A TRAJETÓRIA DOS IRMÃOS GONCOURT NO CAMPO
LITERÁRIO FRANCÊS
GAMA, Zadig1
RESUMO: Este artigo reconstitui a trajetória irmãos Edmond (1822-1896) e Jules (1830-1870) de
Goncourt, compreendendo os anos de preparação de suas primeiras obras, sua efetiva entrada campo
literário francês e a produção de Edmond sem a colaboração de seu irmão, morto em 1870. Tomando
como base a Sociologia da literatura e a História do livro e da edição, observam-se, em um primeiro
momento, as inclinações artísticas e, em seguida, as sucessivas apostas dos irmãos Goncourt em
diferentes temas e gêneros literários. Isso permite, posteriormente, descrever e analisar a escolha de seus
editores para a publicação de suas obras. A partir da apresentação das condições de produção da obra
dos irmãos Goncourt no campo literário francês, discute-se o estabelecimento de seus nomes em uma
posição de relativo reconhecimento e prestígio.
PALAVRAS-CHAVE: Irmãos Goncourt, Campo literário francês, Trajetória, Naturalismo.
THE TRAJECTORY OF THE GONCOURT BROTHERS IN THE
FRENCH LITERARY FIELD
ABSTRACT: This article reconstructs the trajectory of brothers Edmond (1822-1896) and Jules (18301870) de Goncourt, including the years of preparation of their first works, their effective entry into the
French literary field and the production of Edmond without the collaboration of his brother, who died
in 1870. Taking as a basis the Sociology of literature and the History of book and publishing, we first
observe the artistic inclinations and the successive bets of the Goncourt brothers on different themes and
literary genres. This allows us to subsequently describe and analyze their choice of publishers for the
publication of their works. Starting from the presentation of the conditions of production of the Goncourt
1
Professor substituto da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Doutor em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com estágio
doutoral na Université Sorbonne Nouvelle - Paris III. Membro do grupo de pesquisa ARS Arte Realidade
Sociedade (FBN) e do grupo de leitura do Choix Goncourt du Brésil (UFF).
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brothers’ work in the French literary field, the establishment of their names in a position of relative
recognition and prestige is discussed.
KEYWORDS: Goncourt brothers, Literary field, Trajectory, Naturalism.
Introdução
Este artigo tem por objetivo reconstituir os diferentes momentos do campo literário francês nos
quais os irmãos Goncourt produziram suas obras, assim como restabelecer a singularidade das
sucessivas posições que esses escritores ocuparam ao longo de suas trajetórias. Isso significa
observar a lógica relacional entre agentes e instituições do campo literário, os valores que os
sustentavam, os interesses e as apostas materiais e simbólicas em jogo nesse espaço de forças
e de tensões (BOURDIEU, 1996 [1992], p. 292-294). O fato de as condições de produção da
obra literária dos irmãos Goncourt se inscreverem na Paris que sofria as consequências de um
período de intensa instabilidade política, fruto da sucessão de diferentes formas de governo,
torna possível observá-las em momentos-chave do regimento do Estado francês. Os anos de
preparação de suas primeiras obras podem ser situados no período de crise política, social e
econômica que encerra a Monarquia de Julho (1830-1848) e dá início à Segunda
República (1848-1851). A efetiva entrada de Edmond e de Jules de Goncourt no campo literário
francês, dá-se no momento do golpe de Estado do então presidente Louis-Napoléon Bonaparte,
que instaurou o Segundo Império (1851-1870). E a produção de Edmond sem a colaboração de
seu irmão, morto em 1870, assim como os frutos de seu projeto de perenidade no campo literário
francês, consolida-se nas primeiras décadas da Terceira República (1870-1940).
O triunfo da pena sobre o pincel
A produção literária e artística dos irmãos Goncourt tem como marco inicial a Revolução
de 1848, que pôs fim à Monarquia de Julho e deu origem à Segunda República. Apesar de ter
conduzido homens de letras como Alexandre Dumas pai e Charles Baudelaire às barricadas
erguidas nas ruas de Paris e Alphonse de Lamartine aos debates políticos, o desfecho
conturbado do reinado de Louis Philippe I foi observado pelos irmãos Goncourt através da
janela do apartamento alugado por sua mãe no número 12 da rue des Capucines, em Paris, logo
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após a morte de seu pai, Marc Pierre Huot de Goncourt. Assim como fizera o igualmente
estreante nas letras Gustave Flaubert, os irmãos Goncourt viram nos eventos ocorridos entre
fevereiro e junho de 1848 a oportunidade de tomarem notas sobre a vida na cidade, em um
momento de turbulência política. Jules, ainda estudante, transformava gradativamente suas
notas em uma espécie de diário, no qual registrava a data e a hora do que presenciava.
Os políticos, independentemente do posicionamento que tinham, eram tratados como
personagens e a crise econômica e social, como um tema a serviço de sua escrita. Edmond e
Jules consideravam a política que determinava os rumos da história da França naquele momento
um campo minado por lugares comuns, por mentiras descaradas e por uma retórica obsoleta e
esvaziada de sentido.
Enquanto o direito ao trabalho era um leitmotiv das discussões políticas ao final da
década de 1840, a vida de artista era a principal aspiração dos irmãos Goncourt. Esta, entretanto,
nem sempre foi algo possível em suas vidas, sobretudo para Edmond, que teve seus anos de
juventude conduzidos com severidade por sua mãe: “Penso naquele tempo de colégio, mais
duro para mim do que para os outros [...]. Sonho com a minha vocação para pintor, para aluno
da escola de chartes, sonho desfeito mais tarde pela vontade de minha mãe” (GONCOURT,
1989, t. 2, p. 430-431)2. Edmond, que havia concluído o curso de Direito, trabalhava no
Ministério das Finanças desde o dia 30 de abril de 1846; Jules, ainda estudante, preparava-se
para os exames escolares finais, que concluíra com excelência, apesar de gazear, a fim de
escrever, desenhar ou lavar aquarelas.
O tédio que Edmond sentia enquanto funcionário supranumerário da administração
pública e a paixão não explorada de Jules pela literatura começam a mudar de figura com o
agravamento do estado de saúde de sua mãe, Annette Cécile Guérin. Desde 1846, a
correspondência dos irmãos Goncourt registrava vagas e breves menções a seu estado de saúde
frágil, sem precisar a doença que a acometeu, tampouco a causa de sua morte, no
dia 6 de setembro de 1848. Sem registrarem qualquer imersão profunda em um luto pela morte
daquela que sempre se mostrou inquieta pelo futuro dos filhos, os irmãos Goncourt ficaram
livres para tomar as decisões que lhes conviessem. Edmond se torna o responsável legal de
Jules e, no dia 1º de novembro de 1848, pede demissão a fim de viver da pequena fortuna
amealhada por seu pai, rigorosamente administrada pela mãe, e das rendas das terras que herdou
2
“Je pense à ce temps de collège plus dur pour moi, que pour d’autres […]. Je songe à ma vocation de peintre, à
ma vocation d’élève de l’école de chartes, brisé plus tard par la volonté de ma mère”. Esta e as demais traduções
não referenciadas foram feitas pela autora deste artigo.
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com seu irmão: “Sua mãe tinha deixado 5.000 libras de renda para cada um, o que assegurava
uma existência burguesa em uma época em que Zola escreve a Cézanne que, para se viver em
Paris, eram precisos 1.500 francos” (CABANÈS; DUFIEF, 2020, p. 88)3.
Em carta de novembro de 1848, endereçada a Léonidas Labille, marido de uma de suas
primas, Edmond deixa clara a insatisfação com o trabalho formal que exercia e aponta possíveis
direções que sua vida tomaria: “Tenho gostos pela literatura, pelo desenho, que sempre
preencheram os anos durante os quais não tinha ocupações formais” (GONCOURT, 2004, t. 1,
p. 66)4. O fato de não precisar mais obedecer às ordens de uma chefe de família inflexível e de
ter se tornado independente financeiramente permitiu a Edmond planejar uma viagem à Itália
com seu irmão (GONCOURT, 1885, p. 5). Contudo, os planos feitos pelos irmãos Goncourt,
descritos por Jules em carta a seu amigo de escola Louis Passy, no dia 24 de setembro de 1848,
não tardaram a ser refeitos: o reino da Sardenha estava em guerra contra o Império austríaco e
os reinados insulares e os da península itálica passavam por uma tentativa de unificação
permeada de insurreições. Além de perceberem na Itália uma situação política mais conturbada
do que a da França, uma epidemia de cólera assolava Paris. Os irmãos Goncourt deram, assim,
início a uma série de viagens que representava uma tentativa de fuga das tensões políticas
concentradas na capital francesa e que revelam disposições artísticas ligadas a valores
aristocráticos e da arte pela arte.
