OS SONHADORES – Club do Filme – Crítica
OS SONHADORES

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“Um cineasta é como um bisbilhoteiro, um voyeur. É como se a câmera fosse a fechadura do quarto dos seus pais e você os espiona. É repugnante…” disse Matthew

The Dreamers fala sobre a explosão da inconsequência aventureira da juventude sem os padrões presentes nos muitos filmes que tratam da mesma temática. Graças às boas atuações, as personagens carregam um mistério estampado na cara. É esse mistério responsável pela nossa sede por mais. Sabiamente, o roteiro permite que as personagens o guie, não o contrário. Quando é assim, o filme nos guia ao inevitável. 

Entre cenas de paródias e  trechos de filmes como Band Apart, Scarface e outros clássicos da primeira  metade do século XX, The Dreamers nos apresenta um excêntrico trio de jovens cinéfilos na década de 60 durante toda a efervescência política e cultural de Paris, na França. Isabelle e Theo, irmãos siameses que sentem um pelo outro um amor peculiar, conhecem Mathew numa manifestação em frente a uma cinemateca. Durante todo o filme percebe-se o contraste entre o comportamento de um jovem estadunidense e o dos jovens parisienses. No entanto, alguns contrastes sofrem de desajuste, outros sequer existem. É o caso de alguns pontos do roteiro.  

Logo na cena que acontece o encontro, é possível perceber algo que, em bom português, podemos chamar de “forçação de barra”. Na mesma sequência, há uma série deles. O entrosamento se dá sem mas nem porquê, simplesmente porque tem que acontecer. Mathew já se diz apaixonado pelos amigos e  Isabelle demonstra seu afeto à beira do Rio Sena de forma um tanto superficial e clichê. Theo e Mathew se olham e já falam a mesma linguagem, algo que não acontece de imediato nem mesmo em filmes. Não tão imediatamente assim. 

Existem outros momentos forçadamente excêntricos como, por exemplo, quando, devido a uma prenda, Theo “ordena” que Isabelle transe pela primeira vez com um homem, o Mathew. Enquanto a prenda é cumprida, Theo ocupa o mesmo espaço, a cozinha, enquanto frita ovos e assiste pela janela a perseguição policial a simpatizantes do Partido Comunista. A nudez não é uma questão na vida das personagens nem no filme, e não deveria mesmo ser. O que há de espantoso é a forma como chegamos a ela e como a cena ocorre. Esse espanto é mesmo intencional.  No entanto, o que não é intencional é uma incoerência do filme com ele mesmo. Se as personagens, bem como todo o filme, tivessem traços que sustentassem ou preparassem o público para as cenas de exagerada excentricidade, tudo seria mais fluido e menos forçado. Certamente o espanto viria com algum encanto sem chocar negativamente com o tom romântico que o filme exala. 

O filme se baseia na tentativa de apresentar um recorte da efervescência da juventude parisiense durante os icônicos anos 60. Através das não mais que teorias de justiça social, liberdade e fraternidade da classe média europeia. Através disso se percebe o nem sempre perceptível elitismo presente na imagem que se tem da época. Que parcela da sociedade produzia e consumia as ideias lidas como predominantes da época? De fato, elas foram colocadas em prática? É claro que não podemos sugerir que as questões e debates levantados pela parcela intelectualizada, em geral abastada, da época foram desimportantes ou não ecoaram além da mesma. Afinal é a classe média a intermediária entre as classes mais ou menos assistidas, favorecidas.  Ela deve mesmo usar seu poder de transitar e dialogar com as classes ao seu entorno com consciência. No entanto, isso não necessariamente ocorreu na época, bem como na atualidade ou mesmo no filme. Também não cabe cobrar que a arte faça o que a realidade não é capaz. 

Tecnicamente, com exceção de alguns pontos já mencionados do roteiro, o filme não poderia ser melhor. Se tratando de um filme com personagens apaixonados por Cinema, exibindo trechos e se referindo a filmes nas entrelinhas da trama, The Dreamers poderia facilmente se tornar um filme intragável, custoso. No entanto, a Fotografia, o Som ou a Direção de Arte não são sobrecarregadas com as tais referências. Isso, a Direção soube balancear. É esse balanço que torna o filme possível de ser contemplado. 

O filme tem um teor filosófico e aborda questões que, embora abordadas do ponto de vista da classe média, são de inegável relevância para a época e para os dias de hoje.  Sua narração em primeira pessoa, junto à intimidade revelada, dá ao filme um tom próximo ao de uma auto-ficção, rodeado de acontecimentos reais que mantém o espírito da época imaculado, preservado, embora conflitante, convulsionando.  Junto com a realidade gritante do mundo, o apartamento dos jovens irmãos também é invadido pelo caos da própria intimidade quando atenciosamente reparada. Por fim, o romance se mostra sustentado pela monstruosidade mostrada, por vezes demais, no filme.  E o estopim é o fim.

O filme surpreende ao romper com outros clichês. Tudo parece tão óbvio e confuso, tão compreensível e sensibilizante, que acabamos junto com o filme em um estado de inércia porque é assim que ele intimamente acaba. Podemos até sentir uma conformidade em meio às explosões. Não poderia ser outro o fim. Mas não pode ser o fim.


Filme: The Dreamers (Os Sonhadores)
Elenco: Michael Pitt, Eva Green, Louis Garrel, 
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Gilbert Adair
Produção: França, Reino Unido
Ano: 2003
Gênero: Drama, Romance
Sinopse: Matthew (Michael Pitt) é um jovem que, em 1968, vai estudar em Paris. Lá ele conhece os irmãos gêmeos Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis Garrel). Os três logo se tornam amigos, dividindo experiências e relacionamentos enquanto Paris vive a efervescência da revolução estudantil.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: Fox Film do Brasil
Streaming: Indisponível
Nota: 7,9

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