a sua atividade. Do mesmo modo que os órgãos
do organismo são um prolongamento do próprio mundo em
que existem as matérias que os alimentam, também as faculdades de ver, ouvir, amar, imaginar, se associam intrinsecamente
ao material constituído pelo mundo. Elas, verdadeiramente,
são mais realmente meios pelos quais o ambiente entra em
experiência e atua, do que atividades independentes que fazemos aplicar-se às coisas. A experiência, em suma, não é
uma combinação do espírito com o mundo, do sujeito com o
objeto, do método com a matéria, e -sim uma única iníeração
contínua de grande diversidade de energias" (literalmente inumeráveis).
Com o intuito de dirigir o curso ou o sentido tomado
pela movediça unidade da experiência, traçamos uma separação mental entre o como e o que. Ao mesmo tempo em
que não existe modo de andar ou comer ou estudar, acima e
abaixo do ato efetivo de andar, comer e estudar, há certos
elementos nesses atos que dão a chave para sua mais perfeita
regulação ou controle. Dando-se atenção especial a esses elementos eles se tornam mais perceptíveis (ficando de lado
pelo momento outros fatores). Adquírindo-se uma ideia do
como a experiência procede, passamos a saber que fatores devem ser assegurados ou modificados com o fim de ter ela
185
1 — Em primeiro lugar há o esquecimento (de que já
falamos) das situações concretas da vida prática. Não se
pode descobrir um método sem se estudarem casos. O método deriva da observação daquilo que atualmente acontece,
tendo-se em mira ver se acontecerá melhor na próxima ocasião.
Mas em coisas de instrução e disciplina há raramente oportunidades suficientes para as crianças e os adolescentes terem as
experiências diretas e normais das quais possam os educadores
inferir uma ideia do método ou ordem do seu melhor desenvolvimento. Verificam-se experiências em condições de tal
constrangimento que pouca ou nenhuma luz projetam sobre o
curso normal de uma experiência frutífera. "Métodos" têm
então que ser autoritariamente recomendados aos professores,
em vez de serem resultado de suas próprias observações inteligentes. Em tais circunstâncias, têm eles mecânica uniformidade, pois a presunção é de serem próprios para todos os espíritos. Ao contrário, sempre que se promovem experiências
pessoais e flexíveis, proporcionando-se um meio que provoque
ocupações de trabalho ou de jogos, os métodos empregados
variarão com os indivíduos — pois cada indivíduo tem algo de
característico no seu modo de fazer as coisas.
2 — Em segundo lugar, a noção de métodos que são
isolados das matérias de ensino tem a culpa das falsas con-
186
Democracia e educação
cepções, já notadas, sobre a disciplina e o interesse. Quando
o modo eficaz de lidarmos com o material é tratado como
alguma coisa já pronta independentemente do material, existem
precisamente três meios possíveis de estabelecer uma relação
que se presume faltar. Um deles é utilizar-se a excitação, a
sensação do prazer, é agradar ao paladar. Outro é tornar
desagradáveis as consequências de não se fazer o que se manda;
usa-se ameaçar com alguma coisa má, para despertar o interesse
pela matéria estranha. Ou apela-se diretamente para o educando, a fim de esforçar-se, sem lhe dar um motivo para isto.
Precisa-se contar com o imediato empenho da "força de von• tade". Na prática, entretanto, este método é eficiente apenas
quando se incute o medo de resultados desagradáveis.
3 — Em terceiro lugar, faz-se do ato de aprender um
fim direto e consciente por sí mesmo. Em condições normais, aprender é um produto e a recompensa de nosso contato com a matéria da atividade. As crianças não resolvem
conscienternente aprender a andar ou a falar. Apenas obedecem a seus impulsos para se comunicarem e para maior plenitude de relações com outras pessoas. Elas aprendem em
consequência de suas atividades diretas. Os melhores métodos
de ensinar-se uma criança, por exemplo, a ler devem seguir o
mesmo rumo. Tais métodos não levam as crianças a fixarem
a atenção no fato de que têm de aprender alguma coisa e, por
isso, sua atitude não se torna autoconsciente e constrangida.
Limitam-se a empregar e conduzir sua atividade e com esse
emprego aprendem: dá-se o mesmo com os melhores métodos
para aprender contas e quaisquer outras matérias. Mas quando
o material não for utilizado para provocar impulsos e hábitos
com vistas à obtenção de resultados significativos, então será
uma simples coisa para ser aprendida. A atitude do aluno será
precisamente ter de aprendê-la. Com dificuldade se encontrariam condições mais desfavoráveis para reações vivas e convergentes para o fim em vista. Os ataques de frente são ainda
mais desastrosos no ensino do que na guerra. Isto, porém, não
significa que se deva ensinar aos estudantes, iludindo-os, de
modo que não saibam que estão a aprender as lições. Significa, sim, que se devem ocupar com estas tendo em vista razões
ou fins reais, e não apenas como alguma coisa que deva ser
aprendida. O alunot aprende quando percebe o lugar ocupado
pela matéria do estudo no curso de algum emprego de sua
atividade.
natureza do -método
187
j 4 — Em quarto lugar, sob a influência cia concepção do
espírito separado e isolado da matéria, o método propende a
reduzir-se a uma árida rotina, à sequência mecânica de determinados passos prescritos. Mal se pode avaliar em quantas
aulas as crianças, em suas lições de aritmética e gramática, são
forçadas, sob pretexto de seguir-se um método útil, a acompanhar preordenadas fórmulas verbais. Em vez de serem encorajadas a dar-se diretamente a seus trabalhos, experimentando
métodosxme pareçam promissores, aprendendo ?. distinguir-lhes
o valor pelas consequências produzidas, adota-se a presunção de
que deva ser seguido um método fixo. Presume-se, também,
ingenuamente, que, se os discípulos fazem suas exposições e
explicações em certa forma "analítica", seus hábitos mentais
adotarão, com o tempo, a mesma forma. Nada deu mais
descrédito à teoria pedagógica do que acreditar-sé ser função
dela fornecer aos professores receitas e modelos que se devam
seguir na prática do ensino, A maleabilidade e a iniciativa na
solução dos problemas são característicos de qualquer concepção em que o método seja o modo de tratar-se um matéria! para atingir-se uma conclusão. Um rígido mecanicismo
é o inevitável corolário de toda a teoria que estreme o espírito
ou a mente da atividade motivada por um intento ou propósito.
2. Método geral e método individual. —• Km suma,
método de ensino é o método de uma arte, de ação inteligentemente dirigida por objetivos. Mas a prática de nenhuma
das belas-artes é coisa obtida num improviso ou pela inspiração. É essencial o estudo das operações e dos resultados
daqueles que no passado foram bem sucedidos. Há sempre
uma tradição ou .escolas artísticas de processos tão definidos
que não só impressionam os que começam como muita vez os
escravizam. Em todos os ramos da arte, os métodos dos
artistas dependem do seu conhecimento cabal de materiais e
utensílios; o pintor deve entender de telas, tintas, pincéis e
saber a técnica da manipulação de todos os seus implementos.
A consecução deste conhecimento requer atenção perseverante
e concentrada sobre objetos materiais. O artista observa o
efeito de suas tentativas, para ver aquilo que dá bom ou mau
resultado. A presunção de que não existem outras alternativas além de seguir regras determinadas e confiar nos próprios
predicados inatos, na inspiração do momento e num "árduo
Democracia e educação
A natureza do método
trabalhar" sem orientação, é desmentida pelos processos usados em todas as artes.
Coisas como o conhecimento do passado, da técnica corrente, dos materiais, dos meios de cada qual conseguir os
melhores resultados, fornecem o material daquilo a que poderemos chamar método geral. Existe um cabedal.de métodos acumulados, razoavelmente estáveis para se obterem bons
resultados, cabedal autorizado pela experiência passada e pela
análise intelectual, e cuja ignorância pode ser danosa ao indivíduo. Mas, como já foi exposto ao tratar-se da formação
de hábitos, há sempre o risco de que tais métodos se tornem
mecanizados e rígidos, escravizando a pessoa que os emprega, em vez de s-erem recursos disponíveis para ela realizar
seus próprios fins. Mas também é verdade que todo o inovador que cria coisas duradouras, cujo trabalho é mais do
que uma sensação passageira, utiliza os métodos clássicos mais
que lhe parece ou do que parece aos seus críticos. Ele dá
aos mesmos um novo uso e, na proporção em que o faz, transforma-os.
A educação também tem seus métodos gerais. E se a
verdade desta observação é mais patente no caso do professor do que no do aluno, é igualmente verdade no caso deste
último. Parte de seu ato de aprender, considerável parte
deste, consiste em senhorear os métodos que a experiência
alheia mostrou serem mais eficientes para se adquirirem conhecimentos (1). Estes métodos não são, de forma alguma, hostis à iniciativa e originalidade individuais — aos meios
pessoais de fazer as coisas; Pelo contrário, vigorizam-nos.
Pois há diferença radical entre o mais geral dos métodos e
uma regra prescrita. A última é um guia direto para a
açao; o primeiro atua indiretamente, por meio dos esclarecimentos que supre sobre os fins e os meioá. Isto é, atua
por intermédio da inteligência e não por obediência a ordens
dadas do exterior. A habilidade de empregar-se mesmo de
modo magistral, uma técnica estabelecida, não garante que
o trabalho seja artístico, pois este depende ainda de uma
ideia animadora.
Se o conhecimento dos métodos usados pelos outros não
nos diz diretr.mente o que devamo.s fazer, nem nos fornece mo-
delos preparados, como operam eles? Qual o sentido de chamar-se um método de método intelectual (ou não mecânico) ? Tomemos, o caso de um médico, como exemplo. Nenhuma atividade, mais do que a sua, exige mais imperiosamente conhecimentos de modalidades estabelecidas de diagnóstico e tratamento. Mas, afinal de contas, os casos são semelhantes, e, não, idênticos. Por mais autorizada que. seja
a prática existente, é, todavia, preciso, para ser usada inteligentemente, que se adapte às exigências dos casos particulares. Tendo em vista esta circunstância, os processos conhecidos indicam ao médico, que procura formar a própria
opinião, que coisas deve experimentar. Aqueles processos são
pontos de vista gerais para se levarem avante as investigações ; eles poupam trabalho no exame dos característicos do
caso particular, sugerindo as coisas a que principalmente se
deva atender. As atitudes pessoais do médico, seus próprios
modos (métodos individuais) de encarar a situação em que
se acha envolvido não são, entretanto, subordinados aos princípios gerais dos processos clássicos, e sim facilitados e orientados por eles. Este exemplo poderá servir para mostrar
ao professor o valor do conhecimento dos métodos psicológicos e dos artifícios empíricos que foram úteis no passado.
Quando eles são reprovados pelo seu senso comum, quando
se interpõem entre ele, professor, e a situação em que deve
agir, embaraçando-o, são mais do que inúteis. Mas se o professor os adotou como auxiliares intelectuais para descobrir as
necessidades, os recursos e as dificuldades das experiências
particulares com que se acha a braços, são de real valor. Em
último recurso, justamente porque tudo depende de seus próprios modos de reagir, muita coisa depende da proporção que
ele utiliza, em suas próprias reações, dos conhecimentos que
acresceram aos seus, provenientes da experiência alheia.
1) Este ponto será desenvolvido mais adiante, em um exame dos
métodos psicológicos e lógicos.
189
Como já o sugerimos, todas as palavras desta argumentação se aplicam também diretamente ao método dos alunos, a seu modo de aprender. Supor-se que se possam fornecer aos estudantes, quer na escola primária, quer nas universidades, modelos de métodos a serem seguidos para assimilarem , e exporem um assunto, é sujeitar-se a decepções
de lamentáveis consequências. Em cada caso o aluno terá
sua própria reação. A indicação de métodos estandardizados ou gerais usados em casos análogos pelos outros — par-
190
Democracia c educação
ticularmente pelos que já estiverem bem exercitados — será
valiosa ou maligna conforme tornem, os métodos, a rcação
pessoal mais inteligente ou induzam o aluno a prescindir do
exercício do próprio raciocínio.
Se o que foi dito precedentemente sobre a originalidade
do pensamento pareceu excessivo, exigindo mais da educação
do que o permite a capacidade do homem comum, o embaraço
é estarmos ainda sob o pesadelo de uma superstição. Estabelecemos erroneamente uma noção geral de espírito ou
mente e de processo intelectual que são o mesmo para todos.
Em seguida consideramos os indivíduos como se diferissem
pela quantidade de espírito ou mente de que são providos.
E achamos então que as pessoas comuns têm inteligência comum e que só os homens extraordinários, os homens-exceção, podem ter originalidade. O que distingue o estudante
ordinário do genial é, desse ponto de vista, a falta de originalidade do primeiro. Mas esta noção do espírito considerado de modo geral é uma ficção. Não é da alçada do professor comparar a quantidade de aptidões de um aluno com
a de outro. Isto não tem importância para a sua tarefa, O
que se requer é que cada indivíduo tenha oportunidades para
empregar suas próprias faculdades em espécies de atividade
dotadas de significação. Espírito, método individual, originalidade (são termos reversíveis) significam ci qualidade da
ação intencional, ou orientada para um fim. Se, como mestres, procedermos com esta convicção, asseguiaremos a manifestação de mais originalidade, rnesmo segundo o padrão convencional de originalidade, do que a obtida atualmente. Impor a todos um pretenso método uniforme geral é produzir
a mediocridade em todos os alunos, exceto nos verdadeiramente excepcionais. E medir-se a originalidade pela sua diferença do comum' dos alunos é impelir à excentricidade esses
excepcionais. Desta maneira atrofiamos as qualidades distintivas da maioria e, salvo em raros exemplos (como no de
Darwin), eivamos os raros génios com uma qualidade malsã.
3. Os característicos do método individual. — Os
traços mais gerais do método de adquirir conhecimentos foram mencionados no capítulo sobre o ato de pensar. São
os característicos da situação reflexiva: o problema, a coleta
e a análise de dados, o planear e a elaboração de sugestões
ou ideias, a aplicação experimental e o ato de pôr em prova,
A natureza do método
191
e a conclusão ou juízo resultantes. Os elementos específicos de um método ou modo individual de se haver com um
problema encontram-se, em última análise, nas tendências inatas e nos hábitos e interesses adquiridos. O método de uma
pessoa variará do de outra (é esta variação devida e apropriada) segundo variafn suas instintas qualidades originárias,
sua experiência passada e suas preferências. Aqueles que já
observaram as ditas variedades, possuem conhecimentos que
auxiliarão os professores a compreender as reações diferentes dos alunos, e a guiar essas reações de modo a conseguirse maior eficiência. O estudo da criança, a psicologia e o
conhecimento do meio social servem de complemento aos conhecimentos pessoais adquiridos pelo professor. Mas os métodos continuam a ser o interesse, o contacto e o modo de
trabalhar pessoais de um indivíduo em relação à matéria do
estudo e jamais se poderão catalogar todas as suas formas
e matizes.
Podem-se, entretanto, mencionar algumas atitudes essenciais dos modos intelectuais eficientes de se agir sobre
dado material. Entre os mais importantes estão retitude
(directness), a acessibilidade mental (opcn-mindedness), a
atividade integrada (single-mindedness ou ivholeheartedness)
e a responsabilidade (responsability).
l — Retitude. É mais fácil exprimir com termos negativos, do que com positivos, aquilo que se entende pela expressão retitude. Seus inimigos perigosos são a afetação
(self-conscious), o embaraço e o constrangimento. Estes indicam que a pessoa não se interessou imediata e díretamente
pela matéria a que aplica a atividade. Alguma coisa interpôsse entre ela e a matéria, desviando o interesse para escapamentos laterais. Uma pessoa afetada está em parte pensando em seu problema, e, em parte, naquilo que outras pessoas
pensam sobre o que ela está fazendo. Energia desviada significa energia perdida e confusão de ideias. Tomar uma atitude não e, de forma alguma, o mesmo que ter consciência
da atitude tomada. O primeiro ato é uma coisa espontânea,
ingénua e simples. É sinal de uma relação íntima entre uma
pessoa e aquilo que ela está fazendo. O segundo implica em
certa artificialidade, embora não seja em todos os casos anormal. Certas vezes, é o meio mais fácil de corrigir um falso
modo de lidar com a matéria e de aumentar a eficácia dos
Democracia e educação
A natureza do método
meios que estão sendo empregados — por exemplo, os jogadores de golfe, os pianistas, os oradores, etc., precisam em
certas ocasiões prestar atenção especial aos próprios movimentos e posições. Mas esta necessidade é ocasional e passageira. Nos casos em que isto é eficaz, a pessoa pensa em si
mesma, tendo em vista o que vai fazer, como se pensasse
num meio, entre outros, para realizar um fim — como no
caso de um jogador de ténis exercitando-se em "sentir" um
golpe. Nos casos anormais, a pessoa pensa em si mesma
não como em um dos fatores da execução, mas como em
uma coisa distinta — como quando o jogador assume alguma atitude tendo em vista a impressão que ela produzirá nos
espectadores, ou fica aborrecido a pensar na má impressão
que receia estejam causando seus movimentos.
Confiança é um bom nome para aquilo que é significado, aqui, pela expressão retitude. Não se confunda, porém,
com autoconfiança, que pode ser modalidade da autoconsciência ou afetação •— uma espécie de imodéstia. Confiança
não é o nome daquilo que a pessoa sente ou pensa sobre sua
própria atitude; não é introspectiva. Denota antes a retilineidade com que a pessoa se aplica ao que se acha a fazer.
Não denota fé consciente na eficácia de sua aptidão, e, sim,
fé inconsciente nas possibilidades da situação. Significa o
pormo-nos à altura das exigências de uma situação.
Já indicamos atrás as inconveniências de se tornarem
os estudantes excessivamente conscientes de estar a estudar
ou a aprender. Quanto mais as condições os levarem a ter
essa consciência, menos estarão a estudar e a aprender. Encontram-se em uma atitude mental dividida e dupla. Todos os
métodos de um professor que desviem a atenção do aluno
daquilo que ele se acha a fazer, transferindo-a para suas próprias atitudes, dele aluno, em relação ao que está a fazer,
prejudicam a retilineidade do interesse e da açao. Persistindo
nisso, o discípulo adquire a tendência permanente de descuido,
de encarar as coisas aereamente, de buscar ponto de partida
para a ação em outra coisa que não o fornecido pela matéria
do estudo. A dependência de sugestões e orientações estranhas,
um estado de nebulosa confusão mental, tomam o lugar daquela
segurança que as crianças (e também os adultos aos quais a
"educação" não falseou o procedimento) apresentam em face
das situações da vida.
2 — Acessibilidade mental. Conforme vimos, parcialidade
acompanha a existência de interesse, desde que este significa
a participação de alguém, ou seu ato de tomar partido, em
alguma circunstância. Por isso mesmo, torna-se ainda mais
necessária uma atitude mental que ativamente acolha as sugestões
e informações relevantes provenientes de todos os lados. No
capítulo sobre os objetivos já se mostrou que os fins previstos
são fatores no desenvolvimento de uma situação em marcha.
É por meio deles que se regula a díreção da atividade. Eles
subordinam-se à situação, e não a situação a eles. Não são
fins no sentido de finalidades às quais todas as coisas devam
ser destinadas e sacrificadas. São, enquanto previstos, meios
para orientar o evolver-se de uma "situação. Atingir o alvo
não é o objetivo futuro do atirador; esse alvo é o fator que
centraliza o ato presente de atirar. Acessibilidade mental significa estar o espírito franqueado a toda e qualquer consideração
que projete luz sobre a situação que precisa ser aclarada e
que ajude a determinar as consequências deste ou daquele modo
de proceder. A eficiência para realizar fins previamente estabelecidos como imutáveis pode coexistir com um espírito de
visão estreita. Mas o desenvolvimento intelectual significa
um constante alargamento de horizontes e o consequente surgir
de novos objetivos e novas "respostas". Isto não é possível
sem uma disposição ativa para adotar pontos de vista que até
então eram estranhos, sem um ativo desejo de entregar-se a
considerações que modifiquem os propósitos atuais. A conservação da capacidade de desenvolvimento é a recompensa
dessa atitude intelectual acolhedora. O pior mal gerado pela
teimosia e pelos preconceitos é a parada do desenvolvimento,
pois trancam o espírito, tornando-o inacessível aos novos estímulos. Espírito francamente acessível significa a conservação
da atitude infantil, e o contrário dessa atitude significa senilídade intelectual prematura.
Os principais inimigos que a atitude da compreensividade
encontra na escola são o excessivo desejo de uniformidade de
processos e de obtenção de prontos resultados exteriores. O
professor que não permite nem encoraja a variedade de modos
no se resolverem as questões, coloca antolhos em seus discípulos
•— restringindo-lhes a visão à única trilha pela qual o professor
tem predileção. Provavelmente a causa principal de se apreciar a uniformidade rígida dos métodos é que ela parece prometer rapidez, perfeição, mensurabilidade dos resultados certos.
192
193
Democracia e educação
A natureza do método
O zelo pela obtenção de "respostas" exatas explica em grande
parte a preferência pelos métodos rígidos e mecânicos. O estudo forçado e intensivo tem a mesma origem e produz o mesmo
efeito sobre o interesse intelectual vivo e variado.
Acessibilidade mental (open-mindedness) não é a mesma
coisa que vacuidade mental (empty-mindedness).
Pregar à
porta da casa um letreiro com os dizeres: "Pode entrar; não
há ninguém em casa" não equivale a ser hospitaleiro. Mas há
uma espécie de passividade, de boa-vontade para deixar as
experiências acumularem-se, sedimentar em-se e amadurecerem,
que é essencial ao desenvolvimento. Pode-se apressar a obtenção de resultados (respostas ou soluções exteriores) mas nunca
forçar os processos evolutivos. Estes, para amadurecerem,
exigem seu próprio tempo. Se todos os docentes compreendessem que pela qualidade dos processos mentais, e não pela
obtenção de respostas certas, é que se mede o desenvolvimento
educativo, dar-se-ia quase que uma revolução nos processos
do ensino.
outros e obter-lhes a aprovação, a educação social, o senso geral
do dever e do respeito à autoridade, o receio de punições,
tudo leva a um semicontrariado esforço para conformar-se
com o que os outros querem, seja "prestar atenção à lição",
ou o que for de que se tratar. Os indivíduos "bons", brandos, desejam fazer o que esperam que eles façam. Conscientemente o aluno pensa que está fazendo isso. Mas seus próprios desejos não foram suprimidos. O que se suprimiu
foi apenas sua clara manifestação. É enfadonho o esforço da
atenção voltada para aquilo que é contrário ao desejo; a
despeito da vontade consciente da pessoa, os desejos latentes
determinam o curso principal das reflexões e as mais profundas'
reações emocionais. O espírito foge daquilo que é nominalmente o seu material e absorve-se naquilo que acha intrinsecamente mais desejável. Disto resulta uma atenção sistematicamente dividida, refletindo a duplicidade dos seus desejos.
Basta unicamente recordarmo-nos de quando, nos tempos
em que cursávamos a escola, ou mesmo quando mais recentemente nos dedicávamos a atividades exteriores que não se
conformavam com os nossos desejos e propósitos, para compreendermos a predominância dessa atitude da atenção dividida
— da mentalidade dupla. Tão acostumados estamos a ela,
que admitimos como comprovado ser-nos a mesma, em grande
parte, necessária. Pode ser verdade; se o for, mais importante se torna o encararmos seus perniciosos efeitos intelectuais.
É evidente a perda de energia mental diretamente utilizável
quando alguém conscientemente tenta (ou tenta parecer tentar)
dar atenção a uma coisa, quando inconscientemente a imaginação
da mesma pessoa se desloca espontaneamente para outro objeto
mais de seu agrado. Mais sutil e mais permanente causa inibídora da eficiência da atividade intelectual, é estimular o hábito de enganar-se a pessoa a si mesma, com o confuso senso
da realidade, que o acompanha. Um duplo julgamento da realidade, um para nossos interesses particulares e mais ou menos
ocultos, e outro, confessado, para usar-se em público, prejudica, na maioria dentre nós, a atividade mental, não a deixando
tornar-se integral e completa. Igualmente grave é a circunstância de produzir-se solução de continuidade entre o pensamento
e a atenção conscientes, e as paixões e desejos impulsivos e
cegos. A atividade reflexiva em face da matéria de estudo
sente-se constrangida e frouxa; a atenção foge para longe.
194
3 — Atividade integrada. Muito do que já foi dito sobre "retitude" é aplicável à ação integrada. Mas o que esta
palavra aqui procura exprimir é' a plenitude do interesse, a
unidade de objetivo; a ausência de ulteriores objetivos recalcados mas operantes, para os quais o objetivo confesso é meramente máscara. Significa integridade mental. Absorção no
assunto, a paixão pela matéria e o pleno interesse nessa matéria,
pelo seu próprio mérito, a alimentam e fortalecem. Destroemna o interesse diviso e a distração.
Inteireza intelectual, honestidade e sinceridade não são, no
fundo, coisas intencionais, mas qualidades das nossas reações
ativas. Sua aquisição é, naturalmente, estimulada pela intenção
consciente, mas facílimo é, a este respeito, ter-se decepção. Os
desejos são exigentes. Quando as imposições e a vontade
alheia lhes impedem a manifestação direta, eles se encaminham
com facilidade para canais subterrâneos e profundos. São quase
impossíveis a inteira submissão e a adoção sincera do modo de
proceder exigido por outras pessoas. Podem resultar revoltas
voluntárias ou tentativas deliberadas de iludir os outros. Mas
o resultado mais frequente é um confuso e diviso estado de
interesse com que a pessoa se engana a respeito de sua própria
e verdadeira intenção. Experimenta-se servir dois senhores a
um tempo. Os instintos sociais, o forte desejo de agradar aos
195
196
Democracia e educação
As coisas para as quais ela foge não são reveladas e tornam-se,
por isso, intelectualmente ilícitas; o trato com as mesmas é furtivo. Por causa disso, não se produz a disciplina que resulta
de se regularem as reações de acordo com uma investigação
deliberada; pior, ainda —• o mais intenso interesse e as mais
congénitas atividades da imaginação (porquanto elas se prendem
às coisas mais caras para o desejo) são casuais e ocultas. Elas
entram em ação por meios encobertos e, não sendo submetidas
a retificações pela consideração das consequências, tornam-se
desmoralizantes.
Não são difíceis de encontrar condições escolares favoráveis a esta divisão do espírito entre os atos confessados,
públicos e de cumprimento de deveres sociais, e os íntimos,
mal regulados e recalcados voos e divagações da imaginação.
Propende a produzir este efeito aquilo c^ie às vezes chamamos
"disciplina severa", isto é, a compressão exterior coercitiva.
Produz efeitos semelhantes a promessa de recompensas com
coisas estranhas ao trabalho a ser feito. Tudo o que torna
simplesmente preparatória a vida escolar atua neste sentido.
Achando-se os fins fora do alcance presente do aluno, recorre-se a outros estímulos para conseguir-se que a atenção se
volte para determinadas tarefas. Consegue-se algum resultado,
mas os desejos e paixões não tomados em linha de conta procuram outras válvulas de escape. Não menos sério, em consequência, é a exagerada apologia dos exercícios mecânicos
(driir) destinados a produzir eficiência de ação, independentemente de qualquer emprego de pensamento — exercícios sem
outro objetivo exceto a produção de habilidade automática. . A
natureza detesta o vácuo mental. Que imaginam os professores que esteja sucedendo ao pensamento e à emoção, quando
não se podem expandir, aplicando-se imediatamente a alguma
espécie de atividade? Se ficassem temporariamente abolidos,
ou apenas insensibilizados, a coisa não teria tanta importância.
Mas não desaparecem; não ficam suspensos; não ficam extintos a não ser com referência à tarefa em questão. Eles seguem seu próprio curso caótico e indisciplinado. O que é
inato, espontâneo e vital nas reações mentais, não é utilizado
nem submetido à prova; e os hábitos formados são tais, que
essas qualidades se tornam, cada vez menos, utilizáveis para
fins sociais e confessos.
4 — Responsabilidade. Responsabilidade, como elemento
da atitude intelectual, significa o fato de pesarem-se com ante-
A natureza do método
197
cedência as prováveis consequências de algum ato projetado e
deliberadamente aceitá-las: aceitá-las, no sentido de contar com
elas na ação, não se limitando a aceitação a um mero assentimento verbal. As ideias, consoante vimos, são intrinsecamente
pontos de vista e métodos para conseguir-se a solução de
uma situação de perplexidade: previsões utilizáveis para influir nas reações. É fácil de compreender-se que uma pessoa
admita a verdade de uma exposição ou creia em uma verdade
sugerida quando não considerou no que elas subentendem; e
que, quando apenas procedeu a um exame rápido e superficial
dos fatos ulteriores, se incline à aceitação das coisas como
certas. Observação e conhecimento, crença e assentimento,
tornam-se então nomes para uma negligente aquiescência em relação àquilo que é exteriormente apresentado.
Seria bem melhor que existissem menos fatos e verdades a
serem ensinados — isto é, menos coisas já admitidas como
verdadeiras — se um número menor de situações pudesse ser
intelectualmente aproveitado de modo que uma convicção resultante significasse algo de real — significasse a identificação
do educando com a . espécie de procedimento exigido pelos
fatos e pela previsão dos resultados. Os maus resultados mais
permanentes da inconveniente complexidade das matérias escolares e da congestão de estudos e lições não são a esfalfa
nervosa e o conhecimento superficial que resultam (embora
sejam coisas graves), e sim o fato de não se chegar a tornar
claro o que quer dizer e o que envolve o fato de conhecer-se
realmente uma coisa e acreditar-se nela. "Responsabilidade
intelectual" significa seguir, a este respeito, rigorosos modelos.
Estes modelos só podem ser criados por meio da prática de
seguir e agir de acordo com a significação daquilo que já
foi adquirido.
Profundeza intelectual é, por isso, outro nome para a atitude que estamos a considerar. Há uma espécie de profundeza
quase puramente material: é a espécie conseguida com exercícios mecânicos e exaustivos (drill) de todas as particularidades de um assunto. Profundeza intelectual é ver completamente alguma coisa. Depende de uma unidade de propósito à
qual os detalhes ficam subordinados, e não de apresentar-se
uma multidão de detalhes desconexos. Manifesta-se pela firmeza com que se desenvolve a plena significação do propósito
e não pela atenção, por mais "conscienciosa" que seja, sobre
os elementos da ação imposta e orientada externamente.
198
Democracia e educação
Resumo. — Método é a exposição do modo por que
o objeto de uma experiência se desenvolve mais eficaz e frutiíeramente. Deriva, por conseguinte, da observação do curso
de experiências em que não se faz distinção consciente entre a
atitude e modo pessoais, e o material a que é aplicada a atividade. A presunção de que o método seja uma coisa isolada
relaciona-se com a noção da separação do espírito e do eu,
do mundo das coisas. Isto torna o ensino e o estudo formais,
mecânicos, forçados. Quando os métodos são individualizados,
podem-se discriminar os aspectos do curso normal de uma experiência que produz bom resultado» devido ao fundo de conhecimentos proveniente das experiências anteriores e às similitudes
gerais dos materiais utilizados em várias ocasiões. Expressos
em relação à atitude do indivíduo, os característicos do bom
método são retilineidade, plasticidade do interesse intelectual
ou vontade de ter o espírito franqueado para aprender, integridade de propósito ou objetivo e aceitação da responsabilidade
das consequências da atividade empreendida com o emprego
da reflexão.
CAPÍTULO 14
A natureza da matéria de estudo
1. A matéria para o educador e para o educando.
— Quanto ao que diz respeito, em princípio, à natureza da
matéria de estudo, nada temos a acrescentar ao que já ficou
dito. A matéria de estudo são os fatos observados, recordados,
lidos, discutidos, e as ideias sugeridas no desenvolver-se de
uma situação que tenha um objetivo. Precisamos dar a este
conceito uma significação mais específica, relacionando-se o
mesmo com as matérias da instrução escolar, com os estudos que
constituem o currículo, o programa. Qual a significação de
nossa definição ao aplicarmo-la à leitura, à escrita, à história,
às matemáticas, à história natural, ao desenho, ao canto, à física,
à química, às línguas modernas estrangeiras e assim por diante?
Recorramos a dois dos pontos que já examinamos em nossa
exposição. O papel do educador na empresa da educação
é proporcionar o ambiente que provoque reações ou "respostas"
e dirija o curso do educando. Em última análise, tudo o que
o educador pode fazer é modificar os estímulos ou as situações,
de modo que das reaçnes resulte o mais seguramente possível a formação de desejáveis atitudes intelectuais e sentimentais. É óbvio que os estudos ou as matérias do programa
têm muito que ver com a função de fornecer um ambiente.
O outro ponto é a necessidade de um meio social para dar
significação aos hábitos formados. Na educsção que denominamos não forma! ou assistemátíca, a matéria do estudo encontra-se diretamente na sua matriz, que é o próprio intercâmbio social. É aquilo que fazem e dizem as pessoas em eu j H
atividade o indivíduo se acha associado. Kstt fato dá uma
chave para a compreensão da matéria da instrução formal ou
sistemática.
Existe um vínculo congregador, um elo de ligação nas
lendas, tradições, canções e liturgias que acompanham os atos
200
Democracia e educação
A natureza da matéria de estudo
e ritos de um grupo social primitivo. Elas representam o cabedal de significações,, sentidos, ou interpretações que emanaram da experiência passada do grupo, que este ama e
quer tanto, que a identifica com a concepção de sua própria
vida coletiva. Como não fazem parte dos conhecimentos e
habilidades manifestados nas ocupações diárias de comer, caçar,
fazer a guerra ou a paz, fabricar agasalhos, vasilhas de barro,
cestos, etc., torna-se necessário gravá-los díreta e conscientemente sobre os mais novos do grupo — e, com frequência,
como nas cerimónias de iniciação, são gravados em ambiente
de grande fervor e funda emoção. Dão-se os grupos primitivos a muito mais trabalho para conscientemente perpetuar os
mitos, lendas e fórmulas verbais sagradas do grupo, do que
para transmitir seus costumes imediatamente úteis, precisamente
porque os primeiros não poderiam ser adquiridos, como os costumes úteis, na atividade ordinária da vida social.
Quando o grupo social se torna mais complexo, enriquecido de maior número de habilidades ou aprendizados adquiridos que dependem, quer de fato, quer porque assim o creiam,
de ideias e padrões provenientes da experiência passada, o conteúdo da vida social vai-se formulando mais definidamente para
intuitos de ensino. Segundo já o fizemos ver, é provável que
o principal motivo para esse hábito de examinar conscientemente a vida do grupo e extrair as significações consideradas
mais importantes, sistematizando-as em um arranjo coerente,
seja exatamente a necessidade de instruir os mais jovens,
para assim perpetuar-se a vida do referido grupo. Uma vez
iniciado esse trabalho de seleção, formulação e organização,
nenhum limite existe para o mesmo. A invenção da escrita
e da imprensa dá-lhes, por sua vez, imenso impulso. E tão
longe vai esse desenvolvimento, que se dissimulam e se encobrem finalmente os elos que prendem as matérias do estudo,
nas escolas, aos hábitos e ideais do grupo social. Esses elos,
com efeito, tornam-se tão frouxos que muitas vezes parecem
faltar, como se a matéria existisse por si mesma e se constituísse de conhecimentos válidos por si mesmos, e o estudo
fosse o mero ato de aprendê-los pelo seu próprio mérito, independentemente de quaisquer conteúdos ou valores sociais. Sendo muito importante, por motivos práticos, contrariar esta tendência, o principal fim de nossa exposição teórica é patentear
a conexão que com tanta facilidade perdemos de vista e mostrar com alguma minudência o conteúdo e a função social dos
principais elementos componentes do curso de escudo ou.
currículo.
Este assunto precisa ser encarado do ponto de vista do
professor e do aluno. Para o primeiro, a significação <3o seu
conhecimento da matéria do estudo, que ultrapassa de muito
o conhecimento atua! dos alunos, é fornecer-lhe craveiras definidas, padrões certos dos conhecimentos devidamente desenvolvidos, e revelar-lhe as possibilidades das atividades ainda
em estado bruto, dos seus alunos, l —-As matérias dos estudos traduzem sob forma concreta e detalhada as significações
da presente vida social cuja transmissão seja desejável. Elas
tornam manifestos ao professor os elementos essenciais da
cultura a ser perpetuada, em uma forma coordenada que o
preserva de empregar seus esforços ao acaso, o que provavelmente sucederia se as significações não tivessem sido estandardizadas. 2 — O conhecimento das ideias que foram concebidas
no passado como resultado de alguma atividade coloca, por
outro lado, o educador em estado de compreender a significação
das reaçõcs aparentemente impulsivas e sem objetivo dos jovens
e de fornecer os estímulos necessários para orientá-las, de modo
a resultarem em alguma coisa de útil. Quanto mais o professor conhecer música, mais poderá perceber as possibilidades
das indisciplinadas tentativas musicais de uma criança. A
matéria de estudo, quando organizada, representa o proveitoso
enceleiramento do fruto de experiências como as delas, crianças
— experiências implicando o mesmo mundo, e energias e necessidades semelhantes às suas. Não significa a perfeição ou a
sabedoria infalível, mas é o melhor do que se dispõe para novas
experiências ulteriores, que poderão, ao menos por alguns
aspectos, vir a ultrapassar as realizações encarnadas nos conhecimentos e nas obras de arte existentes.
Por outras palavras — do ponto de vista do professor,
os vários estudos, as diversas disciplinas ou matérias representam recursos eficazes, capital utilizável. Não é, todavia,
só aparente o distanciamento, desses estudos, da experiência
dos jovens: é real. A matéria do estudante não é, por essa
razão, nem o pode ser, idêntica à matéria formulada, cristalizada e sistematizada do adulto, isto é, do modo que se
encontra em livros, em obras de arte, etc. Esta representa as
possibilidades daquela, mas não seu estado atual. Ela entra
diretameníe na atividade do especialista e do educador, mas não
20Í
202
Democracia e educação
A natureza da 'matéria de estudo
na do principiante, o discípulo. A circunstância de não se
tomar em conta a diferença da matéria sob os pontos de vista
do professor e do estudante é causadora da maior parte dos
erros no emprego de compêndios e outros modos de expressão
dos conhecimentos preexistentes.
É necessário conhecerem-se concretamente a constituição e
funções do organismo humano, exatamente por causa da atitude
do professor, em relação à matéria, ser tão diversa da do
aluno. O professor apresenta no estado atual, em ato, o que
o aluno é unicamente in posse, potencialmente. Isto é, o professor já sabe as coisas que o estudante só agora está a aprender. Por isso, os problemas dos dois são radicalmente diversos.
Quando empenhado no ato direto de ensinar, o professor deve
estar familiarizadíssimo com a matéria, mas a sua atenção
deve concentrar-se na. atitude mental e nas reações do discípulo. Sua tarefa é compreender este último em sua relação
com a matéria, ao passo que a atenção do aluno não estará
naturalmente em si próprio, mas no tópico a estudar. Ou,
para dizer a mesma coisa de modo um tanto diferente: o professor não se preocupa propriamente com a matéria e, sim,
com a interação da mesma com as necessidades e aptidões
atuais do aluno. Por isso, não basta simplesmente preparo
e erudição. Existem mesmo certos aspectos da cultura e preparo superior na matéria — considerados em si mesmos -—
que servem de estorvo ao ensino eficaz, a menos que a atitude
habitual do professor seja a de interesse pela interação da
matéria com a experiência pessoal do aluno. Km primeiro
lugar, os conhecimentos do professor estendem-se indefinidamente para além dos limites das coisas familiares ao aluno.
Eles em si contêm princípios que ultrapassam o entendimento
e o interesse do discípulo imaturo. Em si e por si mesmos
podem não representar mais o mundo vivo da experiência
do discípulo do que os conhecimentos de um astrónomo sobre
Marte representam para uma criancinha o, conhecimento do
quarto em que se encontra. Em segundo lugar, o método de
organização da matéria na cultura acabada e superior, difere
do método daquele que a inicia. Não é verdade que a experiência das crianças seja incoordenada, constando apenas de
fragmentos isolados. Acha-se organizada de acordo com centros de interesse diretos e práticos. Por exemplo, a casa da
criança é o centro coordenador de seus conhecimentos geográficos. Seus passeios na localidade onde mora, as viagens fora
desta, as histórias contadas por seus amigos, fornecem os elos
que prendem uns aos outros os seus diversos conhecimentos.
Mas a geografia do geógrafo, daquele em quem já se desenvolveram os elementos dessas experiências menores, é organizada sobre a base das relações dos fatos uns com os outros —
e não das relações com a sua casa, os seus movimentos corporais e os seus amigos. Para aquele que já aprendeu, a matéria é abundante, cuidadosamente definida e logicamente concatenada. Para o que está a aprender é fluida, escassa e
associada por meio de suas ocupações pessoais (1). O problema do ensino é conservar a experiência do educando a evolver em direção àquilo que o experiente, o culto, o especialista
já sabe. Daí a necessidade de que o professor conheça tanto
a matéria como as necessidades e capacidades características
do estudante.
203
2. O desenvolvimento da matéria para o educando.
— É possível, sem se forçarem os fatos, estabelecer três
estágios perfeitamente típicos do desenvolvimento da matéria a
aprender, na experiência do educando. Em seu primeiro estado, o saber é uma habilidade inteligente — a de poder fazer
as coisas. Esta espécie de saber revela-se pelo manuseio e
familiaridade da criança com as coisas. Em seguida, este saber gradualmente se avoluma e aprofunda por meio dos conhecimentos ou informações comunicados. Afinal, amplia-se e
transforma-se em matéria coordenada lógica ou racionalmente
— de uma pessoa relativamente já competente e especializada
na referida matéria.
I — O saber que primeiro se adquire e que fica mais
profundamente gravado é o de como fazer as coisas •— como
andar, falar, ler, escrever, patinar, andar de bicicleta, fazer
funcionar um maquinismo, calcular, guiar um cavalo, vender
objetos, tratar com as pessoas e assim por diante, indefinidamente. A tendência popular de considerarem-se os atos instintivos adaptados a um fim, como uma espécie de saber miraculoso, é, embora injustificável, prova da forte propensão de identi1) Como os homens instruídos devem ainda continuar a instruir-se,
comprecnde-se que estes contrastes são relativos e, não, absolutos.
Mas, pelo menos nos primeiros estágios do aprendizado, eles são
praticamente importantíssimos.
Democracia e educação
A natureza da matéria de estudo
ficar-se o domínio inteligente dos meios de agir com o saber.
Quando a educação, sob o influxo de uma concepção escolástica do saber, que tudo ignora exceto fatos e verdades cientificamente formulados, não reconhece que a matéria educativa
primária ou inicial está sempre em uma manifestação de atividade que implique o uso do corpo e a manipulação de material,
a matéria educativa é isolada das necessidades e objetivos do
educando e converte-se, destarte, exclusivamente, em coisa a ser
decorada e reproduzida quando o exijam. Ao invés disto, o
conhecimento do curso natural do desenvolvimento sempre se
vale de situações que implicam aprender por meio de uma ativídade, aprender fazendo. As artes e ocupações constituem o
estágio inicial do currículo, porquanto correspondem à fase em
que a criança deseja saber como proceder para a realização de
seus fins.
Os modos populares de indicar saber sempre exprimiram a
associação deste com habilidade, capacidade executiva, o que
foi esquecido pelas filosofias académicas. Penetração e poder
(ken and can) são expressões aliadas. Atenção significa o
cuidado com alguma coisa, no sentido conjunto de afeição e de
procurar o "benefício da coisa. Mind, além de espírito, significa seguir instruções no agir, como: uma criança atende
(minas) a sua mãe — e ter cuidado com alguma coisa, como:
uma ama» cuida (minas) do pequenito. Ser atencioso, respeitoso (thoughtfull, considerate), significa dar atenção aos desejos das outras pessoas. Apreensão tanto quer dizer — medo
de consequências indesejáveis, como o ato intelectual de entender. Possuir bom senso ou juízo é conhecer o procedimento
reclamado por uma situação; discernimento não é fazer distinções pelo gosto de fazê-las, exercício reprovável como o das
distinções e análises da escolástica e sim a íntima compreensão
de uma coisa com referência à ação. Sabedoria jamais perdeu
sua conexão com a conveniente orientação da vida. Somente
em educação, e nunca na vida do agricultor, do marinheiro, do
negociante, do médico ou pesquisador de laboratório, saber
significa primariamente um lastro de informações separadas
da ação.
Aplicarmos a atividade a coisas de modo inteligente resulta em conhecermo-las ou em nos familiarizarmos com elas.
As coisas que melhor conhecemos são aquelas que mais usamos,
como cadeiras, mesas, pena, papel, roupas, alimento, facas e
garfos, para mencionarmos algumas de uso comum — ou
outras coisas mais específicas de acordo com as ocupações de
cada um. O conhecimento das coisas no sentido íntimo e
emocional sugerido pela palavra familiaridade é o resultado de
as empregarmos com um objetivo. Atuamos com ou sobre
uma coisa com tanta freqiiencia, que podemos prever como ela
agirá e reagirá •—• tal é a significação de estar familiarizado.
Estamos prontos a pôr-nos em contacto com coisas familiares;
elas não nos apanham despercebidos nem nos pregam peças
inesperadas. Esta atitude provoca um senso de harmonia ou
de amizade, de desembaraço e clarividência — ao passo que
as coisas com que não estamos acostumados a lidar são estranhas, alheias, frias, remotas, "abstraías".
204
205
II — Mas é provável que falar analiticamente sobre esta
primeira fase do conhecimento obscureça a sua compreensão.
Nela se incluem virtualmente todo o saber, todos os nossos
conhecimentos que não resultam de deliberado estudo especial.
Os modos de agir com determinados intuitos subentendem
contacto, com coisas, e também com pessoas. É necessário que
se adaptem os instintos de comunicação e os hábitos de sociabilidade para mantermos relações eficazes com as outras pessoas; com isto um grande acervo de conhecimentos sociais
resulta. Como uma consequência desta intercomunicação aprendemos muito com os outros. Eles nos falam de suas próprias
experiências e das experiências que, por sua vez, outros lhes
comunicatam. Na proporção em que a pessoa se interessa
mais ou menos por estas comunicações, a matéria destas torna-se parte de sua própria experiência. As associações ativas
com outras pessoas constituem um elemento tão íntimo e vital
de nossos próprios interesses, que impossível é traçar nítida
delimitação, que nos habilitasse a dizer: "Aqui finda minha
experiência* ali começa a tua". Na medida em que nos associamos em empreendimentos comuns, as coisas que os outros
nos comunicam como efeito de sua participação particular na
empresa fundem-se imediatamente com á experiência resultante de nossa própria participação. O ouvido é órgão para
aquisição de experiência, do mesmo modo que a vista ou a mão.
A vista serve-nos para lermos relatos daquilo que se passa
além de seu horizonte. Tanto influem no resultado de nossas
ações as coisas afastadas no espaço e no tempo, como as que
podemos cheirar e manejar. Se elas nos interessam realmente,
toda a exposição que nos auxilie, ao termos de tratar com as
206
Democracia e educação
coisas próximas a que elas se ligam, torna-se elemento de nossa
experiência pessoal.
O nome usualmente dado a esta espécie de matéria é
informação. O papel da comunicação em nossos atos pessoais
fornece-nos um critério para estimar o valor pedagógico do
material informativo. Entra ele naturalmente em alguma questão em que o educando está interessado? Ajusta-se aos conhecimentos mais diretos do educando, de modo a aumentar-lhes a
eficácia e aprofundar-lhes a significação? Se satisfizer estes
dois requisitos, será educativo. O cabedal de coisas ouvidas
ou lidas tem importância — e, quanto maior for, melhor —
mas somente se o educando dele necessitar e o puder aplicar
em alguma situação dele, educando,
Mas não é tão fácil satisfazer estes requisitos na prática
quanto o foi enunciá-los teoricamente. A extensão, nos tempos atuais, da área de intercomunicações; a invenção de aparelhos e instrumentos para se conhecerem as partes longínquas
do céu e os acontecimentos antigos da história; o barateamento dos meios, corno a imprensa, para registrar è divulgar
informações — verdadeiras ou pretensas informações — criaram um imenso volume de matéria comunicada. É muito mais
fácil mergulhar nelas o espírito do educando do que fazer que
influam nas experiências diretas dele. Muito frequentemente,
essas informações constituem um outro mundo, estranho e alheio
ao mundo de nosso conhecimento pessoal. O único problema
do estudante é aprender para fins escolares, para dar lições e
obter promoções, -as partes constitutivas desse mundo estranho.
Provavelmente a significação mais corrente da palavra saber,
para a maioria das pessoas, hoje, é exatamente a de cabedal
de fatos e verdades asseveradas pelos outros; é o material encontrado nas filas e filas de atlas, enciclopédias, histórias, biografias, livros de viagens e tratados científicos, das prateleiras
das bibliotecas.
O imponente vulto desse material influiu inconscientemente nas noções dos homens sobre a natureza do próprio
saber. Consideram-se saber as exposições ou enunciações em
que se cristalizaram os conhecimentos, isto é, os resultados do
interesse aplicado ativamente a problemas. Consideram-se
como conhecimentos ou saber os registros de conhecimentos,
independentemente de sua função como resultados de investigações e recursos para ulteriores investigações. O espírito
do homem é aprisionado pelos despojos de suas vitórias ante-
A natureza da matéria de estudo
207
riores; e, para, determinar a significação de saber, de fato e
de verdade, ele costuma referir-se a esses despojos e, não às
armas da conquista e ao ato de abalançar-se a combater contra
o desconhecido.
Se esta identificação do saber, com as proposições que
enunciam informações, se impôs até a lógicos e filósofos, não é
de surpreender que a mesma ideia tenha quase dominado a
educação. Os "cursos de estudos" compõem-se em grande
parte de informações distribuídas pelos vários ramos ou disciplinas, e cada qual destes é subdividido em lições que apresentam, seriadamente, partes destacadas do acervo total. No século dezessete esse sortimento ainda era assaz pequeno para
que os homens idealizassem reuni-lo em urna enciclopédia.
Agora acha-se tão volumoso, que é evidente ser impossível um
só homem assènhorear-se de todo ele. Mas o ideal educativo
não se deixou afetar por isso. A aquisição de um pouco de
informações em cada ramo de estudo, ou pelo menos em dado
grupo escolhido, continua a ser o princípio básico da organização
dos programas, desde as escolas elementares até as universidades,
sendo as partes mais fáceis destinadas aos primeiros anos, e
as mais difíceis aos últimos.
As queixas dos educadores de que o saber não contribui para formar o caráter nem influi no procedimento, os protestos contra o saber de memória, contra o atocho de conhecimentos informativos, contra as preocupações insistentes com
os "fatos" ou coisas já feitas ou ocorridas, contra o gosto pelas
distinções sutis e regras e princípios mal compreendidos, tudo
isso provém desse existente estado de coisas. Saber de segunda mão, saber que não é nosso, mas dos outros, tende a
tornar-se meramente verbal. Nada se objeta a que as informações sejam expressas Acorri palavras; a comunicação opera-se necessariamente por meio de palavras. Mas na proporção
em que o comunicado não possa ser incorporado à experiência
existente de quem aprende, converte-se em simples palavras,
ísto é, em puros estímulos sensoriais, desprovidos de significação; nesse caso ele atua para provocar reações maquinais, a
• habilidade de utilizar os órgãos vocais para repetir as coisas
ensinadas, ou de usar a mão para escrever ou para fazer
"resumos".
Dispor-se de informações é achar-se apetrechado para alguma coisa; é dispor-se da matéria necessária para aplicar-se
Democracia e educação
A natureza da matéria de estudo
eficazmente a, atividade a um problema e para dar sentido e
orientação à pesquisa da solução e à própria solução. Os conhecimentos informativos são materiais em que nos podemos basear como estabelecidos, certos, seguros, em uma situação duvidosa. São uma espécie de ponte para o espírito, em sua passagem da dúvida para a descoberta. Seu papel é o de intermediários intelectuais. Eles condensam e registram em forma
utilizável os resultados apurados da experiência anterior da
humanidade, como meio de interpretar e iluminar o sentido de
novas experiências. Quando se diz a uma pessoa que Bruto
assassinou César, que a duração do ano é de trezentos e sessenta
e cinco dias e seis horas, ou que a razão do diâmetro de um
círculo em relação à circunferência deste é igual a 3,1415...,
essa pessoa recebe, em verdade, uma coisa que é conhecimento
e saber para os outros, mas que para ela é um estímulo para
conhecer, para saber. Sua aquisição de saber depende de sua
reação àquilo que lhe foi comunicado.
Já temos insistido bastante em dizer que é experimentalmente que se prova o valor dos conhecimentos ou dos dados
e das ideias; que em si mesmos eles são hipotéticos ou provisórios. Nossa propensão a acreditar e afirmar prematuramente,
nossa aversão à suspensão de julgamento, são sinais de que
tendemos naturalmente a dispensar o processo da verificação.
Contentamo-nos com aplicações superficiais e imediatas sem
largueza de vistas. Se seu resultado é mais ou menos satisfatório, logo nos deixamos supor que nossas presunções se
confirmaram. Mesmo no caso de mau êxito mclinamo-nos a
pôr a culpa, não na inadequação e inexatidão de nossos dados
e reflexões, mas em nossa má sorte e na hostilidade das circunstâncias. Acusamos, pelas más consequências, não ao erro
de nossos planos e a nossa incompleta investigação das condições
(obtendo, por esse meio, material para uma revisão dos planos
e estímulo para ampliar as últimas investigações) mas aos fados
adversos. Chegamos, mesmo, a ufanar-nos pela firmeza com
que nos apegamos a nossas convicções a despeito do mau resultado que elas produziram.
208
3. Ciência, ou saber racionalizado. —- Ciência é
o nome do saber em sua mais característica forma. Ela representa, de certo modo, o resultado final do aprendizado
— o termo deste. O que é conhecido, em tal caso, é o que
é certo, seguro, assente, aquilo que dispomos; é antes aquilo
com que pensamos, do que aquilo sobre que pensamos. Em
sua acepção nobre, conhecimento distingue-se da opinião, da
conjetura, da especulação e da mera tradição. Em se tratando
de conhecimentos, tomam-se,as coisas como certas; são deste
modo e não de outro modo duvidoso.. Mas a experiência
faz-nos saber que há diferença entre a certeza intelectual da
matéria do estudo e a nossa certeza. Fomos feitos, por assim
dizer, para crer; a credulidade é natural. O espírito indisciplinado é refratário ao estado de suspensão e de hesitação intelectual; ele propende a afirmar, gosta das coisas não confusas, bem definidas e trata-as como tais sem a devida garantia.
Prontamente fazemos das coisas habitualmente admitidas, das
apreciações comuns e do que se harmoniza com os nossos
desejos, outras tantas pautas para a aferição da verdade. A
ignorância dá origem a erros arraigados e correntes — que
são, para a ciência, inimigos píofes do que a própria ignorância.
Um Socrates é levado por isso a declarar que reconhecer a
própria ignorância é o começo do eficaz amor à sabedoria, e
um Descartes a dizer que a ciência nasceu da dúvida.
209
A ciência representa a salvaguarda da espécie humana
•contra este pendor natural e o mal decorrente do mesmo. Ela
consiste nos instrumentos e métodos especiais que a humanidade lentamente criou com o fim de orientar a reflexão
sob condições tais que são verificados seus processos e resultados. É artificial (é uma arte criada) e não espontânea;
aprendida, e não inata. Devem-se a este fato o papel único e
inapreciável da ciência na educação e também os perigos que
ameaçam seu uso adequado. Sem a iniciação no espírito
científico ninguém se apossa dos melhores instrumentos que
a humanidade inventou para orientar eficazmente o raciocínio.
Sem essa iniciação uma pessoa não só se limita a proceder a
investigações e a estudos sem utilizar os melhores instrumentos existentes para esse fim, como também deixa de compreender a plena significação do saber. Pois ela não se familiariza
com os característicos que diferenciam a opinião da convicção
fundamentada. Por outro lado, porém, a circunstância de que
a ciência representa o aperfeiçoamento ;do saber em condições
de técnica altamente especializadas, torna seus resultados, considerados em si mesmos, afastados da experiência ordinária —•
afastamento comumente designado com a palavra "abstraio".
Quando este isolamento aparece na instrução, as informações
científicas ficam ainda mais expostas aos perigos existentes de
210
Democracia e educação
apresentação como coisa formal, como, "ideais feitas", do que
quaisquer outras espécies de informações.
A ciência foi definida, aqui, como método de investigar e
verificar. À primeira vista esta concepção parece contrária
à concepção corrente de que ciência sejam conhecimentos organizados e sistematizados. Essa colisão, todavia, é apenas aparente, e desaparece ao completar-se a definição ordinária. O
que distingue a ciência não é a simples organização e sim a
espécie de organização, efetuada com métodos adequados, das
descobertas já submetidas à prova. Os conhecimentos de um
agricultor sistematizam-se na proporção em que ele seja competente. Sua organização é feita sobre a base das relações
entre meios e fim — são organizados praticamente. Sua
coordenação como saber (isto é, no sentido de conhecimentos
devidamente provados e confirmados) é acessória à sua organização, tendo em vista garantir as colheitas, beneficiar o
gado, etc. A organização científica é diversa porque tem
outros fins. A organização científica da matéria é a organização que tem particularmente em vista orientar com bom
êxito a empresa da descoberta, à empresa de investigar e saber
como um empreendimento especial.
Uma referência à espécie de segurança que a ciência proporciona lançará luz sobre este ponto. É uma segurança racional, uma garantia lógica. O ideal da coordenação científica
é, por conseguinte, que todas as concepções e afirmações sejam de tal natureza, que umas continuem outras e conduzam a
outras. Os conceitos e as proposições subentendem-se e reforçam-se mutuamente. Esta dupla relação de "conduzir para
alguma coisa e confirmar alguma coisa" é o que significamos
com os termos lógico e racional. Nossa ideia comum sobre
a água é mais útil para seus usos ordinários, para beber-se,
lavar, irrigar, etc,, do que sua noção química. Sua noção
como H2O é superior sob o ponto de vista de seu uso e função
na pesquisa científica. Ela enuncia a natureza da água de
modo a relacioná-la ao conhecimento de outras coisas, indicando
a quem lhe compreende a significação como se chegou a esse
conhecimento e seu alcance sobre outras partes do conhecimento
da estrutura dos corpos. Para falar-se rigorosamente, ela não
indica as relações objetivas da água mais do que as indicaria a
exposição de que a água é transparente, fluida, sem gosto nem
cheiro, servindo para matar a sede, etc. É tão verdade que a
A natureza da matéria de estudo
211
água tem estas relações, como que é constituída por dois átomos
de hidrogénio combinados com um de oxigénio. Mas para o
fim particular de orientar as descobertas tendo em vista verificação de fatos, estas últimas relações têm importância essencial. Por conseguinte, quanto mais se encarece a organização
como característico da ciência, mais se reconhece a importância
primacial do método para a definição da ciência. Pois o método
define a espécie de organização em virtude da qual a ciência
é ciência.
