Vladimir Putin: o 'czar moderno' que controla a Rússia

O presidente russo Vladimir Putin

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, O presidente Vladimir Putin retomou o orgulho nacional russo e tornou-se uma espécie de czar moderno

Não faltaram líderes nacionais de destaque nas primeiras duas décadas do século 21 com passagens marcantes no comando de seus países. Os americanos Barack Obama, George W. Bush e Donald Trump; a alemã Angela Merkel; os chineses Hu Jintao e Xi Jinping; os britânicos Tony Blair e David Cameron; os brasileiros Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro; o italiano Silvio Berlusconi e o israelense Binyamin Netanyahu, cada um a seu modo, imprimiram sua marca pessoal enquanto estiveram no poder. Deixaram legados importantes na política e na história, nacional ou internacional. Nenhum deles, porém, teve a longevidade do russo Vladimir Putin. Também nenhum deles, possivelmente, teve a mesma influência em seu país, na sua região e no cenário internacional que o presidente da Rússia.

No comando desde o último dia de 1999, Putin ditou o rumo de guerras, mostrou que não existem fronteiras para suas ações de espionagem e consolidou-se como uma espécie de czar moderno, com controle completo sobre o destino dos russos. No campo militar, sufocou a separatista Chechênia, anexou parte da Ucrânia, foi decisivo na guerra da Síria e recuperou o orgulho nacional pelas Forças Armadas. Na economia, aproveitou-se do valor da indústria de energia de seu país para ganhar influência internacional.

Na política, calou qualquer oposição interna, perseguiu adversários até no exterior e criou um novo conceito de "democracia russa". No campo tecnológico, a Rússia de Vladimir Putin ficou associada a fortes suspeitas de influência indevida em processos políticos e até eleições em outros países - particularmente os Estados Unidos.

Mesmo depois de 20 anos no Kremlin, ele nunca demonstrou intenção de abandonar o poder. Ficou difícil imaginar a Rússia sem Vladimir Putin.

Premiê, Chechênia e presidente

Uma das notícias mais importantes para o século 21 chegou ao público nos últimos momentos do século 20. No dia 31 de dezembro de 1999, o então presidente russo, Boris Yeltsin, surpreendeu seu país e o mundo com um pronunciamento na televisão. O que parecia ser apenas uma mensagem de feliz ano novo mostrou-se um momento histórico. "Hoje eu me dirijo a vocês pela última vez como presidente da Rússia", disse Yeltsin. "Eu tomei uma decisão, e foi uma decisão difícil. Hoje, no último dia deste final de século, eu renuncio."

Putin assume Presidência em 1999

Crédito, AFP

Legenda da foto, Putin recebe o comando do país das mãos de Boris Yeltsin no último dia de 1999

O líder russo pediu então "perdão" por não ter sido capaz de atender às esperanças do povo russo por uma vida melhor. Para o futuro da Rússia, no entanto, a parte mais importante de seu discurso viria no final. "De acordo com a Constituição, eu escrevi uma ordem transferindo as responsabilidades do governo para o primeiro-ministro Vladimir Vladimirovic Putin."

Nascia, assim, uma das maiores personalidades políticas do século 21.

Apenas quatro meses antes, em 16 de agosto, Putin fora escolhido por Yeltsin para o posto de premiê, em substituição a Sergei Stepashin. Putin assumiu como o quarto primeiro-ministro russo em apenas um ano, sinal de que também ele, provavelmente, não duraria muito. Errado. O novo premiê, que até então era o chefe do serviço de espionagem russo FSB - o substituto da KGB -, era desconhecido do público. Sabia-se apenas que ele era de São Petersburgo. Com imensa rapidez, porém, Putin alcançou alta popularidade e ganhou a confiança de Yeltsin. Tal confiança estava diretamente ligada a um tema específico: Chechênia.

