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Mulheres do Mar: “Este é um projeto sobre a relação emocional das mulheres com o mar. Quem ama cuida”

Há um projeto que está a juntar centenas de mulheres para proteger os oceanos. Chama-se Mulheres do Mar e irá contar com um documentário, uma série, um site e uma campanha de comunicação.

Texto de Isabel Patrício

Fotografia cortesia de Mulheres do Mar

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O que é uma bióloga marinha, uma oceanógrafa, uma empreendedora que criou uma marca de calçado com base em lixo marinho e uma comunicadora que “adora boiar” têm em comum? Um imenso amor pelo mar, e é esse sentimento que serve de mote ao Mulheres do Mar, um projeto que procura alertar para a importância de proteger o oceano.

Em entrevista por Zoom, falamos com quatro das mais de 400 mulheres que já se juntaram a esse projeto, que irá ganhar, ao longo dos próximos anos, quatro braços: um documentário; uma série; um site; e uma campanha de comunicação. Ao Gerador, explicam o seu elo com o oceano, o papel da mulher nesse universo e o que ainda falta fazer para proteger o mar que banha uma parte tão significativa do país.

Gerador (G.) – Antes de mais, como descreveriam a vossa relação com o mar?

Mónica Albuquerque (M. A.) – Sou da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental e sou bióloga marinha. A minha ligação ao mar começou desde muito cedo, porque a minha família paterna tem origem na ilha da Madeira e, portanto, desde pequenina que o meu avô me cantava músicas sobre o mar. A minha primeira ligação ao mar começou aí. Depois, por circunstâncias da vida, vivi em África, era ainda muito jovem, e estava a estudar. Aproximei-me da natureza e do mar, em particular, ao ver sítios que são considerados prístinos, porque ainda não têm a ação do homem, ilhas que são sagradas, e que não eram habitadas, por exemplo. Foi nessa altura, aos 15 anos, que decidi que queria fazer qualquer coisa ligada ao mar e aos animais, daí a escolha da biologia marinha.

Adriana Mano (A. M.) – Sou fundadora da Zouri, que é uma marca de calçado que reutiliza plástico marinho. A minha ligação com o mar nasce muito cedo. A minha família tem origem na Póvoa de Varzim e, desde logo, por aí há uma ligação ao mar. Fui escuteira durante muitos anos. Fazíamos limpezas de praia e todo o espírito escutismo tem que ver com a proteção ambiental e o respeito pelo outro e pela natureza. O que me fez criar a Zouri foi uma lacuna de propósito que sentia na minha vida, naquilo que fazia. Sentia sempre uma grande inquietação, porque não percebia como ia realizar o meu propósito, dar o meu contributo. Fico muito feliz que tenha acabado no mar, porque acho que o mar, para todos nós, cria uma grande sensação de tranquilidade. É a nossa casa. Todos viemos do mar. A vida nasceu do mar e acho que, quando olhamos para o mar, encontramo-nos connosco. Tenho uma ligação muito forte com o mar, até no sentido de pacificação interior. 

Raquel Martins (R. M.) – A minha ligação com o mar tem que ver diretamente com a minha relação com a água. A água é o meu conforto e o meu colo. Parte daí esta ideia de promover aquilo que é a coisa mais importante para mim, aquilo que me dá mais paz, que é estar dentro de água. Em retrospetiva, olho e este desafio faz todo o sentido, porque sempre foi no mar, e dentro da água, que me senti bem. Gosto muito do boiar. É uma sensação de meditação. É uma leveza máxima, uma leveza sustentável. É o que procuro.

Luz Paramio (L. P.) – A minha relação com o mar é diária. O mar está aqui na minha janela. Sou oceanógrafa. Estudei Oceanografia. Depois, fiz um mestrado em Gestão Costeira Marinha, um doutoramento em Governança do Oceano, um pós-doutoramento em Economia do Mar e atualmente trabalho para o Governo Regional [dos Açores]. Fiz durante muitos anos a coordenação científica ligada à área do mar em projetos europeus e internacionais. Agora faço parte do Conselho Diretivo do Fundo Regional para a Ciência e Tecnologia do Governo Regional dos Açores. 