4. A matéria do estudo, em sua natureza social.
—- Em nossos próximos capítulos examinaremos várias atividades e estudos escolares, como estágios sucessivos da evolução dos conhecimentos que acabamos de expor. Resta-nos
dizer poucas palavras sobre a matéria de estudo em seu aspecto
social, uma vez que nossas observações precedentes focalizaram
principalmente seu aspecto intelectual. Até no mais real saber
há diferenças de amplitude e profundidade como as pode haver
nos dados e ideias relevantes para problemas reais e motivados por objetivos. Isso porque há diferenças de alcance
social dos objetivos e de importância social dos problemas.
Com o grande lastro de possíveis materiais a serem selecionados,
é importante que a educação (especialmente em todas as suas
fases que não sejam as mais especializadas) adote para essa
seleção o -critério do valor social.
Todas as informações e matérias científicas sistematizadas
foram obtidas em condições de vida social e transmitidas por
meios sociais. Mas isto não prova que tudo seja de igual
valor para o fim de formar-se o espírito e prepararem-se as
pessoas para membros da sociedade atual. O plano de um
currículo deve tomar em conta a adaptação dos estudos às
necessidades da vida atual em sociedade; a escolha deve ser feita
com o fito de melhorar a vida que levamos em comum, de modo
que o futuro seja melhor que o passado. Além disso, deve-se
planejar o currículo colocando-se em primeiro lugar as coisas
essenciais, e, em seguida, as que constituem requintes. Coisas
essenciais são as socialmente mais fundamentais, isto é, as
relacionadas com a atividade compartida pelos grupos mais
extensos. E secundárias são as que representam as necessidades
de grupos especializados e trabalhos técnicos. Existe verdade
no dizer-se que a educação deve primeiro ser humana e só
depois profissional. Mas os que assim se exprimem têm fre-
Democracia e educação
A natureza da matéria de estudo
qúenternente rio espírito, ao proferir a palavra humano, só
uma classe altamente especializada: a dos homens instruídos que
conservam as tradições clássicas do passado. Eles se esquecem
de que a matéria se humaniza na proporção em que se relaciona
com os interesses comuns dos homens, em sua qualidade de
homens.
A conservação das sociedades democráticas depende, particularmente, do costume de organizar-se um curso de estudos
de critério largamente humano. A democracia não pode florescer quando os principais, critérios para a escolha das matérias educativas são os fins utilitários estreitamente concebidos
para as massas, e, quando se escolhem para a instrução mais
elevada dos outros poucos, as tradições de uma classe instruída
especializada. A noção de que os elementos essenciais' da
educação elementar são os três R (ler, escrever e contar) (1),
esteia-se na ignorância das coisas essenciais requeridas para
a realização dos ideais democráticos. Presume-se, assim, inconscientemente, serem irrealizáveis estes ideais; presume-se
que no futuro, assim como no passado, terem "um meio de
vida" deve significar, para a maioria dos homens e mulheres,
fazer coisas não importantes, nem livremente escolhidas, ou
nobilitantes para aqueles que as fazem; coisas que obedecem a
fins desconhecidos para aqueles que as fazem e que são executadas sob a direção de outras pessoas, tendo-se em vista uma
recompensa pecuniária. Para a preparação de grande número
de indivíduos para essa espécie de vida, e só com este intuito, é
que é essencial a eficiência maquinal no ler, escrever e contar,
juntamente com a obtenção de certa destreza muscular. Tais
condições também eivam de iliberalidade a educação denominada liberal. Elas implicam uma cultura um tanto parasitária,
adquirida à custa de ficar-se privado da clarividência e disciplina que derivam do interesse pelos mais importantes problemas comuns da humanidade. Um programa de estudos
que tenha em vista as responsabilidades sociais da educação,
deve apresentar situações cujos problemas sejam relevantes
para a vida em sociedade e em que se utilizem as observações
e conhecimentos para desenvolver a compreensividade e o in:
teresse sociais.
Resumo. — A matéria da educação cqnsiste pnnv,cialmente nas significações que proporcionam sentido e conteúdo à presente vida social. A continuidade da vida social
decorre de que a passada experiência coletiva contribuiu com
muitas dessas significações para a atividade atual. Estes fatores crescem em número e em importância à medida que a
vida social se torna mais complexa. Por isso, tornam-se necessárias seleção, formulação e organização especiais para o
fim de serem convenientemente transmitidas às novas gerações. Mas este processo tende a converter a matéria do ensino em alguma coisa de valor por si mesma, independentemente de sua função de incentivar a compreensão das significações encerradas na presente experiência dos imaturos. Mui
especialmente acha-se o educador exposto à tentação de considerar que sua tarefa é desenvolver a capacidade de apropriação ou aquisição da matéria e reproduzi-la em exposições
definidas, independentemente da organização da mesma nas
atividades dos educandos, em sua qualidade de membros sociais
a desenvolverem-se. Mantém-se o princípio em sua significação
eficiente quando o educando começa com ocupações ativas de
origem e utilização social e adquire uma compreensão científica
dos materiais e leis implicados rias mesmas, mediante a assimilação, em sua experiência mais direta, das ideias e fatos comunicados por outras pessoas de experiência maior que a sua.
1) Três R, em inglês, se originam de readmg, writing and
rcckoning. (N. do T.).
213
0 jogo e o trabalho
CAPÍTULO 15
O brinquedo ou o jogo e o trabalho no
currículo
l. O papel das ocupações atívas na educação. -—
Parte como consequência dos esforços dos reformadores da
educação, parte devido ao crescente interesse pela psicologia
infantil e parte pela experiência direta nas escolas, os programas ou cursos de estudo sofreram consideráveis modificações na última geração. A conveniência de tomar-se como
ponto de partida a experiência e aptidões dos educandos e de
se aproveitarem as mesmas para esforço da ação educativa,
levou a adotarem-se espécies de atividade, nos jogos e nos
trabalhos, semelhantes àquelas a que se entregam fora da
escola as crianças e os adolescentes. Às "faculdades" gerais
e já formadas da teoria antiga, a psicologia moderna deu como
substituto um grupo complexo de impulsos e tendências instintivas. A experiência demonstrou que quando se tem oportunidade de pôr em jogo, com atos materiais, os impulsos naturais da criança, a ida à escola é para ela uma alegria, manter
a disciplina deixa de ser um fardo e o aprendizado é mais fácil.
Algumas vezes, talvez, recorre-se aos brinquedos, jogos e
ocupações construtivas somente por essas razões, tendo-se principalmente em vista repousar do tédio e fadiga do trabalho
escolar "regular". Não há, contudo, motivo para usá-los meramente como distrações agradáveis. A observação da vida
mental evidenciou o valor fundamental das tendências inatas
para explorações, para a manipulação de instrumentos e materiais para construções, para a expressão de alegria, eíc.
Quando exercícios sugeridos por estes instintos entram num
regular programa de estudos, o aluno dá-se a eles totalmente,
reduz-se a separação artificial entre a vida na escola e fora
da escola, surgem motivos para dar-se atenção a maior variedade de processos claramente educativos, e formam-se associa-
215
coes de cooperação que dão emprego social aos conhecimentos
utilizados. Em suma, os fundamentos para se dar aos jogos e
ao tratfalho ativo um lugar definido no currículo são intelectuais e sociais, não constituindo eles, apenas, expedientes
temporários ou prazeres passageiros. Sem alguma coisa desta
natureza, impossível seria assegurar a normalidade de um ensino eficaz, isto é, a aquisição de conhecimentos como uma
expansão de atividades tendo seu próprio fim, em vez de simples tarefa escolar. Mais detidamente considerados, o jogo
e o trabalho correspondem, ponto por ponto, aos característicos da fase inicial do ato de aprender, que consiste, como o
vimos no último capítulo, em aprender como fazer as coisas
e no familiarizar-se com as coisas e processos aprendidos ao
fazê-las. É sugestiva a circunstância de os gregos, até o raiar
da consciência filosófica, empregarem a mesma palavra techté,
para designar a arte e a ciência. Platão explicou sua noção
tio saber baseando-a em uma análise dos conhecimentos dos
sapateiros, carpinteiros, músicos, etc., salientando que a arte
deles (uma vez que não seguisse meramente a rotina) encerrava um fim, o domínio do material ou da coisa a. que aplicavam a atividade, o comando dos instrumentos e uma determinada ordem no trabalho — o que tudo tinha de ser aprendido, para seus misteres serem habilidades ou artes inteligentes.
Sem dúvida, a circunstância de que as crianças se entregam habitualmente a brinquedos e trabalhos fora da escol i
pareceu a muitos educadores uma razão para que se interessassem na escola com coisas polurmente diversas. O tempo
dos trabalhos escolares parecia precioso em excesso para -que
elas o empregassem a fazer coisas que certo fariam de qualquer forma. Esta razão é de peso para algumas condições
sociais. Antigamente, por exemplo, as ocupações extra-escolares proporcionavam uma definida e valiosa preparação intelectual e moral. Por outro lado, os livros e tudo o que se
relacionasse com eles eram raros e de difícil utilização; constituíam a única válvula de escape em um ambiente limitado
e rude. Quando se verificavam tais condições, muito poderia diz£r-se a favor da convergência da atividade escolar para
os livros. Todavia, na maior parte das sociedades hodiernas
a situação é mui diversa. As espécies de trabalho a que os
menores podem dedicar-se, principalmente nas cidades, são
grandemente antieducativas. Comprova este asserto o fato
de constituir dever social a proibição de os menores traba-
216
Democracia e educação
O jogo e o trabalho
lharem. Por outro lado, baratearam e divulgaram-se tão universalmente os trabalhos impressos, e tanto se multiplicaram
as oportunidades para a cultura intelectual, que a velha espécie de trabalho livresco está longe de ter a força que costumava possuir.
Mas não devemos esquecer-nos de que um resultado educativo é um subproduto dos brinquedos e dos trabalhos, na
maioria das condições extra-escolares. É coisa acidental e,
não, primacial. Por consequência, o desenvolvimento educativo resultante é mais ou menos casual. Muitas espécies de
trabalhos participam dos defeitos da atual sociedade industrial
— defeitos quase fatais a um conveniente desenvolvimento.
Os jogos tendem a reproduzir e fortalecer não só as excelências como também a rudeza do ambiente da vida dos adultos.
Torna-se, portanto, função da escola conseguir um ambiente
em que os jogos e os trabalhos se orientem para o escopo
de facilitar o desejável desenvolvimento mental e moral. Não
basta que nela se introduzam brinquedos e' jogos, trabalhos
manuais e exercícios manuais. Tudo depende do modo por
que forem empregados estes recursos.
telectuais e à formação de tendências sociáveis. Que significa este princípio?
Em primeiro lugar, ele repele certas práticas. As espécies de atividades em que os educandos se limitam a seguir
determinadas prescrições e ordens, ou em que reproduzam sem
modificação certos modelos preparados, podem dar habilidade
muscular, mas não exigem a percepção e elaboração de fins,
nem (o que, por outras palavras, vem a dar na mesma coisa)
permitem o emprego da reflexão para a seleção e a adaptação de meios. Erraram neste ponto não somente o treino
manual ou os chamados trabalhos manuais senão também muitos exercícios tradicionais do jardim de infância. Além disso,
as oportunidades de os alunos se enganarem tornam-se um requisito acessório. Não que os erros de execução sejam sempre desejáveis, mas porque o excesso de cuidado na' escolha
do material e artifícios que impedem o aparecimento dos ensejos de errar cerceia a iniciativa, reduz os atos de julgar a
um mínimo, e obriga ao uso de métodos tão afastados das situações complexas da vida, que a habilidade ganha será pouco
aproveitável. É grande verdade o tenderem as crianças a
exagerar suas possibilidades de execução e preferir projetos
que se acham além das mesmas. Mas a limitação das aptidões é coisa que tem de ser aprendida; aprende-se, assim como outras coisas, com a experiência das consequências. Grande é o perigo de que as crianças queiram realizar projetos mui
complexos, cuja consequência será simplesmente atrapalharem-se e, não só produzirem resultados inferiores (o que importa pouco) como também adotar padrões inferiores (e isto
muito importa). Mas será do professor a culpa se o educando não per-ceber no devido tempo a deficiência de suas realizacoes, e desse modo não tiver um estímulo para tentar dedicarse a exercícios que aperfeiçoem suas aptidões. Enquanto isso,
será mais importante manter-se vívida uma atitude criadora e
construtora, do que assegurar-se um perfeito resultado exterior, fazendo o aluno entregar-se a trabalhos regulados com
muito rigor e minúcia. Pode-se insistir no bem acabado e
na perfeição de detalhes das partes de algum trabalho complexo que estejam ao alcance das aptidões do educando.
Vê-se não só no material fornecido, como também no
conteúdo das ordens do professor, uma inconsciente falta de
confiança na experiência natural do educando. O professor
exagera na regulação exterior dos atos daquele. O receio do
2. Ocupações proveitosas. — A simples catalogação das espécies de atividade que já penetraram nas escolas
indica a riqueza do terreno disponível. Há trabalhos com
papel, papelão, madeira, couro, barbante, argila e areia, e
•metais, com ou sem aparelhos e instrumentos ou máquinas.
Os processos empregados são dobrar, cortar, furar, medir,
modelar, fazer moldes e modelos, aquecer e esfriar, e as aplicações próprias de instrumentos como martelos, serrotes,
limas, etc. Excursões, jardinagem, cozinhar, costurar, imprimir, encadernar livros, tecer, pintar, desenhar, cantar, dramatizar, contar histórias, ler e escrever — como trabalhos ativos
com finalidades sociais (e não como simples exercícios para
adquirir proficiência que futuramente seja usada) além de uma
inumerável variedade de brinquedos e jogos, constituem algumas espécies de ocupação.
O problema do educador é fazer que os alxinos se dediquem de tal modo a essas atividades que, ao mesmo tempo
em que adquiram habilidade manual e eficiência técnica e encontrem satisfação imediata nesses seus atos, e juntamente se
preparem para habilitação ulterior, sejam essas atividades subordinadas à educação — isto é, à obtenção de resultados in-
217
218
219
Democracia e cd-ucctção
O jogo e o trabalho
material bruto patcnteia-se nos laboratórios, nas oficinas de
trabalhos manuais, nos jardins de infância de Froebel e na
casa da infância de Montcssori. O que esses institutos fornecem são materiais que já tenham sido submetidos ao trabalho aperfêiçoador do espírito: exigência que tanto se revela no material das ocupações ativas como nos livros de estudos académicos. É certo que esse material influi nos atos
dos discípulos, evitando que cometam erros. Mas falsa é a
noção de que o discípulo que trabalha com esse material absorverá a inteligência originariamente empregada para seu fabrico. Só principiando com o material bruto e submetendo-o
a manipulações intencionais ele adquirirá a inteligência contida no material confeccionado. Na prática, a preferência exagerada pelo material já preparado conduz à predileção exagerada pelas propriedades matemáticas, por isso que à inteligência interessam as propriedades físicas do tamanho, forma
e proporções das coisas, e as relações que derivam das mesmas. Mas estas propriedades apenas ficam sendo conhecidas
quando sua percepção é o produto da atividade com desígnios
que reclamem a atenção para elas. Quanto mais humano for
o desígnio, ou quanto mais se aproximar dos fins providos
de interesse da experiência quotidiana, mais real será o conhecimento. Quando o intuito da atividade se limita a verificar a existência dessas qualidades, o conhecimento resultante é meramente técnico.
Dizer-se que as ocupações ativas devem interessar-se primacialmente pelos todos, é. enunciar de outro modo o mesmo
princípio, que vimos analisando. Todavia, os todos para fins
educativos não são questão de todos físicos ou materiais. Intelectualmente, a existência de um todo depende de algum interesse; ele é qualitativo, é a plenitude do interesse despertado por uma'situação. Exagerado desejo de dar proficiência
mecânica independente de um objetivo atual, leva a planejamento de exercícios sem um fim consciente à vista. Nos laboratórios fazem que o trabalho consista em obterem-se medidas exatas com o fim de adquirir-se o conhecimento das unidades fundamentais da física, sem o contacto com problemas
que dêem importância a essas unidades; ou em atos destinados a facilitar o emprego de aparelhos para experiências.
Adquire-se a técnica independentemente do objetivo da descoberta e da verificação, que, só ele, daria significação àquela.
Os exercícios do jardim de infância são regulados de rnodo
a proporcionar conhecimentos sobre os cubos, as esferas, etc.,
e a criar certos hábitos de manipulação do material (pois tudo deve sempre ser feito "deste modo assim assim") julgando-se que a falta de objetivos mais vitais seja compensada pelo
pretenso simbolisrrto do material empregado. Reduz-se o treino
manual a uma série de atos ordenados, atos que se destinam a
assegurar a perícia no uso de um instrumento depois de outro,
e a habilidade técnica nos vários elementos da construção —
como suas diferentes articulações. Alega-se que os alunos devem saber como usar os instrumentos antes que empreendam
fazer qualquer coisa — no pressuposto de que, enquanto a
fizessem, os alunos não poderiam aprender o dito uso.
A justa insistência de Pestalozzi sobre a utilização ativa
dos sentidos, em substituição ao método de fazer decorar palavras, concretizou-se, na prática escolar, em esquemas para
"lições de coisas" destinadas a familiarizar os discípulos com
todas as qualidades das coisas escolhidas. O erro é o mesmo ; em todos esses casos presume-se que se devem conhecer
as propriedades dos objetos antes que estes possam ser inteligentemente usados. O fato é que os sentidos são usados normalmente no curso do inteligente uso das coisas (isto é, do
uso com um objetivo) desde que as qualidades percebidas sejam fatores com que devamos contar para a realização de
nosso intento. É prova disto a atitude diversa de um menino a fabricar, por exemplo, um papagaio, a atender à textura fibrosa e outras qualidades da madeira, ao tamanho, ângulos e proporções das partes, e a de outro menino em uma
lição de coisas sobre um pedaço de madeira, na qual unicamente a madeira e suas propriedades constituem o assunto
da lição.
O fato de não se compreender que unicamente o desenvolvimento funcional de uma situação constitui um "todo"
para os efeitos da inteligência, foi a causa das falsas noções
que prevaleceram na instrução relativamente ao simples e ao
complexo. Para a pessoa que vai exercer sua atividade sobre
um material, a coisa simples é o seu objetivo — o uso que
ela deseja fazer do material, utensílio ou processo técnico, por
mais complicado que seja o processo da execução. A unidade de objetivo e o conjunto dos detalhes que ela subentende
conferem simplicidade aos elementos com, que o aluno contará
na execução. Ela fornece a cada qual uma significação uni-
220
Democracia e
ca de acordo com o serviço que vai prestar em toda a referida execução. Finda esta, as qualidades e relações constitutivas da atividade empreendida tornam-se seus elementos, possuindo cada qual uma significação definida. A falsa noção
referida coloca-se no ponto de vista do especialista ou do técnico, para quem, exclusivamente, é que existem elementos;
isola-os, a esses elementos, da atividade empreendida com uma
finalidade e apresenta-os aos principiantes corno sendo as coisas "simples".
Mas ê tempo de chegarmos a conclusões positivas sobre
este assunto. Além da circunstância de que as ocupações ativas representam coisas a fazer, e não estudos, sua significação
educativa esta na circunstância de poderem representar situações sociais. Os interesses comuns e fundamentais dos homens "convergem para o alimento, a habitação, o vestuário, os
móveis caseiros e as coisas referentes à produção, à troca e
ao consumo. Representando por igual as necessidades da vida
e o adorno com que as necessidades foram revestidas, eles falam profundamente aos instintos, e saturam-se de fatos e
princípios providos de qualidade social.
Acusar as várias' atividades da jardinagem, de tecer, das
construções em madeira, dst manipulação de metais, do cozinhar, etc. — que conduzem estes interesses humanos fundamentais para a vida escolar — de terem unicamente valor
como ganha-pão, de serem puramente "utilitários", é deixar
de compreender a sua importância. Se as multidões humanas nada encontram habitualmente em suas ocupações industriais a não ser males que devem ser sofridos em benefício da conservação da existência., a culpa não é daquelas
ocupações e sim das condições em que são levadas a efeito.
A importância' continuamente crescente dos fatores económicos na vida contemporânea torna mais necessário que a
educação lhes revele o conteúdo científico e c valor social.
Pois nas escolas não se dedicam os alunos àquelas ocupações
com o intuito de lucros pecuniários e sim por seu próprio
conteúdo. Livres de associações estranhas e da premência de
necessidade de ganhar o salário, elas fornecem modalidades
de experiência dotadas de valor intrínseco; são em verdade
qualitativamente liberais e humanas.
Não é indispensável, por exemplo, que se ensine a jardinagem com o intuito de preparar futuros jardineiros ou
O jogo e o trabalho
221
como um agradável passatempo. Ela proporciona meios de
conhecer o lugar que ocupavam a agricultura e a horticultura
na história da humanidade e qual o que ocupam na presente
organização social. Praticada em um ambiente regulado educativamente constitui meio para se fazer o estudo dos fatos
do desenvolvimento das plantas, da química do solo, do papel da luz, do ar e da umidade, dos animais daninhos e
úteis, etc. Nada existe no estudo da botânica elementar que
não possa ser trazido à baila, associado de modo frutífero aos
cuidados com o desenvolvimento das plantas. Em vez de pertencer essa matéria a um estudo particular denominado botânica, pertencerá à vida, e encontrará, além disto, suas correlações naturais com os fatos do solo, da vida animal e das
relações humanas. À proporção que os estudantes se desenvolvem, notarão problemas interessantes que poderão elucidar,
pelo amor à descoberta, independentemente de seu originário
interesse direto pela jardinagem — problemas relacionados
com a germinação e a nutrição dos vegetais, com a produção de frutas, etc., realizando-se, assim, a transição para as
investigações intelectuais, empreendidas deliberadamente.
É claro que o mesmo exemplo se aplicará às outras
ocupações escolares — trabalhos em madeira, cozinha e assim
por diante. É oportuno mencionar-se que na história da
humanidade as ciências se desenvolveram gradualmente, por
intermédio das ocupações sociais úteis. A física se desenvolveu lentamente com o uso de instrumentos e de má-quinas ;
o importante ramo da física chamado mecânica atesta com o
seu nome a sua associação originária. A alavanca, a roda,
o plano inclinado, etc., figuram entre as primeiras grandes
descobertas intelectuais da espécie humana e não são menos
intelectuais pelo fato de terem sido feitas quando se procuravam meios de realizar fins práticos. O grande progresso científico da eletricidade, na última geração, associou-se
estreitamente, como efeito e como causa, à aplicação da energia elétrica como meio de comunicação, transporte, iluminação
de cidades e de casas, e mais económico fabrico de produtos.
Além disso, estes fins são sociais; e o fato de se acharem
intimamente associados à noção de lucros particulares não é
devido a alguma coisa que lhes seja peculiar e sim por terem sido desviados para o uso dos particulares — circunstância que investe a escola da atribuição de restabelecer-lhes
a conexão, no espírito das próximas gerações, com os inte-
222
Democracia e educação
resses científicos e sociais do povo. De modo análogo, surgiu a química dos processos de tingir, alvejar, de trabalhos
em metais, etc., e nos tempos recentes teve inúmeros outros
usos novos na industria.
As matemáticas são agora ciências altamente abstraías;
a geometria, porém, significa, ao pé da letra, medição da
terra: o uso prático dos números para contas, a fim de conservar sinais das coisas, e para medir, é hoje mais importante ainda do que nos tempos em que os inventaram para
esse fim. Tais considerações (que se poderiam duplicar na
história de qualquer ciência) não servem de argumentos para
pleitear-se uma recapitulação da nistória da humanidade, nem
para se permanecer muito tempo no estágio primitivo dos métodos grosseiros. Mas indicam as possibilidades — maiores
hoje do que nunca ainda o foram — de utilizar as ocupações ativas como oportunidades para estudos científicos. As
oportunidades são igualmente numerosas quanto ao aspecto
social, quer encarando-se a vida coletiva humana em seu passado, quer no futuro. O caminho mais direto para os principiantes se iniciarem na ciência do governo e em economia
política e instrução cívica, encontra-se no conhecimento do
papel e da função das ocupações industriais na vida social.
Até para estudantes de mais idade, as ciências sociais não
seriam tão abstratas e formais se as tratassem menos como
ciências (menos como definidos corpos de conhecimentos) e
mais no seu material direto, tal como se encontra na vida
quotidiana dos agrupamentos sociais de cuja vida o estudante
participa.
A relação das ocupações com o método da ciência é pelo
menos tão íntima como com o material, o conteúdo dela. Os
séculos em que havia lentidão nos progressos da ciência foram aqueles em que os doutos sentiam desprezo pelas coisas
e processos da vida prática, especialmente pelos referentes às
ocupações manuais. Por conseguinte, esforçavam-se para deduzir de princípios gerais os conhecimentos — quase como
se os tirassem de suas próprias cabeças por meio de raciocínios lógicos. Parecia tão absurdo que os conhecimentos pudessem provir dos atos com e sobre as coisas materiais (exemplo: pingar-se ácido em uma pedra para ver o que resulta)
como se proviessem do fato de espetar a sovela e fazer passar um fio encerado num pedaço de couro. Mas o surgir
dos métodos experimentais provou que, regulando-se as con-
O jogo e o trabalho
dições, é mais apropriado esse modo de proceder para a aquisição de conhecimentos, do que o de formular isolados raciocínios lógicos. Desenvolveram-se as experimentações nos
séculos dezessele e seguintes e tornaram-se o modo autorizado
de conquistar conhecimentos quando os interesses dos homens
convergiram para a questão do domínio da natureza para fins
humanos. As ocupações ativas em que se fazem aplicações
sobre coisas materiais com o propósito de produzir mudanças
úteis, foram a mais importante introdução ao método expe_ rimental.
3. Trabalho e jogos. — Aquilo que chamamos
ocupações ativas, tanto compreende os jogos como o trabalho. Em sua significação intrínseca, jogos e indústria ou trabalho não são absolutamente coisas tão contrárias, como se
julga com frequência; qualquer vivo contraste que haja entre
essas duas coisas será devido somente a indesejáveis condições
sociais. Ambos subentendem fins conscientemente demandados, e seleção e adaptação de materiais e processos destinados a conseguir os desejados fins. A diferença entre os dois
é em grande parte a de duração de tempo, influindo na conexão direta dos meios com os fins. Nos jogos ou brinquedos o interesse é mais imediato — faio este que frequentemente assinalamos dizendo que neles a atividade é o seu próprio fim, em vez de um resultado ulterior. É exata esta
asseveração, mas será falsamente interpretada se quisermos
com isso significar que a atividade dos jogos é momentânea,
não dispondo de elementos para previsões, nem de continuidade. A caça, por exemplo, é uma das espécies mais comuns
das diversões dos adultos; e neste caso é clara a existência da
previsão e da orientação da atividade atual por meio daquilo
que se tem em vista. Se uma atividade for seu próprio fim,
no sentido de que o ato de dado momento é por si mesmo
completo, será puramente material; não terá significação. Nesse
caso, ou a pessoa faz movimentos irreflexivos, procedendo cegamente, _ talvez imitativamente, ou se apresenta em estado de
excitação que esgota sua capacidade espiritual e o sistema nervoso. Ambos esses resultados podem ser notados em algumas
espécies de jogos de jardins de infância, nos quais a ideia simbólica é tão elevada que só o adulto tem consciência dela. A
menos que as crianças concebam a esse respeito alguma ideia
224
Democracia c educação
própria, mostram-se em relação a esses símbolos como que
em transe hipnótico ou limitam-se a corresponder a uma excitação direta.
O que desejamos concluir dessas observações é que os
jogos têm um fim, no sentido de uma ideia orientadora que
dá sentido aos atos sucessivos. As pessoas que estão a jogar não se acham apenas a fazer alguma coisa (simples movimentos físicos) ; elas estão experimentando fazer ou conseguir alguma coisa, atitude esta que implica previsões de resultados que estimulam as suas reações atuais. Não obstante
o resultado previsto é mais um ato subsequente do que a produção de uma mudança especial nas coisas. Por consequência, o jogo é livre e plástico. Quando se deseja conseguir
determinado resultado exterior, tem-se que se demandar o fim
com alguma persistência, a qual deverá ser maior na medida
em que o resultado em vista íor complexo e requerer longa
série de adaptações intermediárias. Quando o ato em vista
é uma outra atividade, não se torna preciso prever coisas remotas e é possível modificá-lo fácil e frequentemente. Se a
criança está fazendo um barquinho, ela se acha a visar um só
objetivo, devendo orientar grande número de seus atos para
essa ideia única. Se, porém, estiver a "brincar de barquinho", poderá modificar, quase que à vontade, o objeto que
lhe serve de barquinho e introduzir no brinquedo os novos
elementos que a fantasia lhe sugerir. A imaginação faz o
que quer, com cadeiras, blocos de madeira, folhas, gravetos,
para que sirvam ao objetivo de continuar o brinquedo.
Desde os primeiros tempos da vida da criança não se
notam, entretanto, períodos exclusivos de brinquedos e de
trabalhos e, sim, unicamente, um maior relevo em um ou ouITO. Há resultados determinados que até as crianças mui novas desejam conseguir, esforçando-se para esse fim. Basta
para isso, à falta de outra coisa, seu ardente desejo de compartilhar das ocupações dos demais. As crianças querem
"ajudar", anseiam por praticar os atos dos adultos que produzem modificações exteriores: pôr a mesa, lavar pratos,
cuidar dos animais, etc. Elas gostam de fazer seus próprios
brinquedos e aparelhos. À proporção que vão crescendo, perde para elas o interesse a atividade que não produz resultados
tangíveis. Os brinquedos convertem-se então em peraltices
e, como tais, caso se habituem a elas, prejudicam-se-lhes o
moral. Os resultados concretos são necessários para habili-
0 jogo e o trabalho
225
tar a pessoa a ter a consciência e a medida de suas próprias
aptidões. Quando as crianças reconhecem que o "fazer de
conta" não passa de "fazer de conta", o artifício de imaginar que os objetos sejam isto ou aquilo torna-se, por si, demasiado simples para estimular uma ação intensa. Basta
observar o aspecto das crianças que estão verdadeiramente
brincando, para notar-se que sua atitude é a de absorveremse inteiramente no brinquedo; a absorção não pode continuar
quando as coisas já não proporcionam adequado estímulo.
Quando resultados razoavelmente remotos e de caráter
definido são antevistos e se empregam esforços persistentes
para consegui-los, os jogos ou brinquedos transformam-se em
trabalho. Bem como os jogos, este significa atividade com
um objetivo e não difere dos mesmos pelo fato de ser a atividade subordinada a um resultado exterior e sim porque a
ideia de um resultado a conseguir ocasiona uma atividade
mais duradoura. Requer maior continuidade de atenção e
maior emprego da inteligência para a escolha de adaptação
dos meios necessários. Desenvolver o que estamos dizendo a
este respeito, seria repetir o que ficou exposto ao tratarmos
dos objetivos, do interesse e da reflexão. É pertinente, porém, indagar-se porque é tão corrente a opinião de que o trabalho subentende a subordinação da atividade a um ulterior
resultado material.
A forma extrema desta subordinação, isto é, o trabalho
penoso, a tarefa, oferece-nos uma chave para a solução do
caso. A atividade, em tais condições de compulsão ou coação externa, não é feita por dar-se alguma significação ao
que se está fazendo. A atividade não satisfaz por si mesma;
ela é um simples meio de evitar-se algum castigo ou de ganhar-se, com a sua conclusão, alguma recompensa. Suportase o que é desagradável para evitar-se outra coisa ainda mais
desagradável ou para garantir-se uma paga prometida por
outrem. Em condições económicas não livres, sempre existirá este estado de coisas. O trabalho manual ou industrial
apresenta pouca coisa em que se empreguem os sentimentos
ou a imaginação; são séries de aturados esforços mais ou menos maquinais. Só o desejo de ver completo o seu trabalho,
é que pode manter a pessoa em sua atividade. Mas, se o fim
fosse intrínseco à ação passaria a ser o fim desta — uma
parte de seu próprio curso. Por esta causa, ele proporcionaria ao esforço um estímulo mui diverso daquele que sur-
226
Democracia e educação
gê da ideia de resultados que nada têm que ver com a atividade manifestada. Como já ficou exposto, a ausência de
compressão económica nas escolas abre ensejo para reproduzirem-se as situações industriais da vida adulta em condições
em que a atividade se manifeste tendo em vista a si própria. Se em alguns casos o lucro pecuniário resultar de wwfl
atividade, embora não seja o principal motivo desta, essa circunstância pode perfeitamente reforçar a significação da
ocupação.
Nos lugares em que existe o tipo de trabalho semelhante
ao trabalho compulsório ou à precisão de executar tarefas por
imposição externa, persiste a necessidade dos jogos, mas tende a ser perversora. O curso ordinário da ação não proporciona estímulo adequado aos sentimentos e à imaginação.
Por isso, na hora de lazer há a imperiosa necessidade de todas as espécies de meios que os estimulem; recorre-se aos jogos a dinheiro, às bebidas, etc., ou, em casos menos extremos, a divertimentos menos perniciosos, a tudo o que faz
passar o tempo produzindo imediata sensação agradável Recreação, conforme a palavra o indica, é o recobramento da
energia. Nenhuma exigência da natureza humana é mais imperiosa, ou menos poderá deixar de ser satisfeita. É absolutamente falsa a ideia de que essa necessidade possa ser suprimida; e a tradição puritana, que não a reconhece, acarretou consideráveis males. Se os trabalhos escolares não proporcionarem ensejo para recreações salutares e não exercitarem a aptidão para procurá-las e encontrá-las, os instintos
recalcados se expandirão por toda a espécie de válvulas ilícitas, às vezes abertamente, outras confinados nas fantasias
imaginativas. Nenhuma responsabilidade da educação é mais
séria do que a de fornecer adequada provisão de lazeres recreativos — não só no direto benefício da saúde, como também, e mais ainda, se possível, para produzirem duradouros
efeitos nos hábitos do espírito. A atitude artística, novamente
o dizemos, é que satisfaz esta exigência.
Resumo. — No capítulo antecedente vimos que o
material inicial do conhecimento é o contido no aprender a
fazer as coisas de modo direto. O equivalente educacional
deste princípio é o uso coerente de ocupações simples que
provoquem a manifestação das aptidões dos educandos e representem modos gerais de atividade social. Adquirimos ha-
0 jogo e o trabalho
227
bílidade e conhecimentos dos materiais, instrumentos e leis
do esforço quando nos dedicamos às atividades por si mesmas, O fato de serem de natureza social dá às aptidões e
conhecimentos adquiridos a faculdade de se tornarem aplicáveis a situações extra-escolares.
É importante não equiparar a distinção psicológica entre
o brinquedo e o trabalho, com a distinção económica entre
os mesmos. Psicologicamente, _q característico que define o
brinquedo ou jogos não é o servirem, de^divitftiraento^iiem- a
.falta de objetivo. É a circunstância de ser o objeto a ideia
de desenvolver-se mais atividade no mesmo sentido, .sem .se
definir a continuidade de ação no sentido de visar resultados futuros. Quanto mais complexa se torna a atividade,
mais significativa se torna, pela maior, atenção aos resultados especiais conseguidos. Deste modo ela se transforma gradualmente em trabalho. Ambas as coisas são igualmente livres
e providas de motivação intrínseca, separadas das falsas condições -económicas que tendem a transformar os jogos em
excitações ociosas para a classe abastada e o trabalho ern
esforço desagradável para os pobres. O trabalho é psicologicamente apenas uma aíividade que conscientemente implica
a atenção voltada para as consequências como partes de si
mesma; torna-se trabalho compulsório quando as consequências são exteriores à atividade, como fins para os quais a atividade é unicamente um meio. O trabalho associado com a
atitude do jogo é arte — se não pela designação convencional, pelo menos em qualidade.
A geografia e a história
CAPÍTULO 16
A significação
da geografia
e da história
1. Extensão da significação das atividades primárias. — Nada é mais singular do que a diferença entre
uma atividade em seu caráíer meramente físico e a riqueza
de significações que pode vir a ser extraída dela própria. Exteriormente, um astrónomo olhando por um telescópio é semelhante a uma criança que olhasse pelo mesmo instrumento.
Em ambos os casos há uma disposição de vidro e metal, um
olho e uma pequena pinta remota de luz. Todavia, em algum
momento crítico, a atividade do astrónomo poderia estar concentrada a observar o surgir de um mundo, e ter como conteúdo significativo tudo o que se conhece sobre o céu estrelado. Sob o ponto de vista material, o que o homem fez
neste globo em seu progresso da selvagens à civilização não
passa de mero arranhão em sua superfície, arranhão não perceptível a uma distância pequena, relativamente ao alcance
do nosso próprio sistema solar. Mas, em sua significação
aquilo que tem sido realizado mede a distância entre a civilização e a selvageria. Embora as atividades, materialmente
consideradas, tenham mudado alguma coisa, pequena é essa
mudança comparada com a magnitude e a extensão das significações atribuídas àquelas atividades. Não há limite para
a significação que um ato possa vir a possuir. Tudo depende do contexto de relações percebidas na qual o ato esteja localizado; o alcance da imaginação para conceber relações é ilimitado.
A vantagem adveníente para a atividade do homem, do
apreender e descobrir significações, torna sua educação diferente do fabrico de um utensílio ou do adestramento de um
animal. Estas coisas aumentam a eficiência, mas não desenvolvem a significação das coisas. A importância educativa das ocupações constituídas pelos jogos e trabalhos con-
229
siderados DO capítulo precedente, é que são os instrumentos
mais diretos para atingir-se tal extensão de significações.
Quando se desenvolvem em condições convenientes, elas são
imãs que reúnem e retêm um acervo infinitamente vasto
de considerações intelectuais. Fornecem centros vitais para
o recebimento e a assimilação de conhecimentos informativos. Quando estes são fornecidos em massa apenas como
informações a serem retidas por si próprias, tendem a estratificar-se sobre a experiência vital. Mas, entrando como
fatores em uma atividade empreendida pelo seu próprio mérito — quer como meio, quer para a ampliação do conteúdo
do objetivo •— são verdadeiramente informadoras. A compreensão direta das coisas funde-se com aquilo que foi informado ou objeto da informação de outrem. A experiência individual torna-se então capaz de apropriar-se, de reter
os resultados da experiência do grupo a que o indivíduo pertence — inclusive os" resultados dos sofrimentos e provações
em longos trajetos de tempo. E não há ponto fixo de saturação além do qual a absorção seja impossível. Quanto
mais a pessoa apreende e percebe, tanto maior será a sua
capacidade para assimilação ulterior. Com as curiosidades
novas surgem novas receptividades e com o acréscimo adquirido de conhecimentos surgem novas curiosidades.
As significações com que os atos se enriquecem dizem
respeito à natureza e ao homem. Isto é um evidente truístno que adquire, contudo, significação quando traduzido em
equivalentes educacionais. Significa, então, que a geografia
e a história fornecem material que criam o fundo de quadro
e perspectiva intelectual para aquilo que de outra forma seriam simples ações estreitamente pessoais ou meras modalidades de perícia técnica. A cada aumento da possibilidade
de locar nossos próprios atos em suas reíações de tempo e
espaço, corresponde uma possibilidade de lhes aumentar a
significação e o conteúdo. Damo-nos acordo de que não
somos cidadãos de nenhuma insignificante aldeia ao descobrirmos no espaço a cena de que somos participantes e a continuidade da manifestação de esforços no tempo, da qual somos herdeiros e continuadores. Desta maneira nossas ordinárias experiências quotidianas cessam de ser coisas do momento e adquirem consistência duradoura.
Mas se a geografia e a história forem ensinadas como
matérias já feitas e sistematizadas que um indivíduo estuda
230
Democracia e educação
simplesmente porque o mandaram à escola, é natural que
aprenda igualmente grande número de conhecimentos, mas
sobre coisas remotas e estranhas à experiência quotidiana.
Divide-se a ativiclade e criam-se dois mundos distintos em
que, em períodos alternados, empregamos nossa atividade.
Nenhuma transmutação se ef eíua; a experiência ordinária
não se enriquece em significação apreendendo as relações
entre aqueles mundos; aquilo que se estuda não é vivificado, nem tornado real, pela inclusão direta em uma atividade. N"em sequer a experiência ordinária continua a ser
o que era, isto c, limitada, mas eficaz, viva. Ao contrário,
ela perde algo de sua mobilidade e sensibilidade às sugestões;
é asfixiada e posta à margem por uma sobrecarga de conhecimentos inassiinilados. Desaparece sua maleável capacidade de reagir e seu vigilante anseio de novas significações,
de mais larga compreensão. Um mero acúmulo de conhecimentos, separado dos interesses diretos da vida, petrifica o
espírito; sua elasticidade desaparece.
Normalmente toda a atividade, em que alguém se empenha pelo seu próprio valor, projeta seu alcance para além
de sua esfera imediata de ação. Ela não espera passivamente que lhe forneçam conhecimentos que lhe acresçam a
significação; procura-os. A curiosidade não é uma coisa
isolada e casual, e sim a consequência necessária do fato de
que uma experiência é uma coisa móvel e em marcha, buscando toda a espécie de relações com outras coisas. A
curiosidade é apenas o desejo de perceber essas relações.
Compete aos educadores proporcionar um ambiente em que
esse alcance maior de uma experiência possa ser fartamente estimulado e eficazmente mantido em constante atividade.
Em certas espécies de ambiente a atividade pode ser de tal
modo 'constringida que a única significação que lhe fique
seja a de seu dircto e tangível resultado isolado. Uma pessoa pode cozinhar, trabalhar ou passear, e as consequências
resultantes não conduzirem o espírito a mais do que as consequências dos atos de cozinhar, trabalhar ou passear no sentido literal — ou físico. No entanto, as consequências desses atos são providas de longo alcance. Caminhar subentende um deslocamento e a reação da resistência da terra,
cuja vibração se faz sentir onde quer que exista matéria.
Compreende a estrutura das pernas e do sistema nervoso, e
A geografia e a história
231
os princípios da mecânica. Cozinhar é utilizar-se o calor e
a água para alterar as relações químicas dos alimentos materiais; essa operação influi na assimilação do alimento e no
desenvolvimento do corpo. Tudo o que os cientistas mais
doutos conhecem sobre física, química e fisiologia não basta
para tornar perceptíveis todas essas consequências e relações,
A tarefa da educação, di-lo-emos uma vez mais, é fazer
que tais atividades se manifestem de tal modo, e em tais
condições, que tornem essas relações o mais perceptíveis possível, "Estudar geografia" é aumentar a faculdade de perceber as relações espaciais, naturais, de um ato ordinário;
"aprender história" é essencial para aumentar a capacidade
de reconhecer as relações humanas cio mesmo ato. Pois o
que chamamos geografia como estudo concatenado é simplesmente o conjunto de fatos e princípios descobertos pela
experiência de outros homens acerca do meio natural em que
vivemos, em conexão com o qual os atos particulares de nossa
vida têm uma explicação. Do mesmo modo, a história como estudo coordenado é unicamente o corpo de fatos conhecidos sobre as atividades e sofrimentos dos grupos sociais nos quais se insere, em perfeita continuidade, a nossa
própria vida e com os quais se iluminai» e se esclarecem os
nossos próprios costumes e instituições.
2. A natureza complementar da história e da geografia. —• A história e a geografia — inclnindo-se nesta
última, por motivos que serão em pouco mencionados, as
ciên-cias naturais — são por excelência os estudos escolares
"informativos". O exame dos seus materiais e do método
de seu uso patentearão que a diferença entre a penetração
dessas informações na experiência viva e atual, e sua mera
acumulação em montes isolados, depende de atenderem esses
estudos à interdependência do homem e da natureza, interdependência que proporciona a esses estudos sua justificação. Em nenhum outro, porém, é maior o perigo de que
o conteúdo dos estudos seja aceito como apropriado aos fins
educativos, simplesmente porque se tornou um hábito ensiná-lo e aprendê-lo. Considera-se como fantasia vã a ideia
de haver para isso uma razão filosófica, que é a capacidade
de operar esse material uma valiosa transformação da experiência—'Ou como parolagem retumbante em apoio daquilo que
já foi feito. As palavras "história" e "geografia" sugerem
Democracia e educação
A geografia c a história
unicamente as matérias tradicionalmente ensinadas nas escolas. O volume e a variedade dessas matérias desanimam
os que tentam ver em que realmente consistem, e como podem ser ensinadas para cumprirem sua missão na experiência dos alunos. Mas a menos que a ideia de que existe
uma diretriz unificadora e social na educação seja uma pretensão ridícula, matérias de tão grande vulto nos programas,
como a história e a geografia, devem exercer uma função
geral no <lesenvolvimento 'de uma experiência verdadeiramente socializada e intelectualizada. Deve-se empregar a descoberta desta função como um critério para se experimentar
e selecionar os fatos e os métodos do seu ensino.
Já ficou exposta a função da matéria da história e da
geografia: é enriquecer e dar expansão aos contactos mais
diretos e pessoais da vida fornecendo-lhes seu contexto, seus
apoios ou fundamentos e sua perspectiva e horizonte. A
geografia põe em relevo aspectos físicos ,e a história aspectos sociais, mas as duas salientam a mesma coisa, isto é, a
vida do homem em sociedade. Pois esta vida social, com
suas experiências, métodos e meios, suas realizações e malogros, não é coisa que fique nas nuvens nem no vácuo. Ê
na terra que ela se desenrola. O cenário da natureza não
tem para com as atividades sociais a mesma relação que
um cenário de teatro tem com unia representação dramática; ele entra nos acontecimentos sociais que constituem a
história. A natureza é o ambiente desses acontecimentos.
Ela fornece os estímulos originários; apresenta obstáculos e
proporciona recursos. A civilização é o domínio progressivo de suas várias energias. Quando 'nos esquecemos desta interdependência do estudo da história, que põe em relevo o elemento humano, com o «studo da geografia, que
salienta o elemento natural, a história degrada-se tornando-se uma lista de datas, comum apêndice de acontecimentos rotulados de "importantes"; ou então converte-se em
. fantasia literária — pois na história puramente literária o
ambiente natural é apenas uma encenação teatral.
A geografia, por sua vez, exerce influência educativa
revelando a conexão entre os fatos naturais e os eventos sociais e suas consequências. A clássica definição da geografia como descrição da terra em seu caráter de morada do homem exprime a realidade educacional. É mais fácil, porém,
dar esta definição do que apresentar especificadamente a
matéria geográfica em suas relações vitais com a vida humana. A habitação, as empresas, os triunfos e os fracassos dos homens são as coisas que justificam a inclusão dos
dados da geografia no material educativo. Mas para manter reunidas essas duas coisas é necessária uma imaginação
rica de conhecimentos e culta. Sc esses elos se romperem,
a geografia apresenta-se como aquela moxinifada de fragmentos desconexos que corn tanta frequência vemos. Antolhase um verdadeiro saco de retalhos, uma miscelânea de coisas intelectuais: aqui, a altura de uma montanha, acolá o
curso de um rio, a quantidade de ripas fabricada em tal
cidade, a tonelagem da marinha mais além, os limites de
.um município, a capital de um país.
Vista como a morada do homem, a terra humaniza-se e
unifica-se; mas, encarada como miscelânea de coisas, ela
fragmenta-se e torna-se inerte para a imaginação. A geografia é matéria que apela essencialmente para a imaginação — até mesmo para um certo romantismo. Ela traz o
prestígio maravilhoso que se associa às aventuras, às viagens e às explorações. A variedade de. povos e ambientes,
seu contraste com as cenas que nos são familiares, fornecem intensos estímulos, sacodem o espírito, fazendo-o sair
da monotonia das coisas corriqueiras. E ao mesmo tempo
em que a geografia local ou de nossa pátria é o ponto de
partida natural para o desenvolvimento reconstrutivo do
ambiente natural, é também o ponto de partida intelectual
para nos mergulharmos no desconhecido, e não um fim em
si mesmo. Quando não for tratada assim como base para
nos projetar no vasto mundo que lhe fica além, o estudo da
corografia local torna-se tão inerte como as lições de coisas que se limitam a sumariar as propriedades de objetos
familiares. A razão é a mesma. A imaginação não é alimentada, e sim mantida rasteira a recapitular, catalogar e
esmiuçar o que já é conhecido. Mas quando os tapumes familiares que assinalam as divisas dos proprietários da aldeia
se convertem em sinais que despertem a compreensão do
que sejam os limites das grandes nações, até esses referidos
tapumes esplendem de significação. A luz solar, o ar, as
águas correntes, as desigualdades da superfície da terra, as
várias indústrias, os funcionários públicos e seus deveres
— tudo isto se encontra no ambiente local. Se os tratar-
232
233
Democracia e educação
A geografia c a história
mós como se sua significação começasse e findasse nesses
limites, constituiriam apenas fatos curiosos a serem laboriosamente aprendidos. Como instrumentos para se dilatarem
os limites da experiência, incluindo em seu objetivo povos
e coisas que de outra forma seriam estranhos e ignorados,
transfiguram-se. A luz solar, o vento, a água corrente, o
comércio, as relações políticas, são coisas que vêm de longe
e conduzem o pensamento até longe. Seguir-lhes o curso
é alargar os horizontes do espírito, não asfixiando este com
informações supcrflins e sim refazendo e emprestando nova
significação ao que antes era corriqueiro e tacitamente aceito
por si mesmo.
O mesmo princípio coordena, no estudo da geografia,
os seus ramos ou aspectos que tendem a tornar-se especializados ou separados. A geografia matemática ou astronómica, a f isiográfica, topográfica, política e comercial, têm
todas elas, as suas exigências. Como poderão ajustar-se?
Por justaposições exteriores que ponham dentro um bocado
de cada uma? Não se pode encontrar outrc meio a não
ser o lembrarmo-nos constantemente de que o centro de gravidade educacional é o aspecto cultural ou humano da matéria do estudo. Olhando deste centro, todo o material será
mais ou menos importante, conforme seja mais ou menos
necessário para ajudar a apreciar-se a significação das atividades e relações humanas. As diversidades de civilização
nas regiões frias e tropicais, as invenções especiais, industriais e políticas dos povos das regiões temperadas não podem ser compreendidas sem se ter em vista a terra como
parte do sistema solar. Por uma parte, as atividades económicas influenciam profundamente as relações sociais e a
organização política, e, por outra, são o reflexo das condições físicas. As especializações nestas matérias são para
os especialistas; mas sua interação interessa o homem, na
sua qualidade de ser da atividade social.
Incluir o estudo da natureza no da geografia parece,
indubitavelmente, violentar as coisas; ao pé da letra, é isso
uma verdade. Mas sob o ponto de vista educativo existe
apenas uma realidade, e é pena que na prática lhes sejam
dados dois nomes, pois a diversidade de nomes tende a encobrir a identidade de significação. Natureza e terra deveriam ser termos equivalentes, de modo que fosse a mesma coisa dizer-se estudo da terra e estudo da natureza. To-
dos sabem que o estudo das ciências naturais tem sofrido
nas escolas pela sua fragmentação, devido a tratar-se isoladamente grande número de pontos. Estudam-se, por
exemplo, as partes de uma flor independentemente do estudo da flor como órgão da planta; a flor, independentemente
da planta; a planta, independentemente do solo, do ar, da
luz, nos quais e por meio dos quais ela vive. O resultado
é a inevitável inércia educativa das coisas para as quais se
chama a atenção e com as quais, por estarem isoladas, a
imaginação não se estimula. Tão grande é a falta de interesse, que já foi seriamente proposto fazer-se reviver o
animismo, encarnando-se as coisas e fenómenos naturais em
mitos, com o fim de atraírem e reterem a atenção. Em casos inúmeros, recorreu-se a personificações mais ou menos
inócuas. O método era inepto, mas demonstrava a real necessidade de atmosfera humana. Os fatos se partem e dividem em fragmentos, desde que sejam retirados cio seu
próprio contexto. Deixam de pertencer à terra; não ficam
localizados em qualquer parte dela. Para contrabalançar isso,
recorre-se a associações artificiais e sentimentais. O remédio
verdadeiro é tornar-se o estudo da natureza um verdadeiro
estudo da natureza e não de meros fragmentos tornados sem
significação,, por haverem sido retirados das situações que os
produziram e nas quais eles atuam. Tratando-se a natureza
como um todo, como a terra em suas relações, caem os fenómenos em suas conexões naturais de simpatia e associação
com a vida humana, tornando-se desnecessários os sucedâneos
artificiais.
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3. A história e a presente vida social. — A segregação que mata a vitalidade da história é o resultado de divorciá-la dos presentes aspectos e interesses da vida social. O
passado em sua qualidade de passado é coisa que já não nos
importa. Se fosse totalmente coisa ida e passada, só haveria
para com ele uma atitude razoável: deixar que os mortos enterrem seus mortos Mas c conhecimento do passado é a
chave para a compreensão do presente. A história trata do
passado, mas esse passado é a história do presente. Um estudo inteligente da descoberta, das explorações, da colonização
da América, das primeiras migrações para o este, da imigração, etc., seria o estudo dos Estados Unidos de hoje: do
Democracia e educação
A geografia e a história
pais cm que agora vivemos. Estudá-lo no processo de sua
formação é o meio de tornar claras e compreensíveis as coisas
que por excessivamente complexas não poderiam ser diretamente entendidas. O método genético foi talvez a principal
realização científica da última metade do século dezenove.
Seu princípio é que o meio de projetar luz em algum resultado
complexo é rastrear o processo de sua produção — acompanhá-la nas sucessivas fases de seu desenvolvimento. Seria
unilateralidade aplicar este método à história, como se ele
tivesse em vista unicamente o truísmo de que o presente estado
social não se pode separar de seu passado; pois é igualmente
verdade que os sucessos passados não terão significação se os
destacarmos do viver atual. O verdadeiro ponto de partida
da história é sempre alguma situação atual com os seus
problemas.
Kste princípio geral pode, em breves palavras, ser examinado, considerando-se seu alcance em certo número de casos.
O método biográfico é geralmente recomendado como o meio
natural de iniciação no estudo da história. As vidas de grandes
homens, de heróis e condutores de homens, corporífícam e animam -episódios históricos que de outra forma seriam abstratos
e incompreensíveis. Condensam em quadros vivos séries complexas e emaranhadas de problemas que se estenderam em
tamanha extensão de espaço e de tempo, que só um espírito
grandemente exercitado pode acompanhá-los e destrinçá-los.
Não se pode pôr em dúvida a exatidão psicológica deste principio. Mas incorrer-se-á cm falta se forem postos em exagerado relevo os atos de alguns poucos indivíduos, sem se
relacionarem esses atos com as condições sociais representadas
por eles. Se ao escrever-se uma biografia se relatassem apenas
os atos de um homem isolados das condições que os produziram
e com referência às quais esses atos eram reações, não se teria
um estudo de história, pois não haveria um estudo da vida
social, que é o resultado de uma associação de indivíduos.
Seria como limitar-nos a recobrir de açúcar certos conhecimentos de natureza informativa, para os fazermos ser mais
facilmente engolidos.
Muita atenção se tem dado, também, ultimamente, à
vida primitiva como introdução ao estudo da história. Também
este processo pode ser bem ou mal empregado. O aparente
caráter definitivo e a complexidade * das presentes condições,
sua aparente consolidação, constituem quase insuperável obstáculo para se ver claro sua natureza. Recorrer-se aos tempos
primitivos para fornecer os elementos fundamentais da presente situação em forma imensamente simplificada, é o mesmo
que desmanchar um tecido muito complexo e tão próximo da
vista que não se pode ver o seu desenho, para que apareçam
as linhas mais gerais e mais grosseiras do padrão. Não podemos simplificar as condições atuais pela experimentação deliberada, mas se recorrermos ao viver primitivo ele nos apresentará a espécie de resultados que pediríamos a uma experiência.
Ficam assim reduzidas as relações sociais e as modalidades da
ativídade coordenada à sua expressão mais simples. Quando,
porém, se olvida este objetivo social, o estudo da vida primitiva
limita-se a dar relevo aos aspectos sensacionais e excitantes
da selvageria.
A história primitiva, além disso, conduz-nos à história da
indústria. Uma das principais razões para remontarmos às
condições primitivas a fim de desdobrarmos o problema em
fatores mais perceptíveis, é podermos compreender como foram resolvidos os problemas fundamentais de buscar subsistência, abrigo e proteção; e com o ver-se como foram solvidos
nesses tempos remotos da espécie humana tem-se alguma ideia
do longo percurso que precisou ser vencido e das sucessivas
invenções por meio das quais progrediu a cultura humana. Não
será preciso entrar-se em discussões a respeito da interpretação económica da história, para compreender-se que a história industrial'da espécie humana projcta luz em dois importantes aspectos da vida social, de um modo como possivelmente
nenhum outro aspecto da história poderia fazer. Ela faz-nos
conhecer as sucessivas invenções por meio das quais a ciência
teórica foi aplicada ao domínio da natureza, em beneficio da
segurança e da prosperidade da vida social. Revela-nos assim
as sucessivas causas do progresso social. E, por outro lado,
patenteia-nos as coisas que essencialmente interessam todos os
homens em geral — as ocupações e os valores referentes ao
ato de ganhar a subsistência. A história económica ou industrial trata da ativídade, da carreira e do êxíto do homem comum,
como não o faz nenhum outro ramo da história. A coisa mais
importante que todos os indivíduos devem fazer é manter-se; a
coisa mais importante que a sociedade deve jazer é obter de
cada indivíduo sua eficaz contribuição para o bem-estar geral e
velar para que seja dada a cada um sua justa retribuição.
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Democracia e educação
Á geografia e a história
A história económica é mais humana, mais democrática e,
por isso, de influxo mais liberal do que a história política. Ela
não se preocupa com a ascensão e a queda de principados e poderes, mas com o desenvolvimento da verdadeira liberdade, por
meio do domínio da natureza efetuado pelo homem comum, que
é para quem existem os poderes e os principados.