No dia 9 de junho de 1849, eles seguem em direção a Bar-sur-Seine, comuna situada
na região de Champagne-Ardenne, onde Jules escreve versos sobre a paisagem de seu entorno.
Passado pouco mais de um mês, no dia 15 de julho daquele ano, Edmond e Jules dão início a
uma longa viagem em direção ao Sul da França e à Argélia. Ao longo do caminho, produzem
desenhos, aquarelas e gravuras. Edmond começa a colocar em prática o que chamava de
vocação para pintor; Jules produz autorretratos em que sua imagem se funde à de seu irmão. As
tomadas de nota deixam de conter apontamentos sumários sobre os lugares visitados e
começaram a apresentar uma preocupação maior com o estilo, incluindo descrições detalhadas
e esboços de fisiologias dos tipos que encontravam no caminho.
No dia 10 de janeiro de 1850, quando retornam da viagem à Argélia, mudam-se para
um apartamento no número 43 da rua Saint-Georges, no atual 9º distrito de Paris. O novo
endereço passou a conservar a coleção de objetos de arte que vinham reunindo ao longo de suas
“[…] leur mère avait laissé à chacun 5.000 livres de rentes, ce qui assurait une existence bourgeoise à une époque
où Zola écrivait à Cézanne qu’il fallait 1.500 francs pour vivre à Paris”.
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“J’ai des goûts de littérature, de dessin qui ont toujours rempli les années pendant lesquelles je n’avais pas
d’occupation commandée”.
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vidas assim como os objetos que arrematariam em antiquários e em leilões e os que comprariam
em viagem à Suíça e à Bélgica no primeiro semestre daquele ano. As aquarelas e croquis que
produziram à época saem do primeiro plano de suas prioridades artísticas e dão lugar a um
trabalho de escrita de fôlego, evocado por Edmond em carta a Louis Passy (GONCOURT,
2004, t. 1, p. 50). As impressões sobre as paisagens e os tipos observados ao longo desse
período, sem ocupações formais, representam um triunfo da pena sobre o pincel, ou ainda um
material que será trabalhado para a composição de obras futuras, que os introduzirão no campo
literário francês.
Primeiros escritos
Edmond e Jules, a partir de então, trabalham na composição de dois vaudevilles, Sans Titre e
Abou-Hassan; em uma peça cujo argumento havia sido tirado do que veio a ser seu primeiro
romance; no drama em cinco atos, em verso, Etienne Marcel, iniciado por Jules quando ainda
era estudante; e no estudo histórico, sem título, sobre castelos de arquitetura feudal, escrito por
Edmond a fim de ser aceito na Société d’Histoire de France. Recusados pelas edições dessa
sociedade científica e pelos teatros aos quais apresentaram as peças, esses textos jamais foram
publicados, tendo sido descartados pelos escritores. Se, por um lado, com a morte da mãe,
haviam alcançado a liberdade que ambicionavam para viver uma vida de artista, por outro lado,
para levá-la adiante seria preciso lidar com figuras que detinham poder sobre os meios de
circulação e recepção literária.
Entre 1848 e 1850, o afastamento dos irmãos Goncourt da capital francesa revela não
somente uma tentativa de fuga dos conflitos políticos e de uma crise sanitária, mas também um
distanciamento dos valores ligados à arte social e à arte burguesa. Edmond e Jules se dedicaram,
então, à pintura enquanto amadores, e esta foi gradualmente travando uma disputa com a escrita,
na qual aplicaram maiores esforços. Os primeiros investimentos em uma vida de artista, nos
anos da Segunda República, contudo, não atenderam às suas expectativas, pois desejavam ser
recebidos e reconhecidos nos salões, valendo-se de suas origens aristocráticas e formações
acadêmicas. A série de transformações políticas pelas quais a França e parte da Europa
passavam, entretanto, mudava o funcionamento da sociedade aristocrática e burguesa à qual
estavam ligados. O mundo das letras conquistava paulatinamente uma autonomia relativa, na
qual a circulação de uma obra no seu campo de produção e sua difusão internacional estavam
subordinadas tanto ao reconhecimento dos pares e à qualidade do público captado, quanto a
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sanções externas do mercado, pela vendagem em livro, reprodução em periódicos ou
adaptações para o teatro e traduções; e política, por processos e pela censura (BOURDIEU,
1996 [1992], p. 65-66). Teriam os irmãos Goncourt renunciado aos seus ideais artísticos e
cedido às imposições do campo literário para se firmarem enquanto homens de letras? É preciso
nuançar: ao longo de sua trajetória, é verdade que eles cederam às imposições de mercado, às
quais o campo literário estava relativamente subordinado (BOURDIEU, 1996 [1992], p. 7879). Entretanto, isso não os impediu de tentarem criar uma imagem de autores defensores da
arte pela arte, da arte aristocrática e de uma renovação da literatura ligada à prosa, seja pela
escolha de gêneros literários nos quais dispensaram maiores esforços ou pelo tratamento de
certos temas abordados em suas obras.
Ao mesmo tempo que, nos curtos anos da Segunda República, a população francesa
passa por uma progressiva politização, a escravidão nas colônias francesas é abolida e o
sufrágio universal masculino é instituído, Edmond e Jules de Goncourt mostram-se cada vez
mais apolíticos e dedicados à escrita. Os cadernos nos quais vinham tomando notas nos últimos
anos da década de 1840 transformam-se, ao final de 1851, no romance En 18.. (com dois pontos
representando a dezena da data incompleta), protagonizado pelo jovem parisiense Charles, que
se apaixona por duas mulheres que o levam à ruína. O primeiro romance de suas carreiras é
composto por uma amálgama de diálogos, retratos e ekphrasis, que compõem uma narrativa
pouco linear. O romance incorpora ainda diversas referências a episódios observados nos
últimos anos da década de 1840, assim como alusões ficcionalizadas a familiares e amigos.
Pouco antes de seu lançamento, na primeira semana de dezembro de 18515, a imprensa
já trazia o prelúdio de mais um fracasso para ser somado às tentativas anteriores dos dois irmãos
de se lançarem como homens de letras: o golpe de Estado de Louis-Napoléon Bonaparte, então
presidente da República francesa, eleito pelo sufrágio universal masculino no dia
10 de dezembro de 1848, que o torna o imperador Napoléon III, no dia 2 de dezembro de 1851.
As passagens do diário dos irmãos Goncourt referentes à época da publicação do romance
manifestam um descontentamento tanto com a situação política, que colocava qualquer questão
artística e cultural em segundo plano, quanto com as atitudes de Jean-Pierre Gerdès, responsável
pela impressão e divulgação do livro, que havia sido financiado pelos próprios autores:
5
Em página não numerada, entre a capa e o olho da primeira edição do romance, há a informação de que o
manuscrito foi entregue para a impressão no dia 5 de janeiro de 1851 e, com exceção da capa, a impressão da
totalidade do volume se deu no dia 1º de dezembro daquele ano (GONCOURT, 1851). Já no prefácio da reedição
do romance, feita em 1884, Edmond acrescenta a informação de que o lançamento do volume teria sido “dans la
première huitaine de décembre” (GONCOURT, 1884, p. IV).
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O cartaz não estava nos muros. E a razão disso era esta: Gerdès, que imprimia,
ao mesmo tempo, que ironia!, a Revue des Deux Mondes e En 18.., Gerdès,
cuja editora tinha sido ocupada pela tropa, assombrado pela ideia de que
poderiam entender certas frases de um capítulo político do livro como alusões
ao evento do dia, e no fundo cheio de desconfiança desse título bizarro,
incompreensível, cabalístico, e no qual ele temia que vissem uma menção
dissimulada do 18 Brumário, Gerdès, a quem faltava heroísmo, tinha por conta
própria jogado o pacote de cartazes no fogo (GONCOURT, 1884, p. III-IV)6.
O temor de Gerdès, não sem razão, devia-se ao fato de que o título do romance poderia
ser entendido como um ato de insurgência antibonapartista, o que o colocaria sob o exame
oficial da censura e em uma posição contraditória àquela que a imagem do impressor deixava
transparecer no campo literário. Anos antes, ao final da Monarquia de Julho, Gerdès fora
responsável pela impressão de parte do que poderia ser chamado de material de campanha da
candidatura de Louis-Napoléon Bonaparte à presidência da Segunda República francesa
(PIMIENTA, 1910, p. 42-60).