Putin com soldados na Chechênia

Crédito, AFP

Legenda da foto, Logo depois de assumir a Presidência russa, Putin visitou tropas do país na Chechênia
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A província rebelde russa, localizada na região do Cáucaso, travara uma dura guerra com Moscou entre 1994 e 1996, que deixou cerca de 50 mil mortos. O conflito terminou com um acordo de paz humilhante para o governo de Boris Yeltsin, que, na prática, deu à Chechênia sua sonhada independência - nunca reconhecida, no entanto, por Moscou. Putin mudaria essa realidade. Em 1º de outubro de 1999, um mês e meio depois de tomar posse como primeiro-ministro, forças russas invadiriam novamente a Chechênia, desta vez para acabar com o estado de independência desfrutado pela província por quase três anos.

O que provocou essa nova invasão russa, ignorando o acordo de paz de 1996? Dois acontecimentos, não necessariamente conectados.

Primeiro, no início de agosto um grupo de combatentes chechenos islamistas, sem ligação com o governo da Chechênia, invadiu a república russa do Daguestão, também no Cáucaso. Sua intenção era dar apoio a separatistas locais. O segundo e decisivo motivo deu ao governo do novo premiê Putin o apoio popular necessário para um novo conflito na Chechênia.

Em setembro, uma série de explosões destruiu prédios de apartamentos na cidade de Buynaksk (Daguestão) e em Moscou. Mais de 200 pessoas morreram. A indignação popular foi enorme, e o governo russo culpou militantes chechenos. O presidente da Chechênia, Alan Maskhadov, negou qualquer envolvimento, assim como os grupos armados, o que não alterou o desenrolar dos fatos. Em 23 de setembro, Putin ordenou o bombardeio da província, e a invasão veio em outubro. No final do ano a capital chechena, Grozny, estava sitiada - e seria devastada pela incursão russa.

Soldado russo em Grozny

Crédito, Oleg Nikishin/Getty Images

Legenda da foto, Em 2000, as forças russas tomaram o controle de Gorzny, que ficou destruída

Fortes suspeitas surgiram de que a agência de segurança russa, FSB, seria responsável pelas explosões de apartamentos em Moscou e Buynaksk - jornalistas independentes apontaram ligação entre explosivos e agentes da FSB. Verdade ou não, os atentados produziram indignação entre a população que justificou a segunda - e popular - guerra da Chechênia. O conflito, por sua vez, deu a Vladimir Putin a popularidade que lhe garantiu o posto de sucessor de Boris Yeltsin. Tanto que, horas depois da renúncia de Yeltsin, no primeiro dia de 2000, Putin fez uma visita a tropas russas estacionadas perto de Grozny. "Isto não é apenas uma questão de restaurar a honra e a dignidade da Rússia", disse Putin aos soldados, conforme noticiou a rede americana CNN. "É algo mais importante que isso. É uma questão de colocar um fim à divisão da Federação Russa."

Em artigo publicado na New York Review of Books, em fevereiro de 2000, o ex-dissidente soviético Sergei Kovalev descreveu como via a Rússia nos primeiros meses sob Vladimir Putin. "O atual estado mental na Rússia pode ser resumido em duas palavras: 'histeria (da) guerra'." Segundo ele, Putin atendia a um anseio da opinião pública por um líder forte. "O que aconteceu foi o que estava previsto algum tempo atrás: a sociedade está nostálgica por uma 'mão firme'."

Três meses após assumir a Presidência russa interinamente, aos 47 anos de idade, Putin venceu as eleições presidenciais, no fim de março, sendo eleito já no primeiro turno, com 54,4% dos votos.

