Eu, Chromatica: a montação do espetáculo - Grafia Drag

Eu, Chromatica: a montação do espetáculo

Dara Deon

Quando penso no meu caminho até chegar em minha persona drag, vejo uma estrada repleta de memórias. Quando somos crianças, estamos rodeados de brincadeiras e de faz de conta. Pelo menos, para mim, tudo parecia muito mágico. Como eu era muito tímida, passava muito tempo sozinha, vestindo fantasias e desenhando. Eu amava desenhar roupas, acho que por influência da minha dinda Paula, que fazia faculdade de design de moda. Um dia, cheguei a fazer um catálogo de vestidos, com uma capa cheia de glitter. Esse catálogo acabou se perdendo com o tempo, mas lembro da sensação de imaginar meus vestidos coloridos e brilhosos sendo desfilados em uma passarela.

Eu Chromatica Grafia Drag
Espetáculo Eu, Chromatica. Foto: Renê de Palma

Sempre fui incentivada pela minha mãe a fazer arte. Como ela trabalhava demais, eu precisava passar mais tempo na escola do que devia. Então, meu tempo extra era preenchido por ler quase todos os livros de investigação criminal da biblioteca e teatro. Eu tinha muito problema com a comunicação, falava o mínimo possível, mas, mesmo assim não deixava de ir as aulas de teatro. Eu também assistia muitos clipes de divas pop no YouTube e no canal da MTV. Eu só não sabia se queria ser igual a elas ou beijar elas. Acho que era as duas coisas. O meu hobby passou a ser improvisar visuais com algumas roupas e dublar músicas. Às vezes eu me produzia toda só para gravar vídeos fazendo isso. Na época, nem sabia que tinha toda uma cultura envolvida nisso e que existia um nome para as dublagens: lipsync. Mais tarde, a cultura LGBTQIA+ passou a fazer parte da minha vida e fui apresentada à arte drag.

Pimp My Drag

Mesmo fazendo várias coisas, ainda sentia que faltava algo em mim, que talvez fosse criar a minha persona drag, mas eu sempre tive dificuldade com começos, então eu precisaria de um empurrãozinho pra isso acontecer. Em abril de 2023, tive a oportunidade de fazer o curso Pimp My Drag, ministrado pela Drag Queen Cassandra Calabouço. Foram três meses de aula com uma turma muito querida, pudemos trocar conhecimentos e aprender bastante uns com os outros. Eu amava ir pras aulas, que eram duas vezes por semana, e sair com algo diferente em mim todas as vezes. Parecia que finalmente eu estava encontrando o que faltava em mim, mas eu ainda não tinha um nome. A saga pela busca do nome perfeito me tirou noites de sono e muitas pessoas me ouvindo falar sobre isso. Até que, um dia, depois da aula, eu e alguns colegas fomos para um bar conversar e um dos tópicos foi o meu nome. Eu tinha algumas opções, mas nenhuma me parecia certa o suficiente, até eu comentar que gostava muito da teoria das cores e do círculo cromático. Nesse momento, junto da minha irmã drag Luná Maldita, surgiu um estalo: Cromática! 

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Espetáculo Eu, Chromatica. Foto: Renê de Palma.

É claro que depois disso, como uma ótima libriana, eu fiquei em dúvida e testei algumas variações e formas escritas. Acabei por deixar o nome em inglês, como o álbum da Lady Gaga: Chromatica. Eu tinha um nome e um sonho, agora faltava brilhar. Em um dos dias que teríamos aula, nos encontramos montadas no bar Workroom, no dia do lipsync aberto. Encarei como se fosse minha estreia, e até Instagram eu já tinha criado para Chromatica. Fui surpreendida pelos meus amigos na porta do bar, que não conseguiram entrar pois já estava lotado, mas foi especial demais ver eles ali, cantando parabéns para mim, como se fosse meu aniversário, ou melhor, renascimento. Eu ganhei uma família drag nesse processo, e agradeço muito a todos que fizeram parte. No dia 02 de julho de 2023 estreamos o Baile de Perucas, no Teatro Bruno Kiefer, como conclusão do curso. Esses meses foram muito importantes para a construção de Chromatica, minha persona drag que finalmente havia nascido. 

A montação do espetáculo

Sempre gostei de ouvir músicas e assistir filmes antigos, e quando eu digo antigos quero dizer música clássica, que eu passava horas tocando no teclado, e filmes musicais da era de ouro de Hollywood e das décadas que seguiram. Passei a me encantar com as músicas e estilos visuais de cada década desde os anos 50, ouvi-las era como viajar no tempo e viver minhas referências na pele. Filmes como O mágico de Oz, Cantando na chuva, Cabaret, Os embalos de sábado à noite e Grease eram os meus preferidos, tanto que na versão final do espetáculo Eu, Chromatica, temos uma cena especialmente dedicada a dançar trechos de músicas desses musicais. Chromatica vai do clássico ao contemporâneo, sempre se experimentando entre lapsos temporais e diferentes estéticas. 