G. – Vêm todas de carreiras muito diferentes. Como surgiu o projeto Mulheres do Mar?

R. M. – É um projeto da Help Images, que nos apareceu na sequência de uma série de contactos que tínhamos feito para fazer uma série sobre o trabalho das mulheres no mar. Essa série não foi para a frente, mas a ideia de fazer um trabalho com mulheres e com o mar ficou sempre na equipa. Queríamos que não fosse um projeto só sobre profissões, mas também sobre a relação das mulheres com o mar. Achámos que fazia muito mais sentido fazer um projeto sobre a relação emocional de algumas mulheres com o mar. Acreditamos que elas são as melhores porta-vozes para passar uma mensagem de sustentabilidade e de cuidar do oceano. Precisamos disso para salvar o nosso planeta. Como comunicadora, assim que comecei a falar com as primeiras mulheres, percebi que aquilo que elas tinham a dizer era importantíssimo, não só pelas suas profissões, mas principalmente a sua relação emocional [com o mar]. Quem ama cuida e quem cuida ama. O projeto começou em Fevereiro de 2021 e propôs encontrar 500 mulheres com as quais gravar entrevistas. Um ano e meio depois, temos 470 mulheres identificadas.

Durante décadas, as profissões ligadas ao mar ficaram marcadas por sexismo. Este projeto quer contar as histórias das mulheres que, ainda assim, trabalham com o oceano. Fotografia cortesia de Mulheres do Mar.

G. – O que é a particular na relação entre as mulheres e o mar?

M. A. – Acho que o mar tem uma coisa muito particular: ninguém escolhe uma profissão do mar, se não gostar dele, ao contrário do que acontece em terra. No mar, ou se gosta ou não se vai por aquele caminho. Ponto final. A relação das mulheres com o mar também é particular. Durante séculos, o mar teve uma ligação com os homens, não com as mulheres. As profissões do mar eram masculinas. Dizia-se que as mulheres davam azar nos barcos. Até há pouco tempo, havia navios – principalmente, se fossem navios militares – que não estavam preparados para terem investigadoras do sexo feminino. O meu pai sempre foi inspetor de navios e lembro-me de visitar, quando era pequenina, os navios. Deixavam-me entrar porque eu era criança. Já a minha mãe, por exemplo, não podia entrar. Este projeto dar destaque às mulheres tem também que ver com a ligação emocional que elas transmitem, porque mais facilmente um homem que tem filhos deixa a família em casa para ir para o mar do que uma mulher. 

A. M. – Era quase proibitivo a mulher participar [no trabalho no mar]. Só na lota é que podia vender o peixe. É um exemplo claro de que a questão do género precisa de ser trabalhada. Ainda hoje nas embarcações não se veem muitas mulheres e entre os pescadores há muito machismo. Compreendo que haja uma parte das pessoas que já são feministas, mas a verdade é que é preciso trabalhar os temas na especialidade. Por isso, acho muito bonito este trabalho do Mulheres do Mar, para relembrar as profissões do mar e as mulheres que participam. Vejo muitas mulheres como presidentes de associações [pela sustentabilidade dos oceanos].

L. P. – O que este trabalho traz de novo é também o património do papel das mulheres no mar. Tendemos sempre a falar sobre o que os homens fizeram no mar, mas as mulheres sempre estiveram presentes, dando apoio às atividades relacionadas com o mar. É muito interessante que, quando começaram a ser identificadas as mulheres, estas apareciam das mais diversas origens, desde a mulher do pescador até outras tipo de profissões. [A relação particular do mar com as mulheres], além da questão de género, acho que tem que ver com o cuidar. A nossa tendência é cuidar das pessoas e de um bem comum, que é o mar. Além disso, temos uma perceção de continuidade histórica. É esta ancestralidade feminina. Acho que tem muito que ver com a dinâmica do mar, a dinâmica feminina.

M. A. – Promover as mulheres do mar é, na verdade, promover a igualdade de género num meio em que não existia. 

G. – O projeto conta hoje com mais de 400 mulheres. Terá um documentário, um site e uma minissérie. Qual a importância e os objetivos de cada um destes braços?

R. M. – O projeto começou por ser um documentário, mas, depois, começámos a perceber que as mulheres que íamos conhecendo eram de uma riqueza tão grande, do ponto de vista emocional, [pelo que decidimos ir além]. Percebemos que tínhamos material para fazer o documentário sobre a relação emocional, mas também tínhamos muito material técnico e, então, resolvemos fazer uma série de quatro episódios, com base nas entrevistas que vamos fazer para o documentário, sobre a economia circular, as alterações climáticas, a biodiversidade e o lixo marinho. Depois – até foi a secretária de Estado das Pescas que nos disse que temos o maior banco de informação de mulheres do mar em Portugal –, surgiu a ideia de fazer uma plataforma digital, na qual estarão todas em contacto umas com as outras, sendo essa plataforma aberta a toda a população. Ao longo do projeto, também percebemos que era importante não ficar só pelo documentário, e juntamo-nos à década do oceano. Pensamos que o projeto tem de se prolongar até, pelo menos, 2030. 