Reféns são retirados de teatro em Moscou

Crédito, AFP/Getty Images

Legenda da foto, Pelo menos 130 reféns morreram após ação russa contra rebeldes chechenos em teatro de Moscou, em 2002

A retomada do controle da Chechênia por Moscou foi garantida em maio de 2000, mas o embate com grupos islâmicos da província continuou por anos. Como parte desse conflito, em 2002, cerca de 40 militantes chechenos tomaram o teatro Dubrovka, em Moscou, e fizeram cerca de 900 reféns, entre funcionários, atores, músicos e espectadores que assistiam ao musical Nord-Ost (Nordeste). Após três dias de impasse, forças de segurança invadiram o lugar depois de lançar no interior do prédio uma espécie de gás - uma desconhecida arma química. Os rebeldes foram mortos a tiros, e pelo menos 130 reféns morreram sob efeito do gás. Em 2004, em outro episódio que chocou o mundo, militantes tomaram uma escola em Beslan, na região russa da Ossétia do Norte. O cerco de três dias terminou com a morte de 334 pessoas, incluindo 156 crianças.

Apesar de outros ataques a civis na Rússia, Putin consolidou-se como um líder forte na área da segurança. O presidente foi implacável com grupos armados, sempre chamados por Moscou de "terroristas", e manteve a integridade territorial da Rússia. Ao acabar com a situação de quase independência da Chechênia e colocar um regime de confiança em Grozny, Putin recuperou a honra nacional, abalada pela guerra anterior, perdida por Yeltsin. A mão firme do presidente oferecia a tranquilidade e o orgulho que a população buscava.

Controle político

Com o fim da União Soviética, em 1991, a Rússia ganhou uma nova Constituição. A Carta de 1993 previa mandatos presidenciais de quatro anos, sendo que o presidente só poderia exercer dois mandatos consecutivos. Com base nas novas regras, Boris Yeltsin foi eleito em 1996. Vladimir Putin, eleito em 2000, seria reeleito em 2004 para um segundo período de quatro anos. Até então, o líder russo não demonstrava nenhuma intenção de mudar as regras para continuar no poder.

Putin e Dmitry Medvedev

Crédito, Sasha Mordovets

Legenda da foto, Putin escolheu Dmitry Medvedev para a Presidência, enquanto ocupou o posto de primeiro-ministro

O governo russo, porém, não está apenas nas mãos do presidente, que é o chefe de Estado. Na verdade, o responsável pelas ações práticas da administração nacional - sob as diretrizes políticas do presidente - é o chefe de governo, ou seja, o primeiro-ministro - cargo que serviu como trampolim para Putin em 1999. Foi para essa posição, então, que Putin resolveu se mudar quando deixou a Presidência após o pleito de 2008, para contornar a determinação constitucional que impedia sua eleição para mais um mandato.

A eleição, em março de 2008, foi vencida por seu candidato, Dmitry Medvedev, com 71,2% dos votos no primeiro turno - um sinal claro do domínio que Putin tinha sobre o país. Um dia depois de tomar posse, em maio, Medvedev indicou seu antecessor como novo primeiro-ministro - e ambos governariam juntos por quatro anos. As regras do jogo começaram a mudar meses depois. Em novembro, com apenas seis meses de governo, Medvedev enviou uma proposta de emenda constitucional à Duma, o Parlamento russo, aumentando o mandato do presidente de quatro para seis anos. A proposta foi aprovada.

A mudança significava que Putin, ao final dos quatro anos de Medvedev na Presidência, poderia voltar ao cargo por mais dois mandatos, tendo cumprido a restrição constitucional de que um presidente só poderia governar por dois períodos "consecutivos". A diferença: em vez dos oito anos que Putin passou na Presidência entre 2000 e 2008, dessa vez ele poderia ficar até 12.

Matryoshkha com Putin e antecessores

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Ao retornar à Presidência, em 2012, Putin provou ser um dos mais poderosos líderes russos da história

Com uma precisão de fazer inveja a qualquer engenheiro, o roteiro foi rigorosamente cumprido. Como quem dá um pequeno tapa no ombro de quem ocupa sua cadeira, Vladimir Putin tomou o lugar de Medvedev no pleito presidencial de 2012, sendo eleito no primeiro turno com 63,6% dos votos. Seis anos depois, no pleito de 2018, uma nova vitória de Putin, reeleito com 76,69% da preferência dos eleitores. Considerando seu período como premiê de Medvedev, Putin garantiu ao menos 24 anos como líder inquestionável da Rússia.