O romance dos irmãos Goncourt, entretanto, não levantava questões que poderiam
sofrer represálias de instituições censoras. Edmond e Jules não declaravam abertamente seu
posicionamento político que, ao contrário do que se poderia supor, não era legitimista ou
orleanista, tampouco bonapartista. Para Edmond e Jules, o discurso conservador parecia
retrógrado e repressivo; o discurso socialista ia de encontro ao modelo aristocrático que
estimavam; e o discurso liberal simbolizava o crescimento de uma parcela utilitarista da
sociedade, detentora de um poder financeiro que se concretizaria em poder político
(CABANÈS, 2015; D’ASCENZO, 2015). Esses discursos representavam para eles coerções à
arte ou mesmo a exclusão do homem de letras da sociedade. As ameaças poderiam vir da
censura ou da subordinação do artista a uma parcela da sociedade detentora de certo poder, que
não saberia apreciar produções que julgavam de qualidade superior.
“L’affiche manquait aux murs. Et la raison en était ceci: Gerdès, qui se trouvait à la fois, ô ironie! l’imprimeur
de La Revue des Deux Mondes et d’En 18.., Gerdès, dont l’imprimerie avait été occupée par la troupe, hanté par
l’idée qu’on pouvait prendre certaines phrases d’un chapitre politique du livre pour des allusions à l’événement
du jour, et au fond tout plein de méfiance pour ce titre bizarre, incompréhensible, cabalistique, et dans lequel il
craignait qu’on ne vît un rappel dissimulé du 18 brumaire, Gerdès qui manquait d’héroïsme, avait de son propre
mouvement jeté le paquet d’affiches au feu”. Apesar de o prefácio de En 18.. ter sido escrito por Edmond em 1884,
ele concentra e desenvolve as informações contidas na passagem do diário referente ao dia 2 de dezembro de 1851.
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O temor de Gerdès quanto a medidas disciplinares, somado ao fato de os irmãos
Goncourt serem escritores estreantes foram a causa de uma inexpressiva obra de estreia, ainda
que esta tenha contado com a resenha de um nome ilustre no meio literário. Trata-se da crítica
de autoria de Jules Janin, publicada no dia 15 de dezembro de 1851, na seção folhetim do
Journal des Débats. Esta, que por dividir o espaço do rodapé do jornal com as apreciações do
“príncipe da crítica” (BARA, 2011, p. 1139-1142) aos espetáculos da semana, contou apenas
com um parágrafo de extensão. Isso foi o que bastou para Janin, com o tom irônico pelo qual
ficou conhecido, louvar determinados aspectos do romance de estreia dos irmãos Goncourt e
reprovar de maneira mordaz tantos outros. De um lado, o crítico reconhece um estilo particular
nos jovens estreantes, até mesmo uma certa ousadia, por outro lado, pondera que o próprio
estilo, com sua busca por palavras e construções sintáticas raras, poderia tanto soar artificial
quanto tornar a obra incompreensível. A crítica de Janin, havia muitos anos figura de proa da
crítica literária e teatral na imprensa francesa, não foi suficiente para chamar a atenção para o
romance de estreia dos irmãos Goncourt.
Quando Edmond e Jules vão à livraria de Henri-François Lemercier Dumineray,
encarregado da edição do primeiro e único milheiro do livro, eles têm certeza do fracasso do
romance: “dezembro [de 1851] – Ao final de tudo, quando fizemos nossas contas com
Dumineray, o único editor de Paris que ousou vender em consignação o nosso pobre livro sob
o estado de sítio, tínhamos vendido uns sessenta exemplares” (GONCOURT, 1989, t. 1, p. 30)7.
Os volumes que empoeiravam nas prateleiras foram recolhidos e armazenados no sótão da casa
em que os irmãos Goncourt residiam à época, tendo sido queimados algum tempo depois por
seus autores, que passaram a considerar o romance de estreia fraco, incompleto e infantil
(GONCOURT, 1884, p. VII). A coragem de Dumineray8, reconhecida pelos irmãos Goncourt,
aponta para uma possível explicação para a publicação do primeiro romance de suas carreiras
ter ficado a cargo do referido editor e ter sido impresso nas máquinas do bonapartista Gerdès:
pelo fato de Edmond e Jules serem escritores estreantes, profissionais do livro de maior
expressividade no campo literário não quiseram comprometer sua imagem com a publicação
de En 18.., ainda que este tenha sido financiado por seus autores, forçando estes últimos a
“Décembre [1851] – Au bout de tout, quand nous fîmes nos comptes avec Dumineray, le seul éditeur de Paris
qui avait osé prendre en dépôt notre pauvre livre sous l’état de siège, nous avions vendu une soixantaine
d’exemplaires”.
8
A ousadia de Dumineray, cuja atuação no meio editorial ainda não foi objeto de um estudo sistemático, rendeulhe, em 1861, a acusação de publicar uma obra que incitava o ódio e o desprezo do governo, revelando um
posicionamento político antagônico ao do impressor Gerdès. Ver: FRANCE. Tribunal Correctionnel de la Seine
(6e Chambre). Lettre sur l’Histoire de France. Procès de Dumineray et Beau, éditeur et imprimeur de la brochure
de S. A. R. le duc d’Aumale. Paris, le 4 mai 1861. Bruxelles: Librairie Universelle de J. Rozez, 1861.
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submetê-lo àqueles que o aceitassem. As tentativas de terem suas obras publicadas por editores
de maior prestígio no meio literário ficam ainda mais claras quando eles publicam seus
romances seguintes.
Antes, entretanto, por conta do fracasso do primeiro romance, os irmãos Goncourt
passam a investir em um gênero que os tornará conhecidos até os dias de hoje, como
responsáveis pela reconstituição de uma micro-história social avant la lettre – sendo
relacionados a lugares-comuns, como “infrequentáveis” (KOPP, 2020; MENARD, 2020) dada
a ironia e o tom mordaz com os quais tratavam certos temas. Isso se deve ao fato de o fracasso
da publicação de En 18.., decorrente de questões políticas, ter sido um dos estopins para o início
da redação de um diário em cadernos nos quais tomavam nota sobre os mais diversos temas,
sobretudo sobre a vida literária, diário mais tarde publicado sob o título de Journal des
Goncourt.
Sob as luzes da censura
Enquanto o Journal é escrito na clausura do gabinete de trabalho, seguindo o modelo de homens
de letras que se impunha a partir da década de 1850, Edmond e Jules se valerão da atenção que
obtiveram de Jules Janin e apostarão novamente no gênero dramático. Tendo conseguindo com
o crítico uma indicação para que sua quarta peça fosse montada na Comédie-Française, os
irmãos Goncourt pareciam acreditar que o teatro seria ainda a porta de entrada para o
reconhecimento no mundo das letras. Se, por um lado, o romance de estreia não evocava
questões políticas, por outro lado, a peça levava aos palcos um tema delicado à época. La Nuit
de la Saint-Sylvestre: Tête à tête, peça em um ato, tem como protagonistas um casal que, horas
antes de saberem da notícia do golpe de Louis-Napoléon Bonaparte, recapitula os eventos
ocorridos do ano de 1851. Como era de se esperar, a peça foi censurada.
No entanto, a peça não foi descartada. Algum tempo depois, no dia 19 de janeiro
de 1852, ela foi publicada na revista fundada pelo primo por parte de mãe Pierre-Charles de
Villedeuil intitulada L’Éclair, Revue hebdomadaire de la Littérature, des Théâtres et des Arts,
cuja redação contava com a colaboração dos irmãos Goncourt desde seu lançamento, no dia
10 de janeiro de 1852. O perfil da revista, traçado no editorial do primeiro número, se apresenta
como puramente literário, jovem e defensor da arte pela arte – posicionamento que
aparentemente estaria afinado com aquele que Edmond e Jules vinham sustentando desde que
haviam decidido seguir uma vida de artista (L’Éclair, 10 jan. 1852). A carta do dia
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11 de janeiro de 1852, endereçada a Léonidas Labille, revela, contudo, uma postura menos
receptiva do que se poderia imaginar à nova empreitada: “[...] não é uma revista, repito,
segundo o nosso coração. O que você nela considerará ridículo, nós o consideramos antes”
(GONCOURT, 2004, p. 149-150)9. Essa não é uma colocação isolada e direcionada somente à
revista com a qual contribuíam: na passagem do dia 1º de janeiro de 1862 do Journal, os irmãos
Goncourt afirmam que “o jornalismo é um talento que todo homem de talento tem; e o jornalista
é um homem que tem somente o talento do jornalismo” (GONCOURT, 1989, t. 1, p. 761)10.
Isso não os impediu de desfrutar de um meio de publicação menos oneroso do que o livro, ao
reproduzirem nas páginas de L’Éclair não somente o texto de La Nuit de la Saint-Sylvestre:
Tête à tête, mas também crônicas teatrais, críticas de arte, poesias, pastiches, fisiologias e breves
biografias de atores e atrizes.
A publicação em L’Éclair dos textos nos quais vinham trabalhando havia algum tempo
não significou maior reconhecimento pelo público leitor e validação da crítica. Pelo contrário.
