(PDF) William James-Variedades da Experiencia Religiosa Pensologosou | jovana serra - Academia.edu
© 1991 Editora Cultrix Título do original: The Varieties of Religious Experience ISBN: 85-316-0391-9 Título: Variedades da Experiência Religiosa Subtítulo: Um Estudo Sobre a Natureza Humana Autor: William James Ano: 1991 Edição: 1ª Criação/formatação ePub: Relíqua Tradutor: Octavio Mendes Cajado Edição Ano 1-2-3-4-5-6-7-8-9-10 91-92-93-94-95 Direitos reservados EDITORA CULTRIX Rua Dr. Mário Vicente, 374 - 04270 São Paulo, SP - Fone: 272-1399 Nota sobre o texto As Variedades da Experiência Religiosa resultou de uma proposta para as Conferências Gifford em 1896, formalmente apresentada em 1898. James começou a escrever em 1900. Problemas de saúde causaram o adiamento das conferências até 1901; ele completou a segunda série em 9 de junho de 1902. Antes de partir para Edimburgo, Escócia, para a segunda série, deixou o manuscrito com o editor. O livro apareceu em junho. A expectativa de James de que ele se vendesse bem justificou-se, e o autor fez algumas revisões para a versão definitiva, que apareceu em agosto de 1902. Em 1902, Longmans, Green, & Co. puderam lançar a Sétima Edição. As reedições se sucederam após a morte de James. Nessas condições, a 38ª edição apareceu em 1935. A edição de agosto de 1902 tem sido a fonte da qual se fizeram as edições subsequentes. PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Tão logo a casa editora Cultrix pediu-me que prefaciasse As Variedades da Experiência Religiosa de William James, apressei-me a fazêlo de bom grado. Primeiramente, por tratar-se de obra pioneira num ramo recente da Psicologia, a chamada Psicologia Transpessoal, que se ocupa do que o próprio James, em companhia do psiquiatra canadense R. M. Bucke, chamou de “Consciência Cósmica”, isto é, um estágio de consciência que transcende os limites do indivíduo. Com base nas pesquisas mais recentes sobre o assunto, pode-se afirmar que, quando um homem atinge semelhante estágio, não há fronteiras que limitem a sua consciência. Escrito em 1902, este livro continua atual, e se reveste de uma importância ainda maior por ter saído ele das mãos de William James, o filósofo do Pragmatismo e da Psicologia Científica, que nos introduziu numa filosofia da experiência. Nesse sentido, a presente obra nos conduz a uma abordagem pragmática da questão religiosa; aqui, a religião é considerada como uma experiência, como uma vivência, e não apenas como uma crença na experiência alheia. Sob a influência do paradigma Newtoniano-Cartesiano, antigo e ultrapassado, esteve em voga, por algum tempo, uma tendência de relegar a experiência religiosa à categoria da mera fantasia, para não dizer da loucura. Isso explica o fato de a Psicologia ter simplesmente ignorado este livro: ela própria andava comprometida com essas idéias. No entanto, no que tange ao assunto, esta obra se completa a si mesma, pois começa por considerar a tese psicopatológica a que me referi, para depois, com uma casuística haurida nas principais tradições espirituais, mostrar o que distingue o santo e o místico do doente mental. Mais: expõe também quais critérios permitem reconhecer, para não dizer “diagnosticar”, a experiência mística legítima. Mas o trabalho segue além e nos leva, a partir de dados experiências, a levantar a questão filosófica da realidade de um poder superior, aventando a hipótese do “self” subconsciente como intermediário entre este poder superior e a natureza propriamente dita. Essa religião o autor considera como sendo a mais elevada de Deus. Numa abordagem original, William James nos dá a conhecer a Psicologia Transpessoal e acaba por restituir à Psicologia o seu objetivo verdadeiro e último: experienciar o Real. Mas, será isto possível? Como vivência intransferível, a resposta só pode ser dada por cada um de nós, na medida em que se possa criar, dentro de si mesmo, as condições necessárias para tanto. E as tradições espirituais propiciaram essas condições ao homem de todas as épocas e de todas as culturas. Pierre Weil da Universidade Holística Internacional de Brasília Índice I Conferência RELIGIÃO E NEUROLOGIA Introdução: o curso não é antropológico, mas lida com documentos pessoais. Questões de fato e questões de valor. Na verdade, as religiões amiúde são neuróticas. Crítica do materialismo médico, que condena a religião por esse motivo. Refutação da teoria de que a religião tem origem sexual. Todos os estados de espírito são neurologicamente condicionados. Sua importância há de ser avaliada não pela origem, senão pelo valor dos frutos. Três critérios de valor; a origem é inútil como critério. Vantagens do temperamento psicopático quando acompanhado de um intelecto superior; especialmente para a vida religiosa. II Conferência DELIMITAÇÃO DO ASSUNTO Futilidade das definições simples da religião. Não existe nenhum “sentimento religioso” específico. Religião institucional e pessoal. Nós nos limitamos ao lado pessoal. Definição da religião para à finalidade destas conferências. Significado do termo “divino”. Divino é p que suscita reações solenes. Impossível nitidizar as nossas definições. Precisamos estudar os casos mais extremos. Duas maneiras de aceitar o universo. A religião é mais entusiasta do que a filosofia. Sua característica é o entusiasmo na emoção solene. Sua capacidade de vencer a infelicidade. Necessidade de uma faculdade Semelhante do ponto de vista biológico. III Conferência A REALIDADE DO INVISÍVEL Os conteúdos da percepção diante dos conceitos abstratos. Influência destes últimos sobre a crença. As idéias teológicas de Kant. Temos um sentido da realidade diferente do que é dado pelos sentidos especiais. Exemplos do “sentido da presença” . A sensação da irrealidade. Sentido de uma presença divina: exemplos. Experiências místicas: exemplos. Outros casos