Prisões e envenenamentos

Seu poder, porém, não parou por aí. Além de fortalecer sua posição, o presidente não mediu esforços para enfraquecer a concorrência. Opositores, na Rússia ou no exterior, foram alvo de perseguição, muitas vezes abertamente, prisão, por motivos duvidosos, e assassinatos - estes, nunca admitidos.

Em 2003, o então homem mais rico da Rússia, Mikhail Khodorkovsky, foi preso e acusado de crimes financeiros. Khodorkovsky, controlador da empresa de óleo e gás Yukos, sempre protestou por sua inocência. Segundo ele, sua prisão e seu julgamento foram políticos, provocados por sua decisão de ajudar financeiramente partidos de oposição. Condenado num processo criticado por governos ocidentais, Khodorkovsky passou dez anos na prisão. Após uma primeira condenação em 2005, um novo julgamento, em 2010, o condenou mais uma vez por crimes financeiros. Em 2013, porém, Khodorkovsky foi perdoado por Putin - e se mudou imediatamente para o exterior.

Mikhail Khodorkovsky, durante julgamento

Crédito, TATYANA MAKEYEVA

Legenda da foto, O empresário Mikhail Khodorkovsky, antes o homem mais rico da Rússia, passou dez anos preso

Desde 2000, Putin criou atritos com integrantes de um grupo de empresários conhecidos como "oligarcas" - milionários que fizeram sua fortuna a partir das privatizações de estatais russas, nos anos 1990, promovidas por Boris Yeltsin e criticadas pelo grupo político de Putin pelo preço de venda das empresas, considerado baixo. O empresário de mídia Vladimir Gusinsky e o magnata Boris Berezovsky deixaram a Rússia em 2000, depois de serem alvos de processos e intimidação do governo.

Três integrantes do grupo de música Pussy Riot foram presas e condenadas a dois anos de prisão, em 2012, por terem apresentado uma música crítica a Vladimir Putin dentro de uma catedral ortodoxa em Moscou - território sagrado para Putin, que se aproximou da Igreja Ortodoxa Russa. Em 2013, o principal militante oposicionista da Rússia, Alexei Navalny, foi condenado a cinco anos de prisão por "fraude". Enquanto recorria da decisão, Navalny seguiu em liberdade. Anos depois, a condenação foi revogada pela Justiça, sendo depois reafirmada. Enquanto a batalha judicial se desenrolava, o oposicionista seguia proibido de disputar eleições para cargos políticos, mas continuava denunciando o que considerava como corrupção no seio do governo Putin.

Protesto pela libertação do grupo Pussy Riot

Crédito, ANDREY SMIRNOV

Legenda da foto, A prisão das integrantes do grupo Pussy Riot expôs o autoritarismo do governo de Vladimir Putin

A imprensa também foi cerceada de inúmeras maneiras a partir de 2000, e vários jornalistas independentes e críticos do governo foram assassinados. Entre eles, a repórter Anna Politkovskaya, do jornal Novaya Gazeta, morta a tiros em 2006 - também foram assassinados outros cinco jornalistas do diário, conhecido por seu trabalho investigativo.

A perseguição a opositores de Vladimir Putin nunca foi uma questão apenas interna. Adversários do presidente vivendo no exterior continuaram sendo alvos de intimidação, e o envolvimento de governos ocidentais em disputas russas levou a atritos com Moscou. Berezovsky obteve asilo político no Reino Unido em 2003, depois de ter sido preso e ficar ameaçado de extradição para a Rússia. Outro que também conseguiu asilo em território britânico, em 2013, foi o banqueiro Andrei Borodin - mais um oligarca processado em seu país por suposta fraude financeira. Casos como esses impactaram as relações entre Londres e Moscou, como explicou à BBC News em 2013. "O Kremlin tem ficado furioso pela maneira com que vários empresários de destaque fugindo da Justiça russa - como o bilionário Boris Berezovsky - têm recebido asilo político na Grã-Bretanha", disse Borodin.