A história industrial oferece, também, urn meio mais direto de aproximarmo-nos da compreensão das relações íntimas
das lutas, vitórias e malogros do homem com a natureza,
do que a história política — para não se falar na militar, para
a qual a história política resvala com tanta facilidade quando é
posta ao nível da compreensão de crianças. Com efeito, a
história industrial é essencialmente a exposição do modo por
que o homem aprendeu a utilizar-se das energias naturais, desde
os tempos em que ele explorava principalmente a energia muscular dos outros homens, até estes tempos, em que, se não
na realidade, pelo menos em perspectiva, a influência sobre recursos naturais é tão grande, que habilita os homens a estender
sobre eles um domínio comum. Quando se omitem a história
do trabalho e os modos de usar o solo, as florestas, as minas, de
domesticar e criar animais, de cultivar plantas, o fabrico e a
distribuição de produtos, a história tende a tornar-?e meramente
literária — um romance sistematizado de uma humanidade
mítica vivendo em si mesma ern vez de viver na terra.
Tal vê? que o mais desprezado ramo da história, na educação geral, seja o intelectual. Estamos apenas começando a,
compreender que os grandes heróis que fizeram a humanidade
progredir não foram seus políticos, generais, nem diplomatas,
e sim os cientistas descobridores e inventores que puseram na
mão do homem os instrumentos de uma experiência regulada e
progressiva e os artistas e poetas que celebraram suas lutas,
vitórias e derrotas ern linguagem pictórica, plástica ou escrita,
tornando sua significação acessível aos demais. Uma das vantagens da história industrial como história da progressiva
adaptação, feita pelo homem, das forças naturais para usos
sociais, é a oportunidade que ela proporciona para se fazerem
conhecer os avanços dos métodos e resultados do conhecimento.
Atualmente, todos estamos habituados a elogiar em termos gerais a inteligência e a razão e a salientar sua importância básica. Mas os alunos que fizeram o convencional estudo da história julgam que a inteligência humana é uma quantidade está-
tica que não progrediu com a descoberta de melhores métodos,
ou então que a inteligência, com exceção de certa manifestação
de sagacidade pessoal, é desprezível fator histórico. Certo não
existirá melhor modo de incutir uma ideia exata do papel
desempenhado na vida pelo espírito ou inteligência do que o
estudo de uma história que patenteia corno toda a evolução da
humanidade, da selvageria até à civilização, dependeu das
descobertas e invenções intelectviais, e a extensão em que os
fatos, que ordinariamente figuram mais abundantemente em
trabalhos sobre história, foram derivativos laterais ou mesmo
obstáculos a serem superados pela inteligência.
Ensinada por este modo, a história teria mui naturalmente
valor ético no ensino. Uma visão inteligente das formas atuais
da vida associada é necessária para um caráter cuja moralidade
seja mais do que uma inocência incolor. O conhecimento da
história auxilia tal visão. Ele é um instrumento para analisar-se a urdidura da presente vida social, e para tornar conhecidas as forças que criaram os seus padrões. A significação
moral da história está no seu poder de cultivar uma inteligência
socializada. É possível utilizá-la como uma espécie de reservatório de anedotas destinado a inculcar lições morais especiais
sobre tal virtude de tal vício; mas semelhante ensino é menos
um uso ético da história do que um esforço para criar impressões morais por meio de um material mais ou menos autêntico.
Na melhor das hipóteses produz uma temporária exaltação
emocional; e, na pior, grosseira indiferença a esses esforços
moralizastes. O auxílio que a história poderá prestar a uma
compreensão mais inteligentemente aguda e viva das presentes
condições sociais de que os indivíduos participam, será sua permanente e construtiva base moral.
239
Resumo. — É próprio da experiência compreender
elementos que podem projetar-se muito além daquilo que primeiro é notado conscientemente nela. Trazer essas conexões
ou relações à luz da consciência dá relevo à significação da
experiência. Toda a experiência, por mais trivial que à primeira vista possa parecer, é capaz de assumir ilimitada riqueza
de significação, amplificando sua série de associações percebidas, A comunicação normal com outras pessoas é o caminho
mais curto para efctuar-se este desenvolvimento, pois ela vincula os resultados da experiência do grupo, e, até, da humanidade, com a experiência imediata de um indivíduo. Por
240
Democracia- e educação
comunicação normal significa-se aquela comunicação em que
existe um interesse compartido, comum, de modo a haver o
duplo anseio de dar e receber. Ela é o contrário de contarem-se ou exporem-se as coisas simplesmente para gravá-las
sobre outrem, para o fim de verificar de quanta coisa é capaz
de reter de memória e de reproduzir literalmente.
A geografia e a história são os dois grandes recursos
escolares para produzir o aumento de significação de uma
experiência direta e pessoal. As ocupaçges ativas descritas
no capítulo antecedente têm, no espaço e no tempo, esse
alcance sobre o que diz respeito tanto à natureza como ao
homem. Se não forem ensinadas por motivos exteriores ou
como meras espécies de habilidade, seu principal valor educativo será fornecer os caminhos rnaís diretos e interessantes
para o mundo mais vasto de significações contidas na história e na geografia. A história torna explícitos os elementos
humanos implícitos, e a geografia as relações naturais; mas
estas duas matérias são dois aspectos do mesmo todo vivo,
uma vez que a vida humana associada se processa na natureza, que não é seu cenário acidental, e sim o material e o
meio de se operar seu desenvolvimento.
CAPÍTULO 17
As ciências no currículo
l. O lógico e o psicológico. — Por ciência, conforme ficou dito, significamos aquele saber proveniente dos
métodos de observação, reflexão e verificação deliheradamente adotados para assegurar conhecimentos certos e provados. Ciência subentende um esforço inteligente e perseverante para rever as convicções correntes a fim de excluir delas
o que é erróneo, aumentar-lhes a exatidão, e, acima de tudo,
dar-lhes tal forma, que se tornem o mais manifestas possível
as mútuas dependências dos vários fatos. Ela é, como todo o
conhecimento, um resultado da atividade de levar a efeito certas
mudanças no ambiente. Mas em seu caso a qualidade do conhecimento resultante é o fator causal, e não um incidente da atividade. Lógica e pedagogicamente a ciência é a perfeição do
conhecimento, é sua última fase.
Ciência, em suma, significa compreensão do conteúdo
lógico de todo o conhecimento. A ordem lógica não é forma
imposta ao conhecimento, mas a sua forma adequada quando
tornado perfeito ou definitivo. Pois significa que a exposição
da matéria está feita de tal modo que patenteia a quem a
compreende as premissas de que precede e as conclusões a que
leva. Assim como com poucos ossos um zoólogo recompõe um
animal, também pela forma de uma afirmação matemática ou
física o especialista na matéria pode fazer uma ideia do sistema
de verdades em que ela tem o seu lugar.
Para o não experiente, porém, esta forma perfeita é um
tropeço. Precisamente porque a formulação da matéria é
feita para promover o conhecimento como um fim em si
mesmo, ficam ocultas suas conexões com a matéria da vida
quotidiana. Para o leigo aqueles ossos constituem meras coisas
curiosas. Enquanto ele não tiver assimilado os princípios de
zoologia, seus esforços para concluir daqueles ossos alguma
242
Democracia e educação
coisa serão casuais e cegos. Do ponto de vista de quem vai
aprender ciências, a£ fórmulas cientificas são o ideal a atingir
e não ponto de partida para o aprendizado. Entretanto, na
prática da educação, é frequente começar-se esse aprendizado
com rudimentos de ciências, um tanto simplificados. A consequência fatal disso é o divórcio entre a ciência e a experiência
significativa. O discípulo aprende símbolos sem a.chave de
sua significação. Adquire um lastro técnico de conhecimentos
informativos sem a aptidão para descobrir suas relações com
os objetos e atos que lhe são familiares — amiúde adquire
simplesmente um vocabulário especial.
Sentimos a forte tentação de presumir que a apresentação
da matéria em sua forma perfeita fornece unia estrada real
para se aprender. Que haverá de mais natural do que supor
que se possam poupar o tempo e o esforço dos imaturos, e protegê-los contra erros desnecessários, começando do ponto a
que chegaram os investigadores e os especialistas? O resultado acha-se registrado abundantemente na história da educação.
O aluno começa a estudar ciências em compêndios nos quais a
matéria foi coordenada de acordo com o critério do especialista.
Alinham-se desde o começo conceitos técnicos acompanhados
de definições. Desde logo expõem-se leis e, com elas, no
máximo, algumas poucas indicações do modo por que se chegou a descobri-las. Os alunos aprendem "uma ciência", em
vez de aprenderem o modo científico de tratar o material familiar da experiência ordinária. O método de estudantes superiores predomina no ensino das academias; abaixo destes, nos
cursos, secundários, usa-se uma aproximação daquele ensino;
e assim pela escala abaixo, com as supressões necessárias para
que se torne mais fácil a matéria.
O método cronológico que começa com a experiência
do educando e desenvolve, baseado nela, os processos próprios
da investigação científica, é com frequência chamado "psicológico", para distinguir-se do método lógico, dos competentes
ou especialistas. A aparente perda de tempo com este método
é mais do que compensada pela qualidade superior do conhecimento e interesse vital assegurados. O aluno pelo menos
compreende aquilo que está a aprender. Além disso, adotando
para a solução dos problemas escolhidos dentre o material com
que o aluno está familiarizado os métodos por meio dos quais
os cientistas chegaram ao seu saber aperfeiçoado, ele, aluno,
se torna apto para, por si só, avir-se com o material de seu
As ciências no currículo
243
campo de conhecimentos, e evitar a confusão mental e displicência intelectual decorrentes do estudo de matérias de significação exclusivamente simbólica. Como os alunos, em sua
grande maioria, não se vão tornar cientistas especializados, é
muito mais importante que adquirem algum conhecimento da
significação do método científico, do que se limitarem a reproduzir exaustivamente e de segunda mão os resultados atingidos pelos cientistas. Quanto ao "programa dado" ou à
"matéria ensinada", os estudantes não irão, talvez, tão longe,
mas o que aprenderem aprenderão segura e inteligentemente.
E pode-se asseverar que os poucos que se tornarem cientistas
terão tido melhor preparação do que se tivessem mergulhado
em uma grande massa de conhecimentos puramente técnicos,
e expostos simbolicamente. Com efeito, aqueles que chegam a
tornar-se cientistas eméritos são os que pelas suas próprias
aptidões conseguem evitar em seu percurso os riscos do escolasticismo tradicional.
Dolorosa é a visão do contraste entre as esperanças dos
homens que há uma ou duas gerações se esforçaram, com
grandes obstáculos, para garantir na educação um lugar para
a ciência, e o resultado geral atingido. Perguntando-se
HERBERT SPENCER qu^l a espécie mais valiosa de conhecimentos, chegou à conclusão de que, sob todos os pontos de vista,
o preferível é o conhecimento científico. M,as nesta afir. mação se subentendia inconscientemente dever o conhecimento
científico ser transmitido como tal, como saber formulado, feito
e acabado. Não tomando em conta os processos pelos quais
a matéria de nossa atividade ordinária assume forma científica, esqueceu o único método mediante o qual a ciência é ciência.
Em matéria de instrução procedeu-se, com excessiva frequência, de maneira análoga. Mas não existem propriedades mágicas na matéria exposta em forma científica tecnicamente
correta. Quando aprendida nestas condições, torna-se um lastro inerte de conhecimentos. Demais disso, o modo por que
é exposta distancia-a mais do fecundo contacto com a experiência, do que o faz o modo narrativo próprio da literatura. Não
se conclui, por isso, fossem injustificadas as exigências por
instrução científica, pois a matéria assim ensinada não era
ciência para o aluno.
Nem o contacto com as coisas e os exercícios de laboratório, embora levem grande vantagem ao uso de compêndios
Democracia e educação
As ciências no currículo
organizados em forma dedutiva, bastam para se satisfazer
essa necessidade. Sem embargo de fazerem parte indispensável do método cientifico, não constituem por si o método
científico. Mesmo sendo as coisas e os objetos materiais tratados com aparelhos científicos, podem estar dissociados entre
si e nos processos em que forem manipulados e alheados e
desconexos com a matéria e os processos usados fora da escola.
Os problemas que forem resolvidos serão somente problemas
da ciência, isto é, que ocorrerão unicamente aos já iniciados na
ciência respectiva. A atenção pode voltar-se para a mera
aquisição de habilidade em manipulações técnicas, sem relacionar
os exercícios de laboratório com algum problema atinente à
matéria do estudo. Existe algumas vezes um ritual de instrução de laboratório, como, o há nas religiões pagãs (1).
Já mencionamos, incidentemente, que a exposição científica
ou a forma lógica exige o uso de sinais ou símbolos. Esta
consideração aplica-se, naturalmente, a todo o uso da linguagem. Mas, na linguagem comum, o espírito vai diretamente
do símbolo para a coisa significada. É tão estreita a associação
dos símbolos com as coisas familiares, que o espírito não se
detém nos mesmos. Usam-se os ditos sinais apenas para
substituir coisas e atos. Mas a terminologia cientifica apresenta um emprego adicional para eles. Destinam-se, conforme
vimos, não a substituir as coisas diretamente em seu uso prático na nossa experiência, mas a substituir as coisas dispostas
em um sistema cognitivo ou lógico. Em última análise, naturalmente, eles indicam as coisas' de nosso conhecimento comum.
Mas, imediatamente, não as designa diretamente, em suas situações comuns, e sim convertidas ou traduzidas em termos
de pesquisa científica. Átomos, moléculas, fórmulas químicas,
as proposições matemáticas no estudo da física -— todas estas
coisas têm primeiramente valo r, intelectual ou lógico, e só indiretamente valor empírico ou experimental. Representam instrumentos para os trabalhos da ciência. Como no caso de outros
instrumentos, sua significação só pode ser aprendida com o uso.
Não podemos procurar compreender-lhes a significação indi-
cando as coisas a que se referem e sim mostrando o modo por
que os ditos instrumentos atuam quando empregados como
elementos da técnica do conhecimento.
Até o círculo, o quadrado, etc., da geometria, apresentam
diferença dos quadrados e círculos de nosso conhecimento
familiar e, quanto mais nos adiantamos na ciência matemática,
maior se torna a distância entre ela e as coisas empíricas que
cada dia vemos. Desprezam-se as qualidades que não contribuem para o desenvolvimento do conhecimento das relações
espaciais e acentuam-se as apropriadas para este fim. Se
alguém levar esse estudo suficientemente longe, verá que até
as propriedades significativas para o conhecimento espacial
cedem o lugar àquelas que facilitam o conhecimento de outras
coisas — talvez o conhecimento das relações gerais dos números. E mesmo já não se verá, nas definições conceituais,
nada que possa sugerir formas, dimensões ou direçoes espaciais. Não quer isto dizer que elas sejam irreais invenções
imaginárias, mas indica que as qualidades físicas imediatas
foram transformadas em instrumentos para um fim especial
— o fim da organização intelectual. Em toda a máquina o
estado primitivo do material é modificado porque seu uso é
subordinado a certo fim. O importante não é o material em
sua forma originária, e sim em sua adaptação a um fim. Não
se conhece uma máquina enumerando-se todas as peças que
entram em sua estrutura e sim sabendo-se as utilidades das
mesmas, e podendo-se dizer porque são usadas desse modo.
Semelhantemente, terá conhecimento das concepções matemáticas somente quem vir os problemas em que elas entram e sua
utilidade especial para resolver esses problemas. "Conhecer"
definições, regras, fórmulas, etc., é o mesmo que conhecer as
partes de uma máquina sem saber qual o seu emprego. Tanto
em um caso como em outro a significação ou conteúdo intelectual encontra-se no papel que o elemento desempenha no
sistema de que faz parte.
244
1) Quanto ao método eficaz, confronte-se com o que se disse atrás,
a respeito do valor dos problemas surgidos em trabalhos de jardinagem,
em oficinas, etc. Deve-se considerar o laboratório como um recurso
adicional a fim de proporcionar condições e expedientes para a melhor
investigação desses problemas.
245
2. A ciência e o progresso social. — Admitindose que o desenvolvimento do conhecimento direto adquirido em
ocupações de interesse social seja conduzido a uma perfeita
forma lógica, surge a questão de saber o papel que esse conhecimento desempenha na experiência. A resposta, geralmente,
é que a ciência marca a emancipação do espírito do seu emprego
em fins ordinários e torna possível a sistemática investigação
Democracia e educação
As delirias no currículo
de novos fins. É o fator do progresso na ação. Considera-se
às vexes o progresso como consistindo em avizinharmo-nos dos
fins que buscamos. Mas esta, é uma forma inferior do progresso, pois requer unicamente melhoria de meio de ação ou
de aperfeiçoamento técnico. A modalidade mais importante de
progresso consiste no enriquecimento dos objetivos anteriores e
na formação de novos fins ou objetivos. Desejos e aspirações
não existem em quantidade fixa, nem progresso significa apenas
um aumento de satisfação. Com o incremento da cultura, e
os novos triunfos do domínio da natureza, manifestam-se
novos desejos e a exigência de novas espécies de satisfação, pois
a inteligência descobre para a ação novas possibilidades. Este
surto de novas possibilidades leva-nos a procurar novos meios
de execução e deste modo opera-se o progresso — ao mesmo
tempo em que a descoberta de coisas ainda não utilizadas nos
sugere novos objetivos e novos fins.
A grande quantidade de invenções consequentes ao nosso
domínio intelectual dos segredos da natureza testemunha que
a ciência é o meio principal de melhorarmos progressivamente
os meios de ação. A maravilhosa transformação da produção
e da distribuição conhecida como a revolução industrial é
fruto da ciência experimental. Vias férreas, navios a vapor,
motores elétricos, telefone e telégrafo, automóveis, aeroplanos
e dirigíveis são provas brilhantes da aplicação da ciência à vida.
Mas nenhuma dessas invenções teria grande importância sem
as milhares de invenções menos sensacionais por meio das quais
a ciência da natureza se introduziu em nossa vida quotidiana.
Deve-se considerar, entretanto, que os progressos assim
realizados foram em grande extensão puramente técnicos; deram, antes, meios mais eficazes de satisfazer desejos preexistentes, do que modificaram a natureza dos objetivos humanos.
Não existe, por exemplo, civilização moderna alguma que,
sob todos os pontos de vista, seja igual à cultura grega. A
ciência é ainda excessivamente recente para se ter incorporado
às atitudes imaginativas e emocionais dos homens. Kstes se
movem mais rápida e seguramente para a realização de seus
fins, mas tais fins continuam sendo, em grandíssima extensão,
o que eram antes das luzes da ciência. Esta circunstância investe a educação da responsabilidade de utilizar a ciência de
modo a modificar a habitual atitude de imaginação e sentimento,
em vez de fazê-la, a ciência, simples extensão dos nossos
braços e pernas.
O progresso da ciência já modificou em suficiente latitude o pensamento humano sobre a finalidade de nossa existência, e sobre os bens de mais valor para ela, para ciar alguma
ideia da natureza dessa responsabilidade e dos modos de seu
desencargo. Influindo eficazmente na atividade humana, a
ciência derribou as barreiras materiais que antigamente separavam os homens e dilatou imensamente o âmbito do intercâmbio social. Ela acarretou, em formidável escala, interdependência de interesses. Trouxe consigo a sólida convicção
da possibilidade do domínio da natureza no interesse da humanidade, levando assim os homens a encarar o futuro, em vez
de fitar o passado. Não foi mera coincidência a concomitância
do ideal do progresso com o desenvolvimento da ciência. Antes
deste desenvolvimento os homens colocavam os tempos áureos
na antiguidade remota. Agora eles encaram o futuro com a
firme convicção de que a inteligência convenientemente utilizada
pode acabar com males que dantes se julgavam inevitáveis.
Subjugar as moléstias assoladoras não é mais um sonho; e
não é mais utópica esperança de suprimir a pobreza. A ciência
familiarizou os homens com a ideia do desenvolvimento a trazer, na prática, melhoria gradual e contínua da condição comum
da humanidade.
O problema da eficácia educacional da ciência é, portanto, o de criar e nutrir uma compreensão e uma plena convicção da possibilidade da direção, por intermédio dela, das
coisas humanas. O método científico, tornado em hábito por
meio da educação, significará nossa emancipação dos métodos
autoritários e da rotina criada por eles. A palavra "empírico"
em seu uso vulgar não significa "associado à experimentação"
mas, antes, grosseiro e irracional. Sob o influxo de condições
criadas pela não existência da ciência experimental, todas as
filosofias dominantes no passado consideravam a experiência
como coisa oposta à razão e ao que é verdadeiramente racional. Conhecimentos empíricos significavam os conhecimentos acumulados por numerosos exemplos passados, sem a inteligente compreensão dos princípios de qualquer deles. Dizer
que a medicina era empírica, significava que não era científica,
e sim uma prática baseada em observações acumuladas de moléstias e efeitos de remédios usados mais ou menos ao acaso.
Essa espécie de prática esteia-se necessariamente na "sorte"; o
bom êxito depende do acaso. Isto conduz à decepção e ao
charlatanismo. A indústria "empiricamente" dirigida impede
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Democracia e educação
As ciências no currículo
as realizações construtivas da inteligência; limita-se a imitar
servilmente os modelos estabelecidos no passado. Ciência
experimental significa a possibilidade de se utilizar a experiência passada como servidora e não como senhora do espírito.
Ela significa que a razão atua dentro da experiência, e não além
desta, para dar-lhe uma qualidade inteligente ou racional. A
ciência é a experiência a tonar-se racional. O efeito da ciência c, destarte, mudar as ideias dos homens sobre a natureza
e possibilidades inerentes à experiência. Ao mesmo tempo
ela muda a concepção sobre a razão e sobre a atuação dela.
Em vez de ser uma coisa além da experiência, remota, apartada,
interessada por uma região transcendental que nada tem que ver
com as coisas vividas, é considerada como nascida da experiência; é o fator por meio do qual as experiências passadas
são purificadas e convertidas em instrumentos para as descobertas e para o progresso.
A palavra "abstraio" tem significação, antes pejorativa na linguagem popular, sendo usada não só para significar o que é abstruso e difícil de compreender, como também
o que fica mui distante da vida real. Mas a abstração é um
elemento indispensável para a direção reflexiva da atividade.
As situações não se repetem exatamente. O hábito trata as
ocorrências novas como se elas fossem idênticas às velhas;
isto basta, naturalmente, quando o elemento diverso ou novo
pode ser desprezado para nossos fins atuais. Mas quando o
elemento novo requer atenção especial, cair-se-á em reaçoes
puramente casuais, a menos que se recorra à abstração. Pois
a abstração seleciona deliberadamente da matéria das experiências anteriores aquilo que se considera útil para a compreensão das novas. Significa a transferência consciente de
uma significação contida na experiência passada, para ser usada em uma nova experiência. Ela é a verdadeira "artéria"
da inteligência, do ato de intencionalmente tornar-se uma experiência aproveitável para orientar outra.
A ciência realiza, em larga escala, esse reelaborar da
matéria da experiência anterior. Visa libertar a experiência
de tudo o que é puramente pessoal e estritamente imediato;
aspira a destacar tudo o que aquela tem de comum com a
matéria de outras experiências e que, por ser comum, pode
ser reservado para uso ulterior. É, portanto, indispensável
fator para o progresso social. Em toda a experiência, exata-
mente como ocorre, há muita coisa que, embora possa ser
importante para o indivíduo envolvido na experiência, é peculiar e irreproduzível. Sob o ponto de vista da ciência, este
material é acessório, ao passo que os aspectos largamente
compartidos por outros fatos, os aspectos comuns com esses
outros fatos, ou gerais, são essenciais. Tudo o que na situação
é único, não é aproveitável para as outras pessoas, por depender das particularidades do indivíduo e da coincidência das
circunstâncias; de modo que, se aquilo que é comum não
for abstraído e fixado por um símbolo conveniente, pode virtualmente todo o valor da experiência desaparecer, depois de
terminada ela. Mas a abstração e o uso de termos específicos
para registrar o resultado dessa abstração põem permanentemente o valor da experiência de um indivíduo à disposição
da humanidade. Ninguém poderá prever particularizadamente
quando ou como ela possa ulteriormente ser usada. Quando
efetua suas abstrações, o homem de ciência é como um fabricante de instrumentos, que não sabe quem os usará nem
quando. Mas os instrumentos intelectuais têm poder de
adaptação infinitamente mais flexível do que os utensílios
mecânicos.
A generalização é o complemento da abstração. É o uso
de uma abstração aplicando-se a novas experiências concretas
— é sua ampliação para esclarecer e guiar novas situações.
Ê necessária a referenda a estas possíveis aplicações, para a
abstração ser frutífera, e não um estéril formalismo com
finalidade em si mesmo. A generalização é um recurso essencialmente social. Quando os homens identificavam seus interesses exclusivamente com os interesses de um grupo limitado, suas generalizações eram, correspondentemente, restritas.
Seu .Tonto de vista não permitia um descortino amplo e livre.
Os pensamentos dos homens confinavam-se em um exíguo espaço e um breve tempo — limitando-se aos seus próprios
costumes estabelecidos, considerando-os a medida de todos os
valores possíveis. A abstração e a generalização científicas
equivalem a assumir-se o ponto de vista de todos os homens,
sejam quais forem seus lugares no tempo e no espaço. ^ Esta
emancipação das condições e manifestações das experiências
concretas contribui para o remoto, para o "abstrato" da
ciência, mas contribui, igualmente, para o seu vasto e livre
campo de novas e fecundas aplicações práticas.
Democracia e educação
Os termos e as proposições registram, fixam e comunicam aquilo que foi abstraído. Uma significação extraída
de uma dada experiência não pode ficar suspensa no ar.
Deve adquirir habitação e lugar. Os nomes dão às significações abstraías uma localização e corpo materiais. A formulação não é, por isso, uni subproduto; ela é essencial para
completar-se a obra do pensamento. Há indivíduos que sabem muitas coisas que não podem exprimir, mas esse conhecimento permanece prático, direto e pessoal. Um indivíduo pode
usá-lo para si mesmo; pode ser capaz de agir eficazmente, utilizando-o. Os conhecimentos dos artistas e daqueles cujo
trabalho é de natureza executiva acham-se com frequência
nessas condições. Mas é pessoal, intransmissível e, por assim
dizer, instintivo. Para alguém formular a significação de
uma experiência deve tomar conscienciosamente em conta a
experiência das outras pessoas. Deve tentar achar um ponto
de vista que inclua tanto a experiência alheia como a sua
própria. De outra forma, sua comunicação não poderá ser
compreendida. Falará uma linguagem que ninguém, a não
ser ele, compreenderá. Assim como a arte literária consegue
o máximo êxito expondo as experiência de modo que tenham
significação' vital para as outras pessoas, o vocabulário das
ciências é destinado, em outra forma, a exprimir a significação
das experiências em símbolos que conhecerão todos os que
estudarem as ciências. A formulação estética revela, dando-lhe
realce, a significação das experiências que as pessoas já tiveram; a formulação científica prove-nos de instrumentos para
construirmos novas experiências com significações novas.
Em suma: a ciência representa o papel da inteligência, no
planejar e regular novas experiências desenvolvidas sistemática e intencionalmente, e na escala permitida pela emancipação
das limitações do hábito. Ela é o único instrumento do progresso consciente (distinto do acidental). E se a sua generalidade, seu distanciamento das condições individuais, confere
a ela certo tecnicismo e segregação, muito diferem estas qualidades das especulações meramente teóricas. As últimas estão em permanente divórcio da prática; as primeiras separam-se
temporariamente da prática para conseguir mais amplas e livres
aplicações em ulteriores atividades concretas. Há uma estéril
espécie de teoria que é contrária à prática; mas a teoria lldimamente científica influi na prática como fator de sua expansão
e de sua orientação, para novas possibilidades.
As ciências no currículo
251
3. O naturalismo e o humanismo na educação, —
Existe uma tradição escolar pela qual se opõem a ciência, de
um lado, e a literatura e a história, do outro, nos programas
de estudo. A controvérsia entre os representantes das duas
correntes é, historicamente, fácil de explicar. A literatura, a
linguagem e uma filosofia literária entrincheiraram-se em todos
os institutos superiores de ensino antes que surgisse a ciência
experimental. A última, naturalmente, precisava abrir o seu
caminho. Nenhum interesse fortalecido e protegido renuncia
prontamente ao monopólio que possua. Mas a presunção, de
qualquer dessas correntes, de que a linguagem e os trabalhos
literários têm, exclusivamente eles, a qualidade de humanidades,
e dê que a importância da ciência é puramente material, é uma
noção falsa que tende a jarretar o uso pedagógico dos dois
estudos. A vida humana não se passa em um vácuo, nem a
natureza é um simples palco preparado para a representação de
um drama. A vida humana está vinculada aos processos da
natureza; seu curso para o triunfo ou para a derrota depende
do modo por que a natureza nela entre. O poder de dirigir o
homem deliberadamente sua própria atividade depende de sua
aptidão de dominar, para utilizá-ías, as energias naturais;
aptidão que por seu turno depende da compreensão dos processos da natureza. Sejam o que forem as ciências naturais
para o especialista, elas são, para fins educativos, o conhecimento das condições da atividade humana. Ter consciência do
ambiente em que se desenrola o intercâmbio social, e dos meios
e obstáculos ao seu desenvolvimento progressivo, é possuir
conhecimentos de qualidade perfeitamente humanista. Quem
ignora a história da ciência, desconhece as lutas por meio das
quais a humanidade passou, da rotina e do capricho, da sujeição supersticiosa à natureza, dos esforços para usá-la magicamente, para o autodomínio intelectual. É grande verdade
que se pode ensinar a ciência como uma série de exercícios
formais e técnicos. Isto sucede sempre que os conhecimentos
sobre o mundo se tornam um fim em si mesmos. A circunstância de tal espécie de instrução não proporcionar cultura,
não é, entretanto, prova de ser o estudo da natureza contrário
ao interesse humanista e, sim, a prova de errada atitude
educacional.
O fato de não se gostar de empregar os conhecimentos
científicos do modo como eles atuam nas ocupações humanas
é um remanescente da cultura aristocrática. A noção de ser o
252
Democracia e educação
As ciências no currículo
conhecimento "aplicado" coisa um tanto menos nobre do que o
conhecimento "puro", era natural em uma sociedade em que
os escravos e servos faziam todos os trabalhos úteis e em que
a indústria obedecia a padrões estabelecidos mais pelo costume
do que pela inteligência. A ciência, ou o conhecimento mais
elevado, identificava-se então com a teoria pura, independentemente de qualquer aplicação na vida prática; e os conhecimentos relativos às artes úteis achavam-se marcados com
estigma igual ao da classe que as exercia (veja-se mais adiante
o cap. XIX). A ideia de ciência assim gerada, pefsistiu mesmo
depois que a própria ciência adotou os instrumentos das artes,
empregando-os para o desenvolvimento dos conhecimentos, depois para o surto da democracia. Tomando-se, porém, a teoria puramente em sua qualidade de teoria, aquela que diz respeito à humanidade é de mais significação para o homem do
que a referente ao mundo puramente material. Adotando-se
o critério de implantar conhecimentos por meio de uma cultura
literária, à parte das necessidades práticas do comum dos homens, os partidários da educação científica se colocam em desvantajosa situação estratégica. Quanto mais esposem a ideia
da ciência, adequando-a ao seu método experimental e às transformações de uma sociedade democrática e industrial, menos
dificuldade terão para mostrar que as ciências naturais são
mais humanistas do que um pretenso humanismo que baseia
seus programas educacionais nos interesses especializados de
uma classe ociosa.
Com efeito, segundo já expusemos, os estudos de humanidades tornam-se estéreis quando considerados antagónicos
ao estudo da natureza. Eles tendem a reduzir-se a estudos
exclusivamente literários e linguísticos, que por seu turno tendem a cifrar-se nos "estudos clássicos", no estudo de idiomas
que já não se falam mais. Pois os idiomas modernos podem
evidentemente ser usados e, por isso, incidem sob o mesmo
anátema. Seria difícil encontrar-se na história coisa mais
irrisória do que a pratica educacional que considera exclusivamente "humanidades" o conhecimento do grego e do latim.
A arte e as instituições gregas e romanas contribuíram tanto
para a nossa civilização que sempre será oportuno procurar
conhecê-las. Mas considerá-las estudos humanos por excelência subentende o abandono voluntário das possibilidades das
matérias que em educação são acessíveis às massas e tende a
incentivar o tacanho esnobismo de uma classe douta — cujas
prerrogativas são coisas acidentais devidas às oportunidades
de que com exclusivismo dispõe. Os conhecimentos são humanistas por sua qualidade, não por se referirem às criações
hutnanas do passado, mas por causa da sua eficácia para a
expansão da inteligência e da simpatia humana. Toda matéria
que produz este resultado é humana e toda aquela que não o
produz não é nem mesmo educativa.
253
Resumo. — A ciência representa a revelação dos fatores cognitivos da experiência. Em vez de contentar-se com
uma simples afirmação daquilo que é aconselhável para a
experiência pessoal ou comum, ela aspira a uma enunciação
que revele as fontes, fundamentos e consequências de uma
convicção. A consecução deste objetivo reveste de caráter
lógico suas afirmações. Pedagogicamente é de notar-se que
os característicos lógicos do método, desde que pertençam à
matéria que atingiu elevado grau de elaboração intelectual,
são diferentes do método de quem aprende, que é a passagem
em ordem cronológica de uma espécie mais grosseira de experiência para outra intelectualmente mais apurada. Os que
ignoram este fato tratam a ciência como simples acervo de
conhecimentos informativos que são menos interessantes e
mais remotos do que os conhecimentos ordinários, por serem
expressos em vocabulário inusitado e técnico. A função que
a ciência tem de exercer no currículo é a que já exerceu em
benefício da espécie humana — a emancipação dos acidentes
locais e temporais da experiência e o desvendamento de perspectivas intelectuais não obscurecidas pelos acidentes do hábito
e predileção pessoais. Associam-se a esta função os caracteres lógicos da abstração, da generalização e formulação definida. Libertando uma ideia da situação particular em que se
originou, e dando-lhe um alcance mais amplo, os resultados da
experiência dos indivíduos são postos à disposição de todos os
homens. Assim, em última análise, e do ponto de vista filosófico, a ciência é o órgão do progresso social geral.
educacionais
CAPÍTULO 18
Valores educacionais
As considerações decorrentes de uma análise de valores
educacionais já foram produzidas ao tratarmos dos fins ou
objetivos e dos interesses em educação. Os valores específicos
habitualmente debatidos em teorias educacionais coincidem com
os fins ou objetivos a que habitualmente se dá grande importância. São coisas como a utilidade, a cultura, os conhecimentos informativos, a preparação para a eficiência social, a
disciplina ou capacidade mental, e assim por diante. Dos
aspectos que dão valor a estes objetivos já tratamos em nosso
exame da natureza do interesse, e não há diferença, por exemplo, em falar-se da arte como de um interesse ou em referirmo-nos a ela como a um valor. Acontece, porém, que a
discussão dos valores centraliza-se comumente na consideração
dos vários fins para os quais são úteis as matérias particulares
dos programas. Isto constituiu parte da tentativa de justificar o ensino dessas matérias, assinalando-se a importante
contribuição trazida pelo seu estudo para a vida. Uma apreciação e análise explícita dos valores educacionais proporcionam-nos, assim, ensejo para retornar por um lado a anterior
discussão dos objetivos e interesses, e, por outro lado, a discussão do currículo, apresentando-os em conexão entre si,
l. A natureza do senso do real ou da apreciação
direta. — Grande parte da nossa experiência é índireta;
depende de símbolos intermediários entre nós e as coisas,
símbolos que substituem ou representam estas. São coisas
diferentes haver-se estado na guerra, ter-se compartilhado
de seus perigos e trabalhos, e ouvirem-se ou lerem-se descrições dela. Toda a linguagem, todos os símbolos são instrumentos para a transmissão da experiência indireta; em linguagem técnica, a experiência obtida por essa forma é "me-
255
diata". Ela é o contrário da experiência direta, imediata, da
qual participamos vitalmente sem a intervenção de coisas substitutas, intermediárias. Conforme vimos, é muito limitado o
campo dessa experiência pessoal, vitalmente direta. Se não
fosse a intervenção de elementos que representam coisas ausentes e distantes, nossa experiência quase se nivelaria com a
dos irracionais. Cada passo da selvageria para a civilização
depende da intervenção de meios que dilatem o círculo da
experiência simplesmente imediata e ]he comuniquem mais
profunda e mais ampla significação, relacionando-a com coisas
que podem unicamente ser representadas ou simbolizadas.
Esta é sem dúvida a causa da propensão de identificarem-se
as pessoas incultas com as iletradas — tão dependentes nos
achamos das letras para eficazes experiências representativas
ou indiretas.
Mas ao mesmo tempo (e isto tivemos repetidas ocasiões
de ver) há sempre o perigo de que os símbolos não sejam
verdadeiramente representativos, de que, em vez de realmente
evocarem as coisas ausentes e remotas, de modo a introduzi-las
na experiência presente, os intermediários verbais de representação se tornem um fim por sí mesmos. A educação formal acha-se particularmente exposta a este perigo, resultando
com grande frequência recebermos com as "letras" também
um espírito meramente livresco, a que vulgarmente chamam
de "académico'*. Em linguagem familiar, a expressão "senso
do real" é usada para exprimir a importância e o calor do
contacto de uma experiência direta, em contraste com a qualidade remota, pálida e friamente isolada de uma experiência
representativa. As expressões "real compreensão" e "apreciação" (ou legítima apreciação) são denominações mais precisas da sensação de realidade de alguma coisa. Não é possível definirem-se essaslt ideias a não ser com expressões sinónimas como "fazer sentir alguma'coisa", "ter-se a impressão
do real", pois o único meio de apreciar-se o que quer dizer a
experiência direta de alguma coisa é ter essa experiência.
Trata-se da diferença entre o ler-se a descrição técnica de
uma tela e ver-se a tela — ou entre vê-la e sentir a emoção
causada por ela; entre conhecer equações matemáticas sobre a
luz e sentir-se extasiado pelos maravilhosos jogos de luz em
alguma paisagem nevoenta.
Corre-se assim o perigo de ver-se a tendência da técnica
e de outras formas puramente representativas usurpar a es-
256
Democracia e educação
Valores educacionais
fera das apreciações diretas; noutras palavras — a tendência
de presumir-se que os alunos têm alicerces de conhecimento
direto das situações, suficientes para suportarem a superestrutura da experiência representativa erigida pelas fórmulas verbais dos estudos escolares. Não é simplesmente caso de quantidade ou volume. A experiência direta é mais uma questão
de qualidade; deve ser de tal espécie que se relacione fácil e
fecundamente com o material simbólico da educação. Antes que
o ensino possa com segurança começar a comunicar fatos e
ideias por meio de sinais, a escola deve proporcionar situações
autênticas ou verdadeiras, nas quais a participação pessoal do
educando incuta a compreensão da matéria e dos problemas
que a situação promove. Sob o ponto de vista do educando
as experiências resultantes terão valor por si mesmas; e, do
ponto de vista do professor, serão também meios de suprir a
matéria necessária para a compreensão da instrução que se
transmite por "sinais" e símbolos, e de provocar as atitudes
de receptividade mental necessária para o interesse pela matéria simbolicamente transmitida.
Xo esboço que fizemos da teoria da "matéria" educativa,
a exigência destes fundamentos de compreensão ou apreciação
é satisfeita pelos jogos e ocupações ativas concretizando situações típicas. Nada precisa ser acrescentado ao já dito, a
não ser que, embora se tratasse ali, da matéria da educação
primária, na qual é mais evidente a necessidade dos conhecimentos da experiência direta, esse princípio se aplica à
fase primária ou elementar de .qualquer matéria. A primeira
é básica função dos trabalhos de laboratório, por exemplo, em
curso secundário ou nos cursos superiores, em um novo campo
de estudos, é familiarizar diretamente o estudante com certa
série de fatos e problemas — fazer que eles os "sintam". A
aquisição de técnica e de métodos para obter e provar generalizações é, em princípio, secundária ou posterior a conseguir-se "apreciação". Quanto às atividades da escola primária, cumpre ter-se em mente que o desígnio essencial não é
divertir e nem transmitir conhecimentos com o mínimo de desagrado do aluno, nem adquirir habilidades —• embora possam
estes resultados acrescer como subprodutos — mas alargar e
enriquecer o campo da experiência, e conservar alerta e eficaz
o interesse pelo progresso intelectual.
Tratar-se da apreciação proporciona ensejo para enunciarmos os três seguintes princípios: a natureza dos padrões
de valores eficazes ou reais (para diferençarem-se dos nominais) ; o lugar da imaginação nas apreciações; e o lugar das
belas-artes nos cursos de estudos.
257
l — A natureza dos padrões de valores. Todos os
adultos adquiriram, no decurso de sua experiência e educação certas medidas do valor cie várias espécies de experiências.
Aprenderam a considerar como coisas moralmente boas a honestidade, a amabilidade, a perseverança e a lealdade; e como
valores estéticos, certos clássicos da literatura, da pintura, da
música e assim por diante. Não somente isto; mas aprenderam
também certas regras para estes valores; a regra áurea para
a moral; a harmonia, o equilíbrio, etc., a proporcionalidade de
elementos nas obras estéticas; a objetívidade, a clareza, a
sistematização, nos trabalhos intelectuais. Estes princípios
são tão importantes, por equivalerem a padrões para aferirem
o valor das novas experiências, que os pais e professores
sempre tendem a ensiná-los diretamente aos jovens. Eles se
esquecem do perigo de que os padrões assim ensinados sejam
meramente simbólicos, isto é, grandemente convencionais e
verbais. Para o indivíduo agir sem obedecer aos padrões correntes, é preciso que ele tenha pessoalmente e especificamente
"apreciado" quais as coisas profundamente significativas em
dadas situações concretas. Um indivíduo pode ter aprendido
qup alguns característicos são convencionalmente apreciados na
música; pode ser capaz de conversar com certa propriedade
sobre rnúsíca clássica; pode até sinceramente acreditar que
aquelas qualidades constituam seus próprios paradigmas musicais. Mas se em seu passado o que ele se habituou a ouvir
e a realmente apreciar foram ragtwws} suas craveiras para
julgar músicas se fixarão ao nível dos rogtiníffs.
O que ele
pessoalmente aprendeu a apreciar lhe determina mais fortemente a atitude do que o que lhe for ensinado como coisa que
seja mais conveniente dizer-se; sua atitude mental habitual
assím fixada cria sua "norma" real para a apreciação de
músicas em suas experiências subsequentes.
Poucas pessoas, provavelmente, contestarão a veracidade
desta afirmativa quanto ao bom gosto em música. Mas a
mesma coisa se dá com as ideias sobre moral e sobre valores
intelectuais. Um adolescente que tenha tido repetidas experiências da plena significação do valor da benignidade para
258
Democracia c educação
Palores educacionais
com as outras pessoas, terá sua mentalidade formada por essas
experiências, que lhe servirão de craveira do valor do tratamento generoso para com os demais. Sem esta apreciação vital,
o dever e a virtude da prátka do altruísmo, ensinados a ele
como modelos, continuarão a ser meros símbolos que ele não
poderá transformar devidamente em realidades. Seu "conhecimento" é de segunda mão; é apenas o conhecimento de que
outras pessoas julgam ser o altruísmo uma excelência, e que o
estimarão no grau em que manifestar ter essa virtude. Desta
maneira surge o divórcio entre os padrões declarados de alguém
e seus verdadeiros padrões. Uma pessoa pode ter consciência
dos resultados desta luta entre suas inclinações e suas opiniões
teóricas; sofre com o conflito entre o fazer o que realmente
lhe agrada e o que aprendeu a fazer para ter a aprovação dos
outros — mas, daquele divórcio ela não tem consciência. O
resultado é uma espécie de hiprocrisia inconsciente, de instabilidade das disposições de espírito. Semelhantemente, um discípulo que se viu a braços com alguma confusa situação intelectual e conseguiu esclarecer-lhe as obscurídades e chegar
a um resultado objetivo, compreenderá o valor da clareza e
da objetividade. Ele tem um parirão com que pode contar.
Mesmo que o exercitem exteriormente a assimilar certas noções de análise e divisão da matéria e que lhe ministrem
informações sobre o valor destes processos como operações
lógicas estandardizadas, a significação das normas chamadas
lógicas serão para ele outros tantos conhecimentos informativos externos, como, para assim dizermos, os rios da China,
a menos que de algum modo as adquira, em alguma ocasião,
com sua própria apreciação pessoal. Ble pode ser capaz de
enunciá-las, mas essa enunciação será urna repetição maquinal.
Há, por isso, sério equívoco ein considerar-se a apreciação como se confinando em coisas como a literatura, a pintura e a música. Seus domínios são tão vastos como a obra
da própria educação. A formação de hábitos será coisa puramente maquinal, a menos que os hábitos sejam também
gostos — modos habituais de preferir e apreciar alguma
coisa, um operante senso da excelência. Com estes fundamentos pode-se asseverar que o encarecimento, tantas vezes
manifestado nas escolas, da "disciplina'' exterior das notas e
recompensas, das promoções e não promoções, é o reverso da
circunstância de não se voltar a atenção para as situações da
vida em que são vitalmente apreciadas as significações dos
fatos, das ideias, dos princípios e dos problemas.
259
2 — Deve-se distinguir a compreensão apreciativa das
experiências simbólicas ou representativas. Mas não se deve distinguir do trabalho da inteligência ou entendimento.
Só uma reação pessoal envolvendo imaginação consegue
possivelmente proporcionar a compreensão até de "puros"
fatos. Em todos os domínios a imaginação é o meio de eíetuar-se a apreciação. A participação da imaginação é a
única coisa que faz a atividade deixar de ser mecânica. Infelizmente é muito comum identíficar-se o imaginativo com
o imaginário, de preferência a identificá-lo com um conhecimento vivo e íntimo do pleno alcance de urna situação.
Isto conduz a terem-se em exagerada conta as histórias de
fadas, os mitos, os símbolos fantasistas, as poesias e coisas
rotuladas como "belas-artes" como agentes para o desenvolvimento da imaginação e da apreciação; e o esquecimento
da visão imaginativa em outras matérias conduz a métodos
que reduzem em grande parte a instrução a uma aquisição
não imaginativa de habilidades especializadas e a uma acumulação de informações. A teoria e, também, ern certa extensão, a prática, já progrediram bastante para reconhecer que
a atividade dos jogos é imaginativa. Mas ainda se costuma
considerar essa atividade como um período especial e bem
definido do desenvolvimento infantil e esquecer o fato de
que a diferença entre o jogo e aquilo que se considera atividade séria não é a diferença entre presença e ausência
de imaginação, mas a diferença das matérias com que a imaginação se acha ocupada. O resultado é um exagero maléfico dos períodos fantásticos e "irreais" dos brinquedos e
um rebaixamento desastroso das ocupações sérias a uma eficiência rotineira apreciada simplesmente pelos seus resultados exteriores e tangíveis. Aproveitamento passa a significar as espécies de coisas que uma bem planejada máquina
pode fazer melhor do que um ser humano; e deixa-se esquecido no trajeto o efeito principal da educação, que é a criação de uma vida rica de significação. Sucedem-se os devaneios e as fantasias indisciplinadas que outra coisa não são
que o efeito da insopitável imaginação desligada e divorciada do interesse por aquilo que se esteja a fazer.
O único meio de se escapar aos métodos mecânicos de
ensino é nm adequado reconhecimento do papel da imagina-
260
Democracia e educação
Valores educacionais
cão como legítimo intermediário para a compreensão de todas as espécies de coisas que ficam além do campo da reação física direta. O relevo dado neste livro à atividade, de
acordo com as tendências da educação contemporânea, será
desnorteador se não se reconhecer que a imaginação, tanto
como o movimento muscular, é parte normal e integradora
da atividade humana. O valor educativo dos trabalhos manuais e dos exercícios de laboratório, assim como o dos jogos, depende da extensão em que auxiliam a dar o senso da
significação daquilo que se está fazendo. São eles, de fato,
se não nominalmente, dramatizações. Importante é seu valor utilitário para a aquisição de hábitos de habilidade a
serem, usados para a obtenção de resultados tangíveis, mas
não quando divorciados da função apreciativa. Se não fosse o exercício da imaginação, não haveria caminho para se
ir da atividade direta ao conhecimento representativo — pois
é pela imaginação que os símbolos são traduzidos em significação imediata e integrados em uma atividade limitada, de
forma a estendê-la e enriquecê-la. Quando a imaginação
criadora representativa se torna simplesmente literária e mítica, os símbolos se convertem em simples meios de provocar reações físicas dos órgãos da palavra.
volverem pronunciadamerite no sentido de darem elevado
apreço às qualidades que falam imediatamente ao bom gosto,
tornam-se belas-aríes.
Em uma de suas significações, apreciação é antônimo
de depreciação. Denota valor aumentado, intensificado •—•
e não um valor simplesmente, e muito menos (como a depreciação) um valor mais baixo e degradado. Este realce
das qualidades que tornam qualquer experiência ordinária
atraente, apropriável (capaz de ser plenamente assimilada)
e proporcionadora de prazer, constitui a função primária da
literatura, da música, do desenho, da pintura, etc., na educação. Elas não são agentes exclusivos de apreciação (apreciation) no sentido mais geral desta palavra, e sim os agentes principais para uma apreciação intensificada e inspirada.
Nesta natureza as belas-artes são, não só intrínseca e diretamente causadoras de prazer, como servem, também, um
objetivo que fica além delas próprias. Em grau saliente têm
a função de toda a apreciação no fixar o bom gosto e criar
craveiras para aferir-se o valor de experiências ulteriores.
Elas produzem descontentamento se as condições não se acham
à altura de seus padrões e criam a exigência de meios que se
elevem a esse nível. Revelam profundas e numerosas significações em experiências que, se não se desse isso, seriam
medíocres ou triviais: isto é, fornecem órgãos de visão.
Além disso, em sua plenitude representam a concentração e
a perfeição (Je elementos do bem que de outra forma ficariam dispersos e incompletos. Selecionam e focalizam os elementos capazes de dar prazer, elementos que tornam qualquer experiência diretamente agradável. Não são superfluidades ou luxos de educação e, sim, manifestações do que somente dá valor a qualquer educação.
3 — Na exposição feita precedentemente nada de explícito foi dito sobre o papel da literatura e das belas-artes
no ensino. A omissão deste ponto foi intencional. De começo diremos não haver separação nítida entre as artes úteis
ou industriais e as belas-artes. As atividades mencionadas
no capítulo XV contêm em si os fatores que depois se diferenciam em belas-artes e artes úteis. Por exigirem emoções
e imaginação, as artes úteis possuem as qualidades que caracterizam as belas-artes. Pelo requererem método ou habilidade, da adaptação dos instrumentos ao material com perfeição sempre crescente, encerram o elemento técnico indispensável à produção artística. Sob o ponto de vista do produto,
ou do trabalho artístico, elas são, naturalmente, deficientes,
embora, mesmo a este respeito, quando hajam compreendido
real apreciação, tenham frequentes vezes um encanto rudimentar. Como experiências, elas têm qualidades artísticas e
estéticas* Quando as suas atividades são julgadas pelos seus
produtos e pelo valor socialmente utilizável desses produtos,
tornam-se artes úteis ou industriais. No caso de se desen-
261
2. Os valores dos estudos. —• A teoria :dos valores educacionais subentende não só o estudo da natureza da
apreciação para fixar a medida das subsequentes avaliações,
mas também o estudo das direções especiais em que ocorrem essas avaliações. Dar valor (to wlue) significa primacialmente apreciar-se, ter-se em estimação; mas em segundo
lugar quer dizer apreçar, avaliar no sentido de dar o preço
ou de calcular o vaíor. Isto é, significa no primeiro sentido o ato de termos em estima alguma coisa, de nos ser cara
essa coisa, e também de julgar a natureza e a grandeza de
262
Democracia e educação
Valores educacionais
seu valor, comparado com alguma outra coisa. No último
sentido, é avaliar ou calcular o valor. Essa distinção coincide com a feita algumas vezes entre valores intrínsecos e
instrumentais. Os valores intrínsecos não são objetos de julgamento, não podem (por serem intrínsecos) ser comparados
ou considerados maiores ou menores, melhores ou piores. São
inavaliáveis, inestimáveis; e, se alguma coisa for inestimável,
não será nem mais nem menos do que outra coisa também
inestimável. Deparam-se, entretanto, ocasiões em que é necessário escolher, em que precisamos abandonar uma coisa
para tomar outra. Esta * circunstância cria uma ordem de
preferência, um maior e um menor, um melhor e um pior. As
coisas que já foram julgadas pelo seu valor terão de ser estimadas em relação a uma terceira coisa, a algum fim ulterior.
Relativamente a este, elas são meios, ou valores instrumentais.
Imaginemos um homem que às vezes se deleita a palestrar com os amigos, outras a ouvir música, outras a tomar
suas refeições, outras a ler um livro, outras a ganhar dinheiro e assim por diante. Sob o ponto de vista apreciativo, cada uma destas coisas é um valor intrínseco. Ocupa
determinado lugar na vida; serve seu próprio fim, e não pode ter substituto. Não se pode pensar em comparar os valores das mesmas, nem, por conseguinte, em avaliá-las; cada
qual, como bem específico, é o que é, e não se pode dizer
mais do que isto. Em seu próprio lugar, nenhuma é um
meio para alguma coisa além de si mesma. Mas pode haver
alguma situação em que entrem em competência ou conflito,
em que precisemos fazer uma escolha. Surge então a comparação. Já que é necessário escolher-se, precisamos conhecer as respectivas exigências de cada competidora. Que se
pode dizer a respeito de tal ou tal coisa? Avaliada outra
vez, que oferece ela em comparação com alguma outra possibilidade? O fato de surgirem estas questões significa que
aquele determinado bem já não é mais um fim em si mesmo, não é mais um bem intrínseco. Pois, se o fosse, suas
exigências seriam incomparáveis, imperativas. A questão que
se agita agora é quanto à sua condição de meio para realizar outra coisa que será então o elemento inavaliável dessa
situação. Se um homem acabou de tomar sua refeição, ou se
em regra ele se alimenta bem e é raro o ensejo de ouvir música, provavelmente preferirá ouvir música a comer. Na situação referida, a maior contribuição será a da música. E se
estiver nessa ocasião com muita fome ou farto de ouvir música, naturalmente dará mais valor à alimentação. Considerando-se em abstraio ou em geral, fora das necessidades de
uma situação particular em que se deverá fazer uma escolha,
não existem, porém, graus ou categorias de valores.
Seguem-se a isso algumas conclusões sobre os valores
educacionais. E a primeira é que não podemos, em questão
de matérias de estudo, estabelecer uma hierarquia de valores,
É inútil tentar dispo-las em uma ordem que começasse com a
de menor valor e findasse com as de valor máximo. Sempre que um estudo tenha função única ou insubstituível na
experiência e determine um enriquecimento característico da
vida, seu valor será intrínseco ou incomparável. Como a
educação não é um meio para rse viver, e sim se identifica
com o ato de se viver uma vida fecunda e inerentemente significativa, o único valor que em última análise se possa
estabelecer como tal é precisamente o próprio processo de
viver. E isto não é um fim ao qual os estudos e atividades
estejam subordinados como meios; é o todo de que eles são
elementos. E o que foi dito sobre a apreciação significa que
todo o estudo deve ter em algum de seus aspectos essa última significação. Tanto é verdade sobre a aritmética como sobre a poesia que em algum lugar e alguma ocasião devem
constituir um bem apreciado por si mesmo —• como uma experiência agradável, em suma. Se não for assim, quando sobrevierem o lugar e a ocasião de serem usadas como meios
ou instrumentos, deixarão de proporcionar muitos de seus benefícios ; pois, nunca tendo sido compreendidas ou apreciadas
por si mesmas, alguma coisa se terá perdido de sua capacidade corno recurso para outros fins.
Conclui-se igualmente que, quando comparamos os valores dos estudos, isto é, quando tratamos estes como meios
para alguma coisa além deles próprios, o critério para sua
conveniente avaliação deve ser buscado na situação especial
em que vão ser usados. O modo de habilitar um estudante a apreender o valor instrumental da aritmética não é fazer-lhe uma preleção sobre os benefícios que dela advirão
em um futuro remoto e incerto, mas levá-lo descobrir que
o bom êxito daquela determinada coisa em que ele se interessa depende de sua aptidão para utilizar-se dos números.
Segue-se ainda que a tentativa de atribuírem-se diversas
espécies de valor aos diferentes estudos foi um erro, a dês-
263
264
Democracia e educação
Valores educacionais
peito do muito tempo dedicado recentemente a essa empreitada. As ciências, por exemplo, terão todas as espécies de
valores, que dependerão da situação em que elas entrarem como meios. Para alguns pode ser militar o valor da ciência,
servindo para reforçar os meios para a agressão ou a defesa; para outros, técnico, como instrumento para a execução e a engenharia; ou então comercial — para auxiliar
a ter-se bom êxito em negócios; em outras condições será
seu vaíor filantrópico, pelo serviço que prestar para se aliviarem os sofrimentos humanos; ou pode ser exclusivamente
convencional — quando estabelece a condição social de
alguém como pessoa "instruída". O fato é que a ciência é
útil a todos estes fins e que seria arbitrariedade tentar fixar
algum deles como seu fim "verdadeiro". Aquilo de que podemos estar certos é que, em matéria de educação, se deve
ensinar a ciência como um fim* em si mesma na vida do estudante — como uma coisa que tem valor por causa de sua
própria e exclusiva contribuição intrínseca para a experiência da vida. Primariamente deve ela ter "valor estimativo",
valor de apreciação.
Considerando-se alguma outra coisa que, como a poesia,
pareça estar no pólo oposto, aplicar-se-ão essas mesmas observações. Pode suceder que nos tempos atuais o principal valor da poesia consista no prazer que nos proporciona em horas de lazer. Mas isto significará mais um estado de degradação do que uma coisa necessária. A poesia, no passado, esteve associada à religião e à moral; foi útil ao intento
de fazer-nos penetrar no misterioso segredo das coisas. Teve
considerável valor patriótico. Homero para os gregos era
uma Bíblia, um código de moral, uma história e uma inspiração nacional. Em todo caso, pode-se dizer que a educação
que não consegxiir fazer a poesia tornar-se um recurso para
os trabalhos da vida, assim como o é para, os seus lazeres,
terá qualquer coisa que se lhe diga —: ou, então, a poesia
será uma poesia artificial.
Aplicam-se as mesmas considerações ao valor de um estudo ou de dada parte de um estudo com referência à sua
motivação. As pessoas responsáveis pela organização dos planos dos estudos e do ensino devem ter razões para afirmar
que os estudos e as matérias respectivas tanto fornecem diretamente elementos para enriquecer a vida dos alunos, como
também materiais que eles podem utilizar em coisas de interesse imediato. Como o currículo está sempre sobrecarregado com as matérias que a tradição nos legou e com outras
que representam unicamente a imposição de alguma pessoa
ou de algum grupo de pessoas de influência, por motivo de
algum fim de seu agrado, convém submeter-se o mencionado
currículo a uma constante fiscalização, crítica e revisão, para
ter-se a certeza de que está realizando seus verdadeiros objetivos. Além disso, há sempre a probabilidade de que o currículo ou programa represente os valores dos adultos, de
preferência aos das crianças -e adolescentes, ou dos alunos
da geração antecedente e não os dos alunos dos tempos atuais.
