'A Favorita': conheça os fatos históricos por trás do filme - Revista Galileu | História
  • Caio Delcolli
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A Favorita (Foto: Atsushi Nishijima/Fox Searchlight)

Segundo pesquisadora, a Rainha Ana foi uma governante séria e deixou um legado pouco lembrado hoje em dia (Foto: Atsushi Nishijima/Fox Searchlight)

Inglaterra, 1708. A coisa não está boa para o lado da Grã-Bretanha na guerra contra a França. A rainha Ana (Olivia Colman) está fragilizada e mal consegue se locomover por causa da gota. Enquanto isso, duas mulheres disputam ferozmente pelo posto de "favorita" da monarca, a fim de terem influência no palácio e nos rumos da política do país: Lady Sarah (Rachel Weisz) e Abigail Hill (Emma Stone). Está armado o circo da sátira política que é A Favorita, longa-metragem dirigido pelo grego Yorgos Lanthimos (O Lagosta) e que estreou no Brasil em 24 de janeiro de 2019.

Indicada ao Oscar 2019 em dez categorias, incluindo melhor filme, e vencedora em uma (Melhor Atriz para Colman), a produção deve ser tratada pelo que ela é: uma obra de ficção com muitas qualidades e feita para entreter. É o que sugere a historiadora inglesa Anne Somerset em entrevista à GALILEU.

A autora de Queen Anne: The Politics of Passion (Vintage Books, 2014; sem edição brasileira) afirma que, ao contrário do que o longa-metragem mostra, a rainha Ana não era uma criança mimada no corpo de uma adulta, foi uma governante séria e deixou um legado pouco lembrado hoje em dia pelos britânicos.

Desde já nós adiantamos: daqui para baixo tem spoiler do filme!

Contexto
O longa se desenrola durante Guerra da Sucessão Espanhola (1702-13), um conflito travado entre Grã-Bretanha e França. Ambos países discordavam a respeito de quem deveria assumir o trono da Espanha.

Somerset explica que os britânicos se opuseram à escolha da Coroa Espanhola de ter o neto de Luís XIV, Filipe V de Espanha, como rei. "Eles temiam que Filipe fosse uma marionete do da França se a Espanha fosse governada por um membro da família real francesa", conta a historiadora.

John Churchill, o duque de Marlborough (interpretado no filme por Mark Gatiss), tinha dificuldade de cumprir a promessa feita à rainha: conseguir vitória plena em um ano. Na verdade, muitos se passaram e nada dele conseguir convencer os franceses a largarem o osso e encerrar o conflito. E o duque não conseguiu um desfecho bem-sucedido.

A rainha Ana e Robert Harley, I Conde de Oxford e Mortimer (vivido por Nicholas Hoult no filme), fizeram negociações secretas com os franceses e, mesmo com as tentativas de Marlborough de impedi-los, conseguiram um tratado assinado em 1713.

"Desde então, algumas pessoas dizem que a Ana traiu as pessoas e seus aliados ao falhar em conseguir acordos de paz que refletissem os sucesso da Grã-Bretanha na guerra", diz Somerset. "Outros aceitaram que a Grã-Bretanha estava tão exausta pela guerra àquela altura que fazer as pazes seria essencial para o que tratado fosse benéfico para a Grã-Bretanha."

Imposto
Este é outro fator do conflito que causa dor de cabeça à rainha em A Favorita. A fim de arrecadar fundos para a guerra, surge a possibilidade de aumentar o imposto sobre propriedades, o que causa embates faiscantes entre os parlamentares.

O dinheiro investido na guerra veio principalmente com a receita dos impostos sobre terras e, indiretamente, de taxas sobre commodities. Naquela época não havia imposto de renda e os financiadores e exploradores (no sentido financeiro) do conflito não desenbolsaram um tostão da grana que lhes veio como resultado da guerra.

"Isso criou um grande ressentimento na parte da sociedade que possuía terras", explica a historiadora. "Uma razão pela qual a rainha Ana sentiu que era essencial terminar a guerra com a França foram as taxas que precisavam ser pagas. Elas pesavam muito sobre quem estava sujeito a elas."

Rainha Ana pintada por John Closterman (Foto: Reprodução/John Closterman)

Rainha Ana em pintura de John Closterman datada de 1702 (Foto: Reprodução/John Closterman)

Diversão peculiar
Corrida de patos? Atirar comida em gente nua? Comilança desenfreada? Não foi bem assim.

A autora de Queen Anne assegura que A Favorita exagera nesse aspecto: "a rainha Ana presidiu uma corte respeitável que nem remotamente se parece com o bacanal mostrado no filme".

"O homem nu e gordo tentando se esquivar da comida me deixou completamente intrigada – e também não achei nem um pouco agradável –, mas suponho que a gente deva aceitar os caprichos do diretor."

Triângulo amoroso homossexual
No filme de Yorgos Lanthimos, lady Sarah e Abigail travam uma disputa tão intensa pelo posto de braço-direito da rainha que as duas mandam os escrúpulos para o beleléu: elas vão até para a cama com a monarca.

As evidências históricas, por outro lado, são insuficiente para comprovar isso. Somerset diz que a Ana tinha "tendências lésbicas", desenvolveu uma espécie de obsessão por lady Sarah — esta, por sua vez, esposa do duque de Marlborough —, de quem ela odiava estar separada. Ana chegou ao ponto de escrever cartas todo dia para Sarah.