Alexander Litvinenko no hospital

Crédito, Natasja Weitsz/Getty Images

Legenda da foto, O ex-agente da FSB Alexander Litvinenko foi envenenado com polônio e morreu menos de um mês depois

As intimidações tornaram-se mais graves com os casos de envenenamento de adversários ou dissidentes. As suspeitas caíam sobre Putin e seu círculo, acusações que o presidente e seus aliados sempre rebateram. Em novembro de 2006, o ex-agente da FSB Alexander Litvinenko, que seis anos antes se mudara para Londres após denunciar corrupção e crimes no regime em Moscou, foi hospitalizado. Ele havia se encontrado com dois russos num hotel na capital britânica e pediu para os médicos verificarem a possibilidade de envenenamento. Os exames mostraram que Litvinenko havia sido envenenado com polônio, um elemento radioativo, provavelmente ingerido por ele ao tomar chá durante o encontro. O ex-agente russo morreu 22 dias depois de adoecer.

Em março de 2018, outro ex-agente, Sergei Skripal, foi envenenado na Inglaterra. Skripal e sua filha, Yulia, foram vítimas de um ataque na cidade de Salisbury e quase morreram. Dessa vez, o envenenamento ocorreu com o agente nervoso Novichock. O caso causou um novo abalo nas relações já difíceis entre Reino Unido e Rússia. A então primeira-ministra, Theresa May, responsabilizou o governo russo, dizendo no Parlamento: "Não há conclusão alternativa, além daquela de que o Estado russo é culpado". Entre as medidas de retaliação anunciadas, estavam a expulsão de 23 diplomatas russos e a suspensão de todo contato de alto escalão entre os dois países.

Ruslan Boshirov e Alexander Petrov

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Legenda da foto, Boshirov e Petrov foram apontados pelo governo britânico como responsáveis por envenenamentos em Salisbury

O governo russo negou qualquer envolvimento no envenenamento de Skripal - e na posterior morte de uma britânica que acidentalmente teve contato com o material. As investigações, porém, apontaram para a ação de dois agentes russos, Alexander Petrov e Ruslan Boshirov. O caso levou o governo dos Estados Unidos a também adotar sanções econômicas contra a Rússia.

Os venenos russos atingiriam um alvo ainda mais relevante. Em agosto de 2020, o oposicionista Alexei Navalny passou mal durante um voo entre Tomsk, na Sibéria, e Moscou. Internado às pressas em Omsk, ele foi autorizado pelas autoridades, dois dias depois, a ser transportado para Berlim, na Alemanha. Lá foi comprovado seu envenenamento por Novichock, a mesma substância usada contra Skripal. Depois de alguns dias em coma induzido, Navalny recuperou-se aos poucos e deixou o hospital após um mês. A equipe de Navalny acusou Putin de tentativa de assassinato, o que foi rebatido pelo presidente.

A série de envenenamentos revelou grande sofisticação das operações. O professor Mark Galeotti, especialista em Rússia do Royal United Services Institute, explicou à BBC News por que a prática do envenenamento estaria sendo usada nas mortais disputas políticas do país. "O envenenamento tem duas características: sutileza e teatralidade. É tão sutil que você pode negar ou tornar bem difícil que seja provado. E leva tempo para ter efeito, tem todo tipo de agonia." Aqueles por trás dos ataques enviavam uma mensagem clara: poderiam atingir qualquer um, em qualquer lugar do mundo, e seria difícil comprovar a autoria dos crimes.