Musicalmente, a peça acabou sendo dominada pelos anos 70 e 80 e pelo Glam Rock, estilo que me encantei. Artistas como Elthon John e David Bowie foram trilha sonora de algumas performances e momentos importantes da minha vida. Algumas semanas antes das apresentações da peça, cheguei a cortar e pintar meu cabelo inspirado no Bowie, para viver completamente aquela fantasia vintage também com meu visual, visto que Chromatica ainda não usa peruca, mas talvez ela passe a usar em algum momento. Avançando alguns anos, os musicais mais atuais também foram muito importantes para mim, como Moulin Rouge, Chicago, Burlesque, O rei do Show, e é claro, High School Musical, que marcou minha infância e teve seu momento na peça com direito a coreografia antes dos trechos clássicos. 

As divas pop me faziam querer ser elas, ao passar horas a fio assistindo seus clipes. Aqui dou destaque para a Lady Gaga, que também acaba sendo homenageada com o nome Chromatica, título de um álbum mais recente, apesar de não ter sido o motivo principal para a escolha do nome, gosto quando fazem menção a ela. Voltando aos filmes clássicos, O Mágico de Oz foi contemplado com um número inteiro da música Goodbye Yellow Brick Road, do Elthon John. A música faz menção à estrada de tijolos amarelos que a personagem Dorothy percorreu em Oz, mas com uma mensagem de despedida de um capítulo e início de outro. Na cena, a mensagem fica no subtexto, enquanto eu abro uma mala cheia de figurinos, alguns de performances já feitas por mim na vida real, e encontro a roupa colorida de Chromatica, finalmente deixando as cores invadirem meu visual e fazendo a persona drag surgir. 

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Espetáculo Eu, Chromatica. Foto: Renê de Palma.

A cena “Como treinar sua Drag”, em formato de auditório e com interação com o público, trouxe referências do reality show RuPaul´s Drag Race, que acompanhei por muito tempo e acabei conhecendo muitas drags que me inspiro até hoje, como a Sasha Velour. E para finalizar, a última cena da peça teve como trilha sonora “Sucesso aqui vou eu”, da Rita Lee, música que também escolhi para dublar quando Chromatica esteve na noite de Lip Sync aberto no bar Workroom com a turma do Pimp My Drag, simbolizando o início de outra estrada, que teria os tijolos coloridos com todas as cores. Essas são algumas das referências que mais utilizo no meu trabalho atualmente, nem todas citadas estão presentes na versão final de “Eu, Chromatica”, mas foram consideradas e muito faladas no processo de criação do espetáculo.

A minha personagem teria uma evolução dentro da narrativa, começando com uma versão de mim mesma, mas mais teatral, e terminaria como Chromatica. Com o texto da primeira cena em mãos, improvisamos algumas vezes para ajustar as falas até ficarmos satisfeitas. A cena começaria comigo entrando nessa loja e organizando o espaço, ouvindo uma música e me divertindo enquanto arrumava tudo. Para ensaiar, usávamos uma arara com algumas roupas como cenário provisório e os dois bustos de manequim. Digo provisório porque a versão final da montagem dispõe de cinco araras e cerca de sessenta peças de roupa, tornando impossível ensaiar com tudo estando presente, mas falarei sobre a escolha de cenário mais para a frente. Quando eu estaria no fim da organização, a personagem de Alycia chegaria nessa loja com o objetivo de encontrar a roupa perfeita para ela, mas em outra cor que não fosse azul, que era a cor preferida e figurino da personagem Alyx Safira. 

Ainda nessa cena, acontece a performance de Goodbye Yellow Brick Road, de Elthon John. É quando minha personagem deixa os medos de lado e abre uma mala que contém vários figurinos e adereços, alguns inclusive que foram utilizados em performances minhas na vida real, me despindo da roupa bege e branca, revelando um body amarelo que é completado com uma calça, botas e luvas vermelhas. Também tiro da mala um espelho, um gel e um pente para dar vida ao cabelo de Chromatica. Ainda tiro um leque da mala, e a última coisa que sai é uma bandeira LGBTQIA+, representando esse momento de aceitar todas as cores que fazem parte de mim.

Eu fiz questão de também trazer uma parte mais séria sobre essa questão e não só glamourosa para a narrativa. Nesse texto, conto uma situação em que uma mulher me questionou sobre isso de uma forma bem inconveniente. Aproveitei também para colocar a questão da expressão de gênero e de sexualidade, que é muito importante para mim, como uma mulher cis, lésbica e de aparência andrógina. Esse trecho também serve para informar que a arte drag é uma expressão artística, e que drag é para todos. Escolhi falar o monólogo direto para o público, com a personagem da Alycia congelada no fundo, quebrando a quarta parede e expressando uma opinião política, tendo como inspiração o efeito de distanciamento, de Bertold Brecht e o teatro épico. 

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Espetáculo Eu, Chromatica. Foto: Renê de Palma.

Somente no final, surgiram alguns gestos, para realizar a transição entre o texto e a última performance. Com a pose formada e ultima frase dita, que não ironicamente foi “Eu, Chromatica!” revelando o meu nome e o nome da peça, começa a música “Sucesso aqui vou eu”, da Rita Lee. Eu já sabia desde o início que gostaria de finalizar a peça com essa música, que também dublei na noite em que Chromatica saiu montada pela primeira vez com a turma do Pimp My Drag, quando fomos na noite de lipsync aberto no bar Workroom. Essa música foi a única em português, então seria entendida por todo o público presente, e representa muito da minha criança interior que ainda sonha dentro de mim.

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