Pouco tempo depois do lançamento do hebdomadário, os irmãos Goncourt já assinalavam no
Journal a pouca popularidade da folha: “Fim de janeiro de 1852 – [...] Passamos, no escritório,
duas ou três horas por semana, esperando, toda vez que se ouve um passo nessa rua de pouco
movimento, esperando a assinatura, o público, os colaboradores. Nada chega” (GONCOURT,
1989, t. 1, p. 34)11. Para além do fato de a colaboração com L’Éclair tê-los obrigado a frequentar
um escritório, modelo de ocupação até então rejeitado, a participação dos irmãos Goncourt na
redação da revista pode apontar para a preocupação com duas questões que se sobrepõem:
a primeira é a busca por uma popularidade maior, que se revela por meio da espera de novos
assinantes para a revista, o que se traduziria em maior visibilidade no campo literário; a segunda
é a qualidade do público almejado: um público composto sobretudo por jovens engajados nas
letras e nas artes e que tivesse ideais artísticos alinhados com o dos “grandes mestres do
realismo” e “pais [dessa] escola” – Victor Hugo, Alexandre Dumas pai, Alfred de Musset e
George Sand –, como revela o editorial do primeiro número da revista (L’Éclair, 10 jan. 1852,
p. 1). Em suma, um público cujo perfil se assemelhasse ao dos colaboradores de L’Éclair. Ou
“[...] ce n’est pas une revue encore une fois selon notre cœur. Ce que tu y trouveras de ridicule, nous le trouvons
avant toi”.
10
“Le journalisme est un talent que tout homme de talent a le journaliste est un homme qui n’a que le talent du
journalisme”.
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“Fin de janvier 1852 – […] Nous passons au bureau, deux ou trois heures par semaine, à attendre, chaque fois
que s’entend un pas dans cette rue où l’on passe peu, à attendre l’abonnement, le public, les collaborateurs. Rien
ne vient”.
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ainda, um reconhecimento dos pares, sendo estes amadores, isto é, diletantes e inexpertos nas
letras e das artes, que tivessem o objetivo, ainda que não pronunciado, de serem reconhecidos.
Assim como a revista que fundara, Villedeuil era um estreante nas letras e gozava de
um reconhecimento no campo literário semelhante ao seu empreendimento, que era bastante
reduzido, para não dizer ínfimo, abrangendo apenas seu círculo de amizades. Ainda que
L’Éclair fosse anunciada como uma revista de luxo considerável, impressa em um belo papel
acetinado e vendida por um preço convidativo, sua pouca popularidade obrigou Villedeuil a se
desfazer de alguns documentos raros de seu acervo particular, a fim de assegurar sua circulação.
O prejuízo constante e crescente não o impediu, no dia 20 de outubro de 1852, de duplicar seus
investimentos e lançar um jornal quotidiano, cujo nome variava em função do dia da semana:
Paris-lundi às segundas-feiras, Paris-mardi às terças-feiras e assim por diante. O novo
empreendimento de Villedeuil contava com as contribuições dos irmãos Goncourt, Alphonse
Karr, Xavier de Montépin e Théodore de Banville; e com as ilustrações de Félix Nadar e
Paul Gavarni. Em janeiro do ano seguinte, L’Éclair e Paris ainda eram sinônimo de despesa
para Villedeuil, que pagava do próprio bolso seus colaboradores e os custos com impressão e
distribuição. A reputação dos periódicos não havia melhorado e ainda não proporcionava aos
irmãos Goncourt a visibilidade que almejavam: “se ele [Paris] quase não gerava lucro, gerava
um barulho suficientemente grande” (GONCOURT, 1989, t. 1, p. 62-63)12. Trata-se, nesse
caso, do habitual prejuízo do quotidiano e de uma atenção que lhe fora prestada por razões que
se sobrepunham à qualidade dos textos que nele eram veiculados.
Ao longo de 1852, enquanto Louis-Napoléon firmava as bases da nova constituição
francesa no autoritarismo, o campo literário sofria as consequências de uma tentativa de
reestabelecimento de uma ordem moral e política. Por ordem dos decretos dos dias 17 e 22 de
fevereiro daquele ano, textos literários ou não, publicados em jornais e revistas, deveriam ser
submetidos a exames oficiais, que poderiam render advertências aos periódicos que os
publicassem, sob a alegação de terem cometido delitos ou crimes de imprensa, o que provocaria
sua suspensão ou até mesmo sua supressão (VAILLANT, 2015, p. 97-106). No dia 15 de
dezembro de 1852, a reprodução de cinco versos licenciosos do poeta renascentista Jacques
Tahureau no artigo Voyage du nº 43 de la rue Saint-Georges au nº 1 de la rue Laffite – cujo
título evoca o caminho feito da casa dos irmãos Goncourt à época até a redação da revista – foi
o que bastou para levar Edmond e Jules a julgamento junto com Alphonse Karr pelo artigo
12
“Janvier 1853 – […] s’il ne faisait guère d’argent, il faisait un assez grand bruit”.
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Guêpes – que retoma o título da folha satírica da qual foi o único redator –, sob o pretexto de
atentado à moral pública.
A acusação de terem cometido um delito de imprensa será vista por Alidor Delzant,
na biografia Les Goncourt – escrita sob a supervisão do próprio Edmond –, como um pretexto
para o então chefe de polícia Pierre-Célestin Latour-Dumoulin levar Villedeuil a julgamento
pelo posicionamento do Paris. O barulho suficientemente grande desse caso, ao qual os irmãos
Goncourt se referem em janeiro de 1853 no Journal, foi provavelmente aquele que ecoou na
imprensa. Já no dia 12 de fevereiro daquele ano, o jornal La Presse informava aos seus leitores
que os responsáveis pela redação do Paris assim como os escritores acusados haviam sido
chamados a comparecer em tribunal, “[...] sob a acusação de ultraje à moral pública e aos bons
costumes”, que havia dado o prazo de uma semana para retomar o julgamento, depois de ter
ouvido a acusação e a defesa (La Presse, 12 fev. 1853, p. 2). Durante o processo, o cargo de
procurador geral de Dumoulin passou a ser ocupado por Paul-Henri-Ernest de Royer, parente
da esposa de Janin, que logo se mostrou ser uma relação útil para os irmãos Goncourt, não
somente no campo literário, mas também no campo político: Janin interveio em favor dos
acusados, conseguindo que eles fossem liberados de penalidades severas. O veredito vem a
público poucos dias após a abertura do caso, no 21 de fevereiro de 1853: “[...] Dispensar
Alphonse Karr, Edmond e Jules de Goncourt [...] da queixa, sem custas” (La Presse,
21 fev. 1853, p. 3)13.
A escolha dos editores
O desejo dos irmãos Goncourt de serem lidos e de terem seus nomes conhecidos, após a breve
atuação na imprensa, transforma-se em um senso de preservação tanto de suas imagens quanto
de seus textos. Decidem, então, não passar pelo crivo da censura com novos textos, organizando
e reunindo em livro aqueles já publicados nos periódicos com os quais colaboraram. Esses
textos ora foram compilados ora foram aumentados, em ambos os casos ganhando certa unidade
temática ou genérica, quando mudaram de suporte. Os textos de crítica de arte serão publicados
com o título de Salon de 1852 (1852) pela editora Michel Lévy; as fisiologias Les Lèpres
modernes, serializada em L’Éclair e no Paris, ganharão o título de La Lorette (1853) quando
reunidas em livro publicado pela editora de Édouard Dentu. Por esta editora, serão ainda
publicadas a reunião das críticas de arte de La Peinture à l’Exposition de 1855 (1855) e das
13
“Renvoie[r] Alphonse Karr, Edmond et Jules de Goncourt […] des fins de la plainte, sans dépens”.
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fisiologias que compõem Une Voiture de masques (1856), assim como a novela
Les Actrices (1856). Nessa nova disposição, a condição principal da circulação dos textos deixa
de ser a submissão ao exame oficial do Império, tendo em vista que já haviam passado pelo
crivo da censura, e a nova figura de autoridade que se impõe é a do editor. Essa relação de
poder, em que o editor em princípio decidiria o que publicar e quanto pagar pelo direito à obra,
no caso dos irmãos Goncourt, manifesta-se sob a forma de uma mera prestação de serviço: para
Edmond e Jules, Michel Lévy e Édouard Dentu exerceriam uma função técnica, que não se
confunde com a do escritor.