Dando as cartas no exterior

A Rússia de Vladimir Putin foi bem diferente da de Boris Yeltsin em vários aspectos, mas um deles se destaca: a economia. Sob Yeltsin, os russos sofreram a mais traumática e repentina perda de qualidade de vida da história do país, logo após a dissolução da União Soviética. Sob Putin, o país enriqueceu, principalmente graças à indústria de petróleo e gás. A Rússia é o segundo maior exportador de petróleo do mundo, atrás apenas da Arábia Saudita, e o maior exportador de gás natural. Nos tempos de Yeltsin, o preço internacional do barril de petróleo patinava em torno de US$ 20. A partir de 2000, começou a subir, chegando ao nível de US$ 100 no começo dos anos 2010 e mantendo-se depois em torno de US$ 50. O preço do gás triplicou na primeira década do século, para depois voltar ao patamar anterior.

Putin e líderes na reuniçao do G8, em 2006, na Rússia

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Legenda da foto, O crescimento russo aumentou o prestígio internacional de Putin, que recebeu líderes para a reunião do G8 em 2006

Com isso, segundo dados do Banco Mundial, o Produto Interno Bruto da Rússia disparou no novo milênio. Depois de amargar sete quedas consecutivas do PIB entre 1990 e 1996, incluindo as assustadoras baixas de -14,5%, em 1992, e -12,6% em 1994, a economia russa disparou. Avançou 6,4% em 1999 e 10% em 2000, crescendo em média 6,6% por ano entre 2001 e 2008.

Tamanha recuperação econômica e sua posição estratégica como exportador de petróleo e gás ajudaram Vladimir Putin interna e externamente. A popularidade do presidente manteve-se alta desde que assumiu a Presidência. Segundo o instituto de pesquisas russo Levada, a taxa já começou altíssima, com 84% de aprovação logo após a renúncia de Yeltsin, em janeiro de 2000, e manteve-se em pelo menos 60%, com alguns longos períodos acima dos 80%.

Putin na abertura dos Jogos de Inverno

Crédito, Paul Gilham/Getty Images

Legenda da foto, A Olimpíada de Inverno de 2014 foi uma oportunidade para Putin exibir ao mundo uma Rússia moderna

No exterior, a importância energética do país mostrou-se garantia de boas relações. A exportação de gás ajudou Putin a reforçar os laços entre seu país e a China. A União Europeia importa cerca de 40% do seu gás natural da Rússia, e tal dependência fez da Rússia um necessário parceiro - mesmo quando muitos o consideram mais um adversário. A organização da Olimpíada de Inverno em 2014 e a Copa do Mundo da Fifa em 2018 foram exibições para o mundo de uma nova Rússia, confiante e influente - enquanto os escândalos de doping de atletas russos associavam o país a um crônico desrespeito às leis esportivas. À frente de um país rico, com pouco espaço para dissidência política e respeitado militarmente, Putin ficou ainda mais confiante para impor sua voz em importantes temas internacionais.

Em 2013, a guerra civil na Síria ameaçava colocar um fim no regime do ditador Bashar al-Assad. O regime da família Assad mantinha relações próximas com a Rússia desde o tempo da União Soviética, e a Síria era um dos principais aliados de Moscou quando a guerra civil começou. A forte suspeita de uso de armas químicas por Assad contra rebeldes e a população civil levou os Estados Unidos a ameaçarem entrar na guerra contra o regime, possibilidade descartada depois que o Parlamento britânico rejeitou a participação de Londres. Com isso, o caminho ficou livre para uma participação mais direta da Rússia, que desde o início da guerra civil já ajudava o governo com apoio político e assistência militar. Em 2015, esse envolvimento tornou-se direto, com a entrada da Rússia no conflito em defesa do regime de Assad.

Aviões russos em ação na Síria

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Os bombardeios russos foram determinantes para a sobrevivência do regime de Assad na Síria

A participação russa, especialmente por meio de bombardeios aéreos, mostrou-se decisiva. Com a ajuda de Moscou, Assad foi capaz de retomar o controle da cidade de Aleppo, após quatro anos de combates, e expulsar o chamado Estado Islâmico da cidade de Palmyra. A participação russa na guerra, a primeira fora do ambiente da ex-União Soviética desde o fim da Guerra Fria, reforçou um eixo de oposição à influência ocidental no Oriente Médio.