G. – Nesse âmbito, haverá também uma campanha de comunicação. O que podemos esperar?

R. M. – Como estas mulheres dizem coisas lindíssimas, e a minha formação é na área da publicidade, decidimos fazer uma campanha de comunicação. [As participantes] vão falar sobre a sua relação com o mar em 30 segundos, e isso pode dar uma campanha muito forte. 

G. – E com que apoios contam?

R. M. – O que percebemos é que, em 2021, fizemos muitos contactos. Em 2022, começámos a pedir os apoios institucionais e começaram a surgir. Tivemos agora a confirmação do apoio do vice-presidente do Governo Regional dos Açores. É uma grande honra. Além disso, o MEPC [Marine Environment Protection Committee] esteve sempre connosco. Também temos já um apoio financeiro do CITCEM [Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória]. Agora, é a altura de irmos à procura de mais apoios institucionais e financeiros, que garantam que podemos começar a produzir em 2023. 

G. – Quando serão divulgados todos estes materiais?

R. M. – Se tudo correr bem, o documentário ficará pronto até ao final do ano [e sairá em 2023]. Depois, sairá a série. Ao mesmo tempo, lançaremos a plataforma digital, no próximo ano, e a campanha de comunicação.

G. – A série também será divulgada em 2023?

R. M. – Vai ser filmada já no próximo ano, mas não acredito que consigamos fazer [a divulgação] no próximo ano. 

G. – A preservação do oceano tem estado na agenda, mas continua a ser um problema. Que avaliação fazem do que já foi feito e o que falta fazer?

A. M. – O que notamos é que, durante a pandemia, houve poucas limpezas de praia. Agora deparamo-nos com muito trabalho por fazer. Consideramos que as organizações não-governamentais têm feito um trabalho maravilhoso e também as autarquias, mas há uma grande dificuldade na ligação da recolha do lixo à transformação desse lixo. Enquanto o lixo marinho não for considerado uma matéria-prima, temos sérias limitações na reutilização por quem quer que seja. Enquanto for considerado lixo, há uma série de requisitos legais que só as grandes empresas [conseguem cumprir]. Estou a falar de licenças e processos com características muito próprias, que nos limitam tremendamente. Não há volume que justifique a criação de uma indústria de transformação do lixo marinho, neste momento, e esse é um grande problema. Ninguém quer o lixo marinho, não é rentável, não é negócio. Em Portugal, não há ainda sistematização do processo. Qualquer empreendedor que queira trabalhar com lixo marinho, não sabe como o fazer. Não há uma cadeia industrial. Outro ponto que acho que é fundamental é que tínhamos tudo para ter a bandeira do que melhor se faz em relação ao mar, mas falta uma agenda muito mais concertada e ligada à inovação.

G. – E do ponto de vista de quem trabalha no oceano, que retrato é feito?

M. A. – Acho que um passo muito importante foi o reconhecimento de que há um problema. As pessoas que estavam ligadas ao mar já tinham noção do problema, mas era muito difícil passar a mensagem às outras pessoas, e isto, em última instância, tem que ver com a nossa própria sobrevivência. Esse passo muito importante foi dado na última década. Percebemos que este é um problema geral, que tem que ser resolvido e abordado nas mais diversas formas. Só o conjunto de todas essas formas pode fazer a diferença. Trabalho desde 2009 na Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental. Fazemos muitas ações de divulgação nas escolas e visitas de estudo, para divulgar o mar de Portugal, que muitas pessoas não sabem que tem sítios tão bonitos. No final das apresentações, costumo dizer que trouxe uma apresentação muito bonita, mas que também podia trazer uma muito feia. Operamos um robô que vai até aos 6000 metros de profundidade e não há nenhum mergulho em que não encontremos lixo marinho. As pessoas têm de ter a noção de que um plástico que vá parar aos 4000 metros de profundidade já não vai sair dali. Nas escolas, é muito importante as crianças saberem, por exemplo, que o oxigénio que respiramos é produzido em grande parte pelas algas, não pelas florestas. Os microplásticos impedem que as algas fabriquem a mesma quantidade de oxigénio. Já demos o passo principal, que é reconhecer que isto é um problema e que temos mesmo de fazer todos um esforço nesse sentido.

L. P. – A nível internacional, era possível fazer muito mais, mas já se está a fazer muito. O mar já é uma prioridade em todos os discursos e agendas. O estado do mar é urgente e temos de ter a noção de que esta é uma questão também económica. A economia neoclássica deixou de funcionar. Temos de saber, quando consumimos, que somos responsáveis por esse consumo. O oceano é um bem comum e, portanto, todos temos de o proteger. Todos somos embaixadores e guardiões do mar.

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