Daí a maior necessidade de exame crítico. Mas estas considerações não significam que ter dada matéria valor estimulante
(intrínseco ou instrumental) para o aluno, seja a mesma
coisa que ter ele a consciência do valor dessa matéria ou
ser capaz de dizer para que é útil seu estudo.
Em primeiro lugar, desde que algum ponto interesse
imediatamente o estudante, desnecessário é perguntar qual
a utilidade do mesmo. Esta pergunta só pode ser feita a
respeito dos valores instrumentais. Coisas boas não são boas
para algum fim; são simplesmente boas. Qualquer outra noção a esse respeito conduziria ao absurdo. Pois seriam infindáveis as perguntas acerca das coisas instrumentais, coisas cujo valor estaria em ser úteis para algum fim, a não
ser que em algum ponto se encontre alguma coisa intrinsecamente boa, boa por si própria. Para uma criança sadia
que sinta f orne, o alimento, em sua situação, é o bem; não
precisaremos trazer-lhe à consciência os fins a que se destina o alimento para proporcionar-lhe o motivo para comer.
O alimento em conexão com seu apetite já é o motivo. A
mesma coisa se dá em relação aos estudantes que têm sede
intelectual de conhecer muitas coisas. Nem eles nem o professor poderiam possivelmente predizer com exatidão os fins
que o aprendizado irá realizar no futuro; nem, enquanto perdura essa ânsia de saber, é aconselhável tentar especificar valores particulares que possam provir do estudo de determinadas matérias. A prova de que uma coisa é boa está no fato
de o aluno "responder" a ela; sua "resposta" é uso. Sua
"resposta" à matéria mostra que essa matéria tem função
em sua vida. Não é acertado dizer-se, por exemplo, que o
265
Democracia e educação
Valores educacionais
latim tenha valor per se> em abstraio unicamente em sua qualidade de estudo, como justificação suficiente para o seu ensino. Mas é igualmente absurdo afirmar-se que, se o professor ou o aluno não puderem indicar para o estudo de dada
matéria algum determinado uso futuro, faltará a justificação
do valor desse estudo. Se os discípulos estão verdadeiramente interessados no estudo do latim, isto por si é uma
prova de que ele possui valor. O mais que a pessoa se sinta
autorizada a perguntar em tais casos é se, em vista da exiguidade do tempo disponível, não seria mais avisado estudar
outras coisas de valor intrínseco, que, além desse, tivessem
também maior valor instrumental.
Isto nos conduz ao assunto dos valores instrumentais —
coisas que se estudam por causa de algum fim que se acha
além delas. Se uma criança está enferma e seu apetite não
a-estimula a comer quando lhe apresentam o alimento, ou se
seu apetite se perverteu de modo a fazê-la preferir balas a
carne e legumes, é aconselhável a referência consciente aos
resultados. É necessário torná-la consciente das consequências para se justificar o valor positivo ou negativo de certas
coisas. Ou, em outros casos, o estado de coisas pode ser suficientemente normal e entretanto o indivíduo não se interessa por alguma matéria, porque não compreende quanto a
apropriação de alguma coisa intrinsecamente boa depende do
interesse ativo por aquilo que é apresentado. Em casos tais,
é claramente sensato dar-se a consciência dessa relação. Em
regra,-o que é desejável é apresentar-se a matéria de tal modo que ou tenha valor imediato e dispense justificação, ou
então se perceba ser uni meio de realizar alguma coisa de valor intrínseco. Um valor instrumental terá nesse caso o valor intrínseco de ser um meio para conseguir-se um fim.
Poder-se-á perguntar se parte do interesse pedagógico
atual pelo problema do valor dos estudos não será excessivo
ou muito exíguo. Antolha-se às vezes ser um esforço laborioso para justificar o ensino de matérias que não atuam
já para fim algum direto ou indireto na vida dos alunos.
Outras vezes a reação contra o atravancamento inútil do espírito parece chegar ao ponto de supor que matéria ou coisa
alguma pode ser ensinada a não ser quando o professor possa
indicar alguma bem definida utilidade futura, ou quando o
aluno a veja por si mesmo, es-quecendo-se do fato que a
vida se justifica por si mesma, e de mie as utilidades determinadas que possam ser apontadas só se justificam por
aumentarem o conteúdo de experiências da própria vida.
266
267
3. A segregação e a organização dos valores. —
É, naturalmente, possível, classificar de modo geral os vários
aspectos valiosos da vida. Existe mesmo alguma vantagem
nessa classificação para se conseguir uma revista suficientemente ampla dos objetivos, para dar mais amplitude e plasticidade à empresa da educação. Mas é grande erro considerar esses valores como fins últimos a que se subordinem
os atos concretos da experiência. Eles não são outra coisa
além de generalizações mais ou menos adequadas de valores
concretos. Saúde, riqueza, eficiência, sociabilidade, utilidade,
cultura, felicidade são vocábulos abstratos que condensam numerosas coisas particulares. Considerar essas coisas como
craveiras para a aferição do valor das matérias e processos
de educação concretos, é subordinar a uma abstração os fatos
concretos de que se originou a abstração. Elas não são, em
nenhum sentido verdadeiro, padrões para a avaliação; estes
se encontram, consoante já vimos, nos atos reais específicos
que formam o gosto e habituam a preferências. Têm, contudo, significação como pontos de vista elevados sobre as
particularidades da vida, donde se examina o campo para
se ver como se distribuem as partes que o constituem e se
as mesmas estão bem proporcionadas.
Nenhuma classificação pode ter mais do que um valor
provisório, A que se segue pode, por exemplo, ser de alguma utilidade. Podemos dizer que a espécie de experiência
para a qual o trabalho das escolas contribui é assinalada:
pela capacidade de execução em face dos recursos e obstáculos encontrados (eficiência) ; pela sociabilidade, ou interesse pelo contacto direto com outras pessoas; pelo gosto
estético ou capacidade de apreciar a excelência artística em
algumas, pelo menos, de suas formas clássicas; pelo método
intelectual ou interesse educados para alguma espécie de realização científica; e pela sensibilidade aos direitos e pretensões alheias (o que equivale a ser-se consciencioso). E embora estas considerações não sejam padrões de valores, são
critérios úteis para o exame, para a crítica e para a melhor
coordenação dos métodos existentes e matérias da educação,
268
Democracia e educação
A necessidade destes pontos de vista gerais é maior, por
causa da tendência de segregar os valores educacionais, em
virtude do mútuo isolamento das várias atividades da vida.
Predomina a ideia de que os diversos estudos representam
espécies destacadas de valores, e de que se deve, portanto,
organizar o currículo, reunindo-se vários estudos, até haverse atendido a suficiente variedade de valores independentes.
A seguinte citação não emprega a palavra valor, mas encerra
a noção de programas organizados tendo-se em vista a ideia
de que existe certo número de objetivos isolados a serem
demandados, e de que os estudos adquirem valor por se referir cada qual a seu fim respectivo.
"Educa-se a memória com a maioria dos estudos, mas
principalmente com o de línguas e história. Apura-se o bom
gosto por meio dos estudos mais adiantados de línguas e melhor ainda pela literatura inglesa; a imaginação com o ensino
superior de todas as línguas, mas principalmente com a poesia grega e latina; a observação, com os trabalhos científicos
de laboratório, posto que sirvam um tanto de exercício as
primeiras fases do estudo do latim e do grego; quanto à expressão, em primeiro lugar vêm as composições em grego e
latim e depois as composições em nossa língua; no referente
ao raciocínio abstrato, as matemáticas ficam quase sós, e ao
raciocínio concreto, vêm primeiro as ciências naturais e depois a geometria; quanto ao senso social, têm a precedência
os historiadores e oradores gregos e romanos, e depois a história geral. Por isso, o menor curso que desejar ser completo, deve abranger o latim, um idioma moderno, um pouco
de história, um pouco de nossa literatura e uma ciência natural".
Há muita coisa, neste trecho, sem interesse para o nosso
ponto de vista e que deve ser suprimida, para o tornarmos
maís claro. Essa exposição revela o espírito acanhado da
tradição pedagógica seguida pelo autor. Nota-se aí a sua
sólida convicção de existirem "faculdades" a ser exercitadas
e um interesse preponderante pelas línguas antigas; há um
relativo despreze da terra em que vivem, e do corpo que
sucede aos homens carregarem consigo. Todavia, fazendo
concessões às matérias que disto tratam (e mesmo quando
as desprezam inteiramente) encontramos muita coisa em
nossa filosofia educacional contemporânea que mantém pa-
Valores educacionais
269
ralelismo com a noção fundamental de catalogar os valores
especiais das matérias isolada. Mesmo quando se estabelece algum fim como padrão de valor (per exemplo: a eficiência social ou a cultura) verificar-se-á com frequência ser
apenas um rótulo verbal sob o qual se compreendem vários
elementos desconexos. E embora a tendência geral seja atribuir maior variedade de valores a dado estudo do que o faz
o trecho que citamos, a circunstância de tentar-se arrolar
certo número de valores, atribuindo-os a esta ou àquela matéria, e de mencionar-se o grau de cada valor possuído por
determinado estudo, põe em relevo a desintegração educacional que essa circunstância subentende.
O fato é que tais tabelas de valores dos estudos são
poderosa mas inconsciente justificação do currículo com que
os professores estão familiarizados. Geralmente concordase com o ensino das matérias dos cursos existentes e depois
toca-se a atribuir valores às mesmas, como razão suficiente
para serem ensinadas. Dizem, por exemplo, que as matemáticas têm valor disciplinar para habituar o aluno à exatidão da exposição e ao rigor do raciocínio; possuem valor
utilitário para nos exercitarmos nos cálculos exigidos pelo
comércio e pelas artes; valor cultural para ampliar a imaginação, ao tratarmos das relações mais gerais das coisas;
e até valor religioso pela sua concepção do infinito e ideias
associadas. Mas é claro que as matemáticas não operam
esses resultados por serem dotadas de miraculosos poderes
denominados valores; elas terão estes valores se e quando
operarem esses resultados e não de outra maneira. Essas
considerações, por vezes, auxiliam um professor a ter mais
vasta visão dos resultados que se podem conseguir com o
estudo das matemáticas. Mas infelizmente a tendência é
julgar-se o que foi dito como significando, quer atuem ou
não atuem, poderes inerentes às matérias do ensino, dandolhes assim uma rígida justificação. Se não atuarem, não
se põe a culpa no modo por que foram ensinadas as matérias e sim na indiferença e rebeldia dos alunos.
Esta atitude para com as matérias é outro resultado da
concepção da experiência ou da vida como uma colcha de
retalhos de interesses independentes que existem lado a lado
e se limitam mutuamente. Os que estudam política estão
familiarizados com a teoria da limitação e equilíbrio dos poilcres governamentais. Admite-se existirem funções separa-
2/0
Democracia e cducaçco
das e independentes, como a legislativa, a executiva, a judiciária, a administrativa, e que tudo correrá bem se cada um»
delas limitar as demais, criando assim um equilíbrio ideal
Há uma filosofia que poderia também chamar-se teoria da
limitação e equilíbrio da experiência. A vida apresenta variedade de interesses. Abandonados a si mesmos, eles tendem a entrar em conflito. O ideal é designar um domínio
especial para cada um, até ser coberto todo o terreno da experiência, e em seguida tratar de fazer que cada qual se
mantenha dentro de suas linhas divisórias. Representam esses
interesses a política, as ocupações práticas, as diversões, a
arte, a ciência, as profissões liberais, o polido trato social, a
fruição de lazeres. Cada um deles divide-se em vários ramos: as ocupações práticas em trabalhos manuais, cargos
executivos, trabalhos de guarda-livro s, de vias férreas, bancos,
agricultura, indústria, comércio e assim por diante, em relação aos mais ramos. Uma educação ideal proporcionaria
meios de satisfazer estes interesses separados, como os ninhos
de um pombal. E quando observamos as escolas, tem-se a
impressão de que elas adotam este aspecto da natureza da
vida adulta e empreendem a tarefa de satisfazer suas exigências. Admitem que cada interesse seja uma espécie de instituição fixa à qual deve corresponder alguma coisa nos programas escolares, liste programa deve, por isso, conter um
tanto de educação, cívica e de história sob o ponto de vista
político e patriótico; alguns estudos de utilidade prática; um
pouco de ciências naturais; um pouco de arte (principalmente literária, como é natural); um tanto de diversões; um
pouco de educação moral — e assim por diante. E notarse-á que grande parte da agitação dominante, das discussões
e controvérsias a respeito do ensino, se relaciona com a proporção em que é necessário serem atendidos esses interesses
e com os esforços para garantir no curso, a cada um deles,
sua parte devida; ou, se isto não parecer praticável no regime
escolar dominante, assegurar cursos novos e independentes
para satisfazer essa necessidade. E com essa multidão de
educações fica esquecida a educação.
O resultado inevitável é o congestionamento dos cursos,
é a supertensão mental e a confusão dos alunos, e uma estreita especialização fatal ao verdadeiro ideal educativo. Mas
estes maus resultados encaminham habitualmente a mais coisas da mesma espécie, procuradas como remédio. Quando
Valores educacionais
271
se percebe que após tudo isso não se satisfazem as exigências de uma integral experiência da vida, não se atribui essa
falta à separação e limitação excessiva do ensino das matérias do programa; e por isso a'reorganização do sistema educativo não se baseia no reconhecimento dessas circunstâncias.
Acham que a falta deve ser suprida introduzindo-se no curso
outra espécie de estudos ou criando-se escolas de outra espécie. Em regra, os que se mostram contrários a essa acumulação de matérias, e consequente superficialidade e confusão, recorrem habitualmente, também, a um critério meramente quantitativo; pensam que o remédio é suprimirem-se
numerosas matéria? consideradas supérfluas, e voltar-se ao
bom e velho currículo de leitura, escrita e contas, da educação elementar, e ao igualmente veího e bom currículo de estudos clássicos e matemáticos, na educação secundária e superior.
Este fato, naturalmente, tem explicação histórica. Várias épocas do passado fiveram suas lutas e seus interesses
característicos. Cada uma dessas grandes épocas deixou
após si uma espécie de depósito cultural, como um sedimento geológico. Estes depósitos penetraram nas instituições educacionais sob a forma de estudos, de cursos diferentes, <3e
diferentes tipos de escolas. Com a rápida mudança dos interesses políticos, científicos e económicos no século passado,
necessária se tornou uma provisão de valores novos. Embora os cursos mais antigos resistissem, tiveram de desistir,
pelo menos nos Estados Unidos, de suas pretensões monopolizadoras. Esses cursos, todavia, não tiveram reorganizados seu conteúdo e objetivo; foram apenas reduzidos em
quantidade. Os novos estudos, que representavam os novos
interesses, não foram aproveitados para transformar o método e objetivo cíc toda a instrução: foram apenas encaixados nela como uni acréscimo. O resultado é um conglomerado, cujo cimento consiste no mecanismo dos programas e
dos horários escolares. Surgem daí o esquema de valores
e os padrões de valores a que já nos referimos.
Esta situação em educação representa as divisões e separações realizadas na vida social. A variedade de interesses, que assinalaria uma experiência rica e bem equilibrada,
foi fracionada e confiada a instituições separadas, de finalidades c métodos diversos e independentes. Ocupações prá-
Democracia e educação
Valores educacionais
ticas são ocupações práticas, ciências naturais são ciências
naturais, arte é arte, política é política, intercâmbio social é
intercâmbio social, moral é moral, recreações são recreações,
e assim por diante. Cada qual dessas coisas possui terreno
distinto e independente, com seus objetivos peculiares e seus
peculiares modos de proceder. Cada qual contribui para as
outras somente externa e acidentalmente. Todas elas constituem o todo da vida, exclusivamente por justaposição e
acrescentamento. Que se espera das ocupações práticas a
não ser que produzam dinheiro para ser usado na produção
de mais dinheiro, para o sustento de quem trabalha e de sua
família, para comprar livros e quadros, entradas de concertos que proporcionem cultura, e para empregar-se no pagamento e impostos, em donativos de caridade e em outras coisas de valor ético e social? Como achariam desrazoável esperar que as ocupações práticas incrementassem por si mesmas a cultura da imaginação, no sentido de sua amplitude e
aperfeiçoamento; que tivessem diretamente, e não por meio
do dinheiro que proporcionam, o objetivo de serviço social
como o seu princípio animador e fossem dirigidos como empreendimentos proveitosos à própria organização saciai! A
mesma coisa, tnvttatàs mutandis, pode ser dita sobre a atividade exercida na arte, nas ciências naturais, em política ou em
religião. Cada uma se especializou não somente nos recursos de que se utiliza e no tempo que exige, como também
pelo seu escopo e pelo espírito que as orienta. Inconscientemente nosso curso de estudos e nossas teorias sobre os valores educativos dos estudos refletem essa divisão de interesses.
O ponto crítico de uma teoria de valores educacionais
é, portanto, a unidade ou integração da experiência. Como
poderá esta ser plena e variada sem perder a unidade de
espírito ? Como ser una e mesmo assim não exígua nem
monótona em sua unidade? Em última análise, a questão
de valores e de um padrão de valores é a questão moral da
organização dos interesses da vida. Educacionalmente. a
questão diz respeito à organização de escolas, matérias e
métodos que atuem para a consecução de amplitude e riqueza de experiência. Como poderemos conseguir alargamento de perspectiva ou horizontes sem sacrifício da eficiência da execução? Como conseguir diversidade de inte-
resses sem pagarmos o tributo do isolamento das matérias?
Como adquirir o indivíduo habilidade de execução COM- a sua
inteligência em vez de o ser à custa de sua inteligência? Como poderão a arte, a ciência e a política fortalecer-se umas
às outras para uma rica têmpera do espírito, em vez de constituírem metas demandadas à custa umas das outras? Como
podem os interesses da vida e os estudos que os fortalecem
enriquecer a experiência comum dos homens cm vez de afastá-los uns dos outros? Trataremos nos últimos capítulos dos
problemas de reorganização que essas perguntas levantam.
272
273
Resumo. — Em sua essência, os elementos incluídos
em um exame dos valores já foram estudados na discussão
anterior sobre os objetivos e os interesses. Mas como se
discutem, geralmente, os valores educacionais,, em relação às
várias matérias do currículo, nossas considerações sobre .o
objetivo e o interesse foram aqui resumidas sob o ponto de
vista dos estudos especiais.
A expressão dar valor (to value} tem duas significações completamente diversas. Por uma parte, denota a
atitude de dar apreço a uma coisa por si mesma ou. intrinsecamente. É o nome de uma experiência plena ou completa.
Neste sentido equivale a apreciação. Mas to value (avaliar)
também significa um ato distintamente intelectual •— ato de
comparar e julgar — de avaliar. Ocorre isto quando há
falta de experiência plena direta, e surge a questão de qual
das várias possibilidades de uma situação deva ser preferida
com o fim' de conseguir-se uma plena realização ou uma
experiência vital.
IVão deveremos, no entanto, dividir os estudos dos programas em apreciativos, que são os que nos interessam pelo
valor intrínseco, e instrumentais, que nos interessam por terem valor ou finalidade além de si próprios. A criação de
padrões de valores convenientes em qualquer matéria depende da compreensão da sua contribuição para a significaçãn
imediata da experiência, isto é, para a sua direta apreciação.
A literatura e as belas-artes têm valor particular porque representam a apreciação em seu mais alto grau — uma compreensão elevada das significações por meio da seleção e da
concentração. Mas toda a matéria, por algum aspecto de
seu desenvolvimento, possui qualidade estética para o indivíduo nela interessado.
Democracia e educação
274
A. contribuição, na experiência para imedia tos valores
intrínsecos, e o
seu conjunto como uma espécie de
^
CAPÍTULO 19
Trabalho e laser
te reforçar-se e influenciar-se.
1. A origem do antagonismo. — O isolamento dos
objetivos e valores que estivemos a considerar conduz a antagonismos entre eles. Provavelmente o mais profundo de todos, na história da educação, é entre a educação como preparo para um trabalho útil e a educação para uma vida de
lazeres. As simples expressões "trabalho útil" e "lazeres"
confirmam a asseveração já feita de que a segregação e a
colisão dos valores não são coisas propriamente destes e sim
refletem uma divisão na vida social. Se as duas funções —
conseguir-se um meio de vida pelo trabalho e desfrutar cultamente as oportunidades de lazer — fossem distribuídas
igualmente entre os diversos membros de uma comunidade,
não ocorreria a ninguém a ideia de existir qualquer conflito
de instituições e fins educacionais necessários ao desenvolvimento dessas duas funções. Patentear-se-ia por si mesmo
que a questão seria saber como a educação poderia contribuir eficazmente para ambas as coisas. E malgrado alguém pudesse achar que algumas matérias educativas contribuem principalmente para um dos resultados e, outras matérias, para o outro, seria evidente dever-se ter o cuidado de
assegurar-se a fusão das duas coisas, conforme as condições
o permitissem — isto é, a educação que tivesse mais diretamente em vista os lazeres deveria reforçar o mais possível
a eficiência e a fecundidade do trabalho, ao passo que a que
visasse o trabalho útil deveria criar hábitos sentimentais e
intelectuais que conduzissem a um nobre aproveitamento dos
lazeres.
Estas considerações gerais são em grande parte justificadas pelo desenvolvimento histórico da filosofia educacional. A separação entre a educação liberal e ã educação profissional e industrial remonta aos tempos da Grécia e se derivava claramente dos fundamentos da divisão entre a classe
Democracia c educação
dos que precisavam trabalhar para viver e a dos que se achavam forros desta necessidade. A ideia de que a educação
liberal dada aos homens da última classe é intrinsecamente
mais elevada do que o adestramento servil da primeira, reílete a circunstância de socialmente ser uma dessas classes
livre, c outra escravizada. Esta não só trabalha para sua
própria subsistência, como também para proporcionar à outra chsse meios de subsistir sem se empenhar em ocupações
que tomam quase todo o tempo, e que não são de natureza
a exigir o emprego da inteligência ou a recompensá-la.
Torna-se desnecessário dizer que uma certa quantidade
de trabalho será sempre indispensável aos homens. Os seres humanos necessitam viver e a renovação dos recursos para
a vida exige que trabalhemos. Mesmo que insistamos em
serem meramente materiais e, por consequência, intrinsecamente de mais baixa espécie, os interesses associados ao
ganha-pão, do que os associados com a fruição de lazeres
livres de trabalhos, e embora admitamos existir algo de absorvente e rebelde nos interesses materiais, que os impele a lutar para usurpar o lugar pertencente aos interesses ideais
mais elevados, isto não nos levaria a esquecer (deixando-se
de lado o fato de existirem classes socialmente separadas) a
espécie de educação que habilita os homens a exercerem misteres de xitilidade prática. Levar-nos-ia, antes, a ter escrupuloso cuidado a respeito desses misteres, de modo a serem
os homens adestrados para tornarem-se eficientes neles, e,
mesmo assim, mante-los em seu lugar; a educação trataria de
fazer que evitássemos os males resultantes de lhes permitirmos desenvolver-se ao abandono em antros obscuros. Somente quando uma separação destes interesses coincide com
a divisão em uma classe superior e outra inferior, é que se
encara com desprezo, considerando-a urna indignidade, a
preparação para os labores úteis: circunstância que conduz
à conclusão de que é produto da ordem social a rígida identificação do trabalho com os interesses materiais, e a do lazer com os interesses ideais.
Os corolários educacionais da situação social formulados há mais de dois mil anos exerceram tanta influência e
reconhecem tão clara e logicamente as consequências da divisão em classes trabalhadoras e não trabalhadoras, que merecem especial menção. De acordo com essas ideias o ho-
Trabalho c laser
277
mem ocupa o lugar mais elevado na escala dos seres animados. Ele participa, uni tanto, das funções dos vegetais e
dos animais: a nutritiva, :i reprodutora e a motora. Mas, a
função distintiva do homem é a razão, destinada à contemplação do espetáculo do universo. Por essa causa, a finalidade propriamente humana c o mais completo exercício possível desta característica prerrogativa humana. A vida de
observação, meditação, reflexão e especulação considerada
como um fim em si mesma é a própria do homem. Além
disso, procede da razão o domínio dos mais baixos elementos da natureza humana — os apetites e os impulsos ativos
e motores. Sendo naturalmente gananciosos, insubmissos,
amantes dos excessos, visando unicamente a própria saciedade, eles, quando sujeitos aos ditames da razão, observam
a moderação — a lei da medida — e servem a fins desejáveis.
Tal é a situação sob o ponto de vista psicológico e teórico, e do modo perfeitamente adequado com que Aristóteles
a expôs. Mas este estado de coisas reflete-se na constituição das classes humanas e, por isso, na organização da sociedade. Só em número de pessoas relativamente pequeno
é a função da razão capaz de atuar como lei da vida. No
comum do povo predominam as funções da vida vegetativa
e animal. Sua energia intelectual é tão fraca e inconstante
que com frequência é sobrepujada pelos apetites e paixões
corpóreas. Essas pessoas não são verdadeiramente fins em
si mesmas, pois só a vida racional constitui a última finalidade. Assim como os vegetais, os animais e os instrumentos materiais, elas são meios,,são recursos para atingiremse fins além delas próprias, embora se diferenciem daqueles
por terem inteligência bastante para desempenhar com certo
critério as tarefas que lhes são confiadas. É assim que, por
sua natureza, e não apenas pela convenção social, existem
escravos, isto é, meios para servirem aos fins de outras pessoas (1). A numerosa classe dos artífices, sob importante
aspecto, está em piores condições que a dos próprios escravos. Bem como estes últimos, eles servem fins que lhes
são exteriores; mas, não gozando de íntima associação com
a classe livre superior, a exemplo dos escravos domésticos,
1) Aristóteles não afirma que haja coincidência entre a classe
dos escravos de fato e dos escravos por sua natureza.
[E
278
Democracia c educação
conservam-se em mais baixo nível cie excelência. Além disso,
as mulheres são também incluídas entre os escravos e os artesãos como fatores animados e instrumentais de produção
e reprodução de recursos para se desfrutar uma vida livre
e racional.
Individual e coletivamente existe um abismo entre simplesmente viver e viver dignamente. Para alguém viver
dignamente deverá primeiro viver — e o mesmo se dá com
as coletividades sociais. O tempo e energia gastos meramente para viver, para ganhar meios de subsistência, desfalcam a utilização dos mesmos em atividades de inerente
significação racional. Além disso as atividades de ganhar a
vida desadaptam o homem para a vida racional. Meios são
coisas mesquinhas; o útil é servil. A verdadeira vida só é
possível na proporção em que se satisfaçam as necessidades
materiais sem esforço e sem que estas exijam atenção. Por
isso utilizam-se os escravos, os artífices e as mulheres para
fornecerem meios de subsistência a fim de que outros, os
adequadamente equipados de inteligência, possam viver uma
vida de lazeres dedicados a coisas de valor intrínseco.
A estas duas espécies de ocupações, com sua diferenciação de atividades servis e livres, correspondem dois tipos
de educação: a baixa ou mecânica e a liberal ou intelectual.
Adestram-se algumas pessoas em exercícios práticos convenientes para a aquisição da capacidade de fazer as coisas, da
habilidade de usar os utensílios mecânicos destinados a criar
conforto material e a prestar serviços pessoais. Este adestramento é mera questão de hábito e de habilidade técnica;
efetua-se pela repetição e frequência de emprego e não pela
reflexão ativa e educadora. A educação liberal visa exercitar a inteligência para sua função peculiar: conhecer ou saber. Quanto menos este conhecimento se relacionar com coisas práticas, com o fazer ou produzir coisas, tanto mais adequadamente se empregará nele a inteligência. Com tal coerência Aristóteles traça a divisória entre a educação para os
misteres inferiores e a liberal, que inclui aquilo a que atualmente chamam "belas-artes" — a música, a pintura e a escultura, no que diz respeito a sua prática, na mesma classe
das artes servis. Elas subentendem fatores físicos, prática
perseverante e resultados exteriores. Referindo-se, por exemplo, à educação musical, ele propõe a questão de saber-se
Trabalho c lazer
279
até que ponto deverão os jovens exercitar-se a tocar instrumentos. Sua resposta é que a prática e a proficiência nessa
direçao é tolerável desde que seu fim seja conduzir à apreciação, isto é, a compreender o valor da música e deleitar-se
com ela quando tocada por escravos ou profissionais. Se o
fim do aprendizado for profissional, a música decai do nível
dos estudos liberais para o dos profissionais. Seria o mesmo que aprender-se a cozinhar, diz Aristóteles. O próprio
interesse liberal pelas obras de arte depende da existência
de uma classe mer-cenária de profissionais que restringiram
o desenvolvimento de sua personalidade à realização do ideal
da obtenção de habilidade mecânica para a execução das
referidas obras de arte. Quanto mais alta for a atividade,
mais puramente mental será; e quanto menos elevada for,
maior será seu contacto com as coisas materiais ou com o
corpo humano. Quanto mais puramente mental, mais independente será, ou mais se bastará a si mesma.
Estas últimas palavras trazem-nos à lembrança que, mesmo
os que vivem vida racional, Aristóteles os divide em superiores
e inferiores. Pois há uma distinção nos fins e nas ações
livres, conforme na vida de alguém seja utilizada a razão, ou
seja a razão seu ambiente. Exemplo: o cidadão livre que se
dedica à vida pública da comunidade, tomando parte na direção dos negócios desta e granjeando honras e distinção pes• soai, leva uma vida associada à razão. Mas o pensador, o homem que se dedica a investigações científicas e especulações
filosóficas, trabalha, por assim dizer, na razão e não, simplesmente, cottt a razão. Por outras palavras — até a atividade do
cidadão em suas relações cívicas repassa-se um tanto do estigma
dos trabalhos práticos, da atividade exterior ou meramente
instrumental. Esta contaminação é patenteada pelo fato de
que a atividade e a excelência cívicas necessitam do auxílio de
outrem; uma pessoa não pode, isoladamente, devotar-se à vida
pública. Todas as necessidades, todos os desejos, subentendem,
aliás, na filosofia de Aristóteles, um elemento material; implicam falta, privação; dependem, para satisfazer-se, de alguma coisa exterior a si próprios. Já uma vida puramente intelectual, um indivíduo a leva por si mesmo, em si mesmo:
se outrem lhe presta auxílio, é este mais acessório do que
intrínseco. Na vida abstrata, a razão, conhecendo, atinge a
plenitude de sua própria manifestação. O conhecimento pelo
conhecimento, o saber pelo saber, independentemente de qual-
280
Democracia e educação
«jiier aplicação prática, só isto é independência ou autosuficiência. Por isso só c veramente liberal ou livre a educação
que converte a faculdade de conhecer em uni fim por si mesmo,
sem referencia a aios práticos e nem mesmo aos deveres
cívicos.
2. A situação atual. — Se a concepção de Aristóteles representasse unicamente a opinião pessoal de Aristóteles, seria ela apenas uma curiosidade histórica mais ou menos
interessante. Serviria como exemplo da falta de simpatia humana ou das proporções em que pode a pedantaria académica
coexistir com extraordinários dotes intelectuais. Mas Aristóteles unicamente descreveu com clarividência, e sem a infidelidade sempre resultante da confusão mental, o espectáculo da
vida que tinha à sua frente. Desnecessário é dizer-se que de
seus tempos para cá a situação social mudou grandemente.
Mas apesar dessa mudança, apesar da abolição da escravidão
legal e da propagação das ideias democráticas, malgrado os
progressos da ciência c da educação geral (pelos livros, jornais, viagens e relações sociais gerais, assim como pelo ensino
das escolas), ainda remanesce bastante da bipartição da sociedade em uma classe douta e outra in-douta, em uma trabalhadora
e outra ociosa, para tornar seu ponto de vista bem esclarecedor,
de modo a criticar-se por meio dele ou nele a separação entre
a -cultura e a utilidade na educação atual. Atrás da distinção
intelectual e abstraía que figura na discussão pedagógica do
assunto, surge, assim, umg, distinção social entre aqueles cujas
ocupações exigem um mínimo de reflexão auto-orientadora e
de apreciação estética, e os que se interessam mais imediatamente pelas coisas da inteligência e pela regulação da atívidade alheia.
Aristóteles tinha certamente toda a razão ao dizer que
"toda a ocupação, arte ou estudo, merece denominar-se mecânica se tornar o corpo, a alma ou a inteligência das pessoas
livres inaptos ao exercício e à prática da excelência". A força
desta asseveração aumenta quase infinitamente quando nos
damos acordo de que, presentemente, segundo as chamamos,
todas as pessoas são livres, à exceção de relativamente poucas.
Pois quando o comum dos homens e todas as mulheres eram
considerados servos pela natureza tanto de seus corpos como
de seus espíritos, não havia confusão intelectual nem hipocrisia
moral no dar-lhes unicamente uma educação que os preparava
Trabalho c laser
281
para obter habilidade mecânica, sem que se tivesse em vista
seu efeito ulterior sobre a capacidade de participarem de uma
vida digna deste nome. Também tinha ele toda a razão
quando chegou a afirmar que "todos os trabalhos mercenários,
assim como os que prejudicam as condições do corpo, são
mecânicos desde que privam a inteligência de lazeres e dignidade", isto é, quando as ocupações de ganhar a vida, de fato,
privam a inteligência das condições necessárias ao seu exercício
e, assim, de sua dignidade. A falsidade de suas afirmativas
está no identificar uma fase dos costumes sociais com uma
necessidade natural. Mas uma opinião diferente sobre as relações do espírito com a matéria, do espírito com o corpo, da
inteligência com os serviços sociais, somente será melhor que
a de Aristóteles quando contribuir para fazer cair em desuso
essa idéía antiquada, na díreção atual da vida e da educação.
Assistia toda razão a Aristóteles ao admitir a inferioridade
e subordinação da simples habilidade de execução e da simples acumulação de produtos exteriores ao entendimento, à
apreciação simpática e ao livre exercício do pensamento. Se
havia erro era no presumir a separação necessária dessas duas
coisas: em supor a existência de um divórcio natural entre a
eficiência para produzir coisas úteis e para prestar serviços, e
o pensamento ou a reflexão auto-orientadora; entre saber
significativo e eficiência prática. Dificilmente melhoraremos
as coisas se nos limitarmos a corrigir seu equivoco teórico, tolerando o estado social de coisas que originou e confirmou sua
concepção. Mais perderemos do que ganharemos na mudança
da servidão para a cidadania livre, se o mais valioso resultado
da mudança for apenas um aumento da eficiência mecânica
dos instrumentos humanos de produção. Será antes perda que
proveito chegarmos a considerar a inteligência um meio de
dominar a natureza por intermédio da ação, se nós permitirmos
que perdure um estado ininteligente e de escravidão para aqueles que diretamente extraem utilidades da natureza, deixando
a inteligência que os dirige ser privilégio exclusivo dos distantes
cientistas e capitães da indústria. Só ficaremos em situação
de honestamente criticar a divisão da vida em funções separadas e da sociedade em classes separadas, na proporção em
que nos livrarmos da responsabilidade de perpetuar as práticas
educativas que exercitam o maior número para ocupações que
exigem unicamente habilidade produtora e poucos para adquirirem conhecimentos que são ornatos e requintes culturais.
Democracia e educação
Trabalho e laser
Em suína, para sermos capazes de ultrapassar a filosofia
grega sobre a vida e a educação, não basta variarmos na adoção de símbolos abstratos que signifiquem livre, racional e digno.
Também não é bastante operar uma mudança de sentimentos
no tocante à dignidade do trabalho, e à superioridade de uma
vida laboriosa sobre a daqueles que em seu isolamento gozam
de uma independência que se basta a si mesma. Importantes
como são estas mudanças teóricas e emocionais, elas só se
completarão quando se refletirem no desenvolvimento de uma
sociedade verdadeiramente democrática, áociedade em que todos
tomem parte em serviços de utilidade prática e todos desfrutem nobres ócios. Não é a simples mudança dos conceitos
da cultura — ou mentalidade liberal —• e dos serviços sociais,
que requer uma reorganização educacional — necessita-se, sim,
da transformação educacional para fazer que produzam plenos
e manifestos resultados as mudanças realizadas na ordem social. A crescente emancipação política e económica das "massas" chegou até à educação; efetuou o desenvolvimento de um
regime escolar comum, público e livre, de educação. Destruiu
a ideia de que o saber é monopólio dos poucos predestinados pela
natureza a dirigir os negócios públicos. Mas a revolução foi
incompleta. Prevalece ainda da ideia de que uma educação
verdadeiramente cultural ou liberal nada tem de comum, pelo
menos diretamente, com a ativídade industrial, e de que a
educação adequada para as massas deve ser útil ou prática, em
um sentido que contraria o desenvolvimento da apreciação e
da emancipação intelectual.
Como consequência disto, nosso atua! sistema de educação é um misto incoerente. Conservam-se certos estudos e
métodos na suposição de serem particularmente liberais, tomando-se principalmente a palavra "liberal" no sentido de —
inútil para fins práticos. Este aspecto é especialmente visível
naquilo que se .denomina educação superior, isto é, a das
academias e preparação para estas. Mas, também, se insinuou
nos cursos elementares e domina em grande extensão seus processos e objetivos. Por outro lado, foram feitas certas concessões às massas que precisam esforçar-se por ganhar sua
subsistência, e ao papel mais vultoso da atividade económica
na vida moderna. Apresentam-se estas concessões nas escolas e cursos especiais profissionais, nos cursos de engenharia,
de artífices, nos cursos comerciais, nos cursos vocacionais e
prcvocacionais; c bem assim no intuito com que se ensinam
eertas matérias elementares, como leitura, escrita e contas. O
resultado é um sistema em que os elementos "cultural" e "utilitário" formam um agregado não organizado, do qual o
primeiro elemento não é utilizável para os fins sociais dominantes e o segundo não desenvolve a imaginação ou a faculdade da reflexão,
Na situação a nós legada pelo passado, há um curioso
entrelaçamento, até no mesmo estudo, de concessões ao utilitarismo, e de um resíduo de elementos destinados, dantes,
exclusivamente à preparação para a vida de lazer. O elemento
"utilitário" está nos motivos atribuídos ao estudo, e o "liberal" nos métodos de ensino. O resultado desse amálgama é
talvez menos satisfatório do que se fosse mantido em sua
pureza um ou outro dos dois princípios mencionados. O
motivo admitido popularmente para que 09 estudos dos quatro
ou cinco primeiros anos consistam quase exclusivamente em
leitura, escrita, ortografia e aritmética, é, por exemplo, que
saber perfeitamente ler, escrever e fazer contas é indispensável para as pessoas progredirem em suas carreiras. Estes
estudos são tratados como simples instrumentos para a obtenção de empregos remunerados ou para ulteriores progressos na
continuação dos estudos/ conforme os alunos continuem ou
não continuem a cursar escolas. Reflete-se essa atitude no
relevo posto em "exercícios" e prática para se conseguir habilidade automática. Se volvermos a atenção para o ensino
entre os gregos, veremos que desde os primeiros anos a aquisição de habilidade se subordinava o quanto possível à assimilação de textos literários providos de significação estética e
moral. A coisa principal era a matéria estudada e, não, dar-se
ao aluno um instrumento para subsequente uso. Todavia, o
isolamento desses estudos da aplicação prática, sua redução a
artifícios meramente simbólicos, representa, na escola atual,
uma sobrevivência do ideal de uma educação liberal divorciada
do utilitarismo. Uma adoção completa do ideal da utilidade
teria levado a uma instrução que vinculasse os estudos a situações a que eles fossem diretamente necessários e às quais
fossem imediata e, não, remotamente úteis. Será difícil encontrar-se no currículo uma só matéria cujo ensino não apresente
os maus resultados cie uma associação dos dois ideais antagónicos. Recomendam-se as ciências naturais por sua utilidade
prática, mas são ensinadas de modo a afastá-las de aplicações
práticas. Por outro lado, jnstifica-se teoricamente o ensino de
282
283
284
música e literatura pelo seu valor cultural, mas depois, ao serem
ensinadas, insiste-se principalmente em fazer adquirir especiais
técnicas de habilidade.
Se houvesse menos espírito de transação entre os dois
ideais, e menos confusão resultante, se analisássemos com
mais cuidado as significações de cultura e de utilitarismo,
muito mais fácil seria organizar um curso que, ao mesmo
tempo, fosse utilitário e liberal. Só uma espécie de superstição
nos faz crer que as duas coisas são necessariamente antagónicas, de modo que dada matéria não é liberal por ser útil,
e outra é cultural por ser inútil. Verificar-se-á que em geral
a instrução que, visando resultados utilitários, sacrificar o
desenvolvimento da imaginação, o apuro do gosto e a profundidade da atividade intelectual — valores culturais indubitavelmente — também no mesmo grau limitará a utilização daquilo que foi aprendido. Não é que se torne totalmente
desproveitosa, e sim porque sua aplicação se restringe às atividades rotineiras em que uma pessoa se empenha sob a direção de outrem. As espécies restritas de habilidades não
podem ser úteis além de si mesmas; toda a espécie de aptidão
obtida com o aprofundamento dos conhecimentos e aperfeiçoamento da faculdade de julgar pode ser facilmente usada em
situações novas e fica sob nossa direção pessoal. Não foi a
simples circunstância de terem certas atividades utilidade social e económica que as fez parecer servis aos gregos e sim o
fato de, em seu tempo, essas atividades associadas diretamente
ao ato de ganhar-se a subsistência não serem a manifestação de
uma inteligência educada, nem exercida por causa de uma
apreciação pessoal de sua significação. Na proporção em que
os trabalhos agrícolas e de ofícios eram rotineiros, empregados
para a obtenção de resultados exteriores aos espíritos dos
que os exerciam, tornavam-se iliberais — mas somente nessa
proporção. Mudou-se agora a situação intelectual e social
desses trabalhos. Os elementos que na indústria eram fornecidos simplesmente pelo costume e pela rotina foram subordinados na maioria das profissões e ofícios a recursos provenientes das investigações científicas. As mais importantes
ocupações de nossos tempos representam as matemáticas, a física e a química aplicadas e delas dependem. Alargou-se tão
indefinidamente a superfície povoada, do globo influenciada
pela produção económica, e influindo no consumo, que entram,
Trabalho c lazer
285
aí, em jogo considerações geográficas e políticas de extensão
quase infinita. Era natural que PLATÃO combatesse o ensino
da geometria e da aritmética para fins úteis devido às suas
poucas aplicações práticas, e por serem estas desprovidas de
conteúdo e da mais mercenária qualidade. Mas como suas
utilizações sociais se ampliaram e divulgaram, seu valor "liberalizante" ou "intelectual" e seu valor prático atingiram
proximamente o mesmo nível.
Sem dúvida o fator que nos impede de, reconhecer e
empregar plenamente a identificação destas duss coisas é constituído principalmente pelas condições em que em grande escala o trabalho ainda é feito. A invenção das máquinas
aumentou a quantidade de lazeres que se tornam possíveis
mesmo quando se está a trabalhar. Já é lugar-comum dizer-se
que a aquisição de habilidade, sob a forma de hábitos automáticos, liberta o espírito, possibilitando-lhe o entregar-se a
espécies mais elevadas de reflexão. Algo da mesma natureza
verificou-se com a introdução das operações mecanicamente
automáticas na indústria. Estas podem aliviar o espírito, permitindo-lhe refletir sobre outras coisas. Mas quando restringimos a educação dos trabalhadores manuais a alguns poucos
anos de estudo, dedicados, na -sua maior parte, ao aprendizado
do uso de símbolos rudimentares em detrimento do aprendizado de ciências naturais, literatura e história, deixamos de
preparar os espíritos dos trabalhadores para tirarem vantagens
dessas oportunidades. Mais importante é o faio de a grande
maioria dos trabalhadores não conhecer as finalidades sociais
de seu labor e não ter nele um interesse direto pessoal. Os
resultados que eles obtêm com seu esforço não são o objetivo
de suas açõcs e sim unicamente o objetivo de seus superiores,
Eles não fazem livre e inteligentemente o seu trabalho e sim
tendo em vista o salário a ganhar. Esta é a circunstância
que torna iliberal o seu trabalho e esse efeito é o que torna
iliberal e imoral qualquer educação destinada unicamente a dar
habilidade para tais trabalhos. A atividade não é livre porque
não é livremente que se participa da mesma.
Não obstante, existe já oportunidade para dar-se uma
educação que, tendo em mira, em traços mais salientes, o
trabalho, reconciliará a cultura liberal com a educação socialmente útil, com a aptidão de compartir, eficientemente e
Democracia e educação
Trabalho e lazer
com prazer, ocupações produtivas. E tal educação tenderá por
si mesma a eliminar os males da presente situação económica.
Quanto mais interesse ativo tiverem os homens pelos fins a
que obedece a sua atividade, tanto mais livre e voluntária será
essa atividade, perdendo sua exterior qualidade forçada e servil,
ainda que continue a ser o mesmo, o aspecto material de seu
modo de trabalhar. Naquilo que se chama política, a organização social democrática adota medidas para a participação
imediata na direção social, mas no terreno económico a direção
continua exterior e autocrática. Daí a separação entre a íntima atividade mental e a ação física externa, da qual é o
reflexo a distinção tradicional entre o liberal e o utilitário.
Uma educação que unificasse a atitude mental dos membros
da sociedade contribuiria muito para unificar a própria
sociedade.
manter a separação educacional, com transigências mútuas
que muitas vezes diminuem a eficácia das medidas educacionais. O problema da educação em uma sociedade democrática é acabar com esse dualismo e organizar um curso de estudos que torne a reflexão, para todos, um guia no livre exercício
da atividade prática e faça que os lazeres sejam a recompensa
da aceitação da responsabilidade dos serviços práticos, de
preferência a ser um estado em que se goze da isenção destes
serviços.
286
Resumo. — Da segregação dos valores educacionais
de que tratamos no último capítulo, a mais importante é a
entre a cultura e a utilidade. Pensa-se com frequência que a
distinção seja intrínseca e absoluta, quando ela realmente é
histórica e social. Sua mais remota formulação consciente
operou-se na Grécia e baseava-se na circunstância de que a
verdadeira vida humana era vivida somente pelos poucos que
subsistiam à custa dos resultados do trabalho alheio. Esta
circunstância influenciou a doutrina psicológica das relações
entre a inteligência e o desejo ou apetites, entre a teoria e a
prática. Encarnou-se na teoria politica de uma divisão permanente dos seres humanos em pessoas capazes de viver a
vida da razão e, por esse motivo, tendo seus próprios fins, e
pessoas capazes unicamente de ter apetites e de trabalhar, precisando, por isso, orientar-se pelos fins impostos por outras
pessoas. No terreno pedagógico, as duas distinções — a psicológica e a política — originaram a separação entre a educação liberal, que serve a uma vida auto-suíiciente de lazeres
dedicados ao saber pelo saber, e a preparação utilitária e prática para as ocupações mecânicas, preparação desprovida de
conteúdo intelectual c estético.
Embora a situação presente seja radicalmente outra na
teoria e esteja muito mudada na prática, os fatores históricos
do antigo estado de coisas ainda perduram o bastante para
287
Estudos intelectuais c estudos práticos
CAPÍTULO 20
Esttidos intelectuais e estudos práticos
l
O antagonismo entre a experiência e o verdadeiro conhecimento. - Assim como se contrapõem o trabalho para ganhar a vida e o gozo de lazeres, também se faz
o mesmo com a teoria e a prática, a inteligência e a açao, o
saber e o :fazer. Estes últimos antagonismos promanam,
indubitavelmente, das mesmas condições sociais que geram^a
primeira oposição; mas determinados problemas de educação
relacionados com eles tornam desejável examinar claramente as
conexões e a pretensa separação entre o saber e o fazer.
Tem longa história a noção de que os conhecimentos
provêm de fonte mais elevada que a atividade pratica, e po_ssuein valor mais elevado e mais espiritual. Na ^ exposição
consciente desta matéria, a história transporta-nos as concepções de experiência e de razão formuladas por Platão e Anstóteles Malgrado as grandes divergências, sob muitos pontos de vista, entre estes pensadores, eles concordavam em
identificar a experiência com os interesses puramente práticos- e, por consequência, tendo como alvo os interesses materiais e como órgão o corpo humano. Por outro lado, o conhecimento existia por si mesmo, livre de associações com a
prática, e tinha como fonte e órgão um espirito perteitamente imaterial; as suas relações eram com os _interesses espirituais ou ideais. Ainda mais - a experiência sempre subentendia falta, necessidade, desejo; nunca se bastava a si
mesma. O conhecimento racional, entretanto, era completo
e compreensivo, em .si mesmo. Por isso a vida pratica se encontrava em uma condição de perpétuo fluxo, ao passo que
ao conhecimento intelectual o que interessava era a verdade
eterna.
Fsta forte antítese relacioiiava-se com o fato de ter a
filosofia uteniense começado pela crítica aos costumes e a
289
tradição como padrões para o conhecimento e a conduta.
Buscando coisa que os substituísse, acharam que só a razão
era o verdadeiro guia da crença e da atividade. Como os
costumes e a tradição se identificavam com a experiência, itiferia-se diretamente que a razão era superior à experiência.
Demais disso, a experiência, não se mantendo nessa posição
subordinada, que lhe era própria, tornava-se o grande obstáculo ao reconhecimento da verdadeira autoridade da razão.
Como os costumes e as crenças tradicionais mantinham os
homens no cativeiro, a luta da razão pela sua legítima supremacia só poderia ser ganha mostrando-se a natureza inerentemente instável e insuficiente da experiência.
A afirmação de Platão de que os filósofos deveriam ser
os reis será melhor compreendida como a afirmação de que
os negócios humanos deveriam ser regulados pela inteligência racional e não pelos hábitos, apetites, impulsos instintivos e emoções. A primeira assegura o reinado da unidade,
da ordem e da lei; as últimas significam multiplicidade e
discórdia, oscilações irracionais de um estado a outro.
Não é preciso ir longe para se descobrirem os fundamentos da identificação da experiência com a insatisfatória
condição das coisas, o estado de coisas representado pela
mera preponderância dos costumes. O incremento do comércio e das viagens, as colonizações, migrações e guerras
dilataram o horizonte intelectual. Verificou-se que os costumes e as crenças dos diferentes povos divergiam consideravelmente. As perturbações civis tornaram-se habituais em
Atenas; as fortunas da cidade pareciam ter-se entregue às
lutas de facções. Coincidindo o aumento dos lazeres com
a ampliação dos horizontes, muitos novos fenómenos da natureza passaram a atrair a atenção e a estimular a curiosidade e as especulações. A situação tendia a pôr em discussão a existência ou não existência de qualquer coisa constante e universal nos domínios da natureza e da sociedade.
Ora, a razão era a faculdade com que se apreendiam o princípio e a essência universais, ao passo que 05 sentidos eram
os órgãos que percebiam as mudanças —• o instável e o variado em contraste com o permanente e o uniforme. O resultado do trabalho dos sentidos, conservado na memória e
na imaginação, e empregado com a habilidade conferida pelo
hábito, constituía a experiência.
290
Democracia e educação
O melhor da experiência é, por esta forma, representado pelos vários trabalhos manuais — pelas artes da paz e
da guerra. O sapateiro, o tocador de flauta, o soldado, sofreram a disciplina da experiência para adquirirem suas habilidades. Quer isto dizer que os órgãos do corpo, especialmente os dos sentidos, tiveram repetidos contactos com as
coisas, e que o resultado desses contactos foi conservado e
consolidado até se conseguir a aptidão para prever e a habilidade prática. Tal era a significação essencial do termo.
"empírico". Este termo sugeria conhecimentos e habilidades
não baseados no conhecimento dos princípios, e sim nos resultados de grande número de tentativas isoladas. Continha
a ideia agora encerrada na expressão "método de experiência
e erro" insistindo especialmente sobre o caráter mais ou menos aleatório das experiências. Em relação à faculdade de
direção, de regulação ou controle, isto equivalia ao método
rotineiro e autoritário. Se as novas circunstâncias se assemelhassem às passadas, tudo poderia correr muito bem; mas
quanto mais diferissem das últimas, mais provável se tornava
o mau êxito. Mesmo hoje, dizer que um médico é empírico, é significar que lhe falta educação científica e que ele
procede baseando-se meramente naquilo que sucedeu aprender com os tratamentos feitos ao acaso, em sua clínica anterior. Precisamente porque a "experiência" era desprovida de
ciência e de razão, tornava-se difícil íazê-la produzir os melhores de seus humildes frutos. O empírico degenera facilmente no charlatão. Ele ignora onde principiam ou acabam
seus conhecimentos e, por isso, ao sair de suas condições rotineiras, começa a afirmar aquilo que não pode justificar,
a confiar na sorte e na sua habilidade de se impor à confiança alheia — enfim, a "trucar de falso". Além disso, presume que por ter aprendido uma coisa sabe outras, assim
como os artífices comuns, na antiga Atenas, supunham que
podiam e sabiam tratar dos negócios domésticos, da educação
e da política por terem aprendido a fazer as coisas particulares de seus ofícios. A experiência, portanto, está sempre a
oscilar à beira da pretensão, do fingimento, do cultivo das
aparências, ao contrário da razão que se apega sempre à realidade.
Desse estado de coisas os filósofos logo tiraram certas
generalizações. Os sentidos se relacionam com os apetites,
com as necessidades e com os desejos. Eles não se pren-
Estudos intelectuais c estudos práticos
291
à realidade das coisas e sim às relações das coisas com
os nossas prazeres e sofrimentos, à satisfação das necessidades e ao bem-estar do corpo. São apenas importantes
para a vida corpórea, que é unicamente uni substratum fixo
para uma vida mais elevada. A experiência tem, assim, um
caráter definidamente material; tem que lidar com as coisas
físicas em relação com o corpo.
Ao invés disso, a razão ou a ciência apega-se ao imaterial, ao ideal e ao espiritual. Há qualquer coisa de moralmente perigoso na experiência, como o sugerem as palavras sensual, carnal, material, mundano, ao passo que a razão e o espírito puros significam qualquer coisa de moralmente estimável. Além disso, a experiência está ligada a
uma inelutável conexão com o mutável, com o inexplicavelmente incerto, com o múltiplo e com o vário. Seu material
é por natureza variável e inseguro. É anárquico, por ser
instável. O homem que confia na experiência ignora aquilo
com que pode contar, porquanto ela varia de pessoa a pessoa, dia a dia, para não se dizer nada de país a país. A
conexão dela com .o "múltiplo", com várias coisas particulares, produz o mesmo efeito e também acarreta conflitos.
Somente o único, o uniforme, assegura coerência e harmonia. Da experiência surgem lutas, conflitos de opiniões
e de atos, no indivíduo e entre indivíduos. Da experiência
não pode provir nenhum padrão de certeza, porque é da
própria natureza da experiência fomentar todas as espécies
de crenças contrárias, como o provam as variedades de costumes locais. A consequência lógica é de que é bom e verdadeiro para dado indivíduo tudo aquilo que sua experiência o leva a crer seja verdadeiro e bom em determinado
tempo e lugar.
Mas, por seu lado, a prática incide necessariamente nos
domínios da experiência. O ato de fazer é originado por necessidades e aspira a uma mudança. Produzir ou fazer é
modificar alguma coisa; consumir é modificar também. Todos os caracteres prejudiciais das mutações e da variedade
se prendem ao fazer, ao passo que o conhecer é tão permanente como seu objeto. O conhecimento, a apreensão intelectual ou teórica de uma coisa acha-se portanto, fora do
domínio das vicissitudes, do acaso e da diversidade. Nada
falta à verdade; ela é inacessível às perturbações do inundo
dos sentidos. Kla trata do eterno e do universal. E o mun-
292
Democracia e educação
do da experiência pode ser regulado por ela, pode ser consolidado e ordenado somente pela sujeição à sua lei racional.
Não quer isto dizer, naturalmente, que todas estas distinções persistiram em sua completa definição técnica. Mas
todas elas influenciaram profundamente o pensamento subsequente dos homens e suas ideias sobre a educação. O
desprezo pelas ciências físicas em comparação com as ciências matemáticas e lógicas, pelos sentidos e impressões sensoriais, o sentimento de que o conhecimento é tanto mais
alto e digno quanto mais se aplique a símbolos ideais e não
a coisas concretas, o desprezo dos particulares exceto quando são dedutivamente extraídos de um universal, a desatenção pelo corpo, o menosprezo pelas artes e ofícios como instrumento para a educação intelectual — tudo isto foi acolhido e sancionado por esta apreciação dos valores respectivos da experiência e da razão — ou, o que vem a dar na
mesma — das coisas práticas e das intelectuais. A filosofia
medieval continuou e robusteceu a tradição. Conhecer a realidade significava estar em relação com a suprema realidade
ou 'Deus, e gozar a eterna beatitude desta relação, A contemplação da realidade suprema era a finalidade última do
homem, e a ação ficava subordinada a ela. A experiência
referia-se às coisas mundanas, profanas e seculares, que,
em verdade, eram praticamente necessárias, mas de pouca
importância em confronto com os objetos sobrenaturais do
conhecimento. Quando acrescentarmos a este motivo a força
adveniente da natureza literária da educação romana e da tradição filosófica grega, e a isso juntarmos a preferência pelos
estudos que claramente extremavam a classe aristocrática das
classes inferiores, poderemos facilmente compreender o formidável influxo da preferência persistente pelas coisas "intelectuais", em detrimento das "práticas", não só nas filosofias educacionais, como também nas escolas superiores.