Em contraponto aos Estados Unidos e aos países árabes sunitas, especialmente a Arábia Saudita, os regimes xiitas da Síria e o Irã agora sabiam que podiam contar com a ajuda da Rússia na disputa regional. O envolvimento russo na Síria também enviou uma mensagem clara à Europa e aos Estados Unidos, de que Moscou iria agir no cenário internacional para defender seus interesses.

Isso ficaria ainda mais claro na intervenção russa na Ucrânia. Próximo do governo russo, o presidente Viktor Yanukovych suspendeu, no final de 2013, a assinatura de um acordo de associação com a União Europeia, o que levou a uma onda de protestos de rua contra o presidente. Os protestos tornaram-se violentos e geraram uma revolução contra o governo, derrubado em fevereiro de 2014.

Tropas separatistas pró-Rússia na Ucrânia

Crédito, Spencer Platt/Getty Images

Legenda da foto, Na intervenção russa na Ucrânia, em 2014, forças especiais do país provavelmente auxiliaram separatistas ucranianos

A Rússia de Vladimir Putin reagiu. Após a queda do governo, um efetivo de militares, provavelmente incluindo tropas especiais russas, tomou o controle de estradas e pontos estratégicos da região da Crimeia, parte da Ucrânia, mas com maior parte da população de origem russa. Numa rápida série de acontecimentos, o Parlamento russo autorizou o uso da força contra a Ucrânia, e as autoridades da Crimeia - já sob controle russo - convocaram um plebiscito com as opções: unir a região à Rússia ou mantê-la na Ucrânia. Com 97% dos votos, venceu a primeira opção, e a Crimeia - incluindo a estratégica e autônoma cidade portuária de Sevastopol - foi anexada pela Rússia. Apesar de uma resolução da Assembleia-Geral da ONU condenando as ações russas, a comunidade internacional não pôde fazer nada de concreto.

Bombardeiros e tanques não foram as únicas armas usadas pela Rússia de Putin. Houve suspeitas de que duas importantes consultas populares no Ocidente em 2016 tivessem sido alvos de campanhas de desinformação organizadas por interesses russos. Em junho, os britânicos foram às urnas para decidir se o país continuava ou não membro da União Europeia - o chamado referendo do "Brexit". Em novembro, os americanos escolheram Donald Trump como novo presidente, em substituição ao democrata Barack Obama. Diante de suspeitas dos dois lados do Atlântico, cresceu o temor de que interesses russos estivessem por trás da produção de informação falsa e teorias de conspiração divulgadas por meio de redes sociais na internet.

Putin cumprimenta Trump

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Durante o governo Trump, cresceram as suspeitas de tentativas de interferência russa em eleições nos EUA

Após as eleições americanas, que deram a vitória ao republicano Donald Trump sobre a democrata Hillary Clinton, as autoridades americanas iniciaram uma investigação sobre a possível interferência russa. O processo ficou à cargo do ex-diretor do FBI (polícia federal americana) Robert Mueller. Em 2018, Mueller indiciou 13 cidadãos russos e três empresas, entre elas a Agência de Pesquisa de Internet, um braço do governo russo. De acordo com Mueller, os acusados tinham como objetivo "semear discórdia no sistema político dos EUA, incluindo a eleição presidencial de 2016". O grupo era acusado de ter produzido material em apoio a Trump e atacando Clinton.

Em abril de 2019, o relatório final de Mueller foi divulgado, com cortes. O documento trazia várias ações da Rússia para tentar interferir no pleito presidencial de 2016. Apesar de a investigação não concluir que a campanha de Trump colaborou com os esforços russos, o relatório de Mueller aponta para uma disposição de integrantes da campanha do futuro presidente de se beneficiar das ações russas. Uma investigação britânica, menos ampla e ambiciosa, não identificou interferência russa no referendo do Brexit, mas sugeriu que ela poderia ter ocorrido. Segundo o relatório, o governo não investigou as suspeitas quando elas poderiam ter sido confirmadas.