Michel Lévy será descrito na passagem do Journal do dia 10 de maio de 1856 como
um dos Augustos de todos os mendigos do meio editorial, ao lado de Charles Jaccottet
(GONCOURT, 1989, t. 1, p. 169). Quatro anos antes, quando publicou o Salon de 1852, este
editor já tinha seus negócios em plena ascensão e, ao longo da década de 1850, sua editora foi
responsável pela publicação de títulos de sucesso, como Madame Bovary (1857), de Gustave
Flaubert, e pela reimpressão das obras completas de nomes de grande expressividade no campo
literário, como Alexandre Dumas pai, com quem firmou contrato em 1859. Quanto a Dentu, o
Journal revela que a relação dos irmãos Goncourt com o editor não era das mais amistosas.
A primeira menção ao editor legitimista e monarquista fervoroso, em 18 de agosto de 1855, é
um comentário irônico sobre o tipo de edição a que Dentu se dedicava, em que sua figura é
comparada à de um cão Basset (GONCOURT, 1989, t. 1, p. 147). Certos gestos do editor, como
a leitura dos manuscritos de Une Voiture de masques à sua mãe, eram compreendidos pelos
Goncourt como uma maneira de diminuir a importância de sua obra (GONCOURT, 1989, t. 1,
p. 162). Ou ainda, o fato de Dentu tentar compreender as falas da personagem Armande,
entrecortadas pela de outros personagens, na novela Les Actrices, faz com que Edmond e Jules
o descrevam como alguém que aspira a compreender o que edita (GONCOURT, 1989, t. 1,
p. 164). Isso não significa, contudo, que Dentu fosse apenas um funcionário do meio editorial
a serviço de quem o contratasse. Apesar do que sugerem Edmond e Jules, Dentu foi um
apreciador de arte, que mantinha coleções de documentos sobre a história da França, de
desenhos, de quadros, de móveis e de objetos raros, ou seja, um amador como os irmãos
Goncourt (MOLLIER, 2005, p. 70).
A História, que fazia parte dos interesses de Jules e, sobretudo, de Edmond, foi a área
das belas letras na qual os irmãos Goncourt dispensaram seus esforços criativos, enquanto as
compilações de seus textos eram lançadas pela editora de Dentu. A leitura de brochuras, jornais
antigos, manuscritos, cartas, dentre outros documentos – prática que se tornará comum em
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obras futuras – resultará na escrita de ensaios que serão publicados esporadicamente, entre
1854 e 1857, na revista L’Artiste. Nesses textos, que também podem ser lidos como estudos
culturais avant la lettre, prevalecem os detalhes, as anedotas e as listas. A escrita fragmentada
e caleidoscópica, baseada na observação de tipos e de lugares parisienses, que já vinha sendo
empreendida em obras precedentes, manteve-se nesses textos. Quando reunidos em livro pela
editora de Dentu, os estudos monográficos publicados na revista L’Artiste comporão
La Révolution dans les mœurs (1854); e os estudos históricos constituirão a Histoire de la
société française pendant la Révolution (1854) e Histoire de la société française pendant le
Directoire (1855).
Mesmo já tendo sido veiculados na imprensa, esses textos, quando lançados em
volume, chamam, em certa medida, a atenção da crítica. É o caso, por exemplo, de Histoire de
la société française pendant la Révolution. Em extensa crítica publicada no dia 4 de junho
de 1854, no jornal Le Figaro, Benoît Jouvin descreve o livro como sendo uma obra baseada em
documentos históricos, cujo mérito é o de lançar um ponto de vista anedótico sobre a história
privada, que a história oficial esconde. Em crítica a Une Voiture de masques, publicada no
dia 30 de dezembro de 1855 do mesmo jornal, Louis Goudall retoma o “meio sucesso” dos
estudos históricos a fim de apresentar o que chamou de fragmentos de histórias neogrotescas,
compostas por frases que beiram a puerilidade, a excentricidade e o absurdo. Essas duas críticas,
mesmo não dando conta de todos os pontos de vista sobre as obras dos irmãos Goncourt
publicadas até aquele momento, identificam e reúnem as características de uma escrita baseada
em documentos, que se debruça sobre o detalhe dos fatos, dentro de um registro incomum à
época.
Em 1856, quando os Goncourt apresentam os manuscritos do estudo histórico
intitulado Portraits intimes du XVIIIe siècle, cujo título inicial fora Portraits nouveaux, Dentu
lhes faz a oferta de comprar os direitos da obra por 150 francos (GONCOURT, 1989, t. 1, p. 223
e 226). Ainda que a oferta inicial tenha ficado bastante aquém das expectativas, ela representa
um novo ponto de vista do editor sobre os autores. Trata-se de fazê-los “passar da edição de
autor, na qual ele [o editor] não se comprometia com custo algum, à edição remunerada por
preço fixo”, adquirindo a propriedade literária e se encarregando dos custos de produção e de
divulgação (MOLLIER, 2005, p. 70)14. O financiamento da totalidade ou de parte das
publicações anteriores aos Portraits intimes du XVIIIe siècle tendo sido pago pelos próprios
14
“[...] passer de l’édition à compte d’auteur dans laquelle il n’engageait pas le moindre frais à l’édition rémunérée
au forfait”.
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autores pode ser explicado pelo fato de Dentu ter reconhecido que a posição que os irmãos
Goncourt ocupavam no campo literário naquele momento, ou potencialmente poderiam vir a
ocupar, não lhe seria rentável, sobretudo porque, como aponta Jean-Yves Mollier (2010, p. 411438), sua editora estava com dívidas decorrentes de delitos e de crimes de imprensa. A nova
postura do editor se deu provavelmente em consequência do reconhecimento do número
crescente dos leitores dos irmãos Goncourt, que pode ser mensurado pelas reedições de certos
títulos. Histoire de la société française pendant la Révolution e Histoire de la société française
pendant le Directoire tiveram duas reedições cada. La Lorette, por sua vez, teve quatro
reedições pela mesma editora, feitas pouco menos de um ano após sua publicação, que contaram
com vinhetas de Gavarni. Esses estudos históricos, frutos não somente de um investimento em
pesquisa, mas também de investimentos financeiros, ainda não davam o retorno esperado. Esse
é o caso dos Portraits intimes du XVIIIe siècle, cuja oferta inicial de 150 francos fora dobrada
pelo editor: “25 de dezembro [de 1856] – [...] Vendi por 300 francos a Dentu os nossos
Portraits intimes du XVIIIe siècle (dois volumes), para a fabricação dos quais compramos dois
mil francos de cartas manuscritas” (GONCOURT, 1989, t. 1, p. 159)15.
A edição remunerada, que teve início em meados da década de 1850 na editora de
Dentu, parece ter se mantido em grande parte das publicações seguintes, e em outras editoras.
Esse é o caso da monografia intitulada Sophie Arnould (1857), sobre a cantora de ópera
epônima do século XVIII, pela editora de Paul-Auguste Poulet-Malassis – que já havia
publicado dois anos antes Les Fleurs du mal (1855), de Baudelaire, e que entre os anos de
1855 e 1860 editou as obras de Théophile Gautier e Théodore de Banville. Em carta do dia
10 de janeiro de 1857, o editor registra o processo de compra dos direitos do título em questão
e da leitura de provas (GONCOURT, 1989, t. 1, p. 369-370). Mais tarde, em carta do dia
12 de fevereiro daquele ano, quando o editor envia as últimas provas de Sophie Arnould, este
declara ter hesitado em um primeiro momento, mas reconhece certo valor neste título e propõe
aos irmãos Goncourt um novo contrato, no qual dobraria a tiragem para 1.000 exemplares, bem
como o valor da compra dos direitos de publicação. As leituras de prova seguiram, atendo-se
às correções de ortografia de nomes próprios e de pontuação, prezando a legibilidade das
reproduções das cartas da cantora. Sophie Arnould, único título escrito pelos irmãos Goncourt
publicado pela editora de Poulet-Malassis, parece marcar um período de experimentação dos
escritores no campo literário. Por um lado, eles veem na editora de Poulet-Malassis uma
15
“25 décembre [1856] – [...] Vendu 300 francs à Dentu nos Portraits intimes du XVIIIe siècle (deux volumes),
pour la fabrication desquels nous avons acheté deux ou trois mille francs de lettres autographes”.
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empreitada em um catálogo de vanguarda, ainda que estivesse voltado sobretudo para a poesia,
diferindo do perfil de seus primeiros editores. Por outro lado, o fato de Poulet-Malassis tê-los
incluído em seu catálogo, esperando que um estudo monográfico sobre uma cantora de ópera
vendesse 1.000 cópias, confere certa legitimidade aos irmãos Goncourt enquanto escritores, o
que lhes daria segurança para fazerem novas apostas no campo literário.