2. A teoria moderna sobre a experiência e o conhecimento. — Conforme ainda o veremos, o desenvolvimento da experimentação como o método do conhecimento
torna possível e necessária uma transformação radical das
opiniões que acabamos de reproduzir. Mas antes de checarmos a esse ponto, precisamos examinar a teoria sobre a experiênch e o conhecimento desenvolvida nos séculos dezessete e dezoito. De um modo geral, opera-se uma inversão
Estudos intelectuais e estudos práticos
293
quase completa da doutrina clássica sobre as relações entre
a experiência e a razão. Para Platão experiência significava hábitos, costumes, ou conservação do produto de uma
série de casuais experiências anteriores. Razão significava
o princípio de reforma, de progresso, de aumento de domínío. A dedicação à causa da razão .significava romper com
as limitações do costume e verem-se as coisas como realmente
eram. Para os reformadores modernos, a situação era exatamente contrária. A razão, os princípios universais, as noções a priorij, significavam formas vazias que precisariam
ser enchidas pela experiência, pelas impressões sensoriais,
com o fim de adquirirem significação e valor, ou, então, não
passavam de arraigados preconceitos, dogmas impostos pela
autoridade, que se rebuçavam e buscavam abrigo em veneráveis nomes. Urgia emanciparmo-nos desse cativeiro para
com as concepções que, segundo Bacon o disse, "se sobrepunham à natureza" e impunham opiniões meramente humanas sobre ela, e recorrer à experiência para desvendar-se o
que era a natureza. Apelar para a experiência assinalava
o rompimento com a autoridade. Significava um franquearse às novas impressões, a ânsia de descobrir e inventar, em
vez de absorver-se a catalogar, a sistematizar as ideias recebidas, "provando-as" por meio de suas mútuas relações. Isto
significava a irrupção no espírito, das coisas como realmente
eram, livres do véu com que as ideias preconcebidas as recobriam,
Dupla foi a mudança. A experiência perdeu a significação prática que tivera desde os tempos de Platão, Ela
cessava de significar meios de fazer e realizar e tornou-s«
o nome de qualquer coisa intelectual e cognitiva. Passou a
designar a aquisição de material que servisse de lastro e limite para o exercício do raciocínio. Pelo empirismo filosófico moderno e pela corrente contrária a ele, a experiência
foi considerada um meio de adquirir conhecimentos. A única questão consistia em saber até que ponto esse meio era
bom e válido. O resultado foi um "intelectualismo" ainda
maior do que o da filosofia antiga, se essa palavra for usada para designar um interesse predominante e quase exclusivo pelos conhecimentos em seu isolamento. A prática era
já não tanto subordinada ao conhecimento, como tratada,
de preferência, como uma espécie de apêndice, subproduto,
295
Democracia e educação
Esf udos intelectuais c estudos práticos
ou restolho dn mesmo, O resultado educativo foi apenas
confirmar a exclusão dos trabalhos ativos da escola, salvo
quando empreendidos para fins simplesmente utilitários —
para a aquisição, por meio de exercícios intensificados
(drill), de certos hábitos. Em segundo lugar, o interesse
pela experiência como meio de basear a verdade em objetos, na natureza, levou a considerar o espírito como sendo
puramente receptivo. Quanto mais passivo o espírito, mais
verdadeiras serão as impressões que os objetos lhe causarem.
Pois, para assim dizermos, tomar o espírito uma iniciativa,
seria, no genuíno processo do conhecer, eivar o verdadeiro
conhecimento —• contrariar seu próprio intuito. O ideal era
um máximo de receptividade.
Como em geral eram denominadas sensações as impressões causadas no espírito pelos objetos, o empirismo tornou-se a doutrina sensacionalista — isto é, uma doutrina que
identificava o conhecimento com a recepção e a associação
das impressões sensoriais. Em John Locke, o empiricista
que teve maior influência, encontramos esse sensacionalismo
atenuado pelo reconhecimento da existência de certas faculdades mentais como o discernimento, a comparação, a abstração e a generalização, que concatenavam o material dos
sentidos em formas definidas e organizadas, as quais originavam por si mesmas novas ideias, tais como as concepções
fundamentais da moral e das matemáticas. Mas alguns de
seus sucessores, principalmente na França, nos fins do século XVIII, levaram essa doutrina a seus extremos limites;
eles consideravam o discernimento e a faculdade de julgar
como sensações peculiares produzidas em nós pela presença
conjunta de outras sensações. Locke, em relação ao conteúdo de ideias do espírito ou da mente, asseverara que esta
é um pedaço de papel em branco ou uma tabula de cera sem
coisa alguma gravada por ocasião do nascimento (uma tabula
rasa}, mas dotada, entretanto, de atividades que se aplicavam ao material recebido. Os referidos sucessores franceses de Locke negaram essas faculdades ou poderes, fazendo-os todos emanar também das impressões recebidas.
Segundo já observamos, esta noção era incentivada pelo novo interesse pela educação como meio de reforma social. Quanto mais vazio for o espírito no começo, mais poderemos fazer dele o que quisermos, submetendo-o às influ-
ências convenientes. Desse modo Helvécio, talvez o mais
extremado e coerente dos sensacionalistas, proclamou que a
educação podia fazer tudo -— que ela era onipotentc. Dentro da esfera da instrução escolar o empirismo exerceu função díretamente benéfica protestando contra a mera instrução livresca. Se o conhecimento provém das impressões
feitas em nós pelos objetos naturais, impossível será proporcionar conhecimentos sem ~o uso dos objetos que impressionam o espírito. As palavras e todas as outras espécies
de símbolos linguísticos, não havendo a anterior apresentação dos objetos a que possam estar associadas, veiculam
unicamente as sensações de sua própria forma e cor -— o
que indubitavelmente não é espécie muito instrutiva de conhecimento. O sensacionalismo era uma arma em • extremo
eficiente para combater as teorias e opiniões fundadas totalmente na tradição e na autoridade. Em relação a todas
levanta a questão: Onde se acham os objetos reais donde
recebemos essas ideias e convicções? Se tais objetos não
podiam ser apresentados, explicavam-se as ideias como o
resultado de falsas associações e combinações. O empirismo insistia também num elemento de primeira mão. A impressão deve ser feita em mim, -no meu espirito. Quanto
mais nos apartamos desta fonte de conhecimentos díreta e
de primeira mão, mais numerosos são os mananciais de erros
e mais vagas as ideias resultantes.
Como se poderia esperar, esta filosofia era fraca sob o
ponto de vista da realidade. Naturalmente, o valor dos
objetos naturais e dos contactos de primeira mão não dependia de ser verdadeira essa teoria. Adotados nas escolas,
eles exerceriam sua função, mesmo que fossem completamente erróneas as ideias sobre o modo por que atuavam.
A este respeito não poderia haver queixas. Mas o sensacionalismo influenciou também o modo por que eram usados
os objetos naturais e impediu de colher-se todo o bom resultado possível desse emprego. As "lições de coisas" tendiam a isolar a atividade dos sentidos e torná-la um fim
cm si mesma. Quanto mais se isolasse o objeto, mais isolada ficaria a qualidade sensorial e mais distinta seria a impressão sensorial como unidade elementar do conhecimento.
Essa teoria não só atuava no sentido deste isolamento mecânico que propendia a reduzir a instrução a uma espécie
de ginástica física dos órgãos dos sentidos (que seria boa
294
Democracia e educação
Esiudos intelectuais c estudos práticos
como qualquer ginástica dos órgãos do corpo, porém não
mais do que isto), como também para o abandono da reflexão. De acordo com essa teoria, desnecessária era a reflexão associada à observação dos sentidos; com efeito, no
terreno estritamente teórico, essa reflexão seria impossível,
exceto depois, porquanto refletir consistia simplesmente em
combinar e separar as unidades sensoriais que foram recebidas sem qualquer participação do ato de julgar.
Na realidade, e naturalmente, nenhum plano de educação de base puramente sensorial foi nunca sistematicamente praticado, pelo menos após os primeiros anos da infância. Suas evidentes deficiências foram causa de recorrer-se
a ele simplesmente para encher ou dar conteúdo ao conhecimento "racionalista" (isto é, o conhecimento de definições,
regras, classificações e modos de aplicação transmitidos em
forma de símbolos) e como expediente para emprestar maior
"interesse*1 a símbolos estéreis.
Três, pelo menos, são os graves defeitos do empirismo
sensacionalista como filosofia educacional do conhecimento.
a) O valor histórico dessa teoria era crítico; foi o dissolvente das convicções dominantes sobre o mundo e as instituições políticas. Foi um órgão destruidor ao criticar dogmas resistentes. Mas a obra da educação é construtora, e,
não, crítica. Ela não supõe existentes anteriormente velhas
crenças a serem eliminadas ou revistas, mas^ a _ necessidade
de organizar, desde começo, as novas experiências, em hábitos intelectuais o mais corretos possível. O sensacionalismo é altamente impróprio a essa tarefa construtora. O
espírito, a compreensão, denotam reaçoes às significações,
e, não, reaçoes a estímulos físicos diretos. E significação
só existe quando referente a um plano de ação em que o
conhecimento não seja identificado com uma combinação de
impressões sensoriais. Educacionalmente aplicada, essa teoria conduz ao exagero das simples excitações físicas ou, então, a mera acumulação de objetos e qualidades isoladas.
b) As impressões diretas têm a vantagem de ser de
primeira mão mas, ao mesmo tempo, a desvantagem de ser
de categoria limitada." Conhecer o educando diretamente o
meio natural de que está rodeado, de modo a dar realidade
a ideias sobre as partes da terra além do alcance dos seus
sentidos, e também como meio de despertar-sc-lhe a curio-
sidade intelectual, é coisa aceitável. Mas como conteúdo total do conhecimento da geografia, será ensino fatalmente
restrito. De modo exatamente análogo, grãos de feijão,
pauzinhos e fichas podem ter utilidade para auxiliar a compreensão das relações numéricas; sendo, porém, empregados com outro fim que não seja auxiliar o raciocínio — a
apreensão da significação — tornam-se um obstáculo para
o desenvolvimento da compreensão da >aritmética; imobilizariam o desenvolvimento em um baixo plano, o plano dos
símbolos materiais específicos. Assim como a espécie humana criou símbo-os especiais como instrumentos para o
cálculo e raciocínio matemáticos, porquanto o uso dos dedos como símbolos numéricos já se tornara insuficiente, o
indivíduo deve progredir dos símbolos concretos para os
abstratos — isto é, símbolos cuja significação é compreendida somente por intermédio da reflexão conceituai. E a
pessoa absorver-se em excesso, no começo, com os objetos
físicos dos sentidos, embaraça esse desenvolvimento.
c) No fundo do empirismo sensacionalista encontra-se
uma psicologia completamentc falsa do desenvolvimento mental. Experiência, em verdade, são as atividades instintivas
e impulsivas em suas interações com as coisas. Até as "experiências" de um infante não consistem em receber passivamente as impressões das qualidades de um objeto e sim nos
efeitos que os atos de segurar, atirar, pisar, rasgar, etc.,
produzem num objeto e o -efeito consequente desse objeto na
direção de sua atividade. Fundamentalmente (conforme o
veremos mais pormenorizadamente) a antiga noção da experiência como coisa prática é mais fiel à realidade dos fatos do que sua noção moderna como um modo de conhecer
por meio de sensações. O esquecimento dos profundos elementos ativos e motores da experiência é um defeito fatal
dessa filosofia empírica já, hoje, tradicional. Nada é mais
desmteressante e mecânico do que planos de lições de coisas que ignoram e desprezam, o mais possível, a propensão
natural de aprender as qualidades das coisas por meio do emprego destas para se tentar fazer alguma coisa com elas.
É óbvio, por conseguinte, que, mesmo se a filosofia da
Kxperiên-cia representada pelo empirismo moderno tivesse tido mais geral aceitação teórica do que a que teve, nau poderia fornecer uma satisfatória filosofia do processo de
296
297
300
Democracia e educação
cimento. Eram recursos auxiliares para se iniciarem, prosseguirem e interpretarem as investigações experimentais e
para se formularem os seus resultados.
O resultado lógico dessas ideias é uma nova filosofia
da experiência e do conhecimento, filosofia que não mais
põe a experiência em oposição com os conhecimentos e explicações racionais. A experiência deixou de ser uma simples
recapitulação daquilo que no passado foi feito de maneira
mais ou menos casual; ela é a observação e o controle deliberado daquilo que se faz para se tornar aquilo que nos
acontece, e aquilo que fazemos às coisas, o mais fértil possível de sugestões (ou de significações sugeridas) e um
meio de pôr em prova a validez das sugestões. Quando o
ato de tentar ou experimentar deixa de ser cego pelo instinto ou pelo costume, e passa a ser orientado por um" obietivo
e levado a efeito com medida e método, ele torna-se razoável — racional. Quando aquilo que sofremos das coisas,
aquilo que sentimos quando sujeitos a elas, cessa de ser o
produto de meras circunstâncias casuais; quando se transforma em uma consequência de nossos esforços anteriores
empregados com determinado objetivo,, torna-se racionalmente significativo —- esclarecedor e instrutivo. O antagonismo entre o empirismo e o racionalismo deixa de ter como apoio as condições humanas que dantes lhe davam significação e relativa justificação.
Por si mesmo é evidente o alcance desta, transformação
sobre a oposição entre os estudos puramente práticos e os
puramente intelectuais. A distinção não é intrínseca e, sim,
dependente de condições e de condições que podem ser reguladas. As atividades práticas podem ser intelectualmente
restritas e triviais. Mas sê-lo-ão tanto mais quanto forem
mais rotineiras, feitas por imposição da autoridade e tendo
em vista unicamente alguns resultados exteriores. Mas a
infância e a adolescência, as fases em que se frequenta a
escola, são justamente o tempo em que se torna possível
dar-se alguém a elas com diferente disposição de espírito.
Desnecessário é reproduzir a matéria dos capítulos precedentes sobre o ato de pensar e a evolução da matériaj educativa desde os trabalhos e brinquedos infantis até a matéria logicamente organizada. No entanto, o assunto deste capítulo e o do anterior aumentam a significação daquelas conclusões.
Estudos intelectuais e estudos práticos
301
I — A experiência consiste primariamente em relações
ativas entre um ser humano e seu ambiente naturaí e social.
Em alguns casos, a iniciativa parte do lado do ambiente; os
esforços do ser humano sofrem certas frustrações e desvios.
Em outros casos, o procedimento das coisas e pessoas do
.ambiente leva a desfecho favorável as tendências ativas do
indivíduo, de modo que, afinal aquilo que o indivíduo sofre
ou sente são as consequências que tentou produzir, Exatamente na proporção em que se estabelecem conexões entre
aquilo que sucede a uma pessoa e o que ela faz cm resposta, e entre aquilo que a pessoa faz a seu meio e o modo por
que esse meío lhe corresponde, adquirem significação os
atos e as coisas que se referem a essa pessoa. Ela aprende
a conhecer-se e também a conhecer o mundo dos homens e
das coisas. A educação praticada intencionalmente (ou escolar) deveria apresentar um ambiente em que essa interação proporcionasse a aquisição daquelas significações que
são tão importantes, que se tornam por sua vez em instrumentos para a ulterior aquisição de conhecimentos (V. Cap.
XI).
Segundo já foi repetidamente salientado, a atividade extra-escolar manifesta-se em condições que não foram propositadamente adaptadas para incentivar a função da compreensão e a formação de eficazes atitudes mentais. Na proporção em que se produzem, os resultados são genuínos e vitais,
mas apresentam-se limitados por todas as espécies de circunstâncias. Algumas tendências permanecem totalmente sem
direção e sem desenvolvimento; para outras, deparam-se ape-,
nas estímulos ocasionais; outras adquirem hábitos de rotina
em detrimento dos objetivos da iniciativa e inventividade ricas
de recursos. A função da escola não é transportar os adolescentes de um ambiente atívo para outro de um estudo
inerte dos registros daquilo que os outros homens aprenderam, e sim levá-los de um ambiente de atividades relativamente casuais (casuais em relação à compreensão e à inteligência que possam proporcionar) para outro de atividades selecionadas, tendo em vista servir de guias para o aprendizado. Um ligeiro exame dos métodos aperfeiçoados que já se
mostraram eficazes para a educação revelará que eles se apegam, mais ou menos conscientemente, ao fato de que os estudos "intelectuais", em vez de se oporem aos trabalhos ati-
Democracia e educação
Estudos intelectuais e estudos práticos
vos, representam a intelectualização desses trabalhos práticos.
Resta-nos apreender mais solidamente esse princípio.
fecundos e não meramente produtores de coisas exteriores.
Se em muitos casos, atualmente, ele redunda unicamente na
aquisição de um modo adicional de perícia técnica, deve-se
isto a ficar ainda em grande escala, somente como um recurso isolado, do qual os professores não se utilizam, a não
ser quando os alunos têm, em sua maioria, idade excessiva
para auferirem todas as vantagens que o mesmo pode proporcionar; mesmo então, esses alunos tem de se dedicar a outros
estudos em que os métodos tradicionais isolam a inteligência da atividade.
302
II — As mudanças que se operam no conteúdo da vida
social facilitam consideravelmente a seleção da espécie de atividade que intelectualizará os brinquedos e. os trabalhos escolares. Ao termos presente no espírito o ambiente social dos
gregos e dos povos medievais, em que as atividades práticas
que pudessem ser exercitadas com bom êxito eram em sua
maioria de espécie rotineira e inferior, e até de natureza servil, não nos surpreenderemos de que os educadores desses
tempos as houvessem desdenhado como impróprios para cultivarem a inteligência. Mas o caso é diferente hoje, tempo em
que até o.s serviços domésticos, os da agricultura e da indústria, assim como os de transportes e comunicações, estão repassados do espírito da ciência aplicada. É verdade que muitos dos que atualmente se dedicam a eles não têm consciência do conteúdo intelectual de que seus atos pessoais dependem. Mas esta circunstância apenas produz o efeito de acrescentar mais um motivo para que o ensino escolar se utilize
dessas atividades, de modo a habilitar a próxima geração a
adquirir uma compreensão que falta, geralmente, em nossos
Idias, podendo, assim, conduz ir em-se seus trabalhos, não mais
cegamente, mas com inteligência.
III — Todavia, o golpe mais direto contra a tradicional
separação entre o fazer e o saber, e contra o prestígio tradicional dos estudos puramente "intelectuais", foi desferido
pelo progresso da ciência experimental. Se este progresso
demonstrou algo, foi que não existem as coisas que se chamam verdadeiro conhecimento e fecunda compreensão, exceto como resultado do fazer, A análise e redisposição de
fatos, indispensáveis ao evolver dos conhecimentos, à possibilidade de dar explicações e às verdadeiras classificações,
não se podem conseguir apenas mentalmente — apenas no
interior da cabeça. Os homens, se quiserem descobrir alguma coisa, precisam fazer alguma coisa aos objetos; precisam
alterar as condições destes. Esta é a lição do método tio laboratório e a lição que toda a educação deve aprender. O
método do laboratório é a descoberta das condições sob as
quais o labor e o trabalho podem tornar-se intelectualmente
303
Resumo. —- Os gregos foram induzidos a filosofar
pela crescente incapacidade de seus costumes e crenças tradicionais para lhes regularem a vida. Foram assim levados
a criticar os costumes mostrando-se-lhes contrários e a procurar outra fonte de autoridade para sua vida e suas crenças. Eles desejavam, para estas últimas, uma craveira racional, e identificavam com a experiência os costumes que
se tinham mostrado insatisfatórios suportes daquelas; por
isso, foram levados a pôr em claro antagonismo a razão e
a experiência. Quanto mais se exaltava a primeira, mais se
degradava a segunda. Uma vez que a experiência era identificada com aquilo que os homens fazem e sofrem nas particulares e mutáveis contingências da vida, sua atividade prática também participou dessa depreciação filosófica. Esta
influência concorreu com outras muitas para encarecer, na
educação superior, todos os métodos e assuntos que exigiam
a menor utilização da observação dos sentidos e da atividade corpórea. A época atual iniciou uma revolução contra este
ponto de vista apelando para a experiência e atacando os
chamados conceitos puramente racionais, .sob o fundamento
de necessitarem eles do lastro das experiências concretas, pois
do contrário não passariam de meras manifestações de preconceitos, de interesses de classe institucionalizados, que se
declaravam racionais para se protegerem a .si mesmos. Mas
várias circunstâncias levaram também a considerar-se a experiência como puro conhecimento, não tomando em conta
seus intrínsecos aspectos ativos e emocionais, e a identificá-la
com uma passiva recepção de "sensações" isoladas. Por isso,
a função educacional efctuada por esta nova teoria foi rés-
304
Democracia c educação
trita, principalmente por ter de combater um tiinto do espírito livresco dos métodos anteriores; ela não realizou uma
reorganização coerente.
Enquanto isso, os progressos da psicologia, dos inétodos
industriais e do método experimental das ciências, tornaram
explicitamente desejável e possível outra concepção da experiência. Essa outra teoria restabeleceu a ideia dos antigos de
que a experiência é primacialmente prática e não cognitiva —
consistindo em fazer e sofrer as consequências daquilo que
se fez. Mas a teoria antiga transformou-se, por se haver
compreendido que a atívidade prática pode ser dirigida de
forma tal a abranger como seu próprio conteúdo tudo aquilo
que a reflexão sugerir, e desse modo a produzir conhecimentos bem comprovados. A "experiência" 'então cessa de ser
empírica e torna-se experimental. A razão deixa de ser uma
faculdade remota e ideal, e significa todos os recursos por
meio dos quais a atividade se torna fecunda em significações.
Pedagogicamente, esta mudança significa para os estudos e
para o método de ensino o plano desenvolvido nos capítulos
antecedentes.
CAPITULO 21
Estados físicos e estudos sociais: naturalismo c
humanismo
Já aludimos ao conflito e competição entre as ciências
naturais e os estudos literários por um lugar nos programas. A solução conseguida, até agora, consiste em sua essência na transigência um tanto mecânica, pela qual se divide
o campo entre os estudos que têm como objeto a natureza
e os que têm como objeto o homem. Esta situação apresenta-nos, assim, outro exemplo do ajustamento exterior dos
valores educacionais e dirige a atenção para a filosofia da
conexão das coisas naturais com as coisas humanas. Podese dizer, de um modo geral, que essa divisão na educação
é um reflexo das filosofias dualistas. Consideram-se o espírito e o inundo como dois reinos independentes em sua
existência, tendo um com o outro apenas certos pontos de
contacto. Decorre daí naturalmente que cada esfera de existência tenha seu próprio e separado grupo de estudos relacionado com ela; é mesmo natural que a expansão dos estudos científicos seja encarada com desconfiança, como assinalando a tendência de invadir, a filosofia materialista, os domínios do espírito. Toda a teoria educativa que tenha em
vista algum plano de educação mais unificado do que esses,
até agora existentes, encontra-se na necessidade de examinar
a questão da relação do homem com a natureza.
l. Os antecedentes históricos do estudo de humanidades. — É digna de nota a circunstância de a filosofia grega clássica não apresentar este problema com seu
aspecto moderno. Sócrates, em verdade, parece ter pensado que a ciência da natureza não era coisa nem acessível,
nem muito importante. O principal a conhecer é a nature-
306
Democracia e educação
za e o fim do homem. Deste conhecimento depende tudo o
que tem profunda significação —• toda a obra moral e social. Não obstante, Platão faz o conhecimento do hortiem
e da sociedade depender do conhecimento dos aspectos essenciais da natureza. Seu principal trabalho, A República,
é, ao mesmo tempo, um tratado sobre moral, sobre organização social e sobre a metafísica e a ciência da natureza^
Desde que ele aceita a doutrina socrática de que o perfeito
desenvolvimento moral depende do conhecimento racional,
vê-se forcado a examinar a natureza do conhecimento. E
como admite a ideia de que o fim último do conhecimento
é a descoberta do bem ou finalidade do homem, e lhe desagrada a convicção socrática de que tudo o que sabemos é
a nossa própria ignorância, ele associa o exame do bem
para o homem à consideração sobre o bem ou fim essenciais
da própria natureza. Impossível é tentar determinar a finalidade humana sem tomar em conta o fim supremo que dá
lei e unidade à natureza. Fíca assim em perfeita coerência com sua filosofia o fato de subordinar ele os estudos literários (sob o nome d*e música) às matemáticas é -à física,
assim como à lógica e à metafísica. Mas, por outro lado,
o conhecimento da natureza não é um fim em si mesmo; ele
é um estágio necessário para levar o espírito a ter acordo
do fim supremo da existência como lei das ações humanas
conjuntas e individuais. Para usar a fraseologia moderna —
os estudos naturalistas são indispensáveis, mas eles se fazem
no interesse dos fins humanistas e ideais.
Aristóteles vai mais longe, com referência aos estudos
naturalistas. Ele subordina as próprias relações cívicas dos
homens à vida puramente cognitiva. O mais alto fim do homem não é humano e sim divino — a participação do conhecimento aplica-se ao que é universal e necessário, e encontra,
por isso, matéria mais adequada na natureza do que nas transitórias coisas humanas. Se considerarmos mais o que os
filósofos defendiam, na vida grega, do que afirmações particulares dos seus escritos podemos tudo resumir consignando
que tão excessivo interesse sentiam os gregos pela livre investigação dos fatos naturais e pelo gozo estético das coisas
da natureza, e tão fundamente conscientes se sentiam da extensão em que a sociedade se acha arraigada na natureza e
f'*stttdu<! físicos c estudos sociais
307
sujeita às suas leis, que lhes seria impossível pensar em estabelecer urn conflito entre o homem e a natureza. Entretanto, dois fatores concorreram para pôr em mais relevo, no
último período dos antigos tempos, os estudos literários e
humanistas. Um era o caráter cada vez mais tradicional e
emprestado da cultura; outro, a propensão da vida romana
para a política e para a retórica,
As conquistas gregas da civilização eram nativas, originais, mas a civilização dos alexandrinos e romanos provinha
de povos estrangeiros. Por consequência, ela se volvia para
as fontes de que a obtivera, em vez de observar diretamente
a natureza e a sociedade, em busca de material para a reflexão e de motivo de inspiração. Nada temos melhor a fazer
do que citar a palavras de Hatch para indicar as consequências disso para a teoria e a prática da educação : "Por uma
parte, a Grécia perdera seu poder político, e por outra possuía em sua maravilhosa literatura uma herança inalienável ... Era natural que ela se voltasse para as letras. Era
também natural que o estudo das letras se refletisse na oratória. . . O comum dos homens, no mundo grego, tendia a
insistir naquele conhecimento da literatura das gerações passadas e naquele hábito do cultivo da palavra, coisas de que
desde então se faiou comumente como sendo a educação...
A nossa própria provém dessa, por tradição direta. Foi
assim criada urna moda que até recentemente dominou em
todo o mundo civilizado. Preferimos o estudo da literatura
ao da natureza, porque os gregos assim o fizeram e porque
quando os habitantes de Roma e das províncias romanas
resolviam educar seus filhos, utilizavam-se de professores
gregos e seguiam as pegadas dos gregos (1).
A chamada tendência prática dos romanos aiuava na
mesma direção. Buscando as ideias gregas registradas na
sua literatura, eles não somente tomavam o atalho mais curto para conseguirem um desenvolvimento cultural, como também procuravam precisamente as espécies de matérias e métodos adequados a seus talentos administrativos. Por seu génio prático não enveredavam para a conquista e domínio da
natureza, mas para a conquista e domínio dos homens.
1) A influênc-iii
cristã, págs. 43-44.
das ideias e costumes
sobre
308
Democracia c educação
No trecho citado, Hatch dá muita coisa como historicamente provada quando afirma que estudamos mais literatura do que a natureza, porque assim o faziam os gregos,
e os romanos, os quais estudavam com os gregos. Mas nos
séculos intermediários qual foi o elo da cadeia? Esta pergtmta faz-nos pensar que a Europa bárbara se limitou a reproduzir em maior escala e maior intensidade a situação dos
tempos dos romanos. E, com efeito, tinha que ir à escola
para obter civilização greco-romaua ; com isto, também sua
cultura era mais de empréstimo do que desenvolvida por ela
própria. Não somente suas ideias gerais e educação artística, senão também os modelos de suas leis, provinham dos
trabalhos escritos de outros povos. E sua dependência aumentou ainda com os dominantes interesses teológicos desse período. Pois as autoridades para as quais a Igreja apelava
eram livros escritos em línguas estrangeiras. Tudo concorria
para identificar o estudo com o aprendizado linguístico e
para tornar a linguagem dos doutos uma linguagem literária
em vez da língua materna.
Todavia o pleno alcance deste fato nos escapará até reconhecermos que estas matérias de estudo obrigavam a recorrer-se ao método dialético. O escolasticismo foi frequentemente tido desde os 'tempos do renascimento das ciências como termo pejorativo. Mas tudo o que ele significa é o método das Escolas ou dos Escolásticos ou homens das Escolas. Este método, em sua essência, nada mais é do que uma
sistematização altamente eficaz dos processos de ensino e de
estudo apropriados à transmissão de corpos de verdades impostos pela autoridade. Quando a literatura, mais do que a
natureza e a sociedade contemporâneas, é que fornece o material do estudo, devem-se adequar os métodos para definirem, exporem e interpretarem a matéria recebida, de preferência a investigar, descobrir e inventar. E, no fundo, aquilo
que se chama escolasticismo é a plena e coerente formulação
e aplicação dos métodos próprios para a instrução, quando
o material desta já se acha preparado, e pronto a ser transmitido, em vez de ser alguma coisa que os estudantes devam descobrir por si meamos. Enquanto as escolas ensinarem por compêndios e se basearem no princípio da autoridade
e da aquisição, de preferência ao da descoberta e investigação, seus métodos serão escolásticos —• desprovidos, porém,
Estudos fisicos c estudos sociais
309
da perfeição e sistematização lógicas do escolasticisrn
derado em sen aspecto mais característico. Abstrair^ consifrouxidão do método e da exposição, a única diíereti^ vse da
agora as geografias, histórias, botânicas e astronor^j £ que
saram a fazer parte da literatura, consagrada pela ^ \ pasde, a ser transmitida aos alunos.
toridaComo consequência, perdeu-se a tradição grega,
um interesse humanista era empregado como base p^ 17
teresse pek natureza, e em que o conhecimento da \ m_
era utilizado para fundamentar os fins e ob j crivos -^\tureza
racteristicamente humanos. A vida passou a bas^ ys ca_
autoridade e não na natureza. Esta iiltima era, autç^ V^ na
de consideráveis suspeitas. Era arriscada a con^' o alvo
dela, por tender a privar o homem da fé nos dçw Splação
em que já se achavam registradas as normas do viw mentos
disso, apenas pela observação se vpoderia conhecer ^ \m
za; e a observação apelava para os sentidos — ^ \iaturepuramente materiais, em oposição a um espírito p \ram
imaterial. Ademais, a utilidade do conhecimento da. ameníe
era meramente material e secular; referia-se ao benv^
poral e temporal do homem, ao passo que a tradiçg \ar corria se referia à sua felicidade espiritual e eterna.
literá2. O moderno interesse científico pela j.
— O movimento do século XV, denominado IWtureza.
foi caracterizado por um interesse novo pela víd^ *\scença
do homem e, de acordo com isso, por um inter^^Hresente
pelas suas relações com a natureza. Era um niovk e novo
ruralista, no sentido de que se insurgia contra o . nto na.sobrenaturaí dominante. É possível que o influxo . \teresse
no à literatura grega, clássica e pagã, como cansa ^ % retordança espiritual, tenha sido exagerado. Certo ess^ Asa mu _
mação era precipuamente um produto das condiçcU "Vansforles tempos. Mas não lia dúvida de que homens j
daquesaturados dos novos pontos de vista, se voltava^ ^truídos
mente para a literatura grega, buscando apoio e ref r ^nsiosa.
-
,
.
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Ot\s
para as suas próprias
tensão esse interesse pelas ideias dos gregos não ejv ^.vel exmente por sua literatura, mas também pelo espírito \jniplesse manifestava. A liberdade espiritual, o senso r!;t Slie ne]a
v >rdem C
ideias.
E
em
310
Democracia c educação
da beleza da natureza, que animavam a expressão da alma
grega, incitavam o.s homens a pensar e a observar similarmente, sem estorvos. A história da ciência do século XVI
mostra que as ciências naturais em seu alvorecer tomaram
de empréstimo, em grande extensão, seus pontos de partida,
ao novo interesse pela literatura grega. Conforme disse Windelband, a nova ciência da natureza era filha do humanismo.
A noção favorita desse tempo era —• ser o homem um microcosmo do universo.
Esta circunstância faz surgir outra vez a questão de saber-se como foi que a natureza e o homem se separaram depois com a incisiva diferenciação entre a linguagem e a literatura de um lado, e as ciências do outro. Podem-se sugerir quatro razões.
n) A antiga tradição se entrincheirava solidamente nas
instituições. A política, a legislação e a diplomacia continuavam necessariamente como ramos de literatura criada pela
autoridade, pois as ciências sociais não se desenvolveram senão quando os métodos da física e da química (para nada
dizer sobre os da biologia) se achavam já muito adiantados,
Ã. mesma coisa é grandemente verdadeira em relação à história. Além disso, bons métodos para o ensino de línguas
estavam muito desenvolvidos; tomava seu partido a inércia
dos costumes académicos. Assim corno a este novo interesse
pela literatura, especialmente a grega, não se permitiu, a princípio, ingressar nas universidades organizadas escolasticamente, assim, também, quando nelas penetrou, foi para ficar de
mãos dadas com os estudos mais antigos a colaborar no reduzir ao mínimo a influência da ciência experimental. Os
homens que ensinavam raramente eram conhecedores das ciências ; os de competência científica trabalhavam em laboratórios particulares e por intermédio das academias que promoviam pesquisas, mas não tinham a organização de institutos de ensino. Além disso, era ainda poderosa a tradição
aristocrática que olhava com desprezo as coisas materiais, os
sentidos e os trabalhos das mãos,
6) A rebelião protestante, acarretou consigo imenso
acréscimo de interesse pelas discussões e controvérsias teológicas. Tanto uma como outra facção apelava apenas para
documentos escritos. Cada qual delas precisava educar ho-
Estudos físicos e estudos sociais
311
mens, tornando-os mais aptos para estudar e expor os textos
em que se firmavam. Tornou-sc tal a procura de homens
capazes de defender a fé escolhida contra a sua adversária,
de propagar essas ideias e prevenir-se contra as mútuas usurpações de seus domínios, que não há exagero em dizer que,
pelos meados do século XVII, o ensino de línguas nos ginásios e universidades foi envolvido e arrebatado pelo renascido interesse teológico, para ser usado como instrumento de
educação religiosa e de controvérsias eclesiásticas. Desta
maneira, a derivação do ensino das línguas, tal qual existe
na educação hodierna, não se entronca diretamente na Renascença, mas em sua utilização para fins teológicos.
c) As próprias ciências naturais eram então concebidas de modo a avivar o contraste entre o homem e a natureza. Francis Bacon é um exemplo quase perfeito da união
dos interesses naturalistas e humano. Adotando os métodos
da observação e da experimentação, a ciência ia renunciar à
tentativa de "antecípar-se à natureza" — de impor-lhe noções preconcebidas — para transformar-se em sua humilde
intérprete. Obedecendo intelectualmente à natureza, o homem aprenderia a dominá-la praticamente. "Saber é poder".
Este aforismo significava que por meio da ciência o- homem
dominaria a natureza, aproveitando as energias desta para a
realização de seus próprios fins. Bacon atacou a antiga ciência e a antiga lógica por servirem unicamente para controvérsias, visando a vitória da argumentação, em vez de ter
em mira a descoberta do desconhecido. Mediante o novo
método de pensar estabelecido em sua nova lógica, ia despontar a era da expansão das descobertas e essas descobertas iam frutificar em invenções em benefício dos homens.
Iam estes renunciar aos seus inúteis e intermináveis esforços
para se dominarem uns- aos outros, empenhando-se de colaboração na tarefa de subjugar a natureza no interesse da
humanidade.
Em linhas gerais, Bacon profetizou a direção dos subsequentes progressos. Mas ele "antecipou" esses progressos.
Não previu que a ciência nova ia por longo tempo ser utilizada no interesse dos velhos objetivos de exploração humana. Pensou que ela daria rapidamente ao homem novos fins.
Ao contrário disto, a ciência pôs à disposição de uma casta
Democracia c educação •
Estudos físicos e estudos sociais
os meios de realizar seus velhos fins de prosperar à custa
de outra classe. Segundo ele previu, à revolução dos métodos científicos sucedeu-se uma revolução industrial. Mas esta
revolução está precisando de muitos séculos para criar uma
nova mentalidade. O feudalismo viu-se condenado à morte
pelas aplicações da nova ciência, pois elas transferiram o poder da nobreza proprietária para os centros manufatureiros.
Mas o lugar do feudalismo foi mais ocupado pelo capitalismo do que por um humanismo social. A produção e o comércio se desenvolveram como se a' ciência nova não encerrasse uma lição de moral, e 'sim unicamente lições técnicas
sobre a economia na produção e utilização dos lucros na satisfação de interesses egoístas. Era natural que está aplicação da ciência física (que era a mais claramente perceptível)
desse mais força aos humanistas declarados, que clamavam
ser a ciência materialista em suas tendências. Ela deixava
um vazio no que dizia respeito aos interesses caracteristicamente humanos que se encontram para além do ganhar, ajuntar e gastar dinheiro; e as línguas e a literatura alegaram,
em suas pretensões, serem elas que podiam encher esse vazio
e representar os interesses morais e ideais da humanidade.
d) Demais disso, a filosofia que se declarava baseada
na ciência, que se dizia a representante acreditada da significação legítima da ciência, ou era de natureza dualista, assinalada por nítida distinção entre o espírito (que caracterizava o homem) e a matéria (que constituía a natureza),
ou francamente mecânica, reduzindo a uma ilusão os traços
próprios da vida humana. No primeiro caso, jtistificava-se
a alegação de serem certos estudos os possuidores particulares de valores mentais, e indiretatnente corroborava-s e a
pretensão, que eles tinham, de superioridade sobre os demais, porquanto os seres humanos propenderiam a encarar
as coisas humanas como as mais importantes, pelo menos
para eles. No último caso, a filosofia provocava uma reação que projetava dúvida e suspeita sobre o valor da ciência física, dando ensejo a que a tratassem como inimiga dos
mais elevados interesses humanos.
A ciência grega e a medieval aceitavam o mundo em
sua variedade qualitativa e consideravam os processos da
natureza como tendo fins ou, em linguagem técnica, como
teleológicos. A nova ciência negava a realidade de todas
as qualidades em existência real ou ohjetiva. Os sons, as
cores, os fins, tanto os bons como os maus, eram considerados puramente subjetivos — como simples impressões no
espírito. A existência objetiva era então tratada como tendo unicamente aspectos quantitativos — como constituída
de ''massas" em movimento, sendo sua única diferença o
fato de que em dados pontos do espaço havia maior acumulação do que em outros, e de que em alguns lugares o movimento era mais rápido do que em outros. Na falta de
distinções qualitativas, faltava à natureza variedade significativa. Encarecia-se a uniformidade e não a diversidade; supunha-se que o ideal era a descoberta de uma fórmula matemática única, aplicável diretamente a todo o universo, fórmula de que se pudesse deduzir toda a aparente variedade dos
fenómenos. Isto é o que significa uma filosofia mecanista.
312
313
Tal filosofia não representa o verdadeiro escopo da
ciência. Ela toma a técnica pela própria coisa; o mecanismo e a terminologia pela realidade; o método pela,- sua matéria. A ciência confina suas afirmações nas condições que
nos habilitam a prever e a regular o curso dos acontecimentos, abstraindo das qualidades desses acontecimentos. Daí
sua natureza mecânica e quantitativa. Mas pela circunstância de não as tomar em conta não as exclui da realidade,
nem as relega em uma região puramente mental; fornece
apenas meios iitilizáveis pura a realização de fins. Deste
modo, ao passo que o progresso da ciência foi, de fato, aumentando o poder do homem sobre a natureza, possibilitando-lhe assentar suas caras finalidades em base mais sólida do
que as que até então tiveram, e também a diversificar quase
à vontade suas espécies de atívidade, a filosofia que pretendia formular suas realizações reduzia o mundo a uma estéril
e monótona redistribuição da matéria no espaço. Por essa
causa, Q efeito imediato da ciência moderna foi acentuar o
dualismo da matéria e do espírito e por esse meio tornar os
estudos físicos e os humanistas como dois grupos sem conexões mútuas. Desde que a diferença entre o melhor e o
pior se prende às qualidades da experiência, a filosofia científica que as excluir do genuíno conteúdo da realidade dei-
314
Democracia e educação
Estudos físicos e estudos sociais
xará de lado o que é de mais interesse e importância para
o género humano.
Quanto aos estudos humanistas e naturalistas, portanto,
a educação deveria tomar como ponto de partida esta íntima
interdependência. Sua meta não seria conservar a ciência
como um estudo da natureza separado da literatura, considerada como registro escrito dos interesses humanos, senão
criar a mútua fecundação das ciências naturais e das várias
disciplinas humanas como a história, a literatura, a economia
política e a política.
Pedagogicamente esse problema é mais simples do aue,
por um lado, tentar ensinar as ciências como meras compilações técnicas de informações e de modos técnicos de manipulação material; e, por outro lado, ensinar humanidades como matérias isoladas. Pois tal processo estabelece uma separação artificial na experiência dos discípulos. Fora da escola estes encontram os fatos naturais e os princípios em
conexão com as várias modalidades de atividade humana.
Em todos os atos sociais de que eles participaram, precisaram conhecer o material e o processo exigido por ele. Iniciar a vida escolar com a ruptura desta associação íntima
é secionar a continuidade do' desenvolvimento mental, fazer
o educando sentir indescritível irrealidade em seus estudos e
privá-lo dos motivos normais para interessar-se neles.
Não há dúvida de que tais devem ser as oportunidades
da educação, que possam ter ensejo propício todos os que se
achem dispostos a adquirir aptidões especializadas nas ciências, para se dedicarem a seu cultivo e tornando-as as ocupações particulares de sua vida. Mas atualmente o aluno com
frequência só pode escolher entre duas coisas: começar estudando os resultados de especializações anteriores, com um
material, portanto, estranho a suas experiências quotidianas,
ou começar por uma miscelânea de estudos da natureza, cujo
material é apresentado ao acaso e não conduz a coisa alguma
em particular. O hábito de iniciarem-se alunos de academias
em matérias científicas isoladas, como é adequado ao homem
que deseja granjear competência em determinado terreno,
desce, também, aos cursos secundários. Aos alunos destes
Últimos ministram apenas uni ensino mais elementar daquelas
mesmas coisas, com as dificuldades aplainadas e a matéria
trazida ao nível de sua suposta aptidão. A razão deste procedimento está mais em seguir-se a tradição, do que no cens-
3. O atual problema educacional. — A experiência, em verdade, não conhece separação alguma entre os interesses humanos e um mundo puramente mecânico e físico.
A morada do homem é a natureza; a execução de seus intuitos e ob j et i vos depende das condições naturais. Separados dessas condições, eles tornam-se sonhos vazios e voos.
ociosos da fantasia. Sob o ponto de vista da experiência
humana e, portanto, da tarefa educativa, toda a distinção
que se possa justificadamente fazer entre a natureza e o
homem será uma distinção entre as condições com que devemos contar para a elaboração e execução de nossos objetivos práticos, e esses próprios objetivos. Esta filosofia tem
a sanção de toda a teoria do desenvolvimento biológico, que
mostra serem o homem e a natureza um todo contínuo e não
ser ele um estrangeiro que penetre de fora nos processos da
última, É corroborada pelo método experimental científico,
o qual nos mostra que os conhecimentos se desenvolvem por
meio das tentativas para se dirigirem às energias físicas, de
acordo com as ideias sugeridas pelo contacto com as coisas
naturais no esforço de torná-las socialmente úteis. Cada
passo avante nas ciências sociais — as matérias denominadas
história, política, economia política, sociologia — revela que
as questões' sociais apenas são inteligentemente resolvidas na
proporção em que empregarmos o método de coligir dados,
conceber hipóteses e pôr a estas em prova na atividade, método que é a característica das ciências naturais; e na proporção em que nos utilizarmos, em benefício do incremento
do bem-estar social, dos conhecimentos técnicos proporcionados pela física e pela química. Os métodos adiantados de se
solverem os complexos problemas da loucura, do alcoolismo,
da pobreza, da saúde pública, dos planos das cidades, da conservação dos recursos naturais, da utilização eficaz de instituições governamentais para fomento do bem público sem o
enfraquecimento das iniciativas pessoais, tudo demonstra nossa
dependência direta, nos mais importantes interesses sociais,
dos métodos e resultados das ciências naturais.
315
Democracia e educação
Estudos físicos c estudos sociais
ciente apego à filosofia dualista. Mas o efeito é o mesmo
que se produziria se o intuito fosse inculcar a ideia de que
as ciências que tratam da natureza nada tivessem que ver
com o homem, e vice-versa. Grande parte da relativa ineficácia do ensino das ciências, para aqueles que nunca chegam a ser cientistas especializados, é o resultado da separação inevitável que se produz quando se começa com matéria
tecnicamente organizada. Mesmo se todos os estudantes fossem embriões de cientistas especializados, seria problemático
constituir tal ensino o processo de mais eficácia educativa.
Ele é, certamente, desaconselhável, ao considerar-se que a
grande maioria dos que estudam se interessam pelo aprendizado das ciências unicamente pelo efeito destas sobre seus
hábitos mentais — tornando-os mais alerta, de maior permeabilidade mental, mais inclinados a tentar aceitar e pôr em
prova as ideias propostas ou sugeridas —* e para compreender melhor o ambiente de sua vida quotidiana. Muito a miúdo o aluno saí dos cursos com umas tinturas de conhecimentos muito superficiais para serem científicos, e técnicos em
excesso para se aplicarem à atividade ordinária.
É hoje mais fácil do que em tempo algum o foi a utilização da experiência para assegurar o progresso nos objetivos e métodos científicos, mantendo ao mesmo tempo estes
últimos associados com interesses humanos familiares.. A
experiência usual, hoje, de todas as pessoas das sociedades
civilizadas, está intimamente associada aos processos e resultados industriais. Estes, por sua vez, são outros tantos casos da ciência aplicada. As máquinas a vapor, fixas ou para
transportes, os motores elétricos ou a gasolina, os automóveis, o telégrafo e o telefone, fazem parte, diretamente, da
vida da maioria dos indivíduos. Os alunos de pouca idade
já estão praticamente familiarizados com essas coisas. Não
só as ocupações profissionais de seus pais dependem de aplicações científicas, como também os trabalhos caseiros, a conservação da saúde, as coisas vistas na rua, representam conquistas científicas e estimulam o interesse pelos princípios
científicos relacionados com elas. O evidente ponto de partida pedagógico para a instrução científica não é ensinar coisas rotuladas como ciência, e sim utilizar as ocupações e recursos familiares para orientarem a observação e a experi-
mentação, até os discípulos chegarem ao conhecimento de
alguns princípios fundamentais, apreendendo-os nos trabalhos
práticos que lhes são familiares.
A opinião algumas -vezes expendida de que é marear
''pureza" da ciência o estudarmo-la em sua encarnação ativa,
em vez de o fazermos pela ahstração teórica, fundamenta-se
em um erro de apreciação. O fato é que toda a matéria é
cultural na proporção em que a assimilamos em seu campo
o mais amplo possível de significações. A percepção das
significações depende da percepção das conexões da situação
total. Ver um fato ou uma lei científica não só nas suas
relações humanas, como também nas suas relações físicas e
técnicas, é ampliar-lhes a significação e repassá-los de maior
valor cultural. Sua direta aplicação económica, se por económica significamos representando valor monetário, é acessória e secundária, embora faça parte de suas conexões atuais.
O importante é que o fato seja apreendido em suas conexões
sociais — em sua função na vida.
Por outro- lado, "humanismo" significa, no fundo, estar-se impregnado por um inteligente senso dos interesses
humanos. Para o homem, o interesse social, identificável em
sua mais íntima acepção ao interesse moral, é necessariamente o interesse supremo. Os conhecimentos sobre o homem,
sobre o seu passado, o conhecimento familiar de seus documentados trabalhos escritos, podem ser uma aquisição tão
técnica como a acumulação de particularidades físicas. Os
homens podem trabalhar de vários modos, ganhando dinheiro,
adquirindo perícia em manipulações de laboratórios, ou reunindo uma provisão de fatos sobre questões linguísticas, ou
sobre a cronologia de produções literárias. Se essas atividades não reagirem para ampliar a visão imaginativa da vida,
ficarão no mesmo nível dos trabalhos infantis. Tais ocupações têm a letra da atividade, mas não lhe têm o espírito.
Prontamente se degeneram na acumulação do avarento e o
homem passará a orgulhar-se do que tem, e não da significação que encontra nas coisas da vida. Estudo humano é
todo aquele feito de modo a aumentar o interesse pelos valores da vida; é todo o estudo que acarrete maior sensibilidade em relação ao bem-estar social e maior aptidão para
promover esse bem-estar.
310
317
Democracia e educação
Estudos físicos e estudos sociais
O espírito humanista dos gregos era nativo e intenso,
mas de estreito campo de visão. Todos os que se achassem fora da esfera helénica eram bárbaros e desprezíveis
tirante a possibilidade de serem outros tantos inimigos. Apesar de penetrantes as observações e especulações sociais dos
pensadores gregos, não há uma palavra nos escritos que nos
deixaram para indicar que sua civilização não se fechava
em si mesma e não se bastava a si mesma. Não havia, aparentemente, suspeitas de achar-se o seu futuro, à mercê do
desprezado alienígena. Dentro da comunidade grega o intenso espírito de sociabilidade era limitado pela circunstância de
sua mais alta cultura alicerçar-se em um substrato de escravidão e de subordinação económica — castas necessárias
à existência do estada, consoante o disse Aristóteles, mas
não constituindo lídimas partes do mesmo. O desenvolvimento das ciências originou uma revolução industrial que pôs
diferentes povos em contato tão íntimo uns com os,outros,
por obra da colonização e do comércio, que de modo algum
uma nação poderá olhar outras com desprezo, nenhum país
poderá entreter a ilusão de que sua prosperidade é coisa que
se decida totalmente em seu interior. A mesma revolução
extinguiu a servidão agrícola e criou uma classe mais ou menos organizada de trabalhadores de fábricas com direitos políticos reconhecidos e que pleiteiam um papel acentuado na
direção da indústria — aspirações que merecem a atenção
simpática de muitos da classe abastada, devido a ter ficado
esta em mais estreito contacto com as classes menos afortunadas, em virtude da supressão das barreiras que as separavam.
Pode-sc formular este estado de coisas dizendo-se que
o antigo humanismo esqueceu de seu campo de ação as condições económicas e industriais. Por conseguinte, era unilateral. A cultura, em tais circunstâncias, representava invariavelmente a perspectiva intelectual e moral da classe que
assumia a díreção social. Uma tal tradição como cultura, é,
segundo vimos, aristocrática: ela encarece mais aquilo que
diferencia as classes, do que os interesses fundamentais comuns. Tem seus padrões no passado, pois seu objetivo é
antes preservar o já adquirido do ouc estender o mais possível seu carnp."> cultural.
As mudanças resultantes de tomar-se mais em conta a
indústria e o que possa-interessar aos meios de subsistência são com frequência anatematizadas como ataques à cultura herdada do passado. Mas um descortino educacional
mais compreensivo conceberia a atividade industrial como um
fator para tornar os recursos intelectuais mais acessíveis às
massas e dar maior solidez à cultura daqueles que dispõem
de mais recursos. Em suma —• quando consideramos, por
um lado, a relação íntima da ciência com o desenvolvimento
industrial, e, por outro lado, entre a cultura literária e estética e a organização social aristocrática, percebemos a razão
do antagonismo dos estudos científicos técnicos com os apurados estudos literários. E nos vemos em face da necessidade de acabar com essa separação em educação, se a sociedade for verdadeiramente democrática.
318
319
Resumo. — O dualismo filosófico entre o homem e
a natureza reflete-se na divisão dos estudos em naturalistas
e humanistas, com tendência a circunscrever os últimos aos
trabalhos escritos do passado. liste dualismo não é característico das ideias gregas (como o eram outros traços que já
indicamos). Em parte surgiu da circunstância de que a cultura de Roma e da Europa medieval não era uma cultura
nativa e sim mais ou menos diretamente tomada de empréstimo da Grécia, e em parte porque as condições política e
eclesiástica insistiam enfaticamente na dependência e subordinação à autoridade dos conhecimentos antigos transmitidos
por escrito até aqueles tempos.
Em seus primórdios, a ciência moderna profetizou uma
restauração das relações íntimas entre a natureza e a humanidade, pois ela considerava o conhecimento da natureza
o meio de garantirem-s e o progresso e o bem-estar humanos. Entretanto, as mais imediatas aplicações da ciência
foram antes no interesse de uma só classe, do que no do
comum dos homens; e as formulações filo.-óíicas da doutrina
científica tendiam a extremá-la, t.orno meramente material, do
homem como ente espiritual e imaterial, ou a rçfí&zír o espírito a uma ilusão subjetiva. Em vista disso, em educação
a tendência foi tratar as ciências como um corpo isolado de
320
Democracia e
estudos consistentes em informações técnicas >S obre_ o mundo
físico, e considerar os estudos literários mais antigos como
distintamente humanistas. A exposição fcita anteriormente
da verdadeira evolução do saber e de um plano educacional
de estudos baseado nela está destinada a supnrmr essa separação e a fazer conhecer o lugar do estudo das ciências naturais nas coisas humanas.
CAPITULO 22
O indivíduo e o mundo
l. O espírito, como puramente individual. — Já.
examinamos as influências que causaram a separação entre
o trabalho e os lazeres, o saber e o fazer, o homem e a natureza. Essas influências tiveram como resultado fracionar
em vários estudos as matérias educativas. Também foram
formuladas por várias filosofias que extremaram o corpo do
espírito, os conhecimentos teóricos e os práticos, o mecanismo físico e a finalidade ideal. Quanto ao aspecto filosófico,
estes vários dualismos culminam em uma separação bem.
acentuada entre espíritos individuais e o mundo, e, por isso,
desses espíritos entre si. Embora a relação desta atitude
filosófica com o processo educativo não seja tão patente como a dos pontos considerados nos três últimos capítulos, há
certas considerações pedagógicas correspondentes a ela; tais
são o antagonismo que se supõe existir entre a matéria do
estudo (o elemento representante do mundo) e o método (o
elemento representante do espírito), bem como a propensão
de tratar-se o interesse como coisa puramente privada, sem
associação intrínseca com a matéria estudada. Além de seus
influxos secundários sobre a educação, mostrar-se-á neste
capítulo que a filosofia dualista do espírito e do mundo subentende uma errónea concepção das relações entre os conhecimentos e os interesses sociais, entre o individualismo e a
liberdade, e entre a direção social e a autoridade.
A identificação do espírito com o eu individual e deste
último com uma consciência psíquica particular, é relativamente moderna. Tanto na Grécia como nos tempos medievais a regra era considerar-se o indivíduo como um instrumento por cujo. intermédio se manifestava uma inteligência
divina e universal. O indivíduo não era propriamente o
"conhecedor", o agente do conhecimento; este era a "Razão",
322
Democracia e educação
que se manifestava por meio dele. Se o indivíduo a contrariasse era em perigo próprio e só em detrimento da verdade. O preconceito, o erro e as opiniões substituíam o verdadeiro conhecimento na proporção em que o indivíduo, e não
a razão, "conhecia". Na vida grega, a observação era aguda e alerta; e o pensamento era livre quase até o ponto de
chegar-se a desvairadas especulações. De acordo com isso,
as consequências da teoria eram unicamente as decorrentes
da falta de um método experimental. Sem esse método, os
indivíduos não podiam dedicar-se ao conhecimento, nem ter
suas ideias retificadas pelos resultados das investigações dos
outros. Sem outras peásoas os submeterem assim à prova,
os espíritos dos homens não tinham responsabilidade intelectual,- os resultados seriam aceitos por sua natureza estética,
por sua qualidade agradável ou pelo prestígio daqueles que
os obtiveram. No período medieval, era ainda mais humilde
a atitude dos indivíduos em face da verdade; supunha-se que
os conhecimentos importantes eram revelados por Deus, nada
sobrando para os espíritos dos homens, a não ser o dedicarem-se a esses conhecimentos impostos pela autoridade. Além
desses aspectos mais conscientemente filosóficos dessas correntes de ideias, jamais ocorre a alguém identificar o espírito com o eu pessoal, onde quer que as crenças sejam transmitidas pelo costume.
No período mediévico havia um individualismo religioso. O mais profundo interesse da vida era a salvação da
alma individual. Nos últimos tempos da Idade Média este
individualismo latente encontrou formulação consciente nas
filosofias nominalistas, que consideravam a estrutura do conhecimento como uma coisa formada no interior do indivíduo por ineio de seus atos e de seus estados mentais. Após
o século XVI, com o surgir do individualismo económico e
político, e com o desenvolvimento do protestantismo, os tempos achavam-se maduros para se encarecerem o direito e o
dever do indivíduo de obter conhecimentos por si mesmo.
Isto conduziu à opinião de que o conhecimento é totalmente
adquirido por meio de experiências pessoais e particulares.
Como consequência disso, julgou-se ser, o espírito, fonte do conhecimento e seu detentor, coisa de formação inteira-
O indivíduo e o mundo
323
mente individual. Por esta razão, nós vemos, quanto ao aspecto pedagógico, reformadores educacionais como Montaigne,
Bacon, Locke, profligarem de então por diante todo o conhecimento adquirido "de ouvido3' e afirmarem que, mesmo que
aquilo em que se acreditava fosse verdadeiro, não seria verdadeiro conhecimento, exceto se o houvesse originado, e posto
em prova, a experiência do indivíduo. A reação contra a
autoridade em todas as esferas da vida f e a intensidade dessa
luta, cheia dos mais vivos obstáculos, pela liberdade de ação
e de investigação, levou a dar tal importância às observações e ideias pessoais, que teve isto como efeito insular o espírito e apresentá-lo como separado do mundo a ser conhecido.
Este isolamento se espelhou no grande desenvolvimento
do ramo da filosofia conhecido pelo nome de epistemologia
— a teoria do conhecimento. A identificação do espírito com .
o eu, e a apresentação do eu como uma coisa independente e
que se basta a si mesma, criou tão grande abismo entre o espírito ou o conhecedor, e o mundo, ou o conhecido, que surgiu
a questão de saber-se como era possível qualquer espécie de
conhecimento. Dado um sujeito — o conhecedor, — e um
objeto — a coisa a ser conhecida, totalmente separados um
do outro, era necessária arquitetar-se uma teoria para explicar
como podiam entrar em mútuas relações, de modo a tornar-se
possível um legítimo conhecimento.
Este problema, juntamente com o seu aliado •— o da
possibilidade de atuar, o mundo,'sobre o espírito, e este atuar
sobre o mundo — tornaram-se a preocupação quase exclusiva
dos filósofos. As teorias que afirmam não podermos conhecer o mundo como realmente ele é, e sim unicamente as
impressões causadas por ele no espírito, a de que não existe
mundo além do espírito do indivíduo, e de que o conhecimento
é apenas uma certa associação dos estados de espírito, foram
produtos dessa preocupação. Não nos interessa diretamente
a verdade dessas asserções; mas a circunstância de tais soluções extremas terem sido largamente aceitas serve a demonstrar a extensão em que o espírito se desprendeu do
mundo das realidades. O crescente uso do termo "consciência*' corno equivalente de espírito, no pressuposto de existir
um mundo interior de estados e processos conscientes, independentemente de qualquer relação com a natureza e a sociedade, mundo interior mais verdadeiro e mais imediatamente
324
Democracia e educação
conhecido rio que qualquer outra coisa, comprova a mesma
circunstância. Em suma: o individualismo prático, ou a luta
pela maior liberdade do pensamento na ação, foi transmutado
em subjetivismo filosófico.
