Um disco que ficou por 30 anos no arquivo enfim encontrará o grande público nesta sexta (9): “Cássia Eller e Victor Biglione in blues” (Universal Music), gravado pela cantora (que morreu em 2001 e se tornaria uma sexagenária este sábado) e pelo guitarrista (nascido na Argentina há 64 anos e desde criança radicado no Brasil).
Um projeto único desses músicos — ela ainda em começo de carreira, ele um astro da música instrumental que já tinha passado pelo grupo A Cor do Som e pela banda de Gal Costa —, a coleção de dez faixas chega ao streaming (e ano que vem ao disco físico) para a felicidade de Biglione, que diz ter ouvido durante muitos anos boatos de que o disco era uma gravação de show no Circo Voador ou de que Cássia cantara mal.
— Não, bicho, esse é um disco todo caprichadinho, internacional, feito em estúdio! É um disco sério, com todo mundo fazendo e refazendo as gravações — esclarece o guitarrista. — Era um disco que eu queria mostrar para o (guitarrista dos Allman Brothers e mestre do blues) Gregg Allman!
Filho de Cássia, o cantor Chico Chico diz considerar “muito oportuno” o lançamento do álbum, no qual a mãe cantou, com o guitarrista e banda, clássicos de Muddy Waters (“I’m your Hoochie Coochie man”), Willie Dixon (“I ain’t superstitious”), Beatles (“Got to get you into my life”) e Jimi Hendrix (“If six was nine”):
— É uma maneira de festejar o que foi a vida dela nessa data tão importante. E mais especial ainda por ser um álbum de blues, que representa muito bem a minha mãe, um disco muito legal de releituras com o Victor numa pegada muito diferente.
"Cássia Eller e Victor Biglione in blues” começou a nascer nos primeiros meses de 1991, quando o guitarrista tinha acabado de voltar de Los Angeles, onde fora lançar um de seus discos.
— Veio a vontade de fazer algo de qualidade com o rock no Brasil, esse é um estilo que me marcou desde que eu comecei, aquele rock clássico. Comecei a procurar pessoas e cheguei a pensar na Rosana, mas ela estava em uma outra situação de mercado (isto é, estourada no pop romântico com músicas como “O amor e o poder”). Aí uma amiga minha, a Ligia Alcantarino, me falou: “Você já reparou nessa menina que canta uma música do Renato Russo (‘Por enquanto’), mas antes dá uma brincada com ‘I’ve got a feeling’, dos Beatles?” — recorda-se.
Biglione marcou então um encontro com Cássia, que chegou vestindo camiseta e bermuda somente.
— Gostei que ela não tinha physique du rôle nem atitude de cantora fodona. Chegou super na dela, que é como ela foi até o final — conta o guitarrista, que aí apresentou a Cássia um repertório numa fita que “ia do jazz a coisas pesadíssimas”. — Havia uma possibilidade de data no Circo Voador e marquei um ensaio para três dias depois. Até então, a Cássia não conhecia as músicas, mas chegou no estúdio já comendo com farinha.
Após alguns meses de shows, Biglione partiu no fim do ano para o estúdio da PolyGram, na Barra, para gravar o disco. Foram com ele Cássia e a banda base, formada por André Gomes (baixo), André Tandeta (bateria) e dois tecladistas: Marcos Nimrichter e Ricardo Leão. Nico Assumpção tocou baixo acústico no standard de jazz “When sunny gets blue”. E o naipe de metais formado por Zé Nogueira (sax alto e soprano), Zé Carlos Ramos, o Bigorna (sax alto), Chico Sá (sax tenor), Bidinho (trompete) e Serginho Trombone (trombone) acendeu a brasa em faixas como a “Got to get you into my life”, dos Beatles.
Barrado pela gravadora ou pela cantora?
Segundo Victor Biglione, o clima durante as gravações do disco com Cássia Eller foi dos melhores:
— Ela sabia que não ia simplesmente cantar e ir embora. Eu dizia: “Peraí, faz mais uma vez esse pedacinho, acho que você pode render mais.” Ou então: “Fica aí para o meu solo de guitarra e me diz se ele está combinando com o clima do que você está cantando.” Eu queria que ela participasse, que tivesse uma sincronia de sentimentos, o disco era nosso.
Ao todo, a cantora e o guitarrista fizeram cerca de 20 shows. Alguns no Circo Voador, lotados. Outros, em temporada no finado Jazzmania. Um, antológico, na Praia do Leme, durante a conferência Rio 92. E tudo culminou com as apresentações (no Rio e em São Paulo) no Free Jazz Festival, dividindo as noites com os guitarristas americanos, craques do blues, Albert King e Robben Ford. Ali, porém, segundo Biglione, o clima entre ele e Cássia já estava esfriando:
— Eu estava muito triste porque nós tínhamos recebido a notícia do (então diretor artístico da PolyGram) Max Pierre de que o disco não ia ser lançado, porque ele poderia deixá-la estigmatizada como cantora de rock. E aí cerquei a Cássia um dia, no pátio da PolyGram, para que a gente se juntasse e fizesse uma pressão pelo lançamento, mas ela disse que não queria atrito com a gravadora.
Max Pierre guarda memórias diferentes das de Biglione acerca do caso:
— Eu tinha achado lindo o projeto do disco. A Cássia é que, não sei por qual razão, não queria que ele fosse lançado. A gente chegou a insistir muito, até um ponto em que o empresário disse que ela estava começando a ficar irritada. Aí nós desistimos.
Recuperado das fitas Adat originais, guardadas por todos esses anos na gravadora, e remasterizado por Ricardo Garcia, “Cássia Eller e Victor Biglione in blues” é uma espécie de redenção para o guitarrista, que hoje prepara a trilha sonora para um documentário sobre Frei Betto e um show com a harpista Cristina Braga em homenagem ao grande casal americano do jazz, John e Alice Coltrane.
E, curiosamente, há alguns dias, antes mesmo que se falasse no disco com Cássia, Biglione foi muito comentado na internet: a morte de Gal Costa jogou luz sobre um vídeo de 1981, no qual ele fazia sua guitarra duelar com a voz da baiana.
— A ficha da viralização desse vídeo com a Gal, eu sei que ainda vai cair. E eu ainda vou ficar feliz de ter feito parcerias com cantoras tão maravilhosas — emociona-se o músico.