Assim, ainda que, em 1859, Sophie Arnould estivesse em sua segunda edição pela
mesma editora, Edmond e Jules de Goncourt passam a confiar suas obras seguintes à Editora
Didot. Fruto de uma longa linhagem de editores-impressores, a editora Firmin-Didot frères,
dirigida desde 1827 por Hyacinthe Firmin-Didot e por seu irmão Ambroise Firmin-Didot, a
partir de 1855 é assumida por Alfred Firmin-Didot, filho deste último, e passa a responder pela
razão social Firmin-Didot frères, fils et compagnie. Esta editora, que desde 1823 publicava o
Dictionnaire de l’Académie Française, ao final da década de 1850 tinha um catálogo composto
sobretudo por livros de Direito e de História. O prestígio de Ambroise Firmin Didot junto à
Academia Francesa de Letras não impediu Edmond e Jules de descrevê-lo, no dia
3 de março de 1858, como um homem velho, “dessas velhices que escondem um imbecil
debaixo de cabelos brancos” (GONCOURT, 1989, t. 1, p. 332)16. E acrescentam, referindo-se
provavelmente à negociação da publicação do primeiro fascículo de L’Art du XVIIIe
siècle (1859): “Encantador, nos fala de nossa reputação, conclui o negócio quase sem tocar no
assunto e termina nos mostrando seus incunábulos. Teremos, finalmente, um editor sério”
(GONCOURT, 1989, t. 1, p. 332)17. Somam-se ao estudo monográfico sobre arte do século
XVIII outros estudos de mesmo gênero, ligados à história: Histoire de Marie-Antoinette (1858),
Les Maîtresses de Louis XV (1860) e La Femme au XVIIIe siècle (1862).
A industrialização da literatura, a profissionalização do homem de letras e a
democratização da leitura foram, até certo momento, aspectos do campo literário incompatíveis
com os ideais artísticos dos irmãos Goncourt. A imagem de escritores estritamente ligados à
arte pela arte, entretanto, modificou-se paulatinamente ao longo de suas carreiras. Se, por um
lado, o financiamento das publicações em livro não era uma questão para eles, por outro lado o
capital econômico de que dispunham não lhes assegurava a visibilidade necessária para que
ocupassem uma posição menos à margem do campo literário. Assim, enquanto nos primeiros
anos da década de 1850 a “escolha” dos editores significa, para a carreira dos irmãos Goncourt,
“[…] de ces vieillesses qui cachent un imbécile sous des cheveux blancs”.
“Charmant, nous parle de notre réputation, conclut l’affaire presque sans en parler et termine en nous montrant
ses incunables. Enfin, nous allons avoir un éditeur sérieux”.
16
17
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a ação de optar por quem publicará suas obras com financiamento próprio, ao final daquela
década, essa “escolha” passa a ter a ver com o resultado da seleção dos editores, que os fazem
passar por um processo de avaliação de manuscritos e os inscrevem em projetos editoriais.
O romance como estandarte
A partir da década de 1860, os irmãos Goncourt passam a fazer maiores concessões aos meios
de publicação, provavelmente a fim de obterem maior projeção no campo literário. Nesse
sentido, pouco a pouco vão deixando de publicar em revistas literárias, voltadas para um
público mais elitizado, e começam a investir em suportes de apelo mais popular, o jornal e o
livro de baixo custo, e no gênero no qual firmarão suas carreiras e que defenderão enquanto
estandarte de modernidade na literatura, o romance.
Esse é o caso da adaptação da peça de teatro intitulada Les Hommes de lettres, escrita
entre 1857 e 1859 e dispensada pelos teatros aos quais os irmãos Goncourt a propuseram, para
o romance Charles Demailly, cujo atraso da publicação no jornal La Presse lhes causou
preocupação, como expresso na passagem do Journal de março de 1859 (GONCOURT, 1989,
t. 1, p. 442). O romance, previsto para sair no final do mês de março de 1859, jamais foi
publicado no jornal, pois, mesmo os amigos jornalistas e colaboradores do jornal Aurélien
Scholl e Adolphe Gaiffe tendo intercedido em favor dos Goncourt, o novo dono da empresa,
Félix Solar, impediu sua reprodução no periódico. A recusa de publicá-lo em folhetim pode ser
em parte compreendida pelo fato de tanto a peça quanto o romance serem obras à clé, que
partem de fatos conhecidos da vida conjugal do jornalista Mario Uchard e da atriz Madeleine
Brohan. Os irmãos Goncourt, assim, expunham o meio jornalístico, representando homens de
letras que eram facilmente identificados nas redações dos jornais parisienses. Não havendo
interesse em encenar essa obra ou em publicá-la no rodapé do jornal para o qual estava prevista,
os irmãos Goncourt financiam a publicação do romance em livro, em 1860, pela editora de
Didot, sob o título de Les Hommes de lettres. Mais do que representar personalidades reais na
ficção, o romance dos irmãos Goncourt revela uma sensibilidade ao contexto social dos últimos
anos da década de 1860, ao representar a coexistência da profissionalização do homem de letras
e da concepção da escrita por vocação, ligada à arte pela arte.
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A publicação do romance no jornal La Presse significaria, para a carreira dos irmãos
Goncourt, participar da “primeira revolução midiática” (THÉRENTY, 2007, p. 353)18. Tendo
sido por muitos anos o espaço em que se revelavam e se ditavam as tendências, a seção folhetim
dos jornais desempenhava um papel comparável ao do salão e da academia, que garantiriam
alguma projeção e certo reconhecimento ao último romance dos irmãos Goncourt. Não
conseguindo desfrutar de um meio de publicação menos oneroso como o jornal e ao deixarem
de financiar parte de suas próprias obras, os irmãos Goncourt estabeleceram uma relação de
maior dependência em relação à figura do editor e viram de perto as coerções do meio editorial
agirem em suas obras, reforçando a imagem negativa do profissional do livro que permeava
seus imaginários:
Terça-feira, 13 de abril [de 1858] – Ontem à noite recebi, com as provas de
Marie Antoinette, uma breve mensagem do chamado Ambroise Firmin Didot,
o qual me diz que, enquanto impressor do Instituto e tendo estado em relação
com literatos muito distintos, ele acredita que deve me indicar algumas
correções, correções estas aparecendo em seis folhas de um total de 119! Isso
gerou um belo sentimento de raiva em casa, quando essa coisa insólita nos
chegou, o impressor se fazendo de editor, o editor se fazendo de autor! A cada
linha, a cada palavra gerando uma imagem, a cada harmonia imitativa da frase,
a cada um dos esforços e das construções de frase premeditadas, que são
voluntárias e nossa assinatura, o infeliz faz um risco de ostracismo...
(GONCOURT, 1989, t. 1, p. 341-342)19.
As sugestões de Didot, lidas como intervenções, fizeram os irmãos Goncourt continuar
a busca por outro editor para suas obras futuras. É possível notar que, a partir da década de
1860, não se tratava mais somente da busca por um editor que os compreendesse de pronto ou
que não tentasse alcançar certos sentidos de suas obras e apenas os publicasse sem questioná18
Retomo aqui a afirmação de Marie-Ève Thérenty, de que o jornal La Presse, fundado por Émile de Girardin, e
o jornal Le Siècle, por Louis Desnoyers, expandiram significativamente, a partir de 1836, as fronteiras de
circulação do texto literário por meio da publicação de romances seriados na seção folhetim, a fim de captar de
novos assinantes e anunciantes.
19
“Mardi 13 avril [1858] – Hier soir, j’ai reçu avec mes épreuves de Marie Antoinette un petit mot du nommé
Ambroise Firmin Didot, lequel me dit qu’étant imprimeur de l’Institut et ayant été en rapport avec des littérateurs
très distingués, il croit devoir m’indiquer quelques corrections, lesquelles corrections se montrent dans six feuilles
au nombre de 119! Ça a été une belle colère chez nous, quand cette chose insolite nous est arrivée, l’imprimeur se
faisant éditeur, l’éditeur se faisant auteur! À chaque ligne, à chaque mot faisant image, à chaque harmonie imitative
de la phrase, à chacun des efforts et des tours prémédités, qui sont notre volonté et notre signature, le malheureux
fait une raie d’ostracisme…”.
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los, já que o financiamento da edição não era um problema para os escritores. A procura tinha
outro objetivo que até então não parecia ser uma prioridade para os irmãos Goncourt:
a visibilidade conferida pela editora e o público por ela captado. Para Edmond e Jules, as figuras
que reuniam essas qualidades para a publicação do romance seguinte, eram Michel Lévy, que
havia publicado anos antes o Salon de 1852, e Charles Jaccottet e Achille Bourdilliat,
fundadores da Librairie Nouvelle, com os quais publicaram, em 1853, a recolha de crônicas
teatrais Mystère des théâtres. É igualmente na década de 1860 que o gênero dramático e os
estudos monográficos com feições biográficas, históricas e de crítica de arte, que até então
ocupavam o primeiro plano nas apostas genéricas dos irmãos Goncourt, cedem espaço ao
romance. Isso não significou, contudo, um abandono de procedimentos de pesquisa e de recolha
de informações que caracterizarão, dentre outros aspectos, o estilo pelo qual os irmãos Goncourt
ficarão conhecidos nas últimas décadas do século XIX.