2. O espírito individual como agente de reorganização. — Deveria ser evidente que essas correntes filosóficas desvirtuaram a significação do movimento prático.
Em vez de ser-lhe a cópia, foi a sua deturpação. Os homens não 'se esforçavam empós do absurdo de libertar-se da
sua conexão com a natureza ou entre si. Lutavam para conseguir maior liberdade na, natureza e na sociedade. Queriam
dispor de maior poder para iniciarem mudanças no mundo
das coisas e de seus semelhantes; de maior amplitude de
movimento, e, por conseguinte, de maior liberdade de observações e. ideias exigidas por esse movimento. Não pretendiam
isolar-se do mundo e, sim, uma conexão mais íntima com o
mundo. Desejavam conceber ideias de primeira mão sobre
ele, em vez de as receberem da tradição. Queriam mais estreita união com os seus iguais, de modo que se pudessem
influenciar reciprocamente com eficácia maior, e associar suas
atividades respectivas visando objetivos comuns.
No que dizia respeito a. suas convicções, sentiam que
muitas coisas que passavam por serem conhecimentos eram
apenas as opiniões acumuladas do passado, em parte absurdas
e em parte correias, mas que essa própria parte verdadeira
não podia ser compreendida quando aceita por influxo da
autoridade. É pessoalmente que os homens devem observar,
conceber suas teorias e submetê-las à prova. Este método era
a única alternativa deixada pela imposição do dogma como
verdade, processo que reduzia o espírito ao ato formal de
limitar-se a aquiescer às verdades como tais.
Esta é a significação daquilo que às vezes se chama
substituição do método dedutivo de conhecer, pelo método
experimental indutivo. Em certo sentido, os homens sempre
empregaram o método indutivo no tocante às coisas de interesse prático imediato para eles. A arquitetura, a agricultura,
a indústria, etc., precisaram estribar-se na observação das atividades das coisas naturais, e as ideias sobre tais matérias
eram, em certa extensão, retificadas pelos resultados conseguidos. Não obstante, mesmo cm tais coisas confiavam in-
O indivíduo e o mundo
325
devidamente em meros costumes que eram mais seguidos às
cegas do que inteligentemente. E o método experimental e
de observação restringia-se a essas matérias "práticas", mantendo-se acentuada distinção entre a atividade prática e o
conhecimento teórico da verdade. (Veja-se o Cap. XX.) O
aparecimento de cidades livres, o desenvolvimento das viagens,
das explorações e do comércio, a evolução de novos métodos
para produzir coisas para o conforto e eíetuar trabalhos, fizeram os homens voltar-se resolutamente para seus próprios
recursos. Os reformadores da ciência como Galileu, Descartes e seus sucessores empregaram métodos análogos para
verificarem coisas referentes à natureza. O interesse pelas
descobertas tomou o lugar do interesse pela sistematização e
"comprovação" das ideias recebidas.
Uma interpretação filosófica exata dessas correntes teria,
verdadeiramente, de dar relevo aos direitos e à responsabilidade do indivíduo para adquirir pessoalmente conhecimentos
e verificar pessoalmente suas convicções; fossem quais fossem
as autoridades que afirmassem a veracidade destas. Mas isto
não deveria isolar o indivíduo do mundo, nem isolar — teoricamente — os indivíduos uns dos outros. Seria fácil perceberem que uma tal desconexão, tal ruptura da continuidade,
'negaria antecipadamente as possibilidades de êxito de seus
esforços. O fato é que todo o indivíduo se desenvolveu e
sempre deverá desenvolver-se em uni meio social. Suas "respostas" tornam-se inteligentes ou adquirem significação simplesmente porque ele vive e age em um meio de significações
e valores .reconhecidos como tais. Pelo intercâmbio social,
tomando parte em atividades que encarnam convicções, ele
gradualmente adquire espírito próprio, A concepção de espírito como urna coisa isolada que o indivíduo possui está
polarmente oposta à verdade. O indivíduo cria o espírito,
desenvolve a mente na proporção em que o conhecimento das
coisas se acha corporf içado na vida que o cercs; o eu não é
um espírito isolado a criar novos conhecimentos por sua conta
própria.
Há, contudo, uma distinção válida entre o conhecimento,
que é objetivo e impessoal, e o pensamento, que é subjetivo
e pessoal. Em determinado sentido, conhecimento é aquilo
que admitimos como verdadeiro. É o que se acha certo, definido, estabelecido, ao nosso dispor. Naquilo que conhecemos
perfeitamente não é necessário pensar. Em linguagem co-
326
Democracia e educação
mum, é coisa certa, segura, E isto não significa a simples
impressão de certeza. Não denota um sentimento e, sim,
uma atitude prática, a prontidão para agir sem reserva ou tergiversação. Naturalmente, podemos estar enganados. Aquilo
que se toma como conhecimento — um fato e verdade — pode
em dada ocasião não ser tal. Mas tudo o que se admite sem
se pôr em dúvida, tudo o que se considera verdade assente em
nossas mútuas relações e em nossas relações com a natureza,
é o que, em dado tempo, chamamos conhecimento. Ao invés
disso, o ato de pensar começa, conforme vimos, pela dúvida
ou incerteza. Hle representa uma atitude indagadora, buscadora, investigadora, em vez de o ser de domínio e posse.
Mediante seu processo crítico o verdadeiro, pensamento é revisto e ampliado, e são reorganizadas nossas convicções sobre
determinados estados de coisas.
É claro terem sido os últimos poucos séculos um período
típico de revisão e reorganização de convicções. Mas os homens, em verdade, não se desembaraçaram de todas as crenças
a eles transmitidas, referentes às realidades da existência, para
partirem de novo, tomando apenas por base exclusivamente
suas sensações e ideias particulares. Mesmo que o quisessem,
não poderiam ter feito isso; e, caso tivesse sido possível
fazê-lo, o único resultado teria sido o verem-se reduzidos a
uma imbecilidade geral. Eles tomaram como ponto de partida os conhecimentos admitidos como tais e investigaram criticamente os fundamentos em que eles se assentavam; observaram as exceções; empregaram novos artifícios mecânicos
para esclarecerem os dados incompatíveis com aquilo em que
acreditavam; recorreram à imaginação para conceber um
mundo diferente daquele em que seus antepassados tinham
depositado a confiança. Era um trabalho fragmentário, a varejo. Cada problema era atacado por sua vez. O resultado
líquido de toda essa revisão de valores equivalia, contudo, a
uma revolução das anteriores concepções sobre o mundo, O
que ocorreu foi a reorganização dos hábitos intelectuais anteriores, reorganização infinitamente mais eficiente do que o
cerceamento repentino de todas as conexões com o passado.
Este estado de coisas sugere uma definição do papel do
indivíduo, ou do eu, no conhecimento, isto é, a redireção ou
reconstrução das convicções admitidas. Toda a ideia nova,
toda a concepção das coisas diferentes da autorizada pela
crença corrente, tem sua origem em um indivíduo. Não há
O indivíduo e o mundo
327
dúvida de que as ideias novas estão sempre a surgir, mas uma
sociedade governada pelo costume não encoraja seu desenvolvimento. Pelo contrário — tende a reprimi-las, por se
desviarem das ideias dominantes. Em comunidade dessa espécie, torna-se suspeito o homem que encare as coisas diferentemente dos outros; persistir, para ele, será geralmente
fatal. Mesmo quando não é tão rigorosa a censura social das
opiniões, as condições sociais podem deixar de proporcionar os
recursos requeridos pelas novas ideias para o seu adequado
desenvolvimento; ou poderão deixar de dar apoio e recompensa materiais aos que as houverem concebido. Daí o permanecerem corno simples fantasias, românticos castelos no ar,
ou especulações sem objetívos.
A liberdade de observação e de imaginação subentendida
na moderna revolução científica não foi facilmente assegurada; foram precisas lutas para consegui-la; muitas pessoas
sofreram por sua independência intelectual. Mas, apesar de
tudo, a moderna sociedade europeia permitiu e em seguida
encorajou deliberadamente, pelo menos em alguns campos de
ação, as reações individuais que se desviavam daquilo que é
prescrito pelos costumes. As descobertas, as pesquisas, as
investigações em novos terrenos, as invenções, chegaram por
fim a ser moda social ou de certo modo toleráveis.
Entretanto, segundo já notamos, as teorias filosóficas
não se contentaram de conceber o espírito do indivíduo como
o eixo em torno do qual girava a reconstrução das crenças,
mantendo assim a continuidade do indivíduo com o mundo da
natureza e de seus semelhantes. Elas consideraram o espírito
do indivíduo como uma entidade separada, completa em cada
pessoa e isolada da natureza e, por isso, dos outros espíritos.
Por essa causa, um legítimo individualismo intelectual, a atitude de revisão crítica das crenças antigas, atitude que é indispensável ao progresso, foi expressamente formulado como
Um individualismo moral e social. Quando a atividade do indivíduo, partindo das crenças costumadas, se esforça por
transformá-las de modo a obter a aquiescência geral, não existe
oposição entre o individual e o social. As variações intelectuais do indivíduo na observação, na imaginação, na invenção e no ato de julgar são simplesmente os fatores do
progresso social, exatamente como a conformidade com os hábitos é o fator da conservação social. Mas quando se considera o conhecimento como coisa que se origina e evolui dentro
328
Democracia e educação
do indivíduo, os elos que vinculam a vida mental de alguém
à de seus semelhantes são ignorados e negados.
Quando se nega a qualidade social das operações mentais
individualizadas, suvge o problema de encontrar conexões que
unam o indivíduo a seus iguais. Implanta-se o individualismo
moral com a separação consciente de diferentes centros da
vida. Ele tem suas raízes na noção de que a consciência de
cada pessoa é totalmente particular, é um continente fechado
em si mesmo, intrinsecamente independente das ideias, desejos
e propósitos de qualquer outra pessoa. Mas quando os homens agem, eles o fazem em um mundo público e comum.
A teoria dos espíritos conscientes isolados e independentes
deu origem ao seguinte problema: Desde que sentimentos,
ideias e desejos nada têm que ver uns com os outros, como
podem ser regulados para benefício social ou público os atos
que deles promanam? Desde que a consciência é egoísta
como podem ter lugar os atos que interessam a outras pessoas? As filosofias morais que adotaram essas premissas
produziram quatro modos típicos de solucionar-se a questão.
I — Um dos métodos representa a sobrevivência da
antiga situação criada pela autoridade, com as concessões e
transigências que a evolução das coisas tornou absolutamente
inevitáveis. Os desvios e diferenciações que caracterizam um
indivíduo são ainda encarados com suspeita; eles são, em princípio, provas de perturbações, revoltas e corrupções do indivíduo não guiado exteriormente pela autoridade. Mas o fato
é que, como coisa não abrangida por este princípio, o individualismo intelectual é tolerado em certos terrenos técnicos
•— em matérias como as matemáticas, a física e a astronomia.
e nas invenções técnicas delas resultantes. Mas nega-se a
aplicabilidade de tal método às matérias morais, sociais, jurídicas e políticas. Em tais matérias o dogma tem ainda a
supremacia; certas verdades eternas, tonadas conhecidas pela
revelação, intuição .ou sabedoria de nossos antepassados, estabelecem limites intransponíveis à observação e especulação individuais. Os males que afligem as sociedades são produzidos pelos esforços dos indivíduos indisciplinados para ultrapassar essas divisas. Entre as ciências físicas e as morais
ficam as ciências intermediárias da vida, cujo território é só
a contragosto cedido à Uberdade de investigação, sob a pressão
dos fatos consumados. Embora a história do passado tenha
indivíduo c o mundo
329
demonstrado que as possibilidades de beneficiar a nós humanos são maiores e mais seguras quando nos confiamos a uma
responsabilidade surgida dentro do próprio processo da investigação, a "autoridade" estabelece à parte um domínio sagrado
da verdade que deve ser defendido contra as incursões das
variações de crenças. Educacionalmente pode-se não insistir
muito nas verdades eternas e sim na autoridade do livro e do
professor, mas não se desencorajam menos as variações individuais.
II — Outro método é o denominado às vezes racionalismo,
ou intelectualismo abstraio. Acredita-se em uma faculdade
lógica formal distinta da tradição, da história e de todas as
matérias de estudo concretas. Esta faculdade da razão é dotada do poder de influenciar dirctamente a conduta. Como
ela trata unicamente com formas gerais e impessoais, quando
diferentes pessoas obram de acordo com as noções lógicas,
suas atividades são exteriormente coerentes. Não pode haver
dúvidas sobre os serviços prestados por esta filosofia. Foi
Um poderoso fator para a crítica negativa e demolidora das
doutrinas que apenas tinham a escudá-las as tradições e os interesses de classes; habituou os homens à liberdade de exame
C à noção de que se devem submeter as crenças ao critério da
razão. Solapou o poder dos preconceitos, das superstições e
da força bruta, acostumando os homens a confiar na argumentação, na discussão e na persuasão. Contribuiu para haver
clareza e ordem na exposição das ideias.
Mas a sua influência foi maior na destruição das velhas
falsidades do que na criação de novos vínculos e associações
entre os homens. Sua natureza formal e vazia, devido a
conceber a razão como alguma coisa completa por si mesma,
independentemente da matéria, sua atitude hostil para com
as instituições históricas, sua indiferença pelas influências dos
hábitos, dos instintos e das emoções como fator es ativos na
vida, deixaram-na impotente para a sugestão de fins e métodos
específicos. A lógica, nuamente, por importante que seja
para ordenar e criticar a matéria em apreço, não pode extrair
matéria nova de si mesma. Na educação, o fato correlativo
a esse é confiar-se em regras e princípios gerais já prontos
para assegurar concordância, não se tratando de ver se os
mesmos e as ideias dos alunos se harmonizam realmente
cnlre si.
Democracia e educação
O indivíduo e o mundo
III — Ao mesmo tempo em que evoluía na França esta
filosofia racionalista, a Inglaterra apelava para o interesse
pessoal do indivíduo, com o fito de assegurar a unidade exterior dos atos que derivavam das isoladas fontes das consciências. As disposições legais, principalmente penais, e os regulamentos governamentais deviam ser de tal natureza, que evitassem que os atos procedentes dos sentimentos particulares de
uma pessoa colidissem com os sentimentos de outras. A educação devia incutir nos indivíduos a compreensão de que a
não interferência nos sentimentos alheios e certo grande interesse positivo pelo bem-estar dos mesmos eram necessários
para uma pessoa poder tentar com segurança atingir a própria
felicidade. Deu-se muita importância, entretanto, ao tráfico
mercantil como meio harmonizador do procedimento dos indivíduos. Nesse tráfico cada qual visa satisfazer suas próprias necessidades, mas só pode auferir benefícios fornecendo
alguma comodidade ou prestando serviços a outrem. Desta
maneira, visando o aumento de seus próprios estados de consciência agradáveis, uma pessoa contribui para esse mesmo
estado das outras.
Também neste caso não há dúvida de que essa opinião
exprimia e incentivava uma elevada noção dos valores da
vida consciente, e o conhecimento de que em última análise as organizações institucionais devem ser julgadas pelas
suas contribuições em prol da intensificação e da ampliação
dos domínios da experiência consciente. Ela também fez
muito para salvar o trabalho manual, a indústria e os artifícios
mecânicos, do desprezo em que os tinham as sociedades baseadas na dominação das classes não trabalhadoras. Por estes
dois meios a referida filosofia estimulou um interesse social
mais vasto e democrático. Mas achava-se eivada da estreiteza
de vistas de suas premissas fundamentais: a doutrina de que
os indivíduos agem tendo em mira seus próprios 'prazeres e
sofrimentos, e de que os atos chamados generosos e altruístas
não são mais do que meios indiretos de proporcionar-se e
assegurar-se o próprio bem-estar. Por outras palavras —•
patenteou as consequências inerentes a toda a teoria que representa a vida mental como uma coisa encerrada em si mesma
em vez de se constituir de tentativas para redigir e readaptar
os interesses comuns. Considerou a união entre os homens
como uma questão de cálculo exterior. Justificou a desdenhosa asseveração de Carlyle, de que era doutrina de anar-
quia e de casos policiais, e de que ela reconhecia apenas vínculos pecuniários entre os homens. É evidente ser o equivalente pedagógico desta doutrina o uso das recompensas agradáveis e punições desagradáveis.
330
331
IV — A filosofia caracteristicamente alemã seguiu por
outra vereda. Partiu das ideias que eram essencialmente a
filosofia racionalista de Descartes e de seus sucessores franceses. Mas ao passo que a filosofia francesa, bem considerado tudo, desenvolveu a ideia da razão em antagonismo com
a concepção religiosa de um espírito divino residente nos indivíduos, a filosofia alemã (como em HEGEL) fez uma síntese das duas coisas. A razão é absoluta. Á natureza é a
fazão corporificada. A história é, a razão em seu progressivo
expandir-se no homem. Um indivíduo só se torna racional
quando assimila o conteúdo da racionalidade da natureza e das
instituições humanas. Pois uma razão absoluta não é, como
a razão do racionalismo, puramente formal e vazia; para ser
absoluta, deve ter todo o conteúdo incluído em si.
Desta maneira o verdadeiro problema não é o de disciplinar a liberdade do indivíduo, de modo a resultar certa
proporção de ordem e concórdia social, mas o de conseguir-se
a liberdade individual mediante o desenvolvimento das convicções individuais de acordo com a lei universal encontrada
na organização do Estado como Razão objetiva. Esta filosofia é chamada comumente idealismo absoluto ou objetivo;
melhor, porém, seria denominá-la, pelo menos para fins pedagógicos, idealismo institucional. Ela idealizava as instituições
históricas concebendo-as como encarnações de um espírito
absoluto imanente. Não resta dúvida de que esta concepção
exerceu poderosa influência para salvar a filosofia, nos começos do século dezenove, do individualismo isolado em que
caíra na França e na Inglaterra. Serviu também para tornar
a organização do estado mais construtivamente interessada nas
coisas de interesse público. Deixou menos terreno para o
acaso, menos para a simples convicção lógica individual e para
a influência dos auto-ínteresses particulares. Levava a inteligência a influir na direção dos negócios públicos; frisava a
necessidade de uma educação nacionalmente organizada no
interesse da unidade nacional. Sancionou e promoveu a liberdade de investigação em todos os pormenores técnicos dos
fenómenos naturais e históricos. Mas, em toda a matéria
moral, tendia, em última análise, a restabelecer o princípio da
332
Democracia e educação
autoridade. Essa teoria fez mais para a eficiência da organização, do que qualquer outro tipo de filosofia dos precedentemente mencionados, mas não dava margem à livre modificação experimental dessa organização. A democracia política, com seu reconhecimento do direito de o indivíduo desejar
e resolver tomar parte na readaptação até mesmo da constituição fundamental da sociedade, era coisa desconhecida para
essa corrente filosófica.
3. Equivalentes educacionais. — Não é necessário
considerar em suas minúcias o reflexo, na educação, dos vários defeitos existentes nesses diversos tipos de filosofia.
Basta dizer que, em geral, a escola foi a instituição que patenteou com maior clareza o antagonishio que se presumia
existir entre os métodos de ensino puramente individualistas
c a atividadc social, e entre a liberdade e a disciplina social.
Esse antagonismo refletia-se na ausência de ambiente e motivos sociais para aprender, e na consequente separação, na
prática escolar, entre método de ensino e métodos de administração; e nas poucas oportunidades proporcionadas para se
manifestarem as variações individuais.
Quando o aprender é um dos aspectos de empreendimentos ativos que subentendem mútuas trocas, o influxo social penetra no íntimo do processo de estudar. Faltando esse
fator social, aprender equivale ao transporte de alguma matéria apresentada a uma consciência puramente individual» e não
há razão para que esse aprendizado dê uma orientação mais
social aos estados mentais e emocionais.
Entre os partidários e os adversários da liberdade na
escola, nota-se a tendência de identificá-la com a ausência de
díreção social ou, algumas vezes, com o simples não constrangimento físico de movimentos. Mas a essência da exigência de liberdade é a necessidade de condições que habilitem
o indivíduo a dar sua contribuição pessoal aos interesses de
um grupo, e a compartir as atividades deste de tal modo que
sua orientação social seja o resultado da própria atitude mental do indivíduo, e não uma coisa imposta por meio da autoridade.
Como aquilo que com frequência se chama disciplina e
"governo" só se relaciona com o lado externo da conduta,
uma significação similar foi dada, como reação, à liberdade.
O indivíduo e o
333
Mas quando se percebe que ambas as ideias significam a qualidade de participação intelectual manifestada na ação, desaparece o suposto antagonismo entre essas duas coisas. Liberdade, em sua essência, significa o papel desempenhado pelo
ato de pensar — que é pessoal —• no aprendizado: significa
iniciativa intelectual, independência na observação, invenção judiciosa, previsão de consequências e engenho na sua adaptação.
E como são estes os aspectos mentais do procedimento,
não se podem separar a necessária manifestação da individualidade — ou liberdade — e a oportunidade para a livre
prática de movimentos físicos. A imobilidade corporal forçada pode ser desfavorável à compreensão de algum problema,
à ação de empreender as observações necessárias para defini-lo e para a execução dos atos que põem em prova as ideias
sugeridas. Muita coisa já foi dita sobre a importância da
atividade individual em educação, mas essa concepção com
grande frequência se restringiu a alguma coisa meramente interna — coisa que excluía o livre uso dos órgãos sensoriais e
motores.
Aqueles que se encontram no estágio do aprendizado por
meio de símbolos, ou os que estão empenhados em desenvolver
o conteúdo de um problema, ou a idéía preliminar para um
emprego mais acurado da atividade reflexiva, podem necessitar de pouco perceptível liberdade de ação. Mas o ciclo
total das atividades do aluno exige oportunidades para a investigação e a experimentação, para tentar realizar as suas
ideias sobre as coisas, e descobrir o que poderá fazer com os
materiais ou recursos disponíveis. E isto é incompatível com
a excessiva restrição da atividadc corporal.
Considerou-se às vezes a atividade individual como significando deixar o indivíduo trabalhar por si mesmo ou isolado.
Para se conseguir calma e concentração, é verdadeiramente
preciso não se ter a necessidade de atentar-se para outra coisu
além daquilo que se está fazendo. As crianças, bem como as
pessoas adultas, precisam de lapsos de tempo de isolamento,
calculados judiciosamente. Mas o tempo, o lugar e a quantidade desse trabalho isolado é questão de detalhe, e não de
princípio. Não . há oposição orgânica entre trabalhar com
outras pessoas e, ao mesmo tempo, trabalhar individualmente.
Pelo contrário": certas aptidões do indivíduo não se manifestam a não ser com o estímulo de sua associação com outras
pessoas. Dizer que a criança deva trabalhar isolada e não
334
Democracia e educação
coletivamente com o fim de sentir-se livre, e poder desenvolver
sua personalidade, é noção que julga a individualidade pela
distância espacial, considerando-a uma coisa física,
Como fator a ser respeitado na educação, a individualidade
tem significação dupla. Em primeiro lugar, uma pessoa é mentalmente um indivíduo somente quando tem seu propósito e seu
problema próprios e realiza suas próprias ideias. A frase
"pensar alguém por si mesmo" é um pleonasmo. Pois não
pensar por si mesmo, não é pensar. Somente por meio de
suas próprias observações, reflexões, e elaborando e verificando as sugestões pessoalmente, pode um aluno amplificar e
retificar aquilo que já sabe. Pensar é ato tão individual
como digerir o alimento. Em segundo lugar, existem variações de pontos de vista, de predileções por objetos e de modos
de execução, de pessoa a pessoa. Quando se reprimem essas
variações no pretenso interesse da uniformidade, tentando-se
adotar um molde único para os modos de estudar e dar lição,
resultam inevitavelmente a confusão mental e a artificialidade.
Destrói-se aos poucos a originalidade, solapa-se a confiança na
própria aptidão para pensar e incute-se uma dócil submissão
às opiniões alheias, para que as ideias não se desmandem.
Maior é o dano agora, do que quando toda a comunhão era
governada pelas opiniões consuetudinárias, devido ao contraste
entre os métodos de ensino na escola e os métodos usuais
fora dela.
Não se pode negar que o progresso sistemático das descobertas científicas principiou quando se permitiu aos indivíduos (permissão que depois se tornou em incitamento)
utilizarem suas próprias peculiaridades de reação para com a
matéria a tratar. Se, como objeção, se alegar que na escola
os alunos são incapazes de tal originalidade e por isso devem
limitar-se a aprender e a reproduzir as coisas já conhecidas
pelos melhores informados, a resposta será dupla: a) Nosso
interesse é pela originalidade de atitude, que equivale à "resposta" espontânea da individualidade própria de alguém, e
não pela originalidade avaliada pelo seu produto. Não se
pode esperar que os jovens façam descobertas originais relativas a fatos e leis compendiados nas ciências naturais e humanas. Mas não é desrazoável pretender que o estudo se
faça em tais condições que a atitude do estudante seja perfeitamente a de quem está a fazer verdadeiras descobertas.
Embora os estudantes imaturos não as façam sob o ponto de
O indivíduo e o mundo
335
vista das pessoas adiantadas, eles as fazem sob seu próprio
ponto de vista, sempre que lhes for ministrado verdadeiro
ensino, b) No processo ordinário por que alguém se familiariza com matéria já conhecida por outros, até alunos bem
novos reagem de modos inesperados. Existe alguma coisa
nova, e não capaz de ser prevista mesmo pelos educadores de
mais experiência, nos modos por que se entregam ao seu
trabalho e nos modos particulares com que as coisas os
impressionam. Com muita frequência tudo isto é desprezado
como não tendo importância; e os alunos são forçados a repetir a matéria da mesma forma com que os mais velhos a
concebem. O resultado é deixar de ser usado e orientado
tudo aquilo que é instintivamente original na individualidade,
tudo o que diferencia uma pessoa de outra. Ensinar deixa
então de ser um processo educativo para o professor. No
máximo ele se limita a aperfeiçoar a técnica de que já dispõe;
não obtém novos pontos de vista; deixa de experimentar
qualquer cooperação intelectual. Tanto o ensinar como o
aprender propendem a tornar-se coisas convencionais e mecânicas, aptas a ocasionar fadiga nervosa para o docente e
o discípulo.
À medida que aumenta a maturidade e que o estudante
dispõe de maior cabedal de experiência para tratar de um novo
assunto, reduz-se o campo da mais ou menos casual experimentação física. A atividade restringe-se ou especializa-se
em certos canais. Para os olhos de outras pessoas, o estudante parece estar em posição de completa quietude física
porque suas energias se concentram na atividade nervosa e
nos aparelhos associados da vista e dos órgãos vocais. Mas
pelo fato de ser esta atitude uma prova de intensa concentração mental da parte do educando, não se segue que deva
ser apresentada como modelo para os estudantes que ainda
precisam descobrir seus próprios métodos intelectuais de
aprender. E mesmo no adulto essa atitude não constitui o
ciclo todo da energia mental. Ela assinala um período intermediário, suscetível de ser prolongado com o crescente senhorear-se de uma matéria, mas sempre compreendido entre
um período anterior de atividade orgânica mais geral e patente
e um período ulterior de pôr em prática o que foi apreendido.
Se, entretanto, a educação reconhecer a união do espírito
e do corpo na aquisição dos conhecimentos, não seremos
obrigados a insistir sobre a necessidade da liberdade visível
336
Democracia e ed^lcação
ou exterior. Basta identificar a liberdade implicada no ensino e aprendizado com o ato de pensar por meio 4o qual se
estende e apura aquilo que uma pessoa já sabe e acredita.
Se a atenção se focalizar nas condições favoráveis para se
conseguir a manifestação do eficaz ato de pensar, a Uberdade se manifestará por si mesma. Intelectualmente livre é o
indivíduo que se vê a braços com uma questão, a qual, por ser
realmente uma questão, lhe excita a curiosidade e estimula sua
ânsia de obter conhecimentos que o auxiliem a solvê-la — e
que dispõe de recursos que permitam a' realização de seu intento. Toda a iniciativa e ímagirlação que ele possui serão
postas em ação e dirigirão seus impulsos e hábitos. Seus
próprios fins orientarão seus atos. De outro modo, sua aparente atenção, sua docilidade, seu ato de decorar e de reproduzir a matéria, serão eivados de servilismo intelectual. Necessita-se desse estado de servidão mental para disciplinar as
massas em uma sociedade em que se espera do maior número
que não tenham objetivos ou ideias próprias, e sim que recebam
as ordens dos poucos detentores da autoridade. Esse estado
de coisas não é o adequado a uma sociedade que pretende ser
democrática.
Resumo. — O verdadeiro individualismo é o fruto
do afrouxamento da compreensão da autoridade, dos costumes e tradições como padrões de crenças e "certezas". A
parte exemplos esporádicos, como o da altitude do pensamento grego, ele é manifestação relativamente moderna. Não
queremos dizer que não tenham sempre existido diferenciações
individuais, e sim que uma sociedade, em que predominam
costumes conservadores, os reprime, ou pelo menos, não os
utiliza nem estimula. Entretanto, por vários motivos o novo
individualismo foi interpretado filosoficamente, não como
significando o desenvolvimento de fatores para se reverem e
transformarem as crenças anteriormente aceitas, mas como a
afirmação de que o espírito de cada indivíduo era completo
em seu isolamento de qualquer outra coisa. No terreno teórico da filosofia isto originou o problema epistemológico; a
questão da possibilidade de alguma relação cognitiva entre o
indivíduo e o mundo. Praticamente, essas ideias suscitaram
o problema de uma consciência puramente individual atuando
em benefício dos interesses gerais ou sociais — o problema da
direção social.
O indivíduo e o mundo
337
Embora as filosofias criadas para resolver estas questões
não afetassem diretamente a educação, as presunções nelas
subententidas manifestaram-se na separação frequentemente
feita entre os estudos e o governo e entre a liberdade da individualidade e sua sujeição a outrem.
Relativamente à liberdade, o importante é ter-se em
mente que ela designa mais uma atitude mental do que a
ausência de restrição exterior de movimentos, mas que esta
qualidade espiritual não pode desenvolver-se sem grande produção de movimentos para os atos de explorar, experimentar,
aplicar, etc. Uma sociedade esteada nos costumes utilizará
as variações individuais até certo Kmite, conformemente .aos
seus usos; a uniformidade é o principal ideal no interior de
cada classe. Uma sociedade progressiva considera preciosas
as variações individuais desde que nelas encontre meios para
seu próprio desenvolvimento. Por conseguinte, uma sociedade
democrática deve, em sua interferência na educação e coerente
com seu ideal, permiter a liberdade intelectual e a manifestação das várias aptidões e interesses.
Aspectos 'vocacionais da educação
CAPITULO 23
Aspectos vocacionais da educação
l. A significação da vocação. — Nos tempos atuais
o conflito das teorias filosóficas focaliza-se na discussão do
papel e função próprios dos elementos vocacionais na educação.
A simples afirmação de que importantes divergências entre
as concepções filosóficas fundamentais têm sua principal solução associada a este ponto, pode causar incredulidade: parece
tão grande a distância entre os termos remotos e gerais em
que as ideias filosóficas são formuladas e as particularidades
práticas e concretas da educação vocacional! Mas uma revista dos fundamentos intelectuais implícitos dos antagonismos, em educação, do trabalho e dos lazeres, da teoria e da
prática, do corpo e do espírito, dos estados mentais e do
mundo, mostrará que eles culminam na antítese das educações
vocacional e cultural. Pela tradição a cultura liberal tem sido
associada às noções de gozo de lazeres, de conhecimento puramente contemplativo e de uma atividade espiritual independente do uso ativo dos órgãos corporais. A ideia de cultura
também tendeu, por último, associar-se com um apuro e refinamento educativo meramente individual, com o cultivo de
certos estados e atitudes de consciência, independentemente
de direção ou serventia sociais. Foi uma válvula de escape
à primeira (direção social) e um alívio à necessidade da
última (serviço social).
Tão fundamente entrelaçados estão estes dualismos filosóficos com toda a matéria da educação vocacional, que é necessário definir-se a significação de vocação um tanto precisamente, a fim de evitar-se a impressão de que uma educação centralizada nela seja restritamente prática, senão meramente pecuniária. Uma vocação não significa outra coisa
senão uma tal direção das atividades da vida, que todas elas
se tornam perceptivelmente importantes para nós, devido às
339
consequências que acarretam, e úteis às pessoas a nós associadas. O contrário de uma vocação ou de uma carreira não
é o gozo de lazeres nem cultura, e sim, quanto ao lado pessoal,
a falta de objetivo, o capricho, a ausência de enriquecimento
acumulativo de experiência; e, quanto ao social, a ostentação
ociosa e a dependência parasitária de outrem. Ocupação é
o termo concreto para exprimir continuidade. Ela subentende
o desenvolvimento de capacidades artísticas de todas as espécies/ de aptidão científica especial, de cidadania prestante,
assim como ocupações profissionais e de negócios, para nada
dizer quanto ao labor mecânico ou às atividades empreendidas
com o intuito do ganho.
Devemos evitar não só a limitação da ideia de vocação
às ocupações que produzem coisas imediatamente tangíveis
para nosso conforto, como também a noção de que as vocações são distribuídas de modo exclusivo — uma e somente
uma para cada pessoa. Impossível seria essa restrita especiar.
lização; nada seria mais absurdo do que tentar educar os:
indivíduos tendo em vista, para eles, só uma espécie de atividade. Primeiro, porque cada indivíduo tem, necessariamente,
várias ocupações, em cada uma das quais deverá adquirir inteligente proficiência; e, segundo, porque uma ocupação perde
sua significação e tomará o caráter rotineiro na proporção em
que a isolarem de outros interesses.
I — Ninguém é unicamente um artista, sem poder ser
outra coisa além disso; pois, quanto mais uma pessoa se
aproximasse daquela condição, tanto menos desenvolvida
seria como ser humano; tornar-se-ia uma espécie de monstruosidade. Ela deverá, pelo contrário, em algum dos períodos de sua vida, ser membro de uma família; ter amigos
e companheiros; sustentar-se a si mesma ou ser sustentada
por outros, e, por isso, seguir alguma carreira prática; ser
componente de alguma agremiação política organizada, etc.
Naturalmente dizemos ser sua vocação alguma das atividades
que a diferenciam das outras pessoas, de preferência aquela
que tem em comum com elas. Mas não deveremos condescender em deixar-nos sugestionar por palavras ao ponto de
esquecer e virtualmente negar suas outras atividades ao considerarmos os aspectos vocacionais da educação,
II — Como a vocação artística de um homem é apenas
o aspecto consideravelmente especializado das suas múltiplas
Democracia e educação
Aspectos vocacionais da educação
e variadas atividades vocacionais, sua eficiência no seu caráter
de artista (eficiência no sentido humano) é determinada pela
associação da referida atividade com outras suas atividades.
Uma pessoa deve ter experiência, deve viver, para que sua
arte seja mais do que um trabalho técnico. Ela não pode
encontrar a matéria de sua atividade artística dentro de sua
arte; esta deve ser a expressão daquilo que sofre e goza em
outras de suas relações — o que, por seu turno, depende da
vivacidade e simpatias de seus interesses.
Aquiío que é a verdade em relação à arte, é-o também
em relação a quaisquer outras ocupações especiais. Existe,
sem dúvida — em concordância geral com a natureza do hábito — a tendência de cada vocação distinta se tornar mui
predominante, exclusiva e absorvente em seu aspecto especializado. Isto significa dar~se atenção à habilidade ou proficiência técnica, à custa do sentido ou significação. E por
isso mesmo, não é função da educação estimular essa tendência, e sim defender-se contra ela, de modo que o investigador
científico não se torne simplesmente um cientista, nem o
professor simplesmente um pedagogo, nem o padre um homem
que* apenas usa batina, e assim por diante.
sendo favorecidos com o melhor serviço que a referida pessoa
poderia prestar-lhes. Acredita-se geralmente, por exemplo,
que o trabalho escravo, em última análise, é prejudicial até
sob o ponto de vista puramente económico — que não há
estímulos suficientes para dirigirem as energias dos escravos,
o que redunda em perda e desperdício. Além disso, como a
atividade dos escravos se restringia a certas ocupações a eles
impostas, muitas de suas aptidões ficavam desaproveitadas
para a comunidade, constituindo, isso, grande perda. A escravidão apenas ilustra mais clara e insofismavelmente o que
acontece quando um indivíduo não faz o trabalho a que o impele sua inclinação. E não poderá nunca buscá-la, nem encontrar-se a si mesmo verdadeiramente enquanto se desprezarem
as vocações e se mantiver para todos um ideal convencional
de cultura essencialmente idêntico.
340
2. O papel dos objetivos vocacionais na educação.
— Tendo em mente o vário e complexo conteúdo da vocação
e o vasto quadro sobre que se projeta uma vocação determinada, consideraremos agora a educação relativamente a
essas mais características atividades de um indivíduo.
i — Uma ocupação é a única coisa que estabelece
equilíbrio entre a capacidade distintiva de um indivHuo e
os serviços sociais do mesmo. Descobrir aquilo que uma
pessoa está mais apta a fazer, e assegurar uma oportunidade
para fazê-lo, é a chave da felicidade. Não há maior tragédia para um indivíduo do que deixar-se de descobrir sua
verdadeira aptidão na vida, ou verificar-se que houve desvio
dessa aptidão congénita, e que as circunstâncias o forçaram
a um trabalho em desacordo com as próprias inclinações.
Ocupação acertada significa simplesmente aquela que uma
pessoa, pelas suas tendências, é apta a desempenhar, agindo
com o mínimo de atrito e com o máximo de satisfação. No
respeitante a outros membros da comunidade, esta adequação
da atividade de uma pessoa significa, naturalmente, que estão
3-íl
PLATÃO estabeleceu o princípio fundamental de uma filosofia pedagógica, ao afirmar ser tarefa da educação descobrir o que cada pessoa pode fazer bem, e exercitá-la para
senhorear-se dessa espécie de excelência, pois esse desenvolvimento asseguraria, também, do modo mais harmónico, a satisfação das necessidades sociais. Seu erro não estava nesse
seu princípio qualitativo, mas em sua limitada concepção das
vocações necessárias à sociedade — estreiteza de visão que
teve como réação obscurecer sua percepção da infinita variedade de aptidões de que os .vários indivíduos são dotados.
2 — Uma ocupação é uma atividade seguida e contínua visando um fim. Por isso, a educação por meio de
ocupações associa em si, mais do que qualquer outro método, a maioria dos fatores conducentes. ao saber. Ela põe
em jogo os instintos e os hábitos; é inimiga da receptividade
passiva. Tem um fim em mira; provoca e exige a produção de certos resultados. Por isso, ela apela para a inteligência; exige que a ideia de um fim seja firmemente mantida, de modo que a atividade não seja rotineira ou arbitrária. Desde que o desenvolvimento da atividade deva ser
progressivo, conduzindo de um estágio a outro, requer, em
todos os estágios, observação e engenho para superar os
obstáculos e descobrir e readaptar meios de execução. Em
suma •— uma ocupação feita em condições em que o alvo
seja mais o exercício da atividade do que simplesmente o
seu produto exterior, preenche os requisitos que já foram
342
Democracia e educação
Aspectos -vocacionais da educação
enunciados ao tratarmos dos objetivos, do interesse e da reflexão (V. Cap. VIII, X, XII).
Uma ocupação é também necessariamente um princípio
organizador para as informações e ideias, para o conhecimento e o desenvolvimento intelectual. Ela fornece um eixo
a que se prende uma variedade imensa de detalhes; faz que
diferentes experiências, fatos, dados informativos, se coordenem entre si. O advogado, o médico, o investigador de laboratórios sobre qualquer ramo da química, o pai, o cidadão
interessado pela sua própria localidade, têm um constante e
eficaz estímulo para observar e relatar aquilo que se relaciona
com o seu interesse. Inconscientemente, movido por sua
ocupação, ele apreende todos os conhecimentos relevantes para
sua atividade, apossando-se dos mesmos. A vocação atua
como o imã para atrair e o visco para prender. Tal organização do conhecimento é vital, porque é originada pela
necessidade; e de tal modo se manifesta e ajusta na açao, que
nunca se conserva inerte. Nenhuma classificação, seleção e
arranjo de, fatos, conscientemente feitos para fins puramente
abstratos, poderá comparar-se em solidez ou eficácia com os
organizados pelo vivo estímulo de uma ocupação; em comparação com o influxo desta, aqueles são formais, superficiais
e frios.
sultado, pois pode originar desgosto, aversão e negligência)
mas isso sucederia em detrimento das qualidades de observação vigilante e do planejar coerente e inteligente que tornam
uma ocupação intelectualmente compensadora.
Em uma sociedade governada autocraticamente é frequente um propósito consciente de evitar-se o desenvolvimento
da liberdade e da responsabilidade individual; alguns poucos
planeiam e ordenam, os demais seguem as instruções, cingindo-se aos estreitos limites demarcados para seus esforços.
Embora esse plano pedagógico possa fortalecer o prestígio e as
vantagens de uma classe, é evidente que restringe o desenvolvimento da classe inferior; diminui, dificulta e limita, para
a classe dominante, as oportunidades de aprender por meio da
experiência; e por esses dois modos entrava o desenvolvimento
da sociedade considerada como um todo.
A única alternativa a adotar-se é que toda a primeira
preparação para as vocações deve ser mais indireta que direta, isto é, fazer o discípulo dar-se às ocupações ativas aconselháveis, a esse tempo, pelas suas necessidades e interesses
pessoais. Só por este meio podem o educador e o educando
fazer a descoberta das genuínas aptidões pessoais, de modo a
poder-se fazer para o último a escolha conveniente do trabalho especial a que se dedicará mais tarde, na vida prática.
A descoberta das capacidades e aptidões será, além disso, um
processo constante, enquanto prosseguir o desenvolvimento.
Opinião convencional e arbitrária é a que entende que a descoberta do trabalho a escolher-se para a vida adulta deverá
ser feita, uma vez por todas, tendo-se em vista alguns dados
particulares. Uma pessoa, por exemplo, descobriu em si o
Interesse intelectual e social pelas coisas respeitantes à engenharia e resolve, em consequência, escolher essa carreira. Na
melhor das hipóteses, isto apenas circunscreve o campo de
orientação para o desenvolvimento ulterior. É uma espécie
de esboço grosseiro de um mapa a ser usado para a direção
da. atividade futura. Isso seria o mesmo que descobrir-se
uma profissão do modo como Colombo descobriu a América,
ao aportar às suas costas. Ficam por se fazerem explorações
ulteriores de modo infinitamente mais particularizado e extenso. Se os educadores conceberem a orientação vocacionaicomo uma coisa que leva a uma escolha definitiva, irreparável
C completa, é provável que tanto a educação como a vocação
escolhida se tornem rígidas, embaraçando a evolução ulterior.
3 — A única preparação adequada para as ocupações é
a feita por meio de ocupações. O princípio já exposto neste
livro (V. Cap. VI), de que o processo educativo é seu próprio fim, e de que a única preparação suficiente para futuras
responsabilidades depende de se ter em vista o mais possível
a vida imediatamente presente, aplica-se plenamente aos
aspectos vocacionais da educação. A vocação predominante
de todos os sei es humanos, em todas as épocas da vida, é seu
desenvolvimento intelectual e moral. Vê-se nuamente este fato
na infância e na adolescência, com sua relativa emancipação da
premência económica. Predeterminar alguma futura ocupação para a quaj a educação seja rigorosamente tima preparação,
é reduzir as possibilidades do desenvolvimento atual do educando e desse modo prejudicar a adequada preparação para o
futuro trabalho que lhe seja conveniente. Repetindo o princípio para o qual tantas vezes tivemos necessidade de apelar,
diremos que aquela preparação poderá produzir uma habilidade maquinal rotineira (longe está de ser garantido esse re-
343
Democracia e educação
Aspectos vocacionais da educação
Quando se dá semelhante coisa, a carreira escolhida conservará a pessoa interessada em permanente posição subalterna,
executando o que determina a inteligência de outros, que tenham ocupações que lhes permitem- mais flexibilidade de
ação e de reajustamento. Embora o uso ordinário da linguagem possa não permitir chamar-se escolha de uma ocupação
para mais tarde essa flexível atitude de reajustamento para
com certo grupo de atividades, isso, de fato, é que é verdadeiramente escolha. Como até os adultos devem acautelar-se
para que suas ocupações não lhes paralisem a atividade e os
fossilizem, a educação precisa, certamente, ter cuidado para
que a preparação vocacional dos adolescentes seja de tal espécie, que lhes permita uma contínua reorganização de objetivos
e de métodos.
remuneração. Se quisermos, porém, preocupar-nos com palavras, diremos que a direção de coisas de interesse social,
quer políticas, que económicas, quer na guerra ou na paz, são
ocupações ou vocações como qualquer daquelas outras; e, no
passado, quando a educação não ficava completam ente sujeita
à tradição, as escolas superiores também tiveram em mira,
sobretudo, preparar para aquelas atividades. Além disso, a
ostentação, o adorno da pessoa, as espécies de relações e diversões sociais que dão prestígio, e o dispêndio,de dinheiro, foram
convertidos, também, em ocupações ou vocações bem definidas. Os institutos de ensino de nível mais alto foram inconscientemente organizados a fim de contribuírem para o preparado nessas ocupações. Até presentemente, aquilo que se chama educação superior é para certa classe (muito menor do
que dantes) simplesmente a preparação para se dedicar eficazmente àquelas atividades.
Sob outros pontos de vista, existe em grande escala, nos
trabalhos de espécie mais elevada, uma preparação para seu
ensino e para investigações especiais. Por uma singular superstição, foi considerada não vocacional e mesmo como especialmente cultural a educação que • se consagra principalmente
à preparação para a ociosidade elegante, para o ensino, para
atividades literárias e para cargos que envolvem mando. A
educação literária que indiretamente é própria para se versarem
as letras, quer se trate de livros, de artigos de jornais ou
colaboração em revistas, está particularmente sujeita a essa
superstição; muitos professores e autores preconizam uma
educação cultural e humana para contrastar com a predominância das educações práticas especializadas, sem reconhecer
que suas próprias educações, que eles chamam liberais, consistiram principalmente na preparação para seus misteres particulares. Dá-se isto simplesmente porque eles contraíram o
hábito de considerar seu próprio trabalho essencialmente
cultural e de esquecer as possibilidades culturais das outras
profissões. No âmago destas distinções está indubitavelmente
o influxo da tradição, que considera mais como profissões as
espécies de atividade em que uma pessoa é responsável por
seu trabalho para com um patrão, do que aquelas em que a
responsabilidade é para com o último "patrão", isto é, a
comunidade.
Existem, entretanto, causas manifestas para o atual encarecimento consciente da educação vocacional — da atitude
344
3. Oportunidades e perigos atuais. — No passado a educação foi, muito mais de fato, do que de nome,
vocacional.
I — A educação das massas era nitidamente utilitária.
Chamavam-lhe mais aprendizado do que educação, ou, então,
o ensino por experiência. As escolas dedicavam-se ao ensino
de leitura, escrita e comas, na proporção em que as espécies
de trabalho exigiam seu conhecimento. A fase da educação
extra-escolar consistia em consagrar-se o aluno a alguma espécie determinada de trabalho sob a direção de outrem. As
duas coisas completavam-se; tanto o trabalho escolar em seu
caráter restrito e formal fazia parte do aprendizado de uma
profissão, 'como aquilo que propriamente tem o nome de
aprendizado.
II — A educação das classes dominantes era, em extensão
considerável, vocacional; — apenas sucedia que sua preparação para o mundo e para a vida de prazeres não se
chamava profissional. Pois só se falava em vocações ou
empregos com referência a ocupações que subentendiam trabalho manual, o trabalho tendo em vista uma recompensa
ou seu equivalente em dinheiro, ou a prestação de serviços
pessoais a determinadas pessoas. Durante muito tempo, por
exemplo, as profissões de cirurgião e de médico quase se nivelavam com as de criado ou de barbeiro — em parte por
terem como objeto o corpo humano e em parte por serem
prestações de serviço a determinadas pessoas, com o fito da
345
346
Democracia e educação
de tornar expresso e voluntário o conteúdo vocacional que
dantes ficava implícito.
l — Em primeiro lugar, há nas comunidades democráticas urn aumento da estima por aquilo que se relaciona com
os trabalhos manuais, com as ocupações comerciais e com a
prestação de serviços tangíveis à sociedade. Em teoria espera-se que agora os homens e as mulheres façam alguma
coisa em troca do amparo intelectual e económico que lhes
é dado pela sociedade. Exalta-se o trabalho; -a prestação de
serviços é apregoadissimo ideal moral. Embora ainda se
admirem e invejem muito aqueles que podem levar existência
ociosa e de ostentação elegante, os melhores sentimentos morais condenam semelhante vida. É mais geralmente reconhecida, do que o costumava ser, a responsabilidade social pelo
emprego do tempo e da capacidade pessoal.
2 — Em segundo lugar, as vocações especificamente
industriais ganharam consideravelmente em importância, de
século e meio para cá. A indústria e o comércio já não são
coisas domésticas e locais e, por consequência, mais ou menos
acidentais — e, sim, mundiais. Neles se emprega o melhor
das energias de um número cada vez maior de pessoas. Os
industriais, os banqueiros e os capitães de comércio substituíram, praticamente, a antiga nobreza territorial hereditária na
direção dos negócios sociais. O problema do reajustamento
social é -francamente industrial, entendendo-se com as relações
do capital e do trabalho. O grande desenvolvimento de importância social dos grandes processos industriais pôs inevitavelmente em destaque questões sobre as relações do ensino
escolar com a vida industrial. Uma tão vasta readaptação
social não poderia ocorrer sem pôr em xeque uma educação
herdada de condições sociais diferentes, e sem propor à educação novos problemas.
3 — Em terceiro lugar, há o fato já repetidamente mencionado de que a indústria deixou de ser, em sua essência, o
processo empírico, rotineiro, estabelecido pelo costume. Sua
técnica é agora tecnicológica, isto é, baseada em maquinarias
resultantes de descobertas matemáticas, físicas, químicas,
bacteriológicas, etc. A revolução económica estimula a ciência com a proposição de problemas a solver-se e com o ter
originado maior respeito intelectual pelos recursos mecânicos.
Aspectos vocacionais da educação
347
Em compensação, a ciência pagou a indústria com juros
acumulados. Como consequência, as ocupações industriais
têm um conteúdo intelectual infinitamente maior e possibilidades culturais infinitamente maiores do que costumavam ter.
Torna-se imperativa a necessidade de uma educação que
familiarize os operários com os fundamentos e alcance científicos e sociais de sua atividade, porque os que não a tiverem
recebido degradar-se-ão inevitavelmente ao papel de apêndices das máquinas com que trabalham. No velho regime,
todos os trabalhadores de dado ofício tinham conhecimentos
e inteligência aproximadamente iguais. Estreitos eram os limites dentro dos quais se desenvolviam seus conhecimentos e
inteligência profissional, porque o trabalho era feito com instrumentos que ficavam sob o direto manejo do obreiro.
Agora este tem que se adaptar à sua máquina, em vez de
seus instrumentos se adaptarem aos objetivos dele. Ao
mesmo tempo em que se multiplicaram as possibilidades intelectuais da indústriaf as condições tendem a fazer que a indústria, para as grandes massas, seja menos um recurso educativo do que o era nos tempos da produção manual para os
mercados locais. A responsabilidade da compreensão das possibilidades intelectuais inerentes ao trabalho se devolve, assim,
para a escola.
4 — Em quarto lugar, a aquisição de conhecimentos
tornou-se, na ciência, mais experimental, menos dependente
da tradição literária e menos associada com os métodos dialéticos de raciocinar, e com símbolos. O resultado é que a
matéria não só apresenta maior conteúdo científico do que
costumava possuir, como também maior oportunidade para o
indivíduo familiarizar-se com o método pelo qual se adquirem
conhecimentos. É claro que o comum operário das fábricas
se encontra sob compressão económica mui direta para ter
ensejo de granj-ear conhecimentos, em comparação com as
pessoas que trabalham em laboratórios. Mas, nas escolas, o
contacto com as máquinas e com os processos industriais pode
•cr produzido em condições em que o principal interesse consciente do educando seja compreender as coisas. A separação
entre a oficina e o laboratório, onde se satisfazem estas condições, é grandemente convencional; o laboratório tem a vantagem de permitir que alguém se entregue ao interesse intelectual que um problema pode sugerir; a oficina, a vantagem
Democracia e educação
Aspectos vocacionais da educação
de pôr em destaque o alcance social do princípio científico,
assim como, para muitos discípulos, provocar um mais vivo
interesse.
5 — Finalmente, os progressos operados na psicologia
do ensino, em geral, e na psicologia da criança, em particular,
coincidem, nas suas consequências, com a crescente importância da indústria para a vida. Pois a psicologia moderna salienta a importância radical dos primitivos instintos não adquiridos, de explorar, experimentar e "tentar as coisas". Ela
revela que o aprendizado não é obra de uma coisa já completa
denominada espírito e sim que o espírito é ele próprio uma
organização das capacidades originárias em atividades providas de significação. Como já vimos, para os alunos de mais
idade o trabalho serve tanto para o desenvolvimento educativo
das atividades brutas inatas como os brinquedos para os mais
novos. Mesmo assim, a passagem do brinquedo para o trabalho deve ser gradual, não exigindo uma mudança radical de
atitude, mas pondo em ação os elementos dos brinquedos, acrescidos de uma reorganização contínua, a bem de um maior domínio dos mesmos.
O leitor observará que estes cinco pontos resumem virtualmente os principais debates da parte anterior deste livro.
Tanto prática como filosoficamente, a chave da presente situação educacional está em uma gradativa reconstrução do
material e dos métodos escolares, de modo a utilizar as várias
modalidades de atividades que caracterizam ocupações ou vocações sociais, e a lhes revelar o conteúdo intelectual e moral.
Esta reconstrução deve relegar os métodos puramente literários — inclusive os compêndios — e os métodos dialéticos ao
papel de instrumentos auxiliares necessários para o desenvolvimento inteligente de atividades contínuas e cumulativas.
Mas a nossa análise salientou o fato de que esta reorganização educativa não pode realizar-se tentando-se meramente
dar preparo técnico para as indústrias e profissões do modo
como são exercidas atualmente, e muito menos limitando-nos
a reproduzir nas escolas as existentes condições industriais.
O problema não é tornar as escolas outros tantos apêndices da
indústria e-do comércio, e sim utilizar os fatores da indústria
para tornar a vida escolar mais ativa, mais cheia de significações imediatas, mais associada à experiência extra-escolar.
O problema não é de fácil solução. Há o perigo permanente
de que a educação perpetue as velhas tradições em benefício de
alguns poucos escolhidos, e que efetue sua adaptação às novas
condições económicas mais ou menos sobre a base da capitulação em face dos aspectos não transformados, não racionalizados e não socializados de nosso defeituoso regime industrial.
Para dizer-se em termos mais concretos: há o perigo de que
na teoria e na prática se interprete a educação vocacional como
sendo a educação para ofícios, ou como sendo a chamada
"educação profissional", isto é, como meio de conseguir-se eficiência técnica para futuras atividades especializadas.
A educação tornar-se-ia então um instrumento para perpetuar, imutável, a existente ordem industrial da sociedade,
em vez de atuar como meio para a sua transformação. Não
é difícil de definir-se, de modo formal, essa desejada transformação. Ela significa uma sociedade em que todas as pessoas se ocupem com alguma coisa que torne a vida das outras
pessoas mais digna de ser vivida, e que por conseguinte torne
mais perceptíveis os elos que ligam os indivíduos entre si •—
e que suprimem as barreiras que os distanciam. Ela denota
um estado de coisas em que o interesse de cada um pelo
próprio trabalho seja livre e inteligente, e gerado pela afinidade
desse trabalho com as aptidões dos indivíduos. É inútil dizer
que estamos longe desse estado social; e, no sentido literal e
quantitativo, poderemos, talvez, jamais atingi-lo. Mas, em
princípio, as espécies de mudanças sociais já operadas orienrtarn-se nessa direção. Agora, mais do que nunca, existem
abundantes recursos para essa realização. Dada a vontade
inteligente para tal empresa, nenhuns obstáculos insuperáveis
se lhe atravessarão no caminho.
O triunfo ou o mau êxito nessa realização depende mais
da adoção de métodos educativos apropriados a efetuar essa
transformação, do que de qualquer outra coisa. Pois essa
mudança é essencialmente a mudança da qualidade da atitude
mental — uma mudança educativa. Isto não significa que
podemos transformar o caráter e o espirito com instrução
e exortações diretas, independentemente da transformação das
condições industrial e política. Essa concepção colidiria com
a nossa ideia básica de que o caráter e o espírito são atitudes
criadas pelas nossas "respostas", pela nossa cor-\-respondencia
em atividades sociais participadas. Significa, sim, que deveremos criar nas escolas uma projeção do tipo de sociedade que
desejaríamos realizar; e, formando os espíritos de acordo com
348
349
350
Democracia e educação
esse tipo, modificar gradualmente os principais e mais recalcitrantes aspectos da sociedade adulta.
Sentimentalmente antolhar-se-á rudeza o dizer-se que o
maior mal do presente regime não está na pobreza, nem no
sofrimento que ela acarreta, e sim na circunstância de tantas
pessoas terem empregos em desacordo com seus gostos, empregos que exercem unicamente pela recompensa pecuniária
que deles auferem. Pois tais ocupações provocam muitas vezes a aversão, a má vontade, negligência e indiferença pelo
trabalho. Nem o coração do homem, nem seu espírito se
acham nesse trabalho. Por outro lado, aqueles que não somente estão muito mais providos de bens de fortuna, como
também têm excessivo, se não monopolizador domínio sobre
a atividade do maior número, são excluídos do intercâmbio
social igualitário e geral. Sentem-se estimulados para se entregarem aos prazeres e à ostentação; procuram ressarcir-se
desse afastamento por meio da impressão que podem causar
de disporem da força, de bens mais abundantes e da faculdade
de fruírem mais prazeres.