Democracia ao estilo russo

Em 25 de abril de 2005, Vladimir Putin fez seu pronunciamento anual ao Parlamento, transmitido ao vivo pela televisão. Como noticiou a BBC News, Putin disse que o colapso da União Soviética havia sido "a maior catástrofe geopolítica" do século 20. Ele apontou para o fato de que a dissolução da grande potência "deixou dezenas de milhões de russos fora da Federação Russa" e disse que o futuro da Rússia passava pela democracia. Putin deixou claro, no entanto, que a democracia em seu país seria peculiar. Segundo ele, a Rússia "vai decidir por si mesma o ritmo, os termos e as condições do movimento em direção à democracia".

Putin faz exibição com atletas de judô

Crédito, Mikhail Svetlov

Legenda da foto, Em 2019, após duas décadas no poder, Putin mantinha seu estilo personalista e a imagem de lutador de judô

Com Putin no poder, o modelo político russo, com eleições presidenciais e parlamentares, mas concentração de poder nas mãos do chefe de Estado, passou a ser descrito por muitos como "democracia administrada". Esse conceito costuma ser aplicado a países que mantêm formalmente uma estrutura democrática - além das eleições, têm um Judiciário e uma imprensa independentes -, mas que, na prática, vivem numa realidade autoritária. Durante ao menos duas décadas, essa administração foi feita por Vladimir Putin.

Em 2020, Putin deu mais um passo no ajuste dos "termos e condições" da democracia russa. Nos primeiros meses do ano, propôs, em etapas, uma série de mudanças na Constituição da Rússia. Em janeiro, disse que o poder do presidente seria diluído, com a entrega ao Parlamento da escolha do primeiro-ministro. Também disse que todo presidente passaria a governar por um limite de dois mandatos - não apenas dois mandatos consecutivos, como foi no seu caso.

Como estava previsto para Putin deixar o cargo em 2024, o presidente parecia querer entregá-lo num formato de maior equilíbrio com o Legislativo. Analistas, porém, concluíram que a mudança relativa ao primeiro-ministro não era significativa. Apesar de a escolha do chefe de governo ficar nas mãos do Parlamento, tratou-se mais de uma questão de procedimento do que de mérito - o premiê continuará tendo que ser aprovado pelo presidente, e o Parlamento fará sua escolha a partir dos candidatos apresentados pelo chefe de Estado.

Eleitora vota em plebiscito

Crédito, EPA

Legenda da foto, Mudanças na Constituição, permitindo que Putin fique no poder até 2036, foram aprovadas nas urnas

Em março, Putin anunciou outra medida. Nas mudanças constitucionais que iria propor ao país, um item autorizaria o atual mandatário - Vladimir Putin - a disputar novamente a Presidência, pois a nova regra de dois mandatos apenas não valeria para aquele que já estava no cargo. Em julho de 2020, os russos foram às urnas para dizer sim ou não ao presidente. Disseram sim. As reformas na Constituição foram aprovadas em plebiscito por 77,9% da população.

Com isso, o líder russo criou condições legais para continuar no Kremlin por mais 12 anos após o término de seu quarto mandato, em 2024 - ou seja, até 2036. Incluindo seus quatro anos como premiê, ele poderia ficar no poder por 36 anos, sete a mais que Josef Stalin. Aos 83 anos de idade, ele terá passado quase metade de sua vida no comando da grande nação russa. Será mais uma em uma longa lista de evidências de que Vladimir Putin é um líder como nenhum outro no início do século 21. O presidente recolocou seu país no patamar de grande potência, capaz de influenciar processos políticos mundo afora. Sua imagem no exterior nunca foi das melhores, mas Putin nunca fez questão de ser amado. Ele alcançou seu objetivo: que a Rússia voltasse a ser respeitada - e, por muitos, temida.

Este artigo é parte da série "21 Histórias que Marcaram o Século 21", da BBC News Brasil.

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