O romance seguinte a Les Hommes de lettres é Sœur Philomène, cujo enredo foi
sugerido pelo poeta e dramaturgo Louis Bouilhet, durante um almoço na casa de Gustave
Flaubert, registrado na passagem do dia 5 de fevereiro de 1861 do Journal. Assim como fizeram
em obras anteriores, os irmãos Goncourt basearam-se em histórias que lhes foram contadas, em
tipos sociais observados na Paris que conheciam e em resultados de pesquisas. Isso significou
recolher informações in loco em hospitais da capital francesa e de Rouen, observar os pacientes
e conversar com médicos residentes desses hospitais, participar de rondas e de jantares na sala
de descanso médico. A tomada de notas era feita nos cadernos que mais tarde se tornaram o
Journal des Goncourt, que registra o processo de escrita não somente de Sœur Philomène, mas
também dos romances e outras obras de imaginação que seguem. Mais do que desempenhar um
papel de “laboratório” de escrita, no qual Edmond e Jules dissecavam informações e
experimentavam formas, o diário apresenta a gênese e o desenvolvimento de uma técnica de
escrita baseada na observação que começa a tomar formas mais bem definidas a partir de
Sœur Philomène20.
Será essa escrita baseada na observação assim como o tema dos interditos na relação
entre uma irmã de caridade e um médico residente o motivo da primeira recusa de publicação
de Sœur Philomène, por Michel Lévy. Segundo o editor, em carta endereçada do dia
17 de março de 1861, o talento na observação e o estilo não foram suficientes para que a leitura
Sobre a relação do romance com as artes visuais, ver: GAMA, Zadig; LOBÃO, Julia. Sœur Philomène, dos
irmãos Goncourt: gravura textual em preto, branco e vermelho. In: Luciana Persice Nogueira-Pretti (org.).
Literaturas Francófonas VI: debates interdisciplinares e comparatistas. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2022, p. 633657.
20
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do manuscrito deixasse de ser penosa, não lhe parecendo uma obra que agradaria a muitos
leitores, sendo o número de leitores o critério utilizado para recusar a publicação
(GONCOURT, 2004, p. 532-533). Edmond e Jules recorrem então aos serviços da Librairie
Nouvelle, em edição financiada pelos autores. A escolha dessa editora pode ser explicada em
alguma medida pelo fato de o empreendimento de Charles Jaccottet e Achille Bourdilliat,
fundado em 1851, ter conhecido uma década de sucesso, tendo feito frente a grandes editoras
como a de Michel Lévy e de Louis Hachette.
Edmond e Jules provavelmente não contavam, logo depois da publicação de
Sœur Philomène, com a falência Librairie Nouvelle e a aquisição da editora por Michel Lévy.
A Librairie Nouvelle, que à época gozava de certo prestígio, já que havia participado do que
Jean-Yves Mollier chamou de nascimento de um capitalismo editorial na França – no qual o
texto literário passa a circular de novas maneiras e em diferentes suportes, como o romancefolhetim, jornais-romances, coleções populares etc. –, passou por dificuldades financeiras em
1861, em decorrência dos grandes investimentos que seus concorrentes, Michel Lévy e de
Georges Charpentier, fizeram em formatos de livros mais baratos (MOLLIER, 2008, p. 20).
Sœur Philomène, assim, passa a integrar a lista de títulos escritos pelos irmãos Goncourt cuja
fraca repercussão junto à crítica e ao público se deve, ao menos em parte, à pouca divulgação.
Contudo, é possível encontrar as apreciações do amigo dos irmãos Goncourt Paul de SaintVictor, de Claude Vignon, um dos pseudônimos da escultora e mulher de letras Marie-Noémi
Cadiot, e do escritor e jornalista Jules Levallois. De modo geral, as críticas identificam que
Edmond e Jules compreendem as tendências em literatura e tentam ultrapassá-las, seja pelo
trabalho excessivo com a linguagem, seja pela observação e investigação social (GAMA, 2020).
Ainda que grande parte dos 2.000 exemplares da primeira tiragem de Sœur Philomène
tenham ficado estagnados nos depósitos dos livreiros parisienses, foi graças a esse romance que
os autores se aproximaram de Jules Levallois, que à época colaborava com o jornal progressista
l’Opinion Nationale, que circulou de 1859 a 1914:
Esta foi somente a abertura do jogo. Algumas semanas depois, os dois irmãos
chegaram no meu eremitério, trazendo o manuscrito de Renée Mauperin, que
se intitulava à época Jeune Bourgeoise. Jules leu-me, com exímia habilidade,
diversas passagens desse romance, dentre outras, o retrato do abade Blampoix,
o padre conciliador e mundano. Eu terminei o manuscrito em um dia ou dois,
e corri para levá-lo até Guéroult, a quem o recomendei tão vivamente que a
publicação foi, em princípio, imediatamente decidida. Apenas compromissos
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anteriores assumidos pelo jornal ocasionaram um pequeno atraso. Os srs. de
Goncourt não haviam ainda publicado nada em folhetim; eles encontraram no
Opinion Nationale a notoriedade e o aplauso (LEVALLOIS, 1863, p. 204)21.
Sob o ponto de vista de Levallois, a aparição de Renée Mauperin na seção folhetim do
jornal foi uma “abertura do jogo”. Essa publicação, entretanto, pode ser vista igualmente como
“mais uma jogada”, pois os irmãos Goncourt já participavam das disputas do campo literário e
se mostravam jogadores conscientes de um jogo cujas regras à época estavam intimamente
ligadas ao campo jornalístico.
Renée Mauperin aparece no folhetim de l’Opinion Nationale entre os dias
3 de dezembro de 1862 e 10 de fevereiro de 1863, tendo sido recuperado algum tempo depois
pela editora Dubuisson & Comp., que reutilizou a composição tipográfica da impressão do
jornal para publicá-lo em volume. As críticas aparecem na imprensa, sobretudo quando o
romance ganha uma reimpressão pela editora de Alphonse Lemerre, no começo de 1864,
contando com o aplauso de Saint-Victor (La Presse, 11 abr. 1864, p. 1-2) e de
Théodore de Banville (L’Artiste, 15 abr. 1864, p. 186-189), que reconhecem a atualidade do
tema e uma tentativa de renovação nos modelos de personagens, não obstante a reprovação de
Cuvillier-Fleury (1865, p. 380-387), que destaca a falta de verossimilhança das situações. De
fato, a representação de uma certa burguesia em Renée Mauperin acompanhava os rumos que
essa parcela da sociedade parisiense tomava naquele momento. Os modelos, cuja composição
procedia por tomada de notas, como eles vinham fazendo nas obras precedentes vinham, dentre
outros círculos que os irmãos Goncourt frequentavam, de famílias abastadas. Além de este ter
sido o primeiro romance escrito pelos irmãos Goncourt a aparecer serializado na seção folhetim
de um jornal, Renée Mauperin é a obra que estabelece o início da frutuosa relação dos autores
com o editor Georges Charpentier, que ainda em 1864 reedita esse título por sua editora.
Enquanto Renée Mauperin circulava nas páginas de l’Opinion Nationale e era
reimpresso e reeditado, os irmãos Goncourt trabalhavam nas obras seguintes. Eles colocam em
prática um método que consistia em pesquisar na imprensa, sobretudo na Gazette des tribunaux,
“Ce n’était là qu’une entrée de jeu. Quelques semaines après, les deux frères arrivaient dans mon ermitage,
apportant le manuscrit de Renée Mauperin, qui s’intitulait alors la Jeune Bourgeoise. Jules me lut, en très habile
virtuose, plusieurs passages de ce roman, entre autres le portrait de l’abbé Blampoix, le prêtre accommodant et
mondain. J’achevai le manuscrit en un jour ou deux, et je courus le porter à Guéroult, à qui je le recommandai si
vivement, que la publication fut, en principe, décidée séance tenante. Des engagements antérieurs pris par le
journal amenèrent seuls un léger retard. MM. de Goncourt n’avaient encore rien donné en feuilleton; ils trouvèrent
à l’Opinion Nationale la notoriété et l’applaudissement”.