Seria perfeitamente possível a um plano de educação
vocacional concebido em estreitos moldes perpetuar esta divisão de uma maneira rígida. Tomando o ponto de vista
de algum dogma de predestinação social, presumiriam que
alguns deveriam continuar como simples ganhadores de salários em condições semelhantes às presentes; por isso, visariam
simplesmente dar-lhes aquilo que chamam educação profissional
— isto é, maior eficiência técnica. É verdade que, infelizmente, há falta muitas vezes de proficiência técnica, a qual é,
certamente, a todos os respeitos, desejável — não só para a
obtenção de melhores produtos por menor custo, senão também
pela maior felicidade que se encontrará no trabalho. Pois
ninguém se interessa por aquilo que apenas sabe fazer a meio.
Mas há grande diferença entre uma proficiência limitada ao
trabalho imediato e uma competência que abranja a compreensão do alcance social do referido trabalho; entre a eficiência
para executar planos alheios e a para formar seus próprios
planos. Nos tempos atuais, a deficiência intelectual e emocional tanto, caracteriza a classe dos empregadores como a
dos empregados. Ao mesmo tempo em que a última só se
interessa em suas ocupações pelo dinheiro que lhe rendem,
pode a visão da primeira restringir-se ao lucro e ao poderio.
Estes últimos interesses subentendem geralmente maior iní-
Aspectos 'vocacionais da educação
351
ciação intelectual e mais acurado exame das condições, pois
implica a direção e combinação de grande número de diversos fatores, ao passo que a atividade dos que se interessam
apenas pelos salários se restringe a certos movimentos musculares diretos. Mas não deixará de existir uma limitação
da inteligência aos processos técnicos, não humanos nem liberais, se o trabalho não se repassar da significação de seu
alcance social. E quando o espírito animador é o desejo do
lucro particular ou do poder pessoal, essa limitação é também
inevitável. O fato é que a vantagem da imediata simpatia
social e de disposição larga e humana é gozada muitas vezes
pela classe economicamente desfavorecida, que não experimentou os insensibilizadores efeitos da direção unilateral da
atividade alheia.
É provável que todo o plano de educação vocacional,
que tome como ponto de partida o regime industrial ora
existente, adote e perpetue suas divisões e fraquezas, tornando-se destarte um instrumento para encarnação do dogma
feudal da predestinação. Os que se acharem em condições
de satisfazer os seus desejos, exigirão uma profissão liberal
e cultural, e que prepare para o exercício do poder os adolescentes pelos quais diretamente se interessarem. Dividir o
sistema, e dar a outros, em posições menos favorecidas, uma
educação consistindo unicamente em uma preparação profissional especial, é tratar a escola como um fator para transferir a
uma sociedade nominalmente democrática a antiga distinção
entre trabalho e gozo de lazeres, entre cultura e ocupações
práticas, entre espírito e corpo, e entre classe dirigente e
classe dirigida.
Semelhante educação vocacional não levará, inevitavelmente, em linha de conta .as humanas conexões científicas
e históricas das matérias e processos a que se aplica. Incluir
tais coisas em uma restrita educação prática, seria perder
tempo; o interesse por elas não seria "prático". Elas são
reservadas aos que dispõem de lazeres — lazeres advenientes
da superioridade de recursos económicos. Tais coisas seriam
mesmo perigosas aos interesses da classe dominante, suscitando descontentamento ou ambições superiores "à condição"
dos que trabalham sob a direção de outrem. Mas uma educação que reconheça a plena significação intelectual e social
de uma vocação incluiria em si a instrução sobre os antecedentes históricos das condições atuais, o preparo em ciências
Democracia e educação
Aspectos -vocacionais da educação
para proporcionar compreensão e iniciativa a respeito dos
materiais e dos fatores da produção, e o estudo da economia,
da ciência do governo e da política, para pôr o futuro trabalhador em contacto com os problemas atuais e com os vários
métodos propostos para sua solução. Acima de tudo, ela lhe
exercitaria a capacidade de readaptação às mudanças de condições, de modo que o futuro trabalhador não se tornasse
cegamente submisso ao destino que lhe fosse imposto. Este
ideal precisa batalhar não só contra a inércia das presentes
tradições educacionais, como também contra a hostilidade daqueles que se entrincheiraram no domínio da aparelhagem
industrial e que entendem que, caso se tornasse geral semelhante sistema educativo, ele constituiria uma ameaça à sua faculdade de se utilizar dos outros indivíduos para a realização
de seus próprios fins.
Mas este mesmo fato pressagia uma ordem social mais
equitativa e esclarecida, pois prova a dependência em que
a reorganização está da reconstrução educacional. É por
essa razão um encorajamento para que aqueles que crêem na
possibilidade de uma ordem social melhor empreendam o
desenvolvimento de uma educação vocacional que não sujeite
a adolescência às exigências e padrões do sistema atual, mas
utilize os fatores científicos e sociais para originar uma mentalidade intemerata e tornar, essa mentalidade, prática e hábil
em trabalhos de execução.
posta em efeito, daria a essas ideias uma forma rígida adaptada ao nosso existente regime industrial. Este movimento se
proporia continuar a tradicional educação liberal ou cultural
para os poucos economicamente aptos para fruí-la, e dar às
massas uma limitada e prática educação técnica para profissões especializadas, exercidas sob a direção de outrem.
Tal plano significa, naturalmente, apenas a perpetuação
da antiga divisão social, com seu respectivo dualismo intelectual e moral. Mas significa essa continuação em condições
que lhe justificam muito menos a existência. Pois a vida
industrial depende agora tanto da ciência, e influi tão intimamente em todas as formas de intercâmbio social, que existe a
oportunidade de utilizá-la para o desenvolvimento do Caráter
e do espírito. Além disso, um conveniente emprego da mesma
reagiria sobre a inteligência e o interesse, de modo a modificar, conjuntamente com a legislação e a administração, os
aspectos socialmente prejudiciais da presente ordem industrial e comercial. Ela conferiria poder construtor ao crescente cabedal de simpatia social, em vez-de deixá-lo a cargo
de um sentimento filantrópico um tanto cego. Daria àqueles
que se empenham em trabalhos industriais o desejo e a faculdade de participar da direção social e a aptidão para se
tornarem senhores de seu destino na indústria. Habilitá-los-ia
a impregnar de significação os aspectos técnicos e mecânicos
que são um traço tão saliente de nosso sistema de produção
e distribuição por meio de maquinismos. É o que se pode
dizer em relação àqueles que agora dispõem de menos oportunidades económicas.
Quanto aos representantes da classe social mais privilegiada, aumentaria sua simpatia pelo trabalho, criaria uma
disposição mental que pode descobrir elementos culturais em
uma atividade útil e aumentar o senso dos seus deveres
sociais. O estado crítico da questão da educação vocacional
nos tempos atuais é devido, em outras palavras, à circunstância de que ela condensa, para sua solução específica, duas
questões fundamentais, que são as de se saberem se a inteligência se exercita melhor em uma atividade que põe a
natureza a serviço do homem, ou fora dessa atividade — e se
melhor se consegue a cultura individual em condições egoísticas ou em condições sociais. Não se examinaram detalhes
neste capítulo, porque tais conclusões apenas resumem a matéria dos capítulos precedentes, do XV ao XXII, inclusive.
352
Resumo. — Vocação significa qualquer espécie de
atividade contínua que produz serviço para outrem e empenha as aptidões pessoais em benefício da consecução de
resultados. A questão das relações da vocação com a educação põe em foco os vários problemas anteriormente examinados, referentes à conexão do ato de pensar com a atividade corporal, do desenvolvimento consciente do indivíduo
com a vida em sociedade, da cultura teórica com a atividade
prática produtora de determinados resultados, do trabalho
para o ganho da subsistência com um nobre desfrute de lazeres. A oposição ao reconhecimento dos. aspectos vocacionais
da vida na educação (excetuados nas escolas elementares os
estudos utilitários de leitura, escrita e contas) acompanha,
em regra, a conservação dos ideais aristocráticos do passado.
Mas na época presente há um movimento a favor de uma
corrente chamada da preparação profissional, preparação que,
353
Filosofia da educação
CAPITULO 24
Filosofia da educação
I. Revisão crítica. — Apesar de estarmos tratando da filosofia da educação, ainda não demos uma definição
de filosofia, nem houve explícito exame da natureza de uma
filosofia da educação. Este assunto é agora abordado com
uma exposição sumária da ordem lógica seguida nas discussões anteriores para o fim de • patentear as consequências
filosóficas nele contidas. Depois empreenderemos sucinto
exame, em moldes mais especificamente filosóficos, das teorias do conhecimento e de moral subentendidas nos diversos
ideais educacionais, quando postos em prática.
Os capítulos antecedentes dividem-se logicamente em
três partes.
I — Os primeiros capítulos tratam da educação como
necessidade e função sociais. Seu propósito é delinear os
aspectos gerais da educação como o processo por meio do
qual os grupos sociais mantêm sua existência contínua.
Mostrou-se que a educação é o processo da renovação das
significações da experiência, por meio da transmissão, acidental em parte, no contacto ou trato ordinários entre os.
adultos e os mais jovens, e em parte intencionalmente instituída para operar a continuidade social. Viu-se que este
processo subentende a direção e o desenvolvimento dos indivíduos imaturos e do grupo em que eles vivem.
Essas considerações foram formais, por não tomarem
especialmente em conta as qualidades do grupo social interessado — a espécie de' sociedade que visa sua própria perpetuação por meio da educação. A discussão geral do assunto
foi em seguida particularizada, aplicando-se aos grupos sociais
intencionalmente progressivos e que visam a maior variedade
de interesses reciprocamente compartidos, diferençando-se
355
assim dos que colimam simplesmente a conservação dos costumes estabelecidos. Foram consideradas democráticas essas
sociedades, devido à maior liberdade concedida a seus componentes e à necessidade consciente de incutir nos indivíduos um
interesse conscientemente socializado, em vez de confiar-se
principalmente na força dos costumes que atuam sob a direção de uma classe superior. A espécie de- educação apropriada ao desenvolvimento de uma sociedade democrática foi
então manifestamente tomada como critério para uma ulterior
análise, mais y particularizada, da educação.
II — Viu-se que esta análise, baseada no critério democrático, subentendia o ideal de uma contínua reconstrução
ou reorganização da experiência, de natureza a aumentar a
reconhecida significação ou conteúdo social da mesma, e a
aumentar a capacidade de procederem os indivíduos como
custódios orientadores desta reorganização (V. Caps. VI-VII).
Esta distinção foi em seguida usada para delinear os caracteres respectivos da matéria de estudo e do método. Ela também
determinava sua unidade, uma vez que o método de estudar
e aprender sobre esta base é precisamente o movimento conscientemente dirigido para a reorganização da matéria da experiência. Foram desenvolvidos sob este ponto de vista os princípios essenciais do método e da matéria do ensino (Caps.
XIII-XIV).
III •— À exceção de críticas acessórias destinadas a
esclarecer os princípios pela força do contraste, esta fase
da discussão considerou coisa assente o critério democrático
e sua aplicação à vida social presente. Nos capítulos subsequentes (Caps. XVIII-XXIII) consideramos as presentes
limitações de sua realização atual. Verificou-se que surgiam
essas limitações da noção de que a experiência consiste em
uma variedade de domínios ou interesses segregados uns dos
outros, tendo cada qual seu valor, seu material e seu método
independentes e próprios, em colisão uns com os outros, sendo
que, quando cada um é mantido convenientemente limitado
pelos demais, formam uma espécie de "equilíbrio de poderes" na educação. Procedemos então a uma análise das várias ilações subentendidas por esta segregação. Sob o ponto
de vista prático, achou-se que se originavam nas divisões da
sociedade em classes e grupos mais ou menos rigidamente
demarcados; por outras palavras, no estorvo, à plenitude e
356
Democracia e educação
maleabilidade da interação e intercâmbio sociais. Viu-se que
estas soluções de continuidade social encontravam sua formulação intelectual em vários dualismos ou antíteses — como os
do trabalho e do gozo de lazeres, da atividade prática e intelectual, do homem e da natureza, da individualidade e da
associação, da cultura e da vocação.
Nesse exame verificamos que estes diferentes resultados têm seus equivalentes em formulações já feitas em vários sistemas filosóficos clássicos, e que encerram em si os
principais problemas da filosofia — tais como os do espírito
e da matéria, do corpo e do espírito, do espírito e do mundo,
do indivíduo e suas relações com os outros indivíduos, etc.
Subjacentes a estas várias separações notamos que o pressuposto fundamental era a separação entre o espírito ou
mente e a atividade que exigisse condições físicas, órgãos
corpóreos, recursos materiais .e objetos naturais. Em consequência, e para solução do problema, indicava-se uma filosofia que reconhecesse a origem, o papçl e a função do espírito em unta atividade que influencia e dirige o ambiente.
Completamos assim o circuito e retornamos às concepções da primeira parte deste livro, tais como a continuidade biológica dos impulsos e instintos humanos com as
energias naturais, a dependência em que o desenvolvimento
do espírito se acha da participação em atividades conjuntas
com um objetivo comum, a influência do ambiente físico
por meio da sua utilização no ambiente social, a necessidade
da utilização das variações individuais de desejos e pensamentos para uma sociedade que se desenvolva progressivamente, a unidade essencial do método e da matéria, a continuidade intrínseca dos fins e dos meios, o reconhecimento
de ser, o espírito ou a mente, o ato de pensar que percebe e
submete à prova as significações do comportamento. Estas
concepções se coadunam com a filosofia que vê a inteligência
como a reorganização, com um fim, mediante a ação, do
material da experiência, e não se harmonizam com qualquer
4as filosofias dualistas mencionadas,
2. A natureza da filosofia. — A nossa próxima
tarefa é extrair e tornar explícito o conceito de filosofia
implícito nessas considerações. Já, virtualmente, descrevemos a filosofia, embora sem a definirmos, mencionando os
Filosofia da educação
357
problemas de que trata, e salientamos que esses problemas
se originam dos conflitos e das dificuldades da vida social.
Tais problemas são coisas como as relações entre o espírito e
a matéria, o corpo e a alma, a humanidade e a natureza
física, o individual e o social, a teoria (ou conhecimentos)
e a prática (ou ação). Os sistemas filosóficos que formulam estes problemas espelham os característicos e as dificuldades principais das práticas sociais contemporâneas. Tornam
manifestamente consciente aquilo que • os homens chegaram a
pensar, em virtude da qualidade de sua experiência corrente,
sobre a natureza, sobre eles próprios e sobre a realidade que
em sua concepção encerra ou governa essas duas coisas.
Como poderíamos então esperar, a filosofia foi geralmente
definida de modo a implicar uma certa totalidade, generalidade
e última causalidade (ultimateness^ da matéria e do método.
A respeito da matéria a filosofia c uma tentativa para compreender, isto é, reunir as várias particularidades do mundo
e da vida em um todo único que seja uma unidade, ou, como
nos sistemas dualistas, reduzir a pluralidade de particularidades a um número pequeno de princípios finais. No referente à atitude do filósofo e daqueles que aceitam 'suas conclusões, há o esforço para conseguir-se uma visão da experiência o mais unificada, coerente e completa possível. Este
aspecto é expresso pela palavra "filosofia" — amor à sabedoria. Sempre que a filosofia foi encarada a sério, presumiu-se que ela significava conseguir uma sabedoria que
influenciasse o procedimento e a direção da vida. Testemunha
isto a circunstância de que quase todas as antigas escolas
filosóficas eram também modos de viver organizados, sendo
requerido, daqueles que aceitavam seus dogmas, adotar certos
modos distintivos de proceder; também o comprovam a íntima
associação da filosofia com a teologia da Igreja Romana na
Idade Média, sua frequente associação com interesses religiosos, e, nas crises nacionais, sua associação com as lutas
políticas.
Esta direta e íntima conexão da filosofia com uma visão
da vida, a diferencia da ciência. Os fatos particulares e as
leis da ciência influem evidentemente na conduta. Eles sugerem coisas a fazer ou a não fazer e sugerem meios de
execução. Quando a ciência, porém, não significa simplesmente um catálogo dos fatos particulares descobertos sobre
o mundo e sim uma atitude geral para com este — encaran-
358
359
Democracia e educação
Filosofia da educação
do-se essa atitude como distinta das coisas especiais a fazer
— ela passa a ser filosofia. Pois tal disposição profunda
representa uma atitude, não para com esta ou aquela coisa,
nem mesmo para com a soma das coisas conhecidas, e sim
para com as considerações que dirigem a conduta.
Por isso não se pode definir a filosofia tendo-se em
vista apenas o objeto dos conhecimentos. Por esta razão,
consegue-se mais prontamente uma definição de concepções
como generalidade, totalidade e última causalidade (ultimateness) encarando-se a atitude para como o mundo que elas
denotam. Em sentido literal e quantitativo, esses termos não
se aplicam à matéria do conhecimento, pois a plenitude e a
última finalidade acham-se fora de alcance. Impede-as até
a própria natureza da experiência, como processo contínuo e
mutável. Em sentido menos rígido, aplicam-se mais à ciência
do que à filosofia. Pois, para encontrar os fatos deste mundo
e as suas causas, é claro que deveremos recorrer às matemáticas, à física, à química, à biologia, à antropologia, à história, etc., e não à filosofia. Às ciências é que compete dizer
quais as generalizações admissíveis sobre o mundo e quais,
especificamente, são elas. Mas quando perguntamos que espécie de atitude permanente ativa para com o mundo as revelações científicas exigem de nós, estamos a formular uma
questão filosófica.
Por este prisma, "totalidade" não significa a tarefa
impossível de uma acumulação quantitativa. Quer antes dizer
coerência de um modo de reagir em face da pluralidade das
coisas que acontecem. "Coerência" não significa identidade
completa, pois, como a mesma coisa não acontece duas vezes,
a repetição exata de uma reação subentende algum mau ajustamento. Totalidade significa continuidade — o prosseguimento de um primeiro hábito de agir com a readaptação necessária para conservá-lo vivo e em evolução. Ao revés de
significar um completo plano de ação apriorístico, significa a
manutenção do equilíbrio em uma multidão de atos diversos,
de forma que cada um tome a significação de outro ato e dê
também significação a outro. Toda a pessoa de espírito
franqueado e sensível a novas percepções e que profunda e
responsavelmente lhes percebe as relações entre si, terá, na
proporção em que o fizer, atitude filosófica. Um dos sentidos populares de filosofia é a calma e a longanimidade em
face dos obstáculos e das perdas sofridas; supõe-se, mesmo,
ser a faculdade de se sofrer sem se queixar. Esta significação é mais uma homenagem prestada à influência da filosofia estóica, do que um atributo da filosofia em geral. Mas
a mesma se justifica na proporção em que sugerir que toda a
característica da filosofia é a faculdade de aprender, de extrair
significações até das desagradáveis vicissitudes da vida e
transformar aquilo que foi aprendido em aptidão para continuar a aprender. Uma interpretação análoga é aplicável à
generalidade e à última finalidade (ultimateness) em filosofia. Tomadas ao pé da letra, são pretensões absurdas indicativas de insânia. Última finalidade não significa, contudo,
que a experiência esteja finda e esgotada e sim a disposição
de atingir níveis mais profundos de significação — penetrar
abaixo da superfície e descobrir as relações de todos os acontecimentos ou objetos e apegar-se a elas. Analogamente, a
atitude filosófica é geral no sentido de ser adversa a tomar
as coisas isoladamente; intenta colocar um ato no todo a que
pertence •— e que lhe dá sua significação.
É de vantagem identificar a filosofia com o ato de
pensar enquanto distinta do conhecimento. O conhecimento,
isto é, o conhecimento fundamentado, é ciência; ele representa as coisas que foram estabelecidas, ordenadas, dispostas
racionalmente. Quanto ao ato de pensar, aplica-se a coisas
em perspectiva. Ê ocasionado por itma incerteza e visa dissipar uma perturbação. Filosofia é pensar o que aquilo que
é conhecido requer de nossa parte —• qual a atitude de
. cor-\-respondência que ele exige. É uma ideia do que é
possível, e não um registro de fatos consumados. Por essa
razão é hipotética, assim como todo o ato de pensar. Ela
assinala alguma coisa a ser feita — alguma coisa a ser tentada. Seu valor não está em proporcionar soluções (o que
SÓ pode ser conseguido com a ação) e sim em analisar as dificuldades e sugerir métodos para nos avirmos com elas. Pode-se quase definir a filosofia como o pensamento que se tornou consciente de si mesmo — que generalizou seu lugar,
função e valor na experiência.
Mais especificamente surge a exigência de uma atitude
"total" por existir a necessidade de integrar na ação os vários
interesses em conflito, da vida. Não é perceptível a necessidade da filosofia quando os interesses são tão superficiais
que facilmente se fundem, ou quando não são suficientemente
organizados para entrar em mútuo conflito. Mas quando,
360
Democracia e educação
por exemplo, o interesse científico se contrapõe ao religioso,
ou o económico ao científico ou estético, ou quando o interesse
conservador pela ordem existente entra em conflito com o
progressivo interesse pela liberdade, ou quando o institucíonalismo se embate com o individualismo, nasce um estímulo
para se descobrir algum ponto de vista mais compreensivo,
donde as divergências possam ser harmonizadas, e possa ser
restaurada a compatibilidade ou continuidade da experiência.
Muitas vezes um indivíduo pode harmonizar para si
próprio essas colisões; circunscreve-se a área do conflito dos
objetivos e o indivíduo cria suas grosseiras acomodações.
Estas filosofias caseiras são legítimas e muitas vezes adequadas. Mas não resultam em sistemas filosóficos. Surgem
estes quando as exigências mutuamente discrepantes de diferentes ideais de conduta atingem a sociedade como um todo e
torna-se geral a necessidade de reajustamento.
Estes traços explicam algumas coisas trazidas amiúde
como objeções contra as filosofias, tais como o papel representado nestas pelas especulações individuais e sua diversidade
contraditória, assim como a circunstância de que a filosofia
parece ocupar-se repisadamente e sempre com as mesmas
questões diversamente anunciadas- Não há dúvida de que
todas essas coisas caracterizam mais ou menos as filosofias
históricas. Mas são tanto objeções à filosofia, quanto à natureza humana, e, mesmo, ao mundo em que a natureza humana
está colocada. Se existem patentes incertezas na vida, as
filosofias devem refletir essas incertezas. Se existem diferentes diagnósticos da causa de uma perturbação, e diferentes
alvitres para a removerem, isto é, se o conflito de interesses
encarnar-se mais ou menos em diferentes grupos de pessoas,
é natural que existam divergentes filosofias rivais.
Com referência àquilo que já aconteceu, o de que se
necessita é suficiente evidência para que haja acordo de opiniões e certeza. E então torna-se coisa de verdade indiscutível. Mas com referência ao que seja acertado fazer em determinada situação complexa, é razoável e inevitável haver
debates, precisamente por ela inda ser indeterminada. Não
se pode esperar que uma casta dominante e que vive em meio
ao conforto conceba uma filosofia da vida igual à da casta
que luta penosamente pela sua subsistência. Se os que possuem e os que não possuem riquezas tivessem a mesma ati-
Filosofia da educação
361
tude mental fundamental para com o mundo, seria o caso de
acreditar-se haver ínsinceridade ou falta de seriedade.
Uma comunidade que se dedica a atividades industriais,
de grande atividade em negócios e no comércio, não v era
provavelmente as necessidades e possibilidades da vida do
mesmo modo que outra de alta cultura estética e potica
iniciativa para aproveitar mecanicamente as energias natur# ls "Uma agremiação social de história perfeitamente contínua
reagirá mentalmente a uma crise de maneira mui diversa da
de uma sociedade que já tenha sentido o abalo de abruptas
soluções de continuidade. Embora se lhes apresentem os
mesmos dados, elas os avaliarão diversamente. Mas as díí e ~
Tentes espécies de experiências, correspondentes aos váf103
tipos de vida, impedem que os mesmos dados se apresentem,
e conduzem, por conseguinte, ainda mais a uma divergente
escala de valores. Mesmo a similitude dos problemas é com
frequência mais uma questão de aparência do que de -fato,
devido a se transferirem velhas divergências (com as forrnulações dos tempos em que surgiram) para as novas dificul^ a "
dês contemporâneas. Mas, sob certos pontos de vista fundamentais, as mesmas condições de vida reproduzem-se &e
tempos em tempos, apresentando unicamente as modificações
devidas à mudança de contexto social, inclusive a evolução das
ciências.
O fato de surgirem os problemas filosóficos quando
dificuldades na vida social se tornam largamente generalizadas e sentidas, conserva-se dissimulado porque os filósofos
se tornaram uma classe especializada que usa uma linguajei*1
técnica, diferente daquela com que o comum do povo se ref e re
a essas dificuldades. Mas sempre que um sistema adqture
influência, pode-se descobrir sua conexão com um conflito de
interesses que reclamam algum programa de adaptação social. A este ponto aparece a íntima relação entre a filos0fí a
e a educação. O fato é que a educação oferece um terreno
vantajoso para se penetrar na significação humana (para diferenciar-se da significação técnica) das discussões filosófí cas Quem estuda a filosofia "por si mesma" corre sempre
o perigo de toma-la como um exercício de agilidade intelectual
ou de severa disciplina — como coisa dita pelos filósofos
que se refira só a eles. Mas quando as conclusões filosóficas
são confrontadas com a espécie de disposição mental a <lue
correspondem, ou com as diferenças que operam na
'a
362
Democracia e educação
Filosofia da e du caç ao
educativa quando influem sobre ela, as situações que elas formulam nunca são as coisas remotas de nossa vista. A teoria
que não influencia a atividade educativa é uma teoria artificial.
O ponto de vista educacional habilita-nos a encarar os problemas filosóficos no terreno em que eles surgem e lutam, na sua
própria casa, por assim dizer, local em que a sua aceitação ou
rejeição resulta em uma diferença na prática.
Se quisermos conceber a educação como o processo de
formar atitudes fundamentais, de natureza intelectual e sentimental, perante a natureza e os outros homens, pode-se
até definir a filosofia como a teoria geral da educação.
Sempre que uma filosofia não se limitar a permanecer simbólica — ou verbal — ou um deleite sentimental para poucos,
ou então como meros dogmas arbitrários, seu exame da experiência passada e seu programa de valores devem influir na
conduta. A agitação popular, a propaganda, a ação legislativa e administrativa, são eficientes para produzirem a mentalidade que uma filosofia indica como desejável, mas somente
no grau em que são educativas — isto é, em que modificam
a atitude mental e moral. E na melhor das hipóteses esses
métodos são prejudicados pelo fato de serem usados com pessoas cujos hábitos já se acham muito firmados, ao passo que
a educação dos adolescentes tem um melhor e mais livre
campo de atuação. Por sua vez, a atividade escolar propenderá a tornar-se empírica e rotineira se seus objetivos e métodos não forem animados por uma visão ampla e generosa de seu papel na vida contemporânea, visão que é proporcionada pela filosofia.
A verdadeira ciência sempre subentende praticamente os
fins que a comunidade tem interesse em realizar. Isolada
desses fins, será indiferente, por exemplo, que suas descobertas sejam para curar moléstias ou propagá-las, para aumentar
os meios de conservar a vida ou fabricar material bélico que
a destrua. Se a sociedade se interessar mais por uma destas
coisas do que pela outra, a ciência mostra o meio de conseguí-la. A filosofia tem, assim, dupla tarefa; a de criticar os
objetivos existentes com relação ao estado atual da ciência,
indicando os valores que se tornaram obsoletos em vista dos
novos recursos disponíveis e quais os qtie são meramente sentimentais por não constituírem meios para a realização daqueles objetivos; e também a de interpretar os resultados da
ciência especializada, em seu alcance sobre os futuros empreen-
dimentos sociais. Seria impossível que ela tivesse bom êxito
nessas tarefas, sem equivalentes educacionais sobre o que se
devesse fazer ou não fazer. Pois a teoria filosófica não
dispõe cie uma lâmpada de Aladim para fazer surgir de repente
os valores que ela "constrói" intelectualmente. Nas artes mecânicas, as ciências tornam-se meios de tratar as coisas de
modo a utilizar suas energias para objetivos determinados.
Por meio das artes educativas a filosofia pode engendrar métodos para utilizar as energias dos seres humanos de acordo
com as concepções sérias e profundas sobre a vida. A educação é o laboratório onde as distinções filosóficas são concretizadas e postas à prova.
363
É sugestiva a circunstância de ter-se a filosofia europeia originado (entre os atenienses) sob a compreessão direta das questões educacionais. Tendo-se em vista a espécie
dos assuntos de que tratava, a primitiva história da filosofia,
desenvolvida posteriormente pelos gregos na Ásia Menor e
na Itália, é mais um capítulo da história das ciências naturais do que da filosofia, no sentido em que esta palavra é
hoje tomada. Tinha por objeto a natureza e especulava sobre
o modo por que as coisas surgem e mudam. Mais tarde os
professores ambulantes, conhecidos como sofistas, começaram
a aplicar os resultados e os métodos dos filósofos da natureza
â conduta humana.
Quando os sofistas, que foram o primeiro corpo de
professores profissionais na Europa, instruíam os jovens sobre a virtude, sobre as artes políticas e sobre a direção do
estado e das coisas domésticas, a filosofia começou a tratar
das relações do individual com o universal, com alguma classe
compreensiva ou com algum grupo — das relações do homem
com a natureza, da tradição com a reflexão, do conhecimento
com a ação. Perguntavam eles: Pode-se aprender a virtude,
que é reconhecida como a mais alta das excelências? Que é
aprender? Este ato se relaciona com o conhecimento. Que
é, então, o conhecimento? Como se consegue este? Será por
meio dos sentidos^ ou do aprendizado de alguma espécie de
atividade prática, ou da razão que se submeteu a uma disciplina lógica preliminar? Como aprender é conseguir conhecer, esse ato implica a passagem da ignorância para a sabedoria, da privação para a plenitude, da deficiência para a perfeição, do não ser para o ser, segundo o modo grego de for-
Democracia e educação
Filosofia da educação
rnular a questão. Como é possível essa transição? É a mudança, o vir a ser, o desenvolvimento, coisa realmente possível? Se assim for, como sucede isso? E, supondo-se respondidas estas questões, qual é a relação da instrução, do
conhecimento, com a virtude?
Esta última pergunta levava a suscitar o problema da
relação da razão com a ação, da teoria com a prática, uma
vez que a virtude claramente residia na ação. A faculdade
de conhecer, a atividade da razão, não era o mais nobre
atributo do homem? E, por conseguinte, a atividade puramente intelectual não era a mais alta de todas as excelências, sendo secundárias, comparadas com ela, as virtudes de
se cumprirem os deveres de bom vizinho e de bom cidadão?
Ou, por outro lado, não seria esse celebrado conhecimento
intelectual mais do que uma vazia e vã pretensão, desmoralizadora do caráter e destruidora dos laços que reúnem os
homens na vida social? A única verdade, por ser a única
moral, não era ganhar-se a subsistência mediante o hábito
pautado nos usos da comunidade? E a nova educação não
era antipatriótica por estabelecer novos padrões, rivais das
arraigadas tradições sociais?
No decurso de duas ou três gerações tais questões se
afastaram de seu originário alcance prático relacionado à educação, passando a ser discutidas por si mesmas, isto é, como
matéria da filosofia encarada na qualidade de um ramo independente de investigações. Mas o fato de que a corrente do
pensamento filosófico europeu surgiu como a teoria do processo educacional testifica com eloquência a íntima associação da filosofia e da educação. A "filosofia da educação"
não é a aplicação exterior de ideias já feitas a um sistema de
prática escolar que tivesse origem e meta radicalmente diversas : é apenas uma formulação explícita dos problemas da
formação de uma mentalidade reta e de bons hábitos morais,
tendo-se em vista as dificuldades da vida social contemporânea.
A mais profunda definição de filosofia que se possa dar é a de
ser a teoria da educação em seus aspectos mais gerais.
A reconstrução da filosofia, a da educação e dos ideais
e métodos sociais, caminham, assim, de mãos dadas. Se é
verdade que existe, nos tempos atuais, uma necessidade especial de reconstrução educativa, se essa necessidade torna
urgente uma revisão das ideias básicas dos sistemas filosóficos
tradicionais, é devido à completa mudança da vida social, paralela aos progressos da ciência, à revolução industrial e ao
desenvolvimento da democracia. Não se podem efetuar essas
mudanças na vida prática sem uma reforma educativa de
acordo com elas, sem levar os homens a perguntar-se que
ideias e ideais existem implícitos nessas transformações sociais, e que mudanças elas requerem nas ideias e ideais herdados das velhas e dessemelhantes culturas. Incidentemente em
todo este livro e, explicitamente, nos últimos poucos capítulos,
estivemos precisamente examinando o modo por que estas
questões afetam as relações do espírito com o corpo, da teoria
com a prática, do homem com a natureza, do individual com
o social, etc. Em nossos últimos capítulos retomaremos as
considerações anteriores em suas relações — primeiro com a
filosofia do conhecimento e em seguida com a filosofia
da moral.
365
Resumo. •— Após uma recapitulação destinada a salientar as consequências filosóficas implicadas nas discussões
anteriores, definimos a filosofia como a teoria geral da educação. Dissemos ser a filosofia uma modalidade do ato de
pensar, o qual, como todo o ato de pensar, tem sua origem
naquilo que é incerto na matéria da experiência, e visa reconhecer a natureza da perplexidade e arquitetar hipóteses
para que, posta em prova pela ação, se esclareça seu conteúdo.
O pensamento filosófico caracteriza-se pela circunstância de
as incertezas com que ele se avém se basearem em condições e
objetívos de natureza social e geral, decorrentes de um conflito
de interesse organizados e de exigências institucionais. Como
o único meio de conseguir-se uma readaptação harmónica das
tendências opostas é a modificação da atitude emocional e intelectual, consiste a filosofia em uma formulação explícita
dos vários interesses da vida e na proposta de pontos de vista
e de métodos mediante os quais possa efetuar-se um melhor
equilíbrio dos interesses. E uma vez que a educação é o
processo por intermédio do qual se podem operar as transformações necessárias, não permanecendo estas como mera hipótese do que é desejável, conseguimos justificar a afirmação
de que a filosofia é a teoria da educação e esta a sua prática
deliberadamente empreendida.
Teorias do conhecimento
CAPITULO 25
Teorias do conhecimento
1. Continuidade versus dualismo. — Criticamos
nas páginas precedentes algumas teorias do conhecimento.
Sem embargo de suas mútuas diferenças, todas concordam
no aspecto fundamental que as contrasta com a teoria que
temos defendido. Esta última presume continuidade; as
outras formulam ou subentendem certas divisões, separações
ou antíteses, chamadas tecnicamente de duaíismos. Encontramos a origem destas divisões nas sólidas e altas muralhas
que extremam os grupos sociais e as classes dentro de um
grupo, como as distinções entre ricos e pobres, homens e
mulheres, pessoas nobre e de baixa condição, e entre os que
mandam e os que são mandados.
Estas barreiras significam ausência de fáceis e livres relações sociais. Esta ausência equivale ao estabelecimento de
diferentes tipos de modos de vida, cada qual tendo matéria,
objetivo e padrões de valores próprios. Cada qual dessas
condições sociais deve formular-se em'uma filosofia dualista,
se a filosofia refletir fielmente a experiência. Quando se
supera esse dualismo — como o fazem formalmente muitas
filosofias — este fato só sé pode verificar apelando-se para
alguma coisa mais elevada do que aquilo que se encontra na
experiência, para um salto até algum domínio transcendental.
Mas negando nominalmente a dualidade, estas últimas teorias a restabelecem de fato, pois terminam na divisão entre
as coisas deste mundo como simples aparências e a inatingível
essência da realidade.
Enquanto essas divisões persistem .e outras se lhes
acrescentam, cada qual deixa seu vestígio no sistema educacional, até que, considerado em seu conjunto, o plano de
educação se converte em um depósito de vários fins e processos. O resultado é aquela espécie de limitação e equilí-
367
brio de íatores e valores segregados que já descrevemos
(V. Cap. XVIII). Na presente exposição íimitar-nos-emos a
formular com a terminologia filosófica várias concepções antitéticas encerradas na teoria do conhecimento.
Em primeiro lugar, há o antagonismo do conhecimento
empírico com o conhecimento superior racional. O primeiro
relaciona-se com os atos de cada dia, servem os fins do comum dos indivíduos, que não se dedicam a pesquisas intelectuais especializadas, e suas necessidades cifram-se em alguma espécie de conexão ativa com o meio imediato. Esse
conhecimento é menosprezado, se não desprezado, como
puramente utilitário e destituído de significação cultural. Já
o conhecimento racional supõe-se que seja alguma coisa que
se relaciona com a realidade de um modo supremo e intelectual;
e que a ele nos dedicamos por ele próprio, tendo em vista,
em última análise, o conhecimento puramente teórico, não
degradado pela sua aplicação à conduta. Socialmente, essa
distinção corresponde à distinção entre a inteligência das
classes trabalhadoras e a das classes doutas que não precisam
preocupar-se com os meios de subsistência.
Filosoficamente, a diferença gira em torno da distinção
entre o particular e o universal. A experiência seria um
agregado de particulares mais ou menos isolados, os quais
deveríamos conhecer separadamente. A razão ocupar-se-ía
com os universais, com os princípios gerais, com as leis,
que pairam sobre o lastro de particularidades concretas. No
terreno pedagógico supõe-se que o aluno deva aprender, por
•um lado, uma série de conhecimentos informativos especiais,
os quais valem por si mesmos, e, por outro, precise familiarizar-se com certo número de leis e de relações gerais. A
geografia, do modo como frequentemente a ensinam, exemplifica o primeiro caso; e as matemáticas, quando ultrapassam
o aprendizado rudimentar das contas, o segundo. Para todos
os fins práticos, elas representam dois mundos independentes.
Outro antagonismo é sugerido pelos dois sentidos da
palavra "saber". Por uma parte, saber é como que o totaí
daquilo que se conhece, do modo como é ensinado pelos livros
e pelos homens instruídos. É uma coisa exterior, uma acumulação de dados, como um armazenar de mercadorias em um
depósito. A verdade existe já preparada em algum lugar.
Estudar é então o processo com que um indivíduo absorve
o que se acha armazenado.
369
Democracia e educação
Teorias do conhecimento
Em outro aspecto, saber significa uma coisa que sucede ao indivíduo quando ele estuda. É vima operação ativa
e praticada pessoalmente. O dualismo, aqui, é entre o conhecimento como uma coisa exterior, ou, como lhe chamam muitas
vezes, objetiva, e o ato de conhecer como coisa puramente
interna, subjetiva, psíquica. Existe, por uma parte, um corpo
de verdades, já preparado; e, por outra parte, um espírito
já formado e equipado com a faculdade de conhecer — para
o caso de querer utilizá-la, o que muitas vezes é singularmente
desagradável. A separação, que não raro vem à baila, entre
matéria de estudo e método, é o equivalente educacional deste
dualismo. Socialmente, a distinção se prende à parte da vida
que fica sujeita à autoridade, e à parte em que os indivíduos
têm liberdade de progredir.
Outro dualismo é o da atividade e passividade do conhecimento. Supõe-se muitas vezes que poderemos conhecer as coisas puramente empíricas e materiais recebendo-lhes
as impressões. Essas coisas físicas se gravam de certo modo
no espírito ou chegam por si mesmas à consciência, por intermédio dos órgãos dos sentidos. Presume-se, pelo contrário, que o conhecimento racional e o conhecimento das coisas
espirituais brotam de uma atividade iniciada no interior do
espírito, atividade que melhor se exercita conservando-se apartada de todo o contacto maculador dos sentidos e dos objetos
exteriores. A distinção entre o aprendizado pelos sentidos,
pelas lições de coisas, exercícios de laboratório -— e as puras
ideias encerradas em livros e assimiladas (segundo se pensa)
por uma milagrosa fonte de energia mental, é uma perfeita
manifestação desse antagonismo, em educação. Socialmente,
ele reílete uma separação entre os que são dominados por interesses diretos pelas coisas e os que têm a Uberdade de
adquirir cultura.
Também é comum a afirmação de existir antagonismo
entre a inteligência e as emoções. As emoções são concebidas como coisas meramente particulares e pessoais, sem conexões com o trabalho, da pura inteligência, de apreender fatos
e verdades •— com a exceção única, talvez, da curiosidade
intelectual. A inteligência é pura luz; as emoções são um
calor perturbador. Os espíritos voltam-se, de dentro para
fora, para a verdade; as emoções voltam-se, de fora para
dentro, para considerações de vantagens e perdas pessoais.
Deste modo em educação existe a já observada depreciação
sistemática do interesse, e, ao mesmo tempo, a necessidade
de recorrcr-sc na prática, com a maioria dos alunos, a recompensas e punições estranhas e inoperantes, com o fim de induzir as pessoas que possuem no corpo um espírito (assim
como na roupa têm um bolso) a aplicar esse espírito às verdades que devem ser conhecidas. Por isso temos o espetáculo
de educadores profissionais malsinarem o apelo ao interesse,
ao mesmo tempo em que afirmam com grande entono a necessidade de recorrer-se a exames, notas, promoções e reprovações, prémios e ao tradicional sortimento de recompensas'
e castigos. O efeito deste estado de coisas para destruir o
senso de humor do professor ainda não foi alvo da atenção
merecida.
Todas essas separações culminam na existente entre
conhecer e fazer, teoria e prática, entre a mente como fim
e alma da ação, e o corpo como órgão e meio dessa mesma
ação. Não repetiremos o que ficou dito sobre a origem
deste dualismo na divisão da sociedade em uma classe que
trabalha com os másculos para a subsistência material e outra
classe que, isenta da compressão económica, se dedica às
belas-artes e à direção social. Nem é necessário referirmo-nos
de novo aos males educacionais que nascem dessa separação.
Contentar-nos-emos com sumariar as forças que tendem a
evidenciar a insustentabilidade desta concepção e a substituí-la
pela idéía da continuidade.
I — O progresso da fisiologia, e da psicologia associada
à mesma, mostrou a conexão da atividade mental com a do
sistema nervoso. Com grande frequência se deteve a este
ponto o reconhecimento da referida conexão; o antigo dualismo da alma e do corpo foi substituído pelo do cérebro e do
restante do corpo. Mas o fato é ser o .sistema nervoso apenas
um mecanismo especializado para manter todas as funções
do corpo em ação conjunta. Em vez de estar isolado dessas
funções, como o órgão do conhecimento separado dos órgãos
de reação motora, é o órgão por cujo intermédio eles exercem
sua interação reagindo mutuamente uns aos" outros. O cérebro é essencialmente o órgão que efetua as adaptações recíprocas dos estímulos recebidos do ambiente entre si e com
as respostas ou reações ao mesmo ambiente. Note-se que o
ajustamento é recíproco; o cérebro não só habilita a atividade
orgânica a lidar com qualquer objeto do ambiente em resposta
368
Democracia e educação
Teorias do conhecimento
a um estímulo sensorial, como também essa resposta determina
aquilo que será o próximo estímulo. Veja-se, por exemplo, o
que sucede a um carpinteiro quando está a aplainar uma
tábua ou a um gravador com sua placa — ou em qualquer
outro caso de uma atividade contínua. Ao mesmo tempo em
que cada ato motor se adapta ao estado de coisas existente
indicado pelos órgãos dos sentidos, essas respostas motoras
engendram o próximo estímulo sensorial.
Generalizando-se este exemplo: o cérebro é o mecanismo para uma constante reorganização da atividade, de
modo a manter-lhe a continuidade, isto é, a fazer nos atos
futuros, as modificações requeridas pelo que já ficou feito.
A continuidade" do trabalho do carpinteiro diferença-o de
uma repetição rotineira de movimentos idênticos e da atividade casual, em que não existe a acumulação de resultados. O que torna a atividade contínua, seguida ou concentrada é que cada ato anterior prepara o caminho para os
atos subsequentes, ao mesmo tempo em que estes últimos
tomam em conta os resultados já conseguidos — que são a
base de toda a sua responsabilidade. Nenhuma pessoa que
já tenha verificado em sua plenitude os fatos da associação
do ato de conhecer com o sistema nervoso, e do sistema
nervoso com a readaptação contínua da atividade para satisfazer a novas condições, duvidará de que o ato de conhecer
se prende à atividade reorganizadora, em vez de ser uma
coisa completa por si mesma, isolada de toda a atividade.
espectador do mundo, noção essa que vai de par com a ideia
de ser, o ato de conhecer, uma coisa completa por si mesma.
Pois a teoria do desenvolvimento orgânico significa que a
criatura viva é uma parte do mundo, aquinhoando de suas
vicissitudes e de sua boa sorte, só conseguindo segurança em
sua precária dependência quando se identifica intelectualmente
com as coisas que a cercara e prevê as consequências futuras
daquilo que está a suceder e molda sua própria atividade de
acordo com essa previsão. Se o ser vivo, que está a adquirir
experiência, participa intimamente das atividades do mundo a
que pertence, o conhecimento é um modo de participar dessas
átividades, modo valioso, na proporção em que se mostra
operante. Ele não pode ser a contemplação ociosa de um
espectador desinteressado.
370
II — O desenvolvimento da biologia, com sua descoberta da evolução, confirma esta, lição. Pois a significação
filosófica da doutrina da evolução reside principalmente em
pôr em relevo a continuidade das formas orgânicas mais
simples e mais complexas, até chegar-se ao homem. O desenvolvimento dos organismos vivos começa com estruturas
que tornam clara a adaptação entre o meio e o organismo, e
em que se acha reduzido ao mínimo aquilo que se pode
chamar espírito. À medida que a atividade se torna mais
complexa, coordenando maior número de fatores no espaço e
no tempo, a inteligência desempenha um papel cada vez mais
saliente, porque é maior o lapso de tempo futuro para aplicar
sua previsão e para formar planos.
O efeito disto sobre a teoria do conhecimento é afastar
a noção de ser ela a atividade de um mero observador ou
371
III — O desenvolvimento do método experimental como
meio de adquirir-se conhecimento e ter-se a certeza de que
é conhecimento, e não mera opinião — método de descoberta
e verificação, é a grande força restante, para efetuar-se a
transformação da teoria do conhecimento. O método experimental tem dois aspectos, a) Por um lado, ele significa
que não temos o direito de chamar alguma coisa conhecimento,
exceto quando nossa atividade produziu de fato certas mudanças físicas nas coisas, as quais concordam com a concepção
adotada e a confirmam. Na falta dessas mudanças especiais,
nossas ideias são unicamente hipóteses, teorias, sugestões,
conjeturas, e só podem ser adotadas para se fazerem tentativas
e serem usadas como indicação de experimentações a serem
feitas. 6) Por outro lado, o método experimental de pensar
significa que o pensamento tem utilidade, que ele é útil exatamente no grau em que a previsão de consequências futuras é
feita baseada na observação completa das condições presentes.
A experimentação, por outras palavras, não equivale a reações
cegas. Essa atividade de acréscimo —• é acréscimo com referência àquilo que foi observado e que agora é previsto — é
em verdade um fator inevitável de nosso procedimento, mas
não constitui experimentação a não ser quando se notam as
consequências e se usam estas para se fazerem predições e
planos em similares situações futuras. Quanto mais se percebe a significação do método experimental, tanto mais nossas
tentativas de tratar de certo modo os recursos e os obstáculos
materiais que se nos deparam subentendem o uso anterior da
Democracia e educação
Teorias do conhecimento
inteligência. Aquilo a que chamamos magia era, relativamente
a muitas coisas, o método experimental do selvagem; mas,
para ele, experimentar era experimentar sua sorte e, não, suas
ideias. O método científico experimental é, ao contrário, uma
experimentação de ideias; por isso, mesmo quando praticamente — ou imediatamente — não dá resultado, é intelectual,
frutífero, pois aprendemos com os nossos maus êxitos, quando
nossos esforços são profundamente refletidos.
O método experimental é novo como recurso científico
— como meio sistematizado de adquirir conhecimentos, embora velho como a vida, em seu caráter de artifício prático.
Por isso não é de surpreender que os homens não tenham
reconhecido todo o seu alcance. Em sua maioria eles atribuem-lhe importância para certas coisas técnicas e puramente
físicas. Tomará ainda muito tempo, sem dúvida, o conseguir-se a compreensão segura de que ele também se aplica a
originar e provar ideias sobre matérias sociais e morais. Os
homens ainda querem o apoio do dogma, das crenças impostas pela autoridade, para se livrarem do embaraço de ter de
pensar e da responsabilidade de dirigir sua atividade pela
reflexão. Eles tendem a fazer sua reflexão cifrar-se ao ato
de escolher, para adotá-lo, algum dos sistemas rivais de dogmas.
Por essa razão, segundo o disse STUART MILL, as escolas
prestam-se mais para formar discípulos do que pesquisadores.
Mas é certo que todo o progresso da influência do método
experimental contribui para o descrédito dos métodos puramente literários, dialéticos ou de imposições pela autoridade,
para estabelecer crenças ou convicções, métodos que dominaram nas escolas do passado. E contribui ainda para transferir-lhes o prestígio para os métodos que proporcionarem um
interesse ativo pelas coisas e pessoas, orientados por objetivos
de crescente alcance no tempo e abrangendo mais larga ordem
de coisas no espaço. Oportunamente a teoria do conhecimento
será derivada da prática que melhor proporcionar conhecimentos; e em seguida essa teoria será empregada para aperfeiçoar os métodos que se mostrarem menos eficazes.
cismo, transcendentalismo, pragmatismo, etc. Muitos foram
por nós criticados por se relacionarem com problemas pedagógicos já discutidos. Interessamo-nos por eles por implicarem desvios do método que deu provas de maior eficiência
para a aquisição de conhecimentos, pois o exame de desvios
torna mais claro o verdadeiro lugar do conhecimento na
experiência. Em suma, a função do conhecimento é tornar
uma experiência livremente aproveitável em outras experiências. A palavra "livremente" assinala a diferença entre o
princípio do conhecimento e o do hábito. O hábito significa
que um indivíduo sofre uma modificação por meio de experiência, modificação que cria uma predisposição para uma
ação mais fácil e eficaz, na mesma direção, no futuro. Assim,
tem ele também a função de tornar uma experiência aproveitável em experiências subsequentes. Dentro de certos limites, desempenha eficazmente essa função. Mas o hábito,
separado do conhecimento, não presta serviços no caso de
mudança de condições, de novidades. A previsão de mudanças não faz parte de seu campo de ação, pois o hábito
presume a semelhança essencial de uma situação nova com
outra antiga. Por conseguinte, ele muitas vezes desnorteia,
ou se atravessa entre uma pessoa e o bom desempenho de sua
tarefa, exatamente com a habilidade, apenas habitual, do mecânico, de nada lhe serve quando ocorre alguma coisa inesperada no funcionamento da máquina. Mas um homem que
entende sua máquina é um homem que sabe o que deve fazer.
Ele conhece as condições em que dado hábito produz bom resultado e acha-se em situação de introduzir mudanças que
adaptem o referido hábito às novas condições.
Por outras palavras •— o* cpnhecimento é uma percepção dás conexões de um objeto, que o torna aplicável em
dada situação.. Para produzir um exemplo extremo: ao verem um cometa os selvagens reagem do modo como estão
afeitos a proceder quando outros acontecimentos ameaçam a
segurança de suas vidas. Assim como tentam amedrontar
os animais ferozes ou seus inimigos gritando, tocando tambores, brandindo armas, etc., usam também o mesmo processo intimidador para fazerem o cometa afastar-se. Para
nós esse processo é claramente absurdo — tão absurdo, que
deixamos de observar que os selvagens estão apenas incidindo em um hábito, e patenteando as deficiências desse há-
372
2. Escolas de método. — Existem vários sistemas
filosóficos de concepções caracteristicamente diversas sobre
o método de conhecer. Alguns se chamam escolasticísmo,
sensacionalismo, racionalismo, idealismo, realismo, empiri-
373
Democracia e educação
Teorias do conhecimento
bito. A razão única de não procedermos de maneira análoga
é que não tomamos o cometa como uma coisa isolada, desconexa, e sim vemo-lo em suas conexões com outras coisas.
Localizamo-lo, conforme o dizemos, no sistema astronómico.
Reagimos às suas conexões e não simplesmente ao fato imediato. Deste modo, nossa atitude para com ele é muito mais
livre. Podemos encará-lo, por assim dizer, por qualquer dos
ângulos fornecidos por suas associações. Podemos pôr em
jogo, se o julgarmos avisado, os hábitos apropriados a qualquer das coisas conexas com ele. Deste modo nos avimos
indiretamente, e não imediatamente, com tim fato novo — por
meio dos recursos da invenção, do engenho. Um conhecimento idealmente perfeito apresentaria tal tecido de interconexões, que qualquer experiência passada apresentaria algum
ponto de vista vantajoso para encararmos o problema que se
nos deparasse em alguma nova experiência. Em suma: ao
passo que um hábito, separado do conhecimento, nos proporciona um único método fixo de ação, o conhecimento significa poder-se fazer seleção dentre uma série muito mais
ampla de hábitos.
Podem-se extremar dois aspectos desta .utilização mais
geral e mais livre das experiências anteriores para as experiências subsequentes.
Embora o conteúdo do conhecimento seja aquilo que
aconteceu, aquilo que foi considerado como perfeito, e, por
isso, como estabelecido e seguro, ele se refere ao que é futuro
ou se acha em perspectiva. Pois o conhecimento proporciona o meio de compreender-se aquilo que ainda está sucedendo ou que vai suceder (ou de dar-se-lhe significação).
Os conhecimentos de um médico são as coisas que ele descobriu pessoalmente e as que aprendeu pelo estudo das coisas
que outras pessoas verificaram e registraram por escrito. Mas
isto para ele é conhecimento, porque lhe proporciona recursos
para interpretar as coisas desconhecidas que se lhe deparem,
para completar os fatos parcialmente conhecidos com os sugeridos fenómenos conexos, para prever o provável futuro
deles e, de acordo com isso, fazer seus próprios planos.
Quando o conhecimento não é usado para dar significação àquilo que não a tem e que gera perplexidade, ele
desaparece totalmente da consciência ou então se torna um
objeto de contemplação estética. Grande é a satisfação que
sentimos ao examinarmos a simetria e a ordem dos conhecimentos adquiridos, e esta satisfação é legítima. Mas semelhante atitude contemplativa é estética, e não intelectual. É
a mesma espécie de prazer que fruímos ao ver um quadro
artístico ou uma bela paisagem. Nada importaria se o objeto
da contemplação fosse totalmente diverso, uma vez que tivesse a mesma organização harmoniosa. Nem mesmo importaria se fosse totalmente inventado como diversão ou fantasia.
A aplicabilidade de alguma coisa ao mundo não significa a
aplicabilidade àquilo que já é passado e findo — o que fica
fora de questão pela natureza do caso; significa aplicabilidade
ao que está ainda sucedendo, ao que ainda não está estabelecido no cenário mutável de que fazemos parte. A circunstância de deslembrarmos tão facilmente este característico, e de
considerarmos como conhecimento a exposição daquilo que já
passou e está fora de nosso alcance, provém de admitirmos a
continuidade do passado e do futuro. Não podemos conceber
um mundo em que o conhecimento de seu passado não seja
útil para prever seu futuro e dar-lhe significação. Deixamos
de ver as relações com o futuro exatamente porque estas se
acham tão inevitavelmente implícitas.
Mesmo assim, muitas das escolas filosóficas sobre métodos, já mencionadas, negam virtualmente aquilo que dei-
374
1 — Um deles, o mais tangível, é um poder maior de
domínio, O que não pode ser feito diretamente, fazemo-lo
indiretamente; ou podemos estabelecer barreiras entre nós e
as consequências indesejáveis; ou refugirmos a estas, se não
pudermos afastá-las. Os verdadeiros conhecimentos têm
todo o valor prático de que em quaisquer circunstâncias os hábitos eficientes são providos.
2 — Mas ele também acresce o sentido, a significação
experimentada de uma experiência. Uma situação em que
reagimos caprichosa ou rotineiramente tem apenas um mínimo de significação consciente; dela nada extraímos de natureza mental. Mas sempre que o conhecimento entra em ação
para determinar uma nova experiência, existe uma recompensa
mental; mesmo se praticamente deixarmos de conseguir o domínio necessitado, teremos a satisfação de haver experimentado significativamente, em vez de. nos limitarmos a reagir
fisicamente.
375
377
Democracia e educação
Teorias do conhecimento
xam de ver. Elas consideram o conhecimento como coisa
completa em si mesma, independentemente de sua utilização
para tratarmos daquilo que ainda vai ser. E é esta omissão
que as vicia e as faz esposar métodos educacionais condenados
por uma adequada concepção do conhecimento. Pois basta
lembrarmo-nos daquilo que se considera, às vezes, nas escolas,
como aquisição de conhecimentos, para se ter acordo de sua
falta de relações frutíferas com a experiência possuída pelos
estudantes — e da amplitude com que se parece acreditar
que constitui conhecimento a mera apropriação da matéria
armazenada em livros. Embora a matéria aprendida constituísse conhecimentos verdadeiros para aqueles que os descobriram e de cuja experiência eles faziam parte, nada há
na mesma que a converta em conhecimentos para os discípulos.
Se a matéria não frutificar na própria vida do indivíduo, o
mesmo seria ensinarem-se coisas sobre o planeta Marte ou
sobre qualquer país do mundo das fantasias.
juntamente. Quanto mais confusa por uma situação mais
deverá ser esclarecida; precisará ser decomposta em detalhes
determinados do modo o mais acurado possível. Fatos e
qualidades específicos constituem os elementos do problema
a ser tratado, e essa especificação opera-se mediante os órgãos
dos sentidos. Em um problema que se apresenta eles podem
bem chamar-se particulares, pois são fragmentários. Como
nossa tarefa é descobrir-lhes as conexões e recombmá-los,
eles são para nós, a esse tempo, coisas parciais. Precisamos
dar-lhes significação, pois, do modo como se apresentam, carecem da mesma. Tudo o que é para ser conhecido, cuja
significação se vai patentear ainda, apresenta-se como particular. Mas o que já é conhecido, se for reelaborado para
o fim de torná-lo aplicável à apreensão intelectual de novos
particulares, é geral em sua função. Sua generalidade está
em sua função de estabelecer conexões entre aquelas coisas
que, se não fosse isso, ficariam desconexas. Todo o fato é
geral se dele nos valermos para dar significação aos elementos
de uma nova experiência. A "razão" é precisamente a aptidão de fazer a matéria da experiência anterior levar a perceber
a significação da matéria de uma nova experiência. Uma
pessoa é racional no grau em que habitualmente tem clarividência para ver um evento, que imediatamente lhe incide nos
sentidos, não como uma coisa isolada, mas em conexão com
a experiência comum da humanidade.
Sem os particulares, do modo como são discriminados
pelas respostas ativas dos órgãos dos sentidos, não existe material para o ato de conhecer, nem para o desenvolvimento
intelectual. Sem localizar esses particulares na contextura
das significações extraídas da experiência mais ampla do
passado — sem o uso da razão ou da reflexão — os particulares são meras excitações ou irritações. O engano análogo das escolas sensacionalísta e racionalista é deixar de
verem que a função do estímulo sensorial e da reflexão é
relativa à reorganização da experiência por meio da aplicação
do antigo ao novo, mantendo, por esse meio, a continuidade
ou coerência da vida.
