Esse é mais um daqueles que deixei para assistir um dia e sempre deixava para outro dia, entrando e saindo dos catálogos de streaming várias vezes até que finalmente decidi retomar a rotina de publicação do site e começar por aqui. “American Gangster” pode soar como um título muito genérico porque, raios, quase todo gângster famoso do Cinema é americano. De Vito Corleone a Tony Montana, todos ganharam a vida e a fortuna na América. Só havia algo a se notar nesse rol de personagens famosos: todos eram brancos, normalmente imigrantes italianos. Sem pensar em uma agenda inclusiva, imagino, Ridley Scott realizou em 2007 esse filme sobre um gângster negro que cresceu acima até mesmo dos figurões italianos, judeus, irlandeses e afins.
Essa é a história de Frank Lucas (Denzel Washington), um rapaz que trabalhou a vida toda perto de Bumpy Johnson até que a morte desse abriu um vácuo de poder na cidade. Seu território e sua influência estavam livres para o mais esperto. Acaba que Lucas se mostra o mais sagaz dentre os concorrentes, o mais disposto a reerguer o império de seu mentor e ter todo o respeito que ele um dia já teve. Mas seu império não se ergue sem oponentes em sua cola, entre eles dois detetives com suas próprias agendas: Trupo (Josh Brolin), que quer parte dos lucros para ele mesmo, e Richie Roberts (Russell Crowe), o policial mais honesto que o país já viu.
“American Gangster” é bem tradicional em sua proposta. Trata-se de mais uma história de ascensão e queda sobre um gângster que começa da estaca zero e atinge níveis inimagináveis de sucesso em sua jornada como mafioso. Algumas cenas já são até esperadas de antemão: algum trecho do passado ou do começo de carreira para servir de contraponto para o resto; e recortes de momentos dos picos de felicidade através de casamento, um evento grande, uma homenagem, uma festa ou a compra de alguma coisa que custa muito dinheiro. O que seria de “Scarface” sem “Push It To The Limit” tocando de fundo para a montagem de Tony Montana mostrando seu tigre para os convidados do casamento? Por um lado, há muito para ser visto e reconhecido aqui, cenas que só não ferem o bom gosto porque soam menos como clichês de roteiro e mais parecem pontos em comum nos trajetos de criminosos em ascensão. Ou nem isso, qual a porcentagem de pessoas por aí que não comprariam um barco, um carrão, uma mansão ou sei lá qual luxo se tivesse nadando em dinheiro? Provavelmente é inevitável em certo nível. Ou então não haveria uma associação tão automática entre o traficante e a mansão com piscina gigantesca, jacuzzi e um maço de dinheiro vivo na penteadeira.
Apesar disso tudo, “American Gangster” não é um filme estereotípico, previsível ou batido na execução de seu tema. A estrutura? Isso sim, até me foi soou bem parecido com “The Irishman“, também escrito pelo roteirista Steven Zaillian, possui ares parecidos no retrato de seus personagens sem preciosismo ou glorificação. Nesse quesito, o filme se destaca pela moderação de seu elenco como um todo, sem caricaturas e personalidades fortes em nível exagerado. Não há um Tommy DeVito aqui. O que se encontra é um ar de normalidade e pessoas que poderiam ser encontradas qualquer dia, gente normal e não extraordinária em seu jeito. E faz todo o sentido, já que Frank Lucas é o gângster mais normal do mundo e quer passar exatamente essa imagem. Será intencional da obra apresentar seus personagens dessa forma, sem apelar para arquétipos ou interpretações muito carregadas?
Se fosse dar um palpite, acredito que sim. Parte disso, é claro, vem do próprio roteiro e da filosofia de Lucas para sua organização: ele evita chamar atenção para si e gritar para o mundo que é um criminoso, ostentação é o mesmo que pintar um alvo nas costas. Por isso ele não anda com carros esportivos conversíveis, ternos amarelos brilhantes, correntes de ouro e relógios de dezenas de milhares de dólares. Seu estilo é ser discreto, não levantar suspeitas e não pisar no calo dos outros. Assim, o próprio gângster só poderia ganhar vida numa performance sutil e calma, uma que Denzel Washington preenche todos os requisitos com mérito e honra. Ele traz o necessário para o papel e aquilo que nem sempre ganha menção nas descrições gerais, dificilmente numa dele porque sua pessoa é difícil de ler, difícil de categorizar como uma coisa só. Nem mesmo majoritariamente, como se fosse um indivíduo secretamente estourado que tenta se forçar a ser calmo, um que pode agir quase sempre tranquilo e todo mundo sabe de seu lado explosivo. “American Gangster” encontra em sua figura central um indivíduo complexo sem abertura para rótulos, exceto por discreto ou comum. Não comum no sentido de que ele é bandido previsível, ganancioso e inconseqüente, mas o tipo de pessoa que pode apertar sua mão com sinceridade e realizar uma trepanação expressa com um tiro se ditar a necessidade.
Essa mesma qualidade se aplicar ao resto do elenco não pode ser coincidência. Mesmo os antagonistas de Frank Lucas não são exemplos toscos de clichês de policial. Nenhum é um super-policial obcecado com a lei ou impossível de matar, que quer fazer justiça a qualquer custo, por exemplo. Os dois são opostos, sim, um deles sendo extremamente honesto e o outro corrupto até a alma. Talvez Josh Brolin se empolgue um pouco em sua interpretação de policial casca grossa, nada grave; ao passo que Russell Crowe tem ordinário estampado em seu rosto. Ele é honesto, não um paladino da lei com discursos e frases de efeitos decorados apenas esperando para serem usados. Eis um policial de paletó barato ou jaqueta de couro, alguém que quer fazer a coisa certa. Fim.
A coincidência foi assistir a dois filmes fotografados por Harris Savides tão próximos, “American Gangster” e “Whatever Works“. Novamente se encontra um trabalho digno de atenção nos tons mudos e pouco saturados da Nova York suja e soturna de Savides. A cidade que ele retrata foge da elegância e da energia normalmente associadas à ela para explorar um lado ordinário mais conectado ao ponto de vista de quem vê a capital do mundo todos os dias e sem a mesma graça que teria, por exemplo, para um visitante emocionado. Nova York é trabalho para uns e suas ruas, uma máquina de fazer dinheiro em cima de mafiosos e viciados. Não há glamour nisso.