A arte de fazer filmes não é, nem um pouco, uma das mais fáceis - e muito menos uma das mais baratas. Além de muito estudo, disciplina e atenção, cinema é uma daquelas áreas que requer puro talento nato; e isso, Martin Scorsese tem de sobra. Realizando sucessos que se tornam clássicos instantâneos desde a década de 1970, o nova-iorquino de 81 anos é um daqueles nomes indispensáveis quando se menciona a palavra "gênio". E como qualquer grande artista, Scorsese tem seus pesares e arrependimentos que vieram com os mais de 50 anos atrás das câmeras. Um deles é, surpreendentemente, um de seus maiores sucessos comerciais, estrelado por Leonardo DiCaprio.
Martin Scorsese cresceu em um bairro humilde da região do Queens, em Nova York, como um observador do cotidiano. Desde cedo, o descendente de italianos aprendeu o poder da narrativa através do simples ato de assistir. Com a violência das ruas de uma Nova York comandada pelo crime organizado e pela sua natureza frágil - já que a asma era uma questão constante em sua rotina na infância e na adolescência -, Scorsese aprendeu a ver, de casa, tudo o que se passava em frente de seus olhos: fosse nas telas do cinema ou mesmo na vida real. Essa foi a formação de alguém que anos mais tarde viria a se tornar um gigantesco contador de histórias.
Mesmo muito novo, já montava pequenas histórias e stroryboards de tramas que criava na própria mente; a brincadeira de criança que mais gostava. O gosto tomou rumos mais sérios quando foi para a renomada Universidade de Nova York estudar cinema, lançando seus primeiros curta metragens, e aquele que seria seu pontapé para projetos maiores, 'The Big Shave', de apenas seis, bastante sangrentos, minutos.
O resto é, então, história. Seu primeiro longa, 'Caminhos Perigosos' (1973) o lançou no circuito artístico e comercial como mais um dos diretores emergentes da cena da Nova Hollywood. Também marcou o começo da sua amizade e parceria com Robert De Niro, seu melhor amigo. Foram muitos, muitos sucessos desde então: 'Taxi Driver' (1976), 'Touro Indomável' (1980), 'A Última Tentação de Cristo' (1988), Os Bons Companheiros' (1990), 'Cassino' (1995), 'Os Infiltrados' (2006) e por aí vão outros vários.
O trabalho de décadas deu a Scorsese não apenas retorno financeiro, nem só renome na indústria, mas principalmente um dos maiores tesouros que um cineasta pode ter. Isto é, a liberdade criativa. Como você bem sabe, cinema não é a arte mais barata de se fazer; pode custar milhões e envolve muitíssimo trabalho de diversas partes diferentes.
E esses são alguns dos motivos por que os estúdios existem; vêm como uma maneira de produzir e incentivar esse trabalho tão custoso, quase como os antigos mecenas. O problema é que, diferentemente dos ditos ricaços que incentivavam a arte no período da Renascença, os estúdios visam, em troca, lucro. E para tanto, colocam-se no poder de intervir nas decisões dos próprios artistas — o que torna a produção (principalmente dos diretores mais autorais) nada confortável.
Por incrível que pareça, esse tipo de intervenção é bastante comum, e quase ninguém pode escapar dela. Nem mesmo Martin Scorsese, em 'Ilha do Medo' (2010), conseguiu.
Em uma entrevista recente, o cineasta discorreu sobre seus grandes arrependimentos na carreira que iniciou cedo, ainda no começo dos 20 anos. Entre os pesares, Scorsese fez questão de pontuar sua relação complicada com um de seus maiores hits de bilheteria - para se ter uma ideia, 'Ilha do Medo fez US$ 295 milhões em vendas de ingressos, já o último filme do diretor, 'Assassinos da Lua das Flores', atingiu US$ 157 milhões, pouco mais do que a metade.
Para resumir a trama hitchcokiana, basta dizer que é um thriller psicológico com Leonardo DiCaprio e Mark Ruffalo, lançado em 2010, sobre uma dupla de investigadores que vai até uma instituição psiquiátrica em uma ilha isolada para averiguar o sumiço de uma paciente. Em uma crescente de ocorrências assustadoras, a dupla — liderada por Teddy Daniels (DiCaprio), acaba em uma espiral de insanidade e revelações chocantes.