A teoria do método de conhecer exposta nestas páginas
pode ser denominada pragmática. Sua feição essencial é
manter a continuidade do ato de conhecer com a atividade
376
No tempo em que se desenvolveu o método escolástico,
ele tinha importância para as condições sociais existentes.
Era um método para sistematizar e dar a sanção da razão
à matéria imposta pela autoridade. Esta matéria era de tão
grande importância, que vitalizava as definições e sistematizações a que a submetiam. Nas condições atuais o método
escolástico significa, para a maioria das pessoas, um modo
de conhecer destituído- de conexões especiais com qualquer
matéria determinada. Subentende o £azerem-se distinções,
definições, divisões e classificações pelo simples ato de se
fazerem — sem objetivo «algum para a experiência. A opinião de que o ato de pensar é uma atividade puramente psíquica, tendo suas próprias formas que sé aplicam a qualquer
matéria como um sinete em uma substância plástica, e a ideia
aí envolvida e que se chama lógica formal, são, em sua essência, o método escolástico generalizado. A doutrina da disciplina formal em educação é o equivalente natural desse
método.
As teorias contrárias sobre o método de conhecer, a que
se dão os nomes de sensacionalismo e de racionalismo, correspondem, respectivamente, a dar-se extremo relevo ao particular e ao geral — ou, por um lado, a meros fatos e, pelo
outro, a meras relações. No verdadeiro conhecimento há
uma função particularizadora e outra generalizadora atuando
378
Democracia e educação
Teorias do conhecimento
que deliberadamente modifica o ambiente. Ela afirma que o
conhecimento em seu sentido estrito de alguma coisa possuída
consiste em nossos recursos intelectuais — em todos os hábitos que tornam a nossa ação inteligente. Só aquilo que foi
organizado em nossas disposições mentais, de modo a capacitar-nos a adequar o meio às nossas necessidades e a adaptar
nossos objetivos e desejos à situação em que vivemos, é realmente conhecimento ou saber.
O conhecimento não consiste em alguma coisa de que
temos consciência atual, mas nas disposições de espírito que
conscientemente adotamos para compreender o que atualmente
sucede. O conhecimento, como ato, traz alguma coisa de
nossos estados mentais à consciência com o fim de extinguir
uma incerteza, concebendo a conexão entre nós e o mundo
em que vivemos.
De modo análogo, uma vez que a democracia é, em
princípio, partidária do livre intercâmbio, da continuidade
social, ela deve adotar uma teoria do conhecimento que veja
neste o meio pelo qual uma experiência é proveitosa para dar
direção e significação a outra. Os progressos recentes em
fisiologia, em biologia e na lógica das ciências experimentais
fornecem os instrumentos intelectuais específicos exigidos
para o desenvolvimento e a formulação de uma tal teoria.
Seu equivalente pedagógico é associar a aquisição de conhecimentos nas escolas com atividades ou ocupações exercidas
num ambiente de vida social.
Resumo. — As separações que embaraçam o livre e
pleno intercâmbio social reagem tornando unilateral a compreensão e o ato de conhecer dos membros das classes separadas.. Aqueles cuja experiência se refere a utilidades que
não se relacionam com a finalidade mais ampla que eles
servem, são virtualmente empiristas; e os que gozam a contemplação de um cabedal de significações para cuja produção
eles não cooperam ativamente, são virtualmente racionalistas.
Os que ficam em contacto direto com as coisas e visam
adaptar imediatamente suas atividades a elas são, de fato,
realistas; e os que insulam as significações dessas coisas e
as colocam em um mundo religioso ou, como se diz, espiritual, apartado das coisas, são, de fato, idealistas.
Os que se interessam pelo progresso, e se esforçam para
mudar as crenças recebidas, dão realce ao fator individual no
ato de conhecer; e aqueles cuja principal função é opugnar
as mudanças e conservar as verdades recebidas, encarecem o
universal e o estabelecido, e assim por diante. Os sistemas
filosóficos com suas teorias opostas sobre o conhecimento
apresentam uma formulação expressa dos traços característicos desses isolados e unilaterais segmentos da experiência —
unilaterais porque os obstáculos ao intercâmbio social impedem que a experiência de um indivíduo se enriqueça e complete
com a de outros em situações diferentes.
379
Teorias de 'moral
CAPÍTULO 26
Teorias de moral
1. O interior e o exterior. -— Como a moralidade
diz respeito à conduta, .todos os dualismos estabelecidos entre
o espírito e a atividade devem refletir-se na teoria da mora!.
E como as formulações da separação, na teoria filosófica da
moral, são usadas para justificar e idealizar as práticas adotadas na educação -moral, é oportuno uni breve exame crítico
a respeito desta matéria. É um lugar-comum da teoria educacional a afirmação de que a formação do carátcr é tim
ohjetivo que se compreende na instrução e disciplina escolares.
Por isso importa ficarmos em guarda contra uma concepção
daí relações da inteligência com o caráter que embarace a
realização desse objetivo, e vigilantes mtanto às condições
a serem proporcionadas para atingir-se esse objetivo.
O primeiro obstáculo que se nos depara está no fato
de as ideias morais correntes cindirem o curso da atividade
em dois fatores contrários com frequência chamados respectivamente o interior e o exterior, ou o espiritual e o material. Esta divisão é uma culminação do dualismo^ do espírito
e do mundo, da alma e do corpo, do fim e dos meios, que
tantas vezes já notamos.
Em moral ele toma a forma de uma nítida demarcação
entre o motivo da ação e suas consequências e entre o
caráter e a conduta. Consideram-se o motivo e o caráter
como uma coisa puramente "interna", existindo exclusivamente na consciência, ao passo que as consequências e a
conduta são consideradas como exteriores ao espirito — sendo
que a conduta se entende simplesmente com os movimentos
ocasionados pelos motivos, e as consequências com aquilo que
acontece como resultado. Diferentes escolas identificam a
moral quer cem c estado interior do espírito, quer com os
381
atos e resultados exteriores, cada uma dessas coisas isolada
da outra.
A ação com um objetivo ê deliberada; ela subentende
um fim conscientemente previsto e a operação mental de
pesar os prós e os contras. Subentende também um estado
consciente de desejo de atingir o fim. A escolha deliberada
de um objetivo e de uma disposição definitiva do desejo
tomam tempo. Durante esse tempo, fica suspensa a atividade. Quem não tomou uma decisão não sabe o que fazer.
Por consequência, protela o mais que pode a prática de atos
definidos. Pode-se comparar sua disposição de espírito com
a de um homem a refletir para pular um valo. Se ele tivesse
a certeza de poder fazê-lo ou de não o poder, ocorreria em
qualquer das duas direções uma atividade definida. Já que
está a refletir, é porque se acha em dúvida; ele hesita. Durante o tempo em que se quedou suspenso um modo de
proceder deliberado, sua atividade se limitou às espécies de
redistribuições de energia dentro do organismo, que preparam
um determinado procedimento. Ele mede com o olhar a largura do valo; contrai os músculos para ter conhecimento da
energia física de que seus órgãos dispõem; observa se há
outros meios de transpor o obstáculo, refletc na importância,
para ele, de se achar do outro lado do mesmo. Tudo isto
significa uma acentuação do estado consciente, um balanço das
próprias atitudes, possibilidades, desejos, etc.
É claro, porém, que o ato de submeterem ao conhecimento consciente estes fatores pessoais constitui parte da atividade total em seu desenvolvimento no tempo. Não há um
primeiro procedimento que seja puramente psíquico, seguido
ex-abrupto de outro físico, radicalmente diverso. O procedimento é contínuo, passando de um estado incerto, diviso,
hesitante, para outro estado mais determinado ou completo.
A atividade, a princípio, consiste principalmente em
certos estados de tensão e certas adaptações dentro do organismo ; quando se coordenam em uma atitude unificada, o
organismo age como um todo — empreende-se uma ação
definida. Podemos distinguir, naturalmente, a fase mais manifestamente consciente da atividade contínua, como sendo
de natureza mental ou psíquica. Mas isto apenas serve para
fazer reconhecer-se o mental e o psíquico como significando
o estado indeterminado, formativo, de uma atividade que em
382
383
Democracia e educação
Teorias de moral
sua plenitude implica o emprego de energia exteriorizada para
modificar o ambiente.
São importantes nossos pensarr.entos, observações, gostos
e aversões conscientes porque representam atividades incipientes, nascentes. Elas realizam sev destino resultando, depois,
tem atos especiais e perceptíveis. E esses incipientes reajustamentos orgânicos em germe são importantes por constituírem
nosso único modo de fugir do domínio dos hábitos rotineiros
e dos cegos impulsos. São atividades providas de nova significação no processo do desenvolvimento. Por isso, há normalmente um acentuar-se da consciência pessoal sempre que
nossos instintos e hábitos já formados se encontram tolhidos
pelas novas condições. Nós nos voltamos, então sobre nós
mesmos, para reorganizarmos nossas atitudes antes de nos
empenharmos em um determinado e definitivo modo de proceder, A não ser que abramos caminho com a força bruta,
deveremos modificar nossos recursos orgânicos para adaptá-los
aos aspectos característicos da situação em que nos encontrarmos. A deliberação e o desejo conscientes, que precedem uma
franca atividade, constituem, então, os métodos pessoais de
readaptação implicados em uma atividade em condições de
incerteza.
nas teorias que estabelecem nítida separação entre o espírito
como coisa interior e a conduta e as consequências como coisas
simplesmente exteriores.
Pois a separação pode ser mais do que um incidente na
experiência de um indivíduo particular. As condições sociais podem ser tais, que façam uma dada classe voltar-se
para seus próprios per. samentos e desejos sem empregar os
meios para que estas ideias e aspirações possam ser usadas
para reorganizar o ambiente. Em tais condições, os homens
vingam-se, por assim dizer, do meio estranho e hostil, cultivando desprezo por ele e dando-lhe nome pejorativo. Eles
buscam refúgio e consolo em seus próprios estados djalma, em
suas próprias imaginações e desejos, aos quais exalçam, dizendo-os mais reais e mais ideais do que o desprezado mundo
exterior. Na história tem havido períodos assim. Nos primeiros séculos da era crista, os sistemas morais de mais
influência — o estoicismo, o cristianismo monástico e popular
e outros movimentos religiosos — ganharam impulso sob o
- influxo de tais condições. Quanto mais era recalcada a ação
que poderia concretizar os ideais dominantes, mais se consideravam auto-suficíentes a vida interior e o cultivo de ideais
— como a própria essência da moralidade. Julgava-se moralmente indiferente o mundo externo a que pertence a ação.
Tudo estava em ter-se o motivo racional, mesmo se esse motivo
não fossem uma força que atuasse no mundo. Muito dessa
mesma situação apresentou-se na Alemanha nos fins do século
dezoito e no século dezenove; ela levou KANT a insistir sobre
a boa vontade como o único bem moral, sendo a vontade
considerada uma coisa completa em si mesma, independentemente da ação, e das mudanças ou consequências efetuadas no
mundo. Mais tarde levou a todas as idealizações das instituições existentes, como sendo a corporifícação da razão.
A moral puramente interior das "boas intenções", de se
terem boas disposições independentemente do que as mesmas
produzirem, provocou naturalmente uma reação. Esta é geralmente conhecida como hedonismo ou utilitarismo. Afirmou-se, com efeito, que a coisa moralmente importante não
é aquilo que o homem tem na sua consciência, e sim aquilo
que ele jaz — as consequências que derivam de seus atos,
as mudanças que ele efetivamente produz. A moralidade
interior foi acoimada de sentimental, arbitrária, dogmática,
Todavia não se mantém sempre este papel do espírito na
atividade contínua. A imaginação é estimulada pelo desejo
de alguma coisa diferente ou pela aversão ao dado estado de
coisas, aversão motivada pelo embaraço ao bom êxito da atividade. A representação mental de um estado de coisas diverso nem sempre atua incentivando o apuro de observação
e a memória para encontrar-se uma solução para a dificuldade.
Salvo o caso de uma atitude disciplinada, a tendência é para
a imaginação abrir voo. Em vez de se embaraçar com os
obstáculos à praticabilidade de seu objeto a imaginação permite que este se desenvolva, devido ao imediato sentimento de
satisfação que ele proporciona. Quando encontramos óbices
para a expansão, com,bom êxito, de nossas energias, devido a
um ambiente natural ou social impróprio para a mesma, o
processo mais fácil é construir castelos no ar, fazendo-os
substituir uma realização que nos daria o trabalho de pensar.
Por isso, em meio à nossa plena atividade inclinamo-nos a
isso e criamos um mundo imaginário no espírito. Esta solução de continuidade entre a reflexão e a conduta se reflete
385
Democracia e educação
Teorias de moral
subjetiva — por permitir ao homem o dignificar e defender
qualquer dogma que se harmonizasse com seus interesses
pessoais ou qualquer ideia caprichosa, considerando-a intuição
ou ideal da consciência. Aquilo que entra em linha de contíi
são os resultados, a conduta; só eles proporcionam uma
craveira para a moralidade.
A moral comum, e por isso também a das escolas, semelha-se a uma incongruente transação entre essas duas
teorias. Por um lado, faz-se grande cabedal de certas disposições sentimentais; o indivíduo deve ter "boas intenções"
— e, se isto suceder, se ele for possuidor de uma legítima
consciência emocional, pode forrar-se à responsabilidade de
apresentar bons resultados dela na conduta. Mas, por outro
lado, desde que se devam fazer certas coisas tendo-se em vista
as conveniências e necessidades de outras pessoas, e da
ordem social em geral, insiste*se muito na prática de determinados atos, independentemente de ter o indivíduo algum
interesse com os mesmos, ou de sua compreensão daquilo que
deve fazer. Precisa tirar boas notas; precisa ter o nariz
voltado para o quadro-negro; necessita obedecer; deve adquirir hábitos úteis; deve aprender a dominar-se — sendo todos
esses preceitos entendidos de modo a dar mais importância às
imediatas coisas tangíveis que se devem fazer, independentemente do estado de espírito e do desejo com que forem feitas,
e independentemente, por isso, de seu efeito sobre outras
atividades menos evidentes.
Esperamos que a anterior discussão da matéria tenha
suficientemente elucidado o método por meio do qual se
evitam estes dois males. Resultará algum desses males ou
resultarão ambos sempre que os indivíduos, jovens ou de
mais idade, não se possam dedicar a um empreendimento
progressivamente acumulativo, em condições em que empenhem seu interesse e apliquem sua reflexão. Pois só nesses
casos é possível que a atitude do desejo e da reflexão seja
um fator orgânico para a conduta manifesta. Dada uma atividade contínua, que encarne o interesse do próprio educando,
da qual se deva obter um resultado determinado e à qual não
bastarão os hábitos rotineiros nem a prática de atos em obediência a orientações impostas ou a improvisos do capricho,
são inevitáveis a manifestação do desejo consciente e a da
reflexão deliberada. São inevitáveis por serem o espírito e
a qualidade de uma atividade que tenha consequências especiais, e não por constituírem um domínio isolado, da consciência íntima.
384
2. O antagonismo entre o dever e o interesse. —
Provavelmente não haverá antagonismo que mais frequentemente se apresente em matéria de moral do que o existente
entre o agir de acordo com os "princípios" ou de acordo
com o "interesse". Proceder de acordo com os princípios
é proceder desinteressadamente, em obediência a uma lei
geral superior a todas as considerações pessoais. Proceder de
acordo com o interesse é, segundo se alega, proceder egoísticamente, tendo em vista, unicamente, vantagens ' pessoais.
Neste caso, o indivíduo atende às conveniências do momento,
de preferência a dedicar-se à reta observância dos ditames da
moral. A falsa ideia do interesse subjacente nesta oposição
já foi criticada (V. Cap. X ) ; agora serão considerados alguns
aspectos morais da questão.
A chave para a solução desta matéria encontra-se no fato
de os partidários do "interesse" usarem habitualmente na
controvérsia a expressão "interesse próprio". Partindo das
premissas de que, se não houver interesse por um objeto ou
ídéia, não haverá força motivadora, eles chegam à conclusão
de que, mesmo quando uma pessoa declara estar procedendo
de acordo com um princípio ou com o sentimento do dever,
ela realmente procede dessa fornia porque "em seus atos
existe alguma coisa" para ela. As premissas são verdadeiras,
mas a conclusão é falsa. Em resposta, alega a outra escola
que, sendo o homem capaz de generosa abnegação, e, mesmo,
de proceder com espírito de sacrifício, também o será de proceder sem interesse. Também são verdadeiras as premissas,
e errónea a conclusão. Em ambos os casos o erro está na falsf
noção da relação entre o interesse e o eu individual.
Presumem as duas correntes que o eu é qualquer coisa
de fixo ou feito e, por essa causa, isolada. Como consequência aparece o rígido dilema de proceder-se no interesse
próprio ou sem interesse. Se o eu for uma coisa fixa, já
existente antes da ação, proceder por interesse significa tentar
senhorear-se de mais coisas para o indivíduo — seja fama,
ou aplausos das outras pessoas, poder sobre outrem, lucro
Democracia e educação
Teorias de moral
pecuniário, ou prazer. A reação contra esta opinião, que se
considera uma céptica detração da natureza humana, leva
então à opinião de que os homens que procedem nobremente o
fazem absolutamente sem interesse. Mas qualquer espirito
imparcial verá claramente que um homem sempre se interessa
no que está fazendo, pois do contrário não o faria. Um
médico que- persevera em assistir um doente acometido de
peste, com perigo quase certo de sua própria vida, deve
achar-se interessado no eficaz exercício de sua profissão —
mais ainda do que na conservação da sua própria vida.
Mas é deturpar os fatos pretender que esse interesse
não passe de máscara para o interesse em alguma coisa que
ganhará, prosseguindo em seus trabalhos costumados — seja
dinheiro, reputação ou virtude; que seja apenas um meio
para um ulterior fim egoísta. Desde o momento em que
reconhecermos que o eu não é uma coisa já feita e completa,
e sim uma coisa em formação, contínua por meio da escolha
da atividade, a situação se esclarecerá totalmente. O interesse de um homem em continuar seu trabalho com risco da
própria vida significa que seu eu se encontra nesse trabalho;
se finalmente renunciasse a este, preferindo sua segurança ou
seu conforto pessoais, quereria isto dizer que preferiu ser
essa outra espécie de eu. O equívoco está em distinguir o
interesse do eu e supor que este último seja o fim para o qual
o interesse pelos objetos, pelos atos e pelas outras pessoas seriam
meros meios. O fato é que o eu e o interesse são dois nomes
para designarem uma coisa única; a espécie e a intensidade do
interesse ativamente tomado por alguma coisa revela e mede
a qualidade do eu existente. Basta ter-se em mente que interesse significa a identificação ativa e operante do eu com
certo objeto, para cair por terra aquele pretenso dilema.
O não-egoísmo OH altruísmo, por exemplo, não significa
falta de interesse por aquilo que se faz (isso representaria
apenas uma indiferença de máquina), nem o fato de não
se tomar em conta o eu — - o que produziria ausência de
dignidade e de caráter, Empregada em qualquer parte, fora
desta controvérsia teórica particular, a expressão altruísmo
refere-se à espécie ou qualidade de fins e de objetos que
habitualmente interessam determinado homem. E se passarmos uma revista mental nas espécies de interesse que nos
lembra esta palavra, veremos que elas têm dois aspectos estreitamente associados.
1.° — O eu generoso identifica-se conscientemente com
toda a série de relações implicadas em sua atividade, em vez
de .traçar nítida linha divisória entre ele próprio e as considerações excluídas como estranhas ou indiferentes; 2.° —
ele readapta e expande suas ideias passadas sobre si mesmo,
impregnando-as das novas consequências, quando estas se tornam perceptíveis. Quando o médico inicia a carreira pode
não pensar na hipótese de alguma epidemia de peste; pode
não ter-se identificado conscientemente com o trabalho nessas
condições arriscadas. Mas se ele tem um eu a desenvolver-se
normalmente, uma personalidade em crescimento, ao descobrir
que a carreira que escolheu comporta esses riscos, admite-o*
voluntariamente como partes integrantes de sua atividade. O
eu mais amplo, devido à inclusão em vez da rejeição dessas
relações, significa um eu que se ampliou para aceitar responsabilidades não previstas antes.
Nessas crises de readaptação — e a crise tanto pode ser
leve como grande '— pode dar-se um conflito provisório dos
"princípios" como o "interesse". Está na natureza de um
hábito tornar mais fácil o modo costumado de proceder. E
é próprio da natureza da readaptação do hábito exigir um
esforço desagradável — alguma coisa à qual o homem deve
deliberadamente apegar-se. Por outras palavras — existe a
tendência de identificar o eu com (ou de tomar interesse em)
aquilo a que uma pessoa está habituada, e de afastar o espírito
com aversão ou irritação quando sobrevêm uma coisa inesperada que requer desagradável modificação do hábito. Como
no passado essa pessoa cumpriu o dever sem precisar encarar essa desagradável circunstância, por que não continuar
como dantes? Ceder a esta tentação significa restringir e
isolar a ideia do eu — tratá-lo como coisa completa, que não
se desenvolve mais. Todo o hábito — fosse qual fosse sua
eficiência no passado — que se chegou a implantar, pode
trazer consigo, a qualquer tempo, esta tentação. Proceder-se
guiado por princípios em uma tal emergência não é proceder-se
de acordo com um principio abstrato ou com o dever, num
sentido lato; é agir-se de acordo cpwt, o princípio de um
curso de ação, em vez de agir-se de acordo com circunstâncias
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Democracia e educação
Teorias de moral
ocasionais que a acompanharam. O princípio orientador da
conduta de ura médico é o seu objetivo.e influxo animador: o
cuidado para com os doentes. O princípio não é aquilo que
justifica uma ativídade e, sim, é apenas outro nome para a
continuidade da atividade. Se a atividade, pelas consequências que acarretar, for indesejável, proceder de acordo com
um princípio abstrato será agravar o mal. E o homem que
se orgulha de proceder obedecendo a princípios, assemelharse-á, muito provavelmente, àqueles que insistem em agir de
"seu próprio modo", sem aprender com a experiência qual
o melhor modo de agir. Ele imagina que alguns princípios
abstratos justificam seu modo de proceder sem reconhecer
que esses princípios (no caso concreto) precisam de justificação.
Apresenta-se a razão como uma faculdade de onde procedem
-as mais altas íntuições morais; e dizem, às vezes, como na
teoria* kantiana, ser ela. que proporciona o único e genuíno
motivo moral. Por outro lado, o valor da inteligência concreta, da inteligência relativa à atividade de cada dia, é
constantemente menosprezado, e mesmo deliberadamente detraído. Pensa-se com frequência que a moral seja uma coisa
.com a qual nada têm que ver os conhecimentos ordinários.
Julga-se que o conhecimento moral seja uma coisa à parte e
que a consciência (conscience) seja coisa radicalmente diversa
do fato de ser-se consciencioso (conciousness). Esta separação, se válida, tem importância essencial em educação. A
•educação moral nas escolas é praticamente inoperante quando
fixamos o desenvolvimento do caráter como o supremo fim, e
ao mesmo tempo tratamos a aquisição de conhecimentos e o
desenvolvimento da inteligência, que necessariamente ocupam
a maior parte do horário escolar, como nada tendo que ver
com o caráter. Com uma tal base, a educação moral fica
inevitavelmente reduzida a certa espécie de lições de cate•cismo ou de moral.
Ora, lições "de moral" significam, como matéria do
•curso escolar, o ensino daquilo que outras pessoas pensam
sobre a virtude e o dever. Só têm alguma importância na
proporção em que os educandos já estejam animados de um
respeito simpático e elevado pelos sentimentos alheios. Sem
«ste respeito, não terá mais importância sobre o caráter do
que o estudo das montanhas da Ásia; com um respeito servil,
aumenta-se a dependência em relação a outros indivíduos, e
atira-se, aos investidos de autoridade, a responsabilidade pela
conduta dos educandos. O fato é que o ensino direto de
moral será capaz unicamente nos grupos sociais em que ele
faz parte do domínio autoritário de poucos, sobre o maior
número. Mas a eficácia do ensino não será devida propriamente à sua qualidade de matéria ensinada, e sim ao apoio
que lhe dá todo o regime do qual faz parte. Intentar conseguir semelhantes resultados de lições sobre moral, em uma
sociedade democrática, será confiar em mágica ou em sentimento.
Na outra extremidade da escala está o ensino socráticoplatónico, que identifica o conhecimento e a virtude — que
Admitindo-se, no entanto, que as condições escolares sejam de natureza a proporcionar ocupações desejáveis, é o interesse pela ocupação como um todo — isto é, em seu desenvolvimento contínuo, seguido — que mantém o discípulo a
trabalhar, malgrado as distrações temporárias e os obstáculos
desagradáveis. Quando não existir uma atividade que tenha
crescente significação, apelar para os princípios será puro
verbalismo, ou uma espécie de orgulho obstinado, ou um
apelo a considerações estranhas, revestidas de um título
dignificante.
É certo existirem conjunturas em que cessa momentaneamente o interesse e a atenção afrouxa, tornando-se necessário reforçá-los. Mas o que faz uma pessoa perseverar em árduos esforços não é a fidelidade a um dever abstrato
e sim o interesse pela sua ocupação. Os deveres são os atos
especiais necessários ao desempenho de ama função — ou,
em linguagem comum, para a pessoa fazer o seu trabalho.
E homem verdadeiramente interessado em seu trabalho é o
que se sente capaz de resistir a um desalento temporário, de
perseverar em face de obstáculos, de aceitar os ossos do ofício:
para ele torna-se um interesse resistir às dificuldades e distraçoes, e vencê-las.
3. Inteligência e caráter. — Um paradoxo digno
de nota se associa muitas vezes às discussões sobre moral.
Por um lado, há uma identificação -do moral com o racional.
389
IL
390
Democracia e educação
Teorias de moral
afirma que o homem não pratica conscientemente o mal, e
sim por ignorar o bem. Esta doutrina é geralmente combatida com o fundamento de que nada é mais comum do que
um homem conhecer o bem, e rríesmo assim praticar o mal:
e que o necessário não é o conhecimento, e sim o hábito e a
prática ou a prática e o motivo. Aristóteles, com efeito,
apressou-se a atacar o ensino platónico, sob fundamento de
que a virtude moral se assemelha a uma arte como a medicina;
um médico com muita prática de clinicar é preferível a outro
de conhecimentos teóricos, mas sem prática no respeitante a
doenças e remédios. A questão está, porém, no saber o que
quer dizer conhecimento, na significação de conhecimento.
A objeção de Aristóteles não tomava em conta a base
do ensino de PLATÃO, que era a de que o homem não pode
compreender teoricamente o bem senão depois' que durante
anos se habitua à prática e observa rigorosa disciplina. O
conhecimento do bem não era coisa a aprender-se em livros
ou com outras pessoas e sim conseguida por meio de prolongada educação. Era a recompensa final e o fastígio de
uma experiência madura da vida.
Independentemente da atitude assumida por PLATÃO,, é
fácil perceber-se que o termo conhecimento é usado para
designar as coisas não só quando delas se teve compreensão pessoal íntima e vital — pela convicção adquirida e
provada na experiência — como também por meio do aprendizado de segunda mão e grandemente simbólico daquilo queoutras pessoas crêem que elas sejam — isto é, por informações desvitalizadas e remotas. Desnecessário é dizer que esta
última espécie não garante a boa conduta, não influi profundamente no caráter. Mas se o conhecimento significar
uma coisa análoga à nossa convicção quando experimentamos
e verificamos se o açúcar é doce e o quinino é amargo, muda
o caso de figura. Toda a vez em que um homem se senta,
em uma cadeira e não sobre o fogão, e sai com guarda-chuva
quando chove, ou consulta médico quando enferma — ou,,
em suma, pratica algum dos mil atos que constituem sua vida
diária, ele mostra que conhecimentos de uma certa espécie
encontram aplicação direta na conduta. Há todas as razõespara supor-se que o conhecimento do bem por esse modo se
manifeste também de maneira análoga, isto é, conduzindo a
ação; com efeito, "bem" será uma palavra vazia se não contiver a satisfação experimentada em situações como as que
mencionamos, O conhecimento de que outras pessoas devem
saber determinada coisa leva-nos a proceder de modo a obter
a aprovação que outros dão a determinadas ações, ou pelo
menos a dar às outras pessoas a impressão de que estamos de
acordo com elas; mas, não há razão para que tal conhecimento
conduza à iniciativa pessoal e à fidelidade às crenças atribuídas
a essas outras pessoas.
Não é preciso, por consequência, disputarmo-nos sobre
a verdadeira significação do termo conhecimento. Para os
fins pedagógicos basta notarem-se as diferentes qualidades
abrangidas por aquele único nome, para se compreender que
é o conhecimento adquirido de primeira mão, mediante as
exigências da experiência, que influi de modo significativo
na conduta. Se um aluno se limitar a aprender em livros
coisas que simplesmente se relacionem com as lições escolares,
e com o fim de reproduzir o que aprendeu, quando chamado
à lição, esse conhecimento produzirá algum efeito sobre determinada espécie de conduta — isto é, de repetir as coisas lidas,
quando outras pessoas lho pedirem.
Não é de estranhar que esse "conhecimento" não exerça
grande influência na vida extra-escolar. Mas isto não é razão para extremar-se o conhecimento da conduta, e sim para
se menosprezar essa espécie de conhecimento. O mesmo se
pode dizer do conhecimento referente apenas a uma especialidade isolada e técnica; ele modifica a atividade, mas somente dentro de seus exíguos limites. O problema da educação moral nas escolas identifica-se, em verdade, com o
problema de assegurar o conhecimento — o conhecimento
associado ao sistema de impulsos e de hábitos. A utilização
que se fará de qualquer fato conhecido depende, com efeito,
de suas associações. O conhecimento da dinamite, que tenha
um arrombador de cofres, pode ser, verbalmente, idêntico ao
que dela tenha um químico; mas, de fato, é diferente, pois é
obtido em conexão com objetivos e hábitos diversos e por
Jsso tem conteúdo diverso.
Nossa discussão anterior sobre a matéria do estudo como
derivando da atividade direta com um objetivo imediato encorpando-se com o enriquecimento das significações encon-
391
392
393
Democracia e educação
Teorias de moral
tradas na geografia e na história, para depois chegar aos
conhecimentos coordenados cientificamente, baseou-se na ideia
de manter uma conexão vital entre o conhecimento e a atividade. Aquilo que é aprendido em uma ocupação que tenha
um objetivo e implicando cooperação com outras pessoas é
conhecimento moral, quer o considerem, ou não, conscientemente como tal. Pois ele cria um interesse social e confere
a compreensão necessária para tornar esse interesse eficaz na
vida prática. Precisamente porque os estudos do programa,
representam padrões para a vida social, eles constituem os
órgãos para iniciação nos valores sociais. Como meros estudos, escolares, seu aprendizado tem unicamente valor técnico.
Adquiridos em condições em que se tenha acordo de sua importância social, eles originam o interesse moral e desenvolvem a compreensão moral. Além disso, as qualidades de espírito ou de mente que enumeramos ao tratar dos métodos de
aprender são todas, intrinsecamente, qualidades morais. A
acessibilidade mental, a sinceridade, a largueza de vistas, a
atividade integral (thoroughness], o pressuposto da responsabilidade para desenvolver as consequências das ideias aceitas,
são, todas essas coisas, característicos morais.
O hábito de identificarem-se os característicos morais
com a conformidade externa às normas impostas pela autoridade pode levar-nos a desconhecer o valor ético daquelas
atitudes morais; mas tal hábito tende a reduzir a moral a
uma rotina inerte e maquinal. Por conseguinte, mesmo
quando produz resultados morais, esses resultados são moralmente indesejáveis — sobretudo em uma sociedade democrática, onde tanta coisa depende das atitudes individuais
e pessoais.
todos os nossos atos, mesmo se não pensarmos em seu alcance
social na ocasião' em que os praticarmos. Pois cada ato, pelo
princípio do hábito, modifica nossa mentalidade — fixa certas
espécies de propensoes e desejos. E é impossível dizer quando
o hábito, que deste modo foi robustecido, pode ter influência
direta e perceptível em nossa associação com os outros homens.
Certos traços de caráter têm conexões tão claras com
as nossas relações sociais, que os chamamos "morais" por
excelência — o amor à verdade, a honestidade, a castidade,
a amabilidade, etc. Mas isto apenas significa que são centrais, comparados a algumas outras atitudes: que acarretam
consigo outras atitudes. São por excelência morais, não por
serem isolados e exclusivos, mas por se relacionarem tão
intimamente com milhares de outras atitudes que não reconhecemos explicitamente — e para as quais talvez nem
temos nomes.
Chamar-lhes virtudes em seu isolamento, se assemelharia a tomar o esqueleto pelo corpo vivo. Os ossos têm,
sem dúvida, importância, mas sua importância está no fato
de suportarem outros órgãos do corpo, de modo a torná-los
capazes de atividade integrada e eficaz. E o mesmo é verdade
em relação às qualidades de caráter que especialmente denominamos de virtudes. A moral se interessa nada menos do
que por todo o caráter, e esse caráter total se identifica com
o homem em todo o seu feitio e manifestações concretas.
Ter-se virtude não significa terem-se cultivado exclusivamente
alguns poucos traços mencionáveis pelos nomes; significa
ser-se plena e adequadamente aquilo que se é capaz de chegar
a ser, por meio da associação com outras pessoas em todas
as funções da vida.
As qualidades moral e social do procedimento são, em
última análise, idênticas uma à outra. Dizer que a aferição
do valor da administração, dos programas e dos métodos de
ensino nas escolas é feita pela extensão com que forem animados de espírito social, não será mais do que repetir expressamente o conteúdo de nossos capítulos precedentes, relativamente à função social da educação. E o maior perigo que
ameaça o trabalho escolar é a ausência de condições que tornem possível a impregnação de espírito social; e este é o
máximo escolho de uma eficiente educação moral. Pois este
espírito só pode estar ativamente presente quando se satisfazem certas condições:
4. O social e o moral. — Todas as separações que
estivemos criticando — e que as ideias sobre educação expendidas nos capítulos antecedentes são destinadas a evitar —
originam-se de considerar-se a moral muito limitadamente
— dando-se-lhe, por um lado, um piegas aspecto sentimental,
sem relações com as capacidades eficazes para fazer-se o que
é socialmente necessário e, por outro lado, exagerando-se em
excesso a convenção e a tradição, de modo a restringir a
moral a uma lista de determinados atos estabelecidos. O
fato é que a moral tem a mesma latitude que as nossas relações com os outros homens. E potencialmente isto inclui
394
Democracia e educação
Teorias de moral
I — Em primeiro lugar, a vida na escola deve ser como
em uma sociedade, com tudo o que isto subentende. A compreensão social e os interesses sociais só se podem desenvolver em um meio genuinamente social, onde exista o
mútuo dar e receber, na construção de uma experiência
comum. Os conhecimentos informativos sobre as coisas podem ser adquiridos em relativo isolamento, por alguém que
dantes tenha tido suficientes relações com outras pessoas, de
modo a aprender a linguagem. Mas compreender a significação dos sinais linguísticos é coisa completamente diversa.
Isto implica, para um indivíduo, uma contextura de trabalhos
e jogos, associado a outros indivíduos.
A defesa contida neste livro, da educação por meio de
atividades construtoras contínuas, estriba-se no fato de que
elas abrem ensejo para restabelecer-se um ambiente social.
Em vez de uma escola localizada separadamente da vida,
como lugar para se estudarem lições, teremos uma sociedade
em. miniatura, na qual o estudo e o desenvolvimento sejam os
incidentes de uma experiência comum. Campos de jogos, oficinas, salas de trabalho, laboratórios, não só orientam as tendências ativas naturais da adolescência, como também significam intercâmbio, comunicação e cooperação . — tudo isto
atuando para aumentar a percepção de conexões.
fúgio e consolo'para o espírito; achamos que os interesses
atuais são desprezíveis e indignos de atenção. Em regra, porém, a principal razão para o insulamento da escola está na
ausência de um meio social ligado a ela, meio que tornaria
o estudo uma necessidade e um prazer — e este insulamento
torna os conhecimentos adquiridos na escola inaplicáveis à
vida e, por isso, estéreis para a formação do caráter.
Assiste a uma estreita e moralista apreciação da moral
a culpa de não reconhecermos que os objetivos e valores
desejáveis na educação são todos eles morais. A disciplina,
o desenvolvimento natural, a cultura, a eficiência social, são
característicos morais — são traços de um indivíduo que é
digno membro da sociedade que a educação tem em mira
fazer prosperar. Diz um velho rifão que não basta um homem
ser bom; ele deve ser bom para alguma coisa. Essa alguma
coisa para que o homem deve ser bom é a capacidade de
viver como membro" da sociedade, de modo que aquilo que
recebe dos outros para sua vida se equilibre cem sua contribuição para a vida dos outros. Aquilo que ele recebe e dá
como ser humano, como ser dotado de desejos, sentimentos e
ideias, não são bens exteriores e sim um expandir-se e um
aprofundar-se da vida consciente —- uma compreensão mais
intensa, disciplinada e ampla das significações.
O que materialmente ele recebe e dá são, na maioria dos
casos, oportunidades e meios para a evolução da vida consciente. De outra forma, não haveria dar nem tomar, e sim
uma deslocação das coisas no espaço, semelhante ao ato de
se revolver a água e a areia com uma bengala.
A disciplina, a cultura, a eficiência social, o aperfeiçoamento individual, a melhoria do caráter, são apenas aspectos
do desenvolvimento da capacidade de nobremente participar-se
de uma tal experiência bem equilibrada. E a educação não
é um simples meio para essa vida. A educação é essa vida.
Manter a aptidão para essa educação é a essência da moral.
Pois vida consciente, vida conscienciosa, é um contínuo recomeçar.
II — Deve haver continuidade entre o aprendizado escolar e o extra-escolar. Deve existir livre interação entre
os aprendizados. Isto só é possível quando existem numerosos pontos de contacto entre os interesses sociais de um e de
outro. Poder-se-ia conceber a escola como um lugar em que
houvesse espírito de associação e de atividade compartida,
sem que, entretanto, sua vida social representasse ou copiasse,
quer o mundo existente além das paredes da escola, quer a
vida de um mosteiro. Aí se desenvolveriam o interesse e a
compreensão sociais, mas não seriam utilizáveis fora da escola;
não seriam transportáveis para o exterior. A separação proverbial entre os habitantes da cidade e o cultivo da segregação
académica atuam neste sentido. Também pode haver tão
grande apego à cultura do passado, que chegue a formar um
espirito social antiquado, fazendo o indivíduo sentir-se mais
à vontade na vida de outros tempos, do que na de seu próprio.
Uma educação francamente cultural acha-se particularmente
exposta a este perigo: urn passado idealizado torna-se o re-
395
Resumo. — O mais importante problema da educação moral nas escolas diz respeito às relações entre o conhecimento e a conduta. Pois se o ensino recebido num curso
regular não influenciar o caráter, será inútil conceber-se o
396
Democracia e educação
fim moral como o fim unificador e culminante da educação.
Quando não há íntima conexão orgânica entre os métodos e
materiais do conhecimento e o desenvolvimento moral, recorre-se necessariamente a lições e métodos disciplinares particulares; o conhecimento não se integra no viver pelos meios
usuais da ação e da compreensão de seu alcance, e a moral se
torna moralística — isto é, um programa de aquisição de
uma lista de virtudes consideradas isoladamente.
As duas teorias que principalmente se prendem à separação entre o ensino e a atividade, e, portanto, entre o ensino
e a moral, são aquelas que separam a atitude e os móveis
internos — o elemento pessoal consciente — e os atos como
coisas puramente físicas e externas — e que estabelecem antagonismo entre agir por interesse e agir de acordo com princípios. Essas duas separações são evitadas em um plano educacional em que o aprender seja a consequência de atividades
ou ocupações contínuas que tenham uma finalidade social e
utilizem o material de situações tipicamente sociais. Pois
nessas condições a vida escolar torna-se uma modalidade de
vida social, uma sociedade em miniatura, em íntima interação
com outras modalidades extra-escolares da existência associada.
Moral é toda a educação que desenvolve a capacidade de participar-se eficazmente da vida social. Ela forma um caráter
que não somente pratica os atos particulares socialmente necessários, como também se interessa pela contínua readaptação
que é essencial ao desenvolvimento e ao progresso. O interesse para aprender-se em todos os contactos com a vida é o
interesse essencialmente moral.
ÍNDICE ANALÍTICO
Absoluto, ideal filosófico do, 61,
64, 73.
Abstração, nas teorias de Locke,
293.
Abstraio, bom e mau sentido
do, 248-249, 250, 253. Ver
também Concreto.
Ação desinteressada, interpretação comum da, 385.
Acomodação, uma forma de
adaptação, 50, 53, 54. Ver
também Hábito.
Adestramento vs. ensino educativo, 14, 31-32. Ver também
Educação.
Administração escolar, seu dever para prover facilidades
adequadas, 105; a medida do
seu valor, 393; como formadora de um trio com os métodos e a matéria. 181.
Alma vs. corpo, 380; substituída
pelo cérebro vs. o restante do
corpo, 396. Ver também Dualismos.
Altruísmo, verdadeiro e falso
significado, 386-387.
Aluno, falsa ideia da palavra,
153.
Ambiente, do adulto vs. ambiente da criança, 54-55; troca vs.
escolha, como educativo, 20.
24, 39, 301; controlado por
seres vivos, 1-2, 67; função
do, 13-20, 24, 25-28, 29-30, 32,
39-43, 60, 123, 137, 325; em
relação ao hábito, 50-51, 56-57,
199; visão de Herbart do,
77-78; relação com a hereditariedade, 81; teoria de sua
interferência com o desenvolvimento, 61, 73; natureza e
significado, 11-17, 24. 30-36;
relação estreita da física e so-
cial, 30-36; ideia de Rousseau
da educação à parte do, 128;
campos de fortíssimas influências inconscientes, 18-19; estudo do, um guia para o método individual, 190-191. Ver
também Dualismos; Escola
como um ambiente especial;
Estímulos.
Amabilidade, natureza moral da,
393.
Airor à verdade, natureza moral do, 393.
Animais, educação dos, 13-14.
Antíteses, ver Dualismos.
Aplicação, na teoria de Herbart,
77.
Apreciação, a natureza da, 254273, 273-274; tão larga no escopo como na educação 259.
Apreciação estética, como é
determinada pelo ambiente,
19-20.
Aprendizado, primeiríssima forma do, 8; a educação vocacional do passado, 344.
ARISTÓTELES, teorias educacionais de, 277-280; concepção de
experiência t razão, 288; na
relação entre o homem e a
natureza, 306-307; verdades
permanentes na sua filosofia,
280-281; antagonismo ao ensino de Platão, 390. Ver também Atenas; Dualismo; Gregos; Filosofia; Platão; S<>
crates; Solistas.
Arte, como exemplificadora do
ideal do interesse, 148, 227;
o uso da, 226. Ver também
Belas-Artes; Música; Pintura.
Artificialidade do estudo escolar, 1/7.
398
Democracia e educação
Aspecto Cultural de qualquer
estudo, o centro educacional
da gravidade, 234.
Aspectos vocacionais da educação, 338-352,' sumário, 352353,
Associação humana, o que subentende a, 87-92.
Atenas, condições em, influindo
na filosofia, 289, 303. Ver
também Arístóteles; Duaiismos; Filosofia; Platão; Sócrates; Sofistas.
Atenção, o remédio para a falta
nomentânea da, 388. Ver também Interesse.
Atividade, a expansão (libertação) da, 114; imaginação, tão'
boa quanto músculos envolvidos, 259-260; como oposta ao
conhecimento — concepção
primária, 2"88-292; teoria moderna, 292-298; vs. espírito,
380, 383; o antagonismo reconciliado, 381-382, 395-396;
motivo divorciado das consequências, 380, 383-384; vs.
passividade no saber, 367; física, razã-o histórica para sua
negligencia na educação superior, 303; útil, definida e ilustrada, 381; como relacionada
aos estímulos, 26-27, 69. Ver
também Atividade Caprichosa;
Rotina.
Atividade caprichosa, contrastada com a atividade educativa
ou experiência, 84-85, 341,
374; com continuidade, 369370, 384-385; com. a ação pensativa, 159-160, 169; fatal
para o objetivo, 110; negada
pelo objetivo educacional, 341,
pelo conhecimento, 374-375.
Ver também Atividades; Atividade.
Atividade individual, no sentido
estreito e largo, 333-334.
Atividade integrada, uma característica do bom método,
194-196, 198; uma qualidade
moral, 392 •
Atividades, como suas significações se desenvolvem, 228-229,
239, 253;' industriais, realmente culturais, 319; mecânicas, 52; causa das, 155-156;
práticas, condições que as reduzem, 178, 300; escolares,
sob condições controladas,
301. Ver também Ocupações,
ativas.
Atividades Manuais, medida do
valor educativo, 260; unilateral, uso das, 177.
Ato de pensar, na educação,
167-179, 190-191, 341-342, 355,
sumário, 179-180; e experiência, 152-165, 168, 355, sumário,
165-166; vs. conhecimento,
174, 325-326, 359-360, 363-364;
filosófico, diferenciação do ato
de pensar em geral, 365; poupado pela confiança no dogma,
372; um modo social de proceder, 13; exercício no, como um
fim do trabalho escolar, 167,
179-180. Ver também Razão;
Pensamento.
Atos, todos sociais, 392-393.
Autocracia, Objetivo da educação na, 343.
Autoridade vs. Liberdade, 321,
337, 368; confiada em salvar
a perturbação do pensamento,
371-372.
Bacon, Francis, seu apelo à
experiência, 292-293; atitude
para com a verdade, 323;
união do naturalismo e humanismo, 311-312.
Belas-Artes, ponto de vista de
Aristóteles, 278-279; legar no
currículo, 260-261, 273; vs.
"artes industriais, 257-259, 260.
Ver também Arte.
Belas-Artes vs. Artes Industriais, 257, 258, 260.
Benevolência, frequentemente ditatorial, 131-132.
Biologia, sua contribuição para
uma teoria democrática do
conhecimento, 379; testemunha
índice analítico
para a continuidade do homem e da natureza, 314, 356,
370-371; para desigual dom
natural, 127-128.
"Boa vontade, o principal elemento componente da eficiência
social, 131-132.
Tiotânica, conexão com a vida,
220-221.
Campanha napoleônica, influência na educação, 101-102.
Campo de j ogos escolares, uso
de, 394.
Capacidade, duplo significado da
palavra, 44; como ensinar a
limitação da, 216-217, 218.
Capacidade, mental, 272-273.
Capacidade industrial, como um
objetivo da educação, 129-130.
Capacidades, irregular desenvolvimento das, 126. Ver também Disposição; Instintos.
Capital vs. trabalho, o problema
do dia, 346-347. Ver também
Dualismos.
Capitalismo, após a revolução
industrial, 311-312.
Caráter, o objetivo da instrução
escolar e disciplina, 380, 395396; definição, 349-350; definição do caráter cuja educação deveria formar, 395396; porque não é desenvolvido pela educação escolar,
172, 207-208; como é desenvolvido pela educação primitiva, 9; vs. conduta, 380, 395396; vs. inteligência, 388, 392,
395-396. Ver também Conduta; Disposição; Dualismos.
Castidade, natureza moral da,
393.
Cérebro, função do, 369-370.
Cerimónias de Iniciação, seus
propósitos, 7-8, 200.
Charlatanísmo, empirismo degenerado, 247-248, 290.
Ver
também Empirismo,
Ciência, aplicada vs. " pura",
251-252, 317; objetivo, 248,
250, 253, 254; sua aurora na
399
Renascença, 310; deíinição,
210, 241, 247, 251, 251-252,
253; generalidade, totalidade e
última causalidade da, 258;
como oposição entre o homem
e a natureza, 311-312, 313;
como passando para a filosofia, 357-358; como conhecimento racionalizado, 208-211,
247-248; conflito com a religião, 359-360; como meio do
progresso social, 245-250; sua
espécie de valor dependente da
situação, 264, 362-363.
Ciências, sociais e escola, 222223; sujeitas ao mesmo método das ciências naturais, 314.
Civilização, seus fatores, 39-40.
Coisas vs. relações, 156-158, 165.
Comércio, como força socíalizadora, 330. Ver também Negócios ; Trabalho vs. Lazer;
Vocação.
Complexo vs. Simples, falsa" noção de, 219-220.
Compreensão recíproca, significação da, 16-17.
Comunicação, definição, 10, 239240; sempre educativa, _ 5-6,
10; estendendo o significado
da experiência, 239-240; tornando possível a continuação
da sociedade, 2-6, 10; critério
do seu valor, 206.
Comunidade,
definição,
4-5 ;
condições que tornam possível, 25-26; não um só corpo
mas muitos, livremente ligados, 22-23, 87-90.
Concepção democrática na educação, 87-106; sumário, 106107, 354-355.
Concreto, precisa progredir para
o abstraio, 296-297. Ver também Abstraio.
Condições económicas, atuais,
tendências das, 104-105; educação, um meio de reforma,
285.
Condições industriais vs. condições educacionais, 284-285.
400
Democracia e educação
Conduta, como é determinada
pelo conhecimento, 390-392,
395-396; relação com a filosofia, 356-358, 365. Ver também Caráter; Disposição.
Conexões de um objetof tornadas evidentes pela educação,
231; como determinando resposta a ele, 373-574; meios
para o aprendizado, 394.
Confiança, uma característica
do bom método, 192.
Conformidade, não equivalente a
uniformidade, 54-55; a essência da educação na filosofia
de Hegel, 63-64.
Conhecer vs. Fazer. Ver Fazer
vs. Conhecer.
Conhecimento, como um objeto
de contemplação estética, 375376; vs. ideais, 371; definição,
373-374; como derivado de
fazer, 203-205, 213-215, 226227; concepções primárias do
antagonismo, 288-292; teoria
moderna, 292-303, 304; experimental, 347-348, 371; falsa
concepção do, 143; razão
para, 149; função, 373; relação com o futuro, 375-376; vs.
hábito, 373; como tornado humanista, 252-253; vs. aprender, 163-164, 363-364, 367-368;
como pragmaticamente definida, 377-378; racionalizado como ciência, 208-211; escolar,
falta de capacidade funcionando, 375-376; vs. interesses
sociais, 321; teorias do, 366378; sumário,, 378-379; fins e
meios ambos do ato de pensar,
162, 173-174, 325-326, 359,
363; verdadeiro e de 2.a mão,
390-392; relação com a virtude, 388-392, 395-396; vocação,
um princípio organizador do,
342. Ver também Dualismos.
Conhecimento abstrato, 209
Conhecimento moral, escopo do,
392, 395-396.
Conhecimento objetivo vs. subjetivo, 137, 325-326, 368. Ver
também Interno vs. externo.
Consciência,
definição, 112;
acentuada pelo bloqueio dosinstintos e hábitos, 382; nãoindependente, 153; como termo equivalente a " espírito",.
323-3_24.<
Consciência moral vs. consciência, 389; instituições da, 384.
Consenso, origem, 5.
Consequências da ação, vs. seu»
motivos, 380, 383-384, 395-396.
Ver também Dualismos.
Conservantismo vs. Progressivismo, 359-362, 367-368, 378379; na educação, 75-86.
Continuidade, das coisas inanimadas, l; da vida social,
31-32; dos seres com seus
ambientes, 12, 314; vs. Dualismo, 366-373. Ver também
Dualismos.
Controle, como uma função da
educação, 25, 43, 83, 374-375,
378-379; meios do, 35-36, 42,
67-68; resultante em crescimento, 1-2; na teoria de Herbart, 76; vs. liberdade, 321,
336-337; social, indireto vs.
direto, 28-29, 30, 42; variável,,
importância do, 48-49, 56-57.
Ver também Conservantismo;
Liberdade; Individualidade.
Coordenação das respostas, 68,
69, 72.
Corpo e Espírito, antagonismo
do, 154, 157-158, 165, 179. 321,
338, 352, 356-357, 368-369; na
teoria de Aristóteles, 280;
interdependência demonstrada
pela fisiologia e psicologia,
369-370. Ver também Dualismos ; Físico vs. Psíquico.
Corpo vs. Alma, antagonismodo, 379, 380. Ver também
Dualismos; Físico vs. Psíquico.
Cosmopolitismo, a tendência doséculo VIII, 98; como foi
expresso por Kant, 102-103;
defeitos do, 104-105; submisso
ao nacionalismo, 100-101.
índice analítico
Costume, crítica do, bases da
filosofia Ateniense, 288, 289,
303.
Costumes, definição, 50, 57. Ver
também Acomodação; Hábito ; Hábitos. .
Credulidade, inclinação humana
para a, 208-209.
Crença, superficial, negando responsabilidade, 197.
Crenças, vs. Conhecimento, 371;
revisão depois da Idade Média, 326-327, 336.
Crescimento, Intelectual, adulto,
vs. infantil, 83; capacidade
para, condições da conservação, 193; atenção às condições do, necessárias na educação, 11; definição, 44, 193;
divórcio entre o processo e o
produto, 81-82; ideia de Froebel, 02-63, 73; requisitos para,
193, 377-378, 395-396; vocação um princípio organizador
do, 342; intelectual e moral, a vocação universal,
342-343; moral, sua relação
com o conhecimento, 395-396.
Ver também Desenvolvimento.
Educação como Crescimento. Educação como desdobramento.
Crescimento, pelo controle do
ambiente, 1-2; irregularidade
do, 126-127.
Cristandade, como refúgio do
mundo, 383.
Critério, da matéria, 72, 273274; de uma sociedade, 89102, 106. Ver também Padrões.
Cultura, como objetivo da educação, 132-134, 254, 255; sumário, 134-135; causa das diferenças na, 38-41; vs. eficiência, 132-134, 134-135, 148149, 352-353,^ 356, 363, 367;
explicação histórica e social
do antagonismo, 149-150, 275280, 286-287, 366-367; ideia
tradicional da, 133, 338; para
ser modificada, 105; definição
da verdadeira, 135; uma ca-
401
racterística moral, 395. Ver
também Educação.
Cultura espiritual, porque conrnmente inútil, 133.
Cultura liberal ou educação, ver
também Aspecto Cultural;
Educação cultural; Cultura.
Curiosidade, causa e efeito, 229,;
natureza 230, 368.
Currículo, em relação aos obje,tivos e interesses, 254-273;
sumário, 273-274; lugar do
jogo e trabalho no, 214-226;
sumário, 226-227; requisitos
para o planejamento, 211-213,
falsos padrões para sua composição, 268-273; razões para
constante crítica e revisão,
265; medida do seu valor, 393.
Democracia, verdadeira, características, da 93-95, 106, 132133, 281-282, 337, 348-350, 353,
378-379, 392; critério para o
currículo na, 211-212, 319,
320; dever da educação na,
129-131, 273-274; humanismo
da ciência na, 251-252; teoria
prnoria do conhecimento na,
379; reorganização da educação requerida na, 281-282, 286,
364; crescente respeito por todo trabalho na, 346.
Dependência, uma capacidade
positiva, 45-47; hábito da dependência das "deixas", 61.
Ver também Infância prolongada.
Descartes, a filosofia de, 331,
329-330; e a rejeição da tradição, 325.
Desenho, sua função primária
na educação, 260-261. Ver
também Arte.
Desenvolvimento, como objetivp
da educação, 122-129, 134; interpretada como desdobramento, não como crescimento,
60, 73; substituída pela ideia
de disciplina, 101-102; suciado, uma causa do, 53-54, 55,
56-57, 194; desenvolvimento
natural, sua relação com a
402
Democracia, e edu-cação
cultura, 132; uma carrcterística morai, 395.
" Desenvolvimento espontâneo",
teoria de Rousseau, 125.
Deus, identificado por Rousseau
com a natureza, 124-125.
Devaneio, um meio de animar,
259.
Dever vs. interesse, 385-388,
395-396.
Diferenças de classes, na filosofia de Platão, 94-98, 103104, 106, 286, no feudalismo,
133; no século XVIII, 99,
127, 128, n i ; na filosofia de
Hegel, 64-65, no momento,
90-91, 104-105, 149, 178, 276,
281-282, 285-286, 343; no
mundo educacional, 149, 271273, 273-274; no conflito das
ciências puras e aplicadas,
348-349; na distinção entre o
conhecimento racional e empírico, 367; em vários outros
dualismos, 356, 366, 378-379;
o perigo que a educação vocacional pode perpetuar, 130,
350-352; possibilidade que podem remover, 352-353. Ver
também Situação social.
Diferenças, individuais. Ver Individualidade ; Variações, Individuais.
Dificuldade, grau próprio da,
em um problema, 172.
Direção, como uma função da
educação,
25-42;
sumário.
42-43; capacidade da, desenvolvida pela experiência educativa, 83-84, 374-375, 378379; social, modalidades da,
28-36, 42.
Discernimento, nas teorias de
Locke, 294, na dos seus sucessores, 294.
Disciplina, como objetivo da
educação, explicação social da,
149; tentativa para reconciliála com a cultura, 101-102; vs.
interesse, 136-150, 355; sumário, 150-151; falsa concepção
da, 145, 146; origem desta
concepção, 185-186; significa-
do, 139-140, 141-142, 150-151,
195; uma característica moral,
395; externa e divisão do espírito, 196; substitutos próprios para, 214, 258-259; para
ser modificada na educação
democrática, 105; para aparecer no caráter, 380. Ver também Disciplina Formal; Governo; Escola; Interesse.
Disciplina Formal, a equivalente
do método escolástico, 376;
doutrina, exposta, 65-67, criticada, 67-73, 74; como um valor educacional, 254, 268-269;
remédio para seus males, 144145, 147-148; valor dos estudos particulares, 268-269.
Ver também Disciplina; Educação.
Disposição, definição da, 12,
358; em relação à democracia,
105; capacidade para melhorar as condições sociais, 149;
habitual, um dos padrões reais
fixos, 258-259; fundação da
capacidade para desenvolver,
49, 50; influenciada pelos atos,
393, pela associação, 23-24, 30,
36, pelo uso das condições físicas, 34, 36, pelas escolas, 4,
23; mental e moral, como
mudar a, 199, 349; efeito da
matéria sobre a, 75; social,
meios de alcance, 42, 216-223,
226. Ver também Caráter.
Divisão do espírito como um resultado do mau método, 194196.
Dogma, uni apoio para poupar
pensamento, 372.
Donaldson, citado, na irregularidade do crescimento, 126127.
D