"Embora as cartas de Ana não sejam sexualmente explícitas como o filme sugere, elas de fato continham declarações de amor e devoção eterna", diz Somerset. "Hoje em dia, é claro, ninguém se pergunta se havia algo a mais do que esse relacionamento – embora não haja evidência de que tenha sido esse o caso. Pessoalmente, eu não acredito que Ana e Sarah tenham tido relacionamentos sexuais, mas é impossível provar isso."

O relacionamento entre Ana e Sarah estremece quando Abigail se aproxima da rainha. Para a duquesa de Marlborough, não seria possível Ana ter qualquer interesse em Abigail que não fosse sexual, visto que esta não era detentora de grandes qualidades aos olhos da duquesa.

Rachel Weisz interpreta Sarah Churchill (à esquerda), que seria acompanhante íntima da rainha Ana (à direita) (Foto: Reprodução)

Rachel Weisz interpreta Sarah Churchill (à esquerda), que seria acompanhante íntima da rainha Ana (à direita) (Foto: Reprodução)

Veja só que lady Sarah acusou a rainha de ter um caso com Abigail. Por outro lado, Sarah tinha medo de que acontecesse um quiproquó: as pessoas deduzirem erroneamente (ou não) que ela sabia de um envolvimento de Ana e Abigail por ela própria ter envolvimento sexual com a rainha.

"Quando Ana soube do que Sarah a acusava, ela ficou desolada e, de fato, isso foi o que causou uma quebra irreparável entre elas", conta Somerset. A autora conta que, na Inglaterra do século 18, havia pouca consciência a respeito de relacionamentos homossexuais — mas, ao passo que houvesse, seriam reprovados.

Poder
Em A Favorita, Sarah e Abigail querem é mandar: elas não economizam no veneno — o que chega ao ponto de ser literal — na disputa pela influência sobre Ana.

Já na realidade, Sarah se decepcionou com a rainha por não ter tanto poder quanto imaginava que teria quando esta assumiu o trono. De acordo com a pesquisadora, muita gente por aí acredita que a duquesa exercia pleno controle sobre a rainha, mas não é o caso.

De olho na guerra, o duque de Marlborough e Sidney Godolphin, o conde de Godolphin (vivido por James Smith), aconselharam lady Sarah a tentar amedrontar a Rainha em conversas. Entretanto, a Duquesa não conseguia fazer isso e chegou ao ponto de ser contraproducente — e quando a Rainha percebeu isso, decidiu não falar mais sobre política com a amiga.

Sarah perdeu a credibilidade com Ana e isso fez com que ela e Abigail se aproximassem. A duquesa acreditou que isso faria Abigail ter total controle sobre a Rainha e, assim, explica a historiadora, surgiu o mito de que Ana era uma governante desatenta e manipulável por suas "favoritas".

Abortos e coelhos
A rainha Ana engravidou 17 vezes de seu esposo, o príncipe Jorge da Dinamarca, morto em 1708. Todas essas gestações, no entanto, resultaram em abortos espontâneos, natimortos ou bebês que morriam pouco tempo após nascerem.

Em A Favorita, a monarca tem em seu quarto 17 coelhos, cada um equivalente a um filho perdido. Mas, segundo a historiadora, isso não aconteceu.

O verdadeiro legado da rainha Ana
De acordo com Somerset, Ana é uma das monarcas mais esquecidas e negligencadas da Grã-Bretanha. "Ela era quieta e tímida, conhecida por suas belas maneiras, tratava os lacaios e ministros com grande cortesia, não era a bruxa petulante como vemos no filme e nunca desferiu tapas e golpes em outras pessoas", diz a autora de Queen Anne.

A Rainha não tinha glamur e carisma e era vista como muito dura, o que segundo Somerset não é justo e se deve, em parte, à vingança de Lady Sarah, que em suas memórias fez um retrato "rude" de Ana. A historiadora diz não crer que isso tenha relação com desigualdade de gênero — pois as rainhas Elizabeth II e Vitória até hoje são estudadas e famosas.

Além disso Ana era séria, gananciosa, trabalhava duro e esteva presente em mais reuniões com ministros do que qualquer outro monarco britânico. "Ana era uma mulher sensível e lidou surpreendentemente bem com o desafio de comandar a Inglaterra. Ela preservou a estabilidade política e assegurou que, após sua morte, o trono fosse para seus primos alemães protestantes em vez de seu meio-irmão católico, crescido em exílio na França", conta. "Ao fazer isso, ela se certificou que a Inglaterra fosse uma monarquia constitucional em vez de um estado católico absolutista como era a França. Ela recebe pouco crédito por isso."

Já a respeito do sobrepeso: a rainha era parcialmente inválida por causa da gota e não podia se exercitar. A cena em que ela come bolo até vomitar (para continuar comendo depois), portanto, não é necessariamente um indicativo factual de por que ela era gorda.

Indicações de A Favorita ao Oscar
Melhores filme (Ceci Dempsey, Ed Guiney, Lee Magiday e Yorgos Lanthimos), direção (Yorgos Lanthimos), atriz (Olivia Coldman), atriz coadjuvante (Emma Stone), atriz coadjuvante (Rachel Weisz), roteiro original (Deborah Davis e Tony McNamara), fotografia (Robbie Ryan), montagem (Yorgos Mavropsaridis), design de produção (Fiona Crombie e Alice Felton) e figurino (Sandy Powell).

Assista ao trailer.