Se você conhece bem a trajetória de Martin Scorsese, sabe que o cineasta é sim, diferente do que a maioria pode pensar superficialmente, um artista diverso. Ainda que a predominância de suas histórias tenham forte ligação com a violência, ela se estende em lugares completamente diferentes: seja sob o olhar crítico da masculinidade tóxica, provinda de uma identidade construída a partir do trauma da guerra como em 'Taxi Driver', da culpa religiosa que martiriza por dentro e por fora em 'A Última Tentação de Cristo' ou mesmo em como a colonização branca tentou exterminar e apagar a identidade de povos originários em 'Assassinos da Lua das Flores'.
A essência pode ser semelhante, mas a forma em que é construída é bastante diferente a cada vez.
Em 'Ilha do Medo' é assim também. O que difere este de outros filmes de Scorsese, inclusive, é a abordagem muito mais voltada ao terror convencional - diferente de sua joia escondida de 1999, 'Vivendo No Limite' -, e comercial. A estratégia menos autoral acabou dando frutos.
O filme, com um elenco de peso, um diretor de puro renome e uma história de arrepiar os cabelos deu a Marty o filme que é, até hoje, a maior bilheteria do fim de semana de estreia de toda a sua carreira — e que marcou a quarta parceria de seis com Leo, com quem esteve em 'Gangues de Nova York', 'O Aviador', 'Os Infiltrados' e mais tarde viria fazer 'O Lobo de Wall Street' e 'Assassinos da Lua das Flores'.
Ainda assim, o Scorsese é claro em admitir sua insatisfação com o longa que seguiu seu sucesso vencedor do Oscar de Melhor Direção e Melhor Filme, 'Os Infiltrados'. Ele declara que isso lhe "encorajou a fazer 'Ilha do Medo'".
Logo em seguida, ele opina: "Acabou que eu deveria ter seguido com 'Silêncio' mesmo", disse se referindo àquele que seria seu próximo lançamento, de 2016.
Há quem discuta as razões para tanto desgosto por parte do cineasta. O motivo, você já deve imaginar ligando os pontos: a interferência dos estúdios à sua própria vontade. Mais especificamente, a interferência do produtor (e criminoso convicto) Harvey Weinstein talvez seja um dos maiores problemas do projeto para Scorsese.
Não apenas o produtor executivo fez diversas demandas para corte de custos e tempo de tela, além de adiantamento de prazos — bagunçando todo o cronograma e visão do diretor, mas também acabou por deixar uma 'mancha' na carreira de Martin — já que, anos mais tarde, o movimento '#MeToo' iria expor Harvey Weinstein como um criminoso sexual, com quase 40 anos de prisão para serem cumpridas.
Para deixar a situação ainda menos divertida, o filme com DiCaprio, Ruffalo e Michelle Williams não recebeu sequer uma indicação ao Oscar — algo praticamente impossível de acontecer quando se trata de um filme do diretor'.
Um arrependimento e tanto para o cineasta, que foi enfático ao declarar que aquela experiência: "Me fez perceber que eu não conseguiria trabalhar se eu tivesse que fazer filmes daquela forma outra vez".
Com o trauma, Martin Scorsese seguiu para fazer seu projeto mais intimista desde a sua versão do livro de Nikos Kazantzakis sobre a vida do Cristo, 'Silêncio', sobre dois padres jesuítas que vão ao Japão em busca de seu mentor e com o objetivo de salvar a população católica de um país teocrata budista.
Desde então, Martin Scorsese tem sido dono dos próprios ideais, dos próprios projetos e da própria vontade. Prefere se manter independente das mãos dos estúdios, mesmo que lhe custe comercialmente. O próprio diretor já chegou a expressar isso em outras entrevistas.
"O comercialismo é uma fonte de preocupação. Deve-se fazer uma escolha; ou escolher seguir fazendo filmes para ganhar a Academia e ficar milionário ou escolher fazer os filmes que você quer fazer e morrer de fome."
Ainda bem que em cinquenta e tantos anos de carreira, Scorsese conseguiu achar o equilíbrio perfeito entre os dois. Talvez seja esse um dos motivos por que ele é um dos maiores de sua geração.
Relembre o trailer de 'Ilha do Medo', com Leonado DiCaprio e Mark Ruffalo, dirigido por Martin Scorsese.
*Com edição de Luís Alberto Nogueira