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informações que pudessem inspirar sua escrita, sem deixar de lado a história íntima como fonte
de personagens e enredos. Assim, três romances começam a ser preparados ao mesmo tempo,
em meados da década de 1860, que mais tarde receberão os títulos de Germinie Lacerteux,
Manette Salomon e La Fille Élisa. A descoberta da vida dupla de sua empregada Rosalie
Malingre, também chamada de Rose, muda o rumo da escrita dos irmãos Goncourt e os
conduzirá à finalização de Germinie Lacerteux e publicação, em 1865, pela editora de Georges
Charpentier. O que é pertinente de se reter sobre a publicação de Germinie Lacerteux é o fato
de o prefácio desse romance marcar um posicionamento dos irmãos Goncourt quanto à escolha
dos gêneros literários que praticavam: é nesse prefácio que o Romance – grafado com
maiúscula – que os irmãos Goncourt o elevam a gênero literário em ascensão e que possibilitava
a incorporação do método de escrita baseado na observação que vinham colocando em prática
já há alguns anos. É igualmente nesse texto que colocam em perspectiva o “direito ao
Romance”, referindo-se à possibilidade de se representar tipos e de tratar de determinados
temas que à época não eram bem aceitos pela crítica. Nesse sentido, a evocação de
Sœur Philomène aparece como uma tentativa de cimentar o caráter pioneiro no método de
escrita esboçado no prefácio de Germinie Lacerteux e que será explorado em obras futuras. De
fato, a escrita baseada na observação começa a ganhar maior importância nos romances dos
irmãos Goncourt a partir de Sœur Philomène, cuja protagonista epônima foi inspirada em
Rosalie Domergue, sobrinha de sua empregada Rose que, aos quatro anos, havia ficado órfã e
cuja tutela fora assumida pela tia.
Essa escrita baseada na observação também aparece, em 1866, na reunião de passagens
selecionadas do diário, com o título de Idées et Sensations; em 1867, no romance
Manette Salomon, recuperado do folhetim do jornal Le Temps, onde havia sido reproduzido
entre os meses de janeiro e março daquele ano sob o título de L’Atelier Longibout; e, em 1869,
no romance Madame Gervaisais. Essas obras foram publicadas pela Librairie Internationale,
de Albert Lacroix, que à época lançava as obras do já célebre Victor Hugo e do então estreante
Émile Zola.
A parceria com o editor belga parece marcar o início do agenciamento da imagem de
autores dos irmãos Goncourt, projetada no campo literário francês. O romance, tendo sido o
gênero escolhido como estandarte da prosa, ganhou variações de temas e formas que
desafiavam certas convenções correntes do gosto da crítica e do meio editorial:
o anticlericalismo, representações da decadência física e moral do artista, do escritor, de uma
certa burguesia e da chamada “classe baixa”. Essa tentativa de renovação estética no romance
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foi o que provavelmente chamou a atenção do editor Georges Charpentier, em meados da
década de 1860, quando publicou Renée Mauperin, e, a partir de meados da década de 1870,
reedições e títulos inéditos dos irmãos Goncourt. Contudo, foi preciso que os escritores
alcançassem certo reconhecimento no campo literário para que a frutuosa relação com esse
editor fosse empreendida. Antes, porém, as obras dos irmãos Goncourt ainda oscilavam entre a
edição remunerada e a edição de autor. Em carta do dia 3 de julho de 1884, endereçada ao editor
belga Henry Kistemaeckers pai, com quem negociava uma reedição de En 18.., Edmond lhe
conta o conselho que havia dado em resposta ao escritor e discípulo do Goncourt mais velho,
Francis Poictevin:
Acrescentava que ele, Francis Poictevin, não sendo, pela graça de Deus,
nenhum miserável, por um volume amado e concebido segundo um certo
programa, poderia muito bem fazer o que se faz todos os dias por um capricho,
por um bibelô, por uma amante – perder, o que! uns 1.000 francos.
Tanto mais, disse-lhe que esta perda de dinheiro era frequentemente
comparada à perda de um volume que não se vendia imediatamente após seu
lançamento, por um barulho futuro, um retumbo, um aumento de reputação
literária para o autor, muito superior à soma perdida – ao menos é o que me
aconteceu em relação à Histoire de la société française pendant la Révolution
et le Directoire assim como Charles Demailly, volume editado por minha
conta (GONCOURT, BNF Mn-13)22.
A partir do final da década de 1860, as obras dos irmãos Goncourt foram publicadas
por diversas editoras, com diferentes tipos de contrato. É o caso da reedição de Les Hommes de
lettres sob o título de Charles Demailly, em 1868, pelo belga Henry Kistemaeckers, financiada
pelos Goncourt, como descrito na carta. Ou ainda Idées et Sensations que, segundo seus autores,
na mesma carta, havia sido um sucesso absoluto quando publicado por Lacroix, em 1867, ao
ponto de Charpentier ter preparado uma reedição daquela obra, naquele mesmo ano.
“J’ajoutais que lui, Francis Poictevin se trouvant par la grâce de Dieu n’être point un misérable, il pouvait bien
faire pour un volume aimé et conçu d’après un certain programme, il pouvait bien faire ce qu’on fait tous les jours
pour un caprice, pour un bibelot, pour une maîtresse – perdre, quoi! un millier de francs. D’autant plus, lui disaisje encore, que cette perte d’argent était souvent comparée à la perte d’un volume que ne se vendait pas tout d’abord,
par un bruit futur, un retentissement, un accroissement de réputation littéraire pour l’auteur, très supérieur à la
somme perdue – du moins c’est ce qui m’est arrivé à moi à propos de l’Histoire de la société française pendant la
Révolution et le Directoire et même de Charles Demailly, volume édité à mes frais”.
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Em resumo, foi preciso que o nome Goncourt alcançasse algum sucesso para que
Charpentier se tornasse seu principal editor. Assim, Charpentier passa a editar quase
exclusivamente, nas décadas de 1870 e 1880, as obras dos irmãos Goncourt, ou somente de
autoria de Edmond, sem a parceria de seu irmão Jules. É o caso dos romances La Fille
Élisa (1877), Les Frères Zemganno (1879), La Faustin (1882) – este antes publicado no
folhetim do jornal Le Voltaire, em 1881 – e Chérie (1884), último romance escrito por
Edmond. Somam-se a esses títulos os nove volumes do Journal des Goncourt (1887-1896), que
além de registrarem o quotidiano da vida literária apresentam-se como um texto matricial de
diversos romances, ou mesmo como um dossiê genético das obras dos irmãos Goncourt. O que
chama a atenção nas publicações da editora de Charpentier é o fato de este editor ter recuperado,
a partir de 1875, todos os títulos que os irmãos Goncourt haviam publicado em outras editoras,
até aquele momento. Além disso, Charpentier incluiu as obras dos irmãos Goncourt em uma
coleção de caráter popular, que continha títulos de escândalo e autores reconhecidos pela crítica
como sendo naturalistas.
Conclusão
A década de 1850, para a carreira de homens de letras dos irmãos Edmond de Jules de Goncourt,
marca não somente a entrada dos então escritores estreantes no campo literário francês, mas
também um período de experimentação de métodos de escrita e de apostas em gêneros literários
que os legitimassem junto à crítica e ao público leitor. Após apostas frustradas no gênero
dramático, eles investem em textos curtos sobre arte e personalidades do século XVIII,
publicados em periódicos literários, mais tarde compilados e publicados em livro. Inicialmente,
eles assentarão suas carreiras nos estudos monográficos, lançando mão de métodos de escrita
baseados na pesquisa em documentos e na observação. Esse método foi em alguma medida
aplicado, anos mais tarde, à escrita de seus romances, aparecendo sob a forma de temas e
personagens ainda pouco ou quase nada representados em literatura, sendo igualmente
aprimorado por um trabalho com a linguagem, no qual se encontram aliterações, neologismos,
gírias, arcaísmos, subordinações, justaposições, dentre outros artifícios da língua. Esse estilo,
que vinha sendo elaborado pelos irmãos Goncourt, no início de 1850, será chamado anos mais
tarde de écriture artiste. Trata-se da associação de gêneros correntes na imprensa, como listas,
a recursos estilísticos da poesia aplicados à prosa, podendo ser definido, em linhas gerais, como
uma reinterpretação de temas ligados ao trivial, ao prosaico e ao vulgar, a fim de convertê-los
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em objetos estéticos, recorrendo a formas literariamente valorizadas que os expressem dentro
de um regime artístico ligado à beleza.
Ao longo da década de 1860, o Segundo Império abranda o rigor da censura ao mesmo
tempo que incorpora ideais liberais em sua forma de governo. Isso significou maior liberdade
no tratamento de determinados temas na literatura e uma intensificação da profissionalização
do homem de letras que o subordinava a uma lógica de mercado. Para a trajetória dos irmãos
Goncourt, os anos de 1860 representam uma projeção maior no campo literário francês, assim
como um investimento maior, financeiro e intelectual, no gênero romance. Isso os alçou a uma
posição de precursores de certos valores estéticos na prosa literária. É essa imagem de escritores
naturalistas que será agenciada por Edmond de Goncourt, após a morte de seu irmão Jules, ao
longo das décadas de 1870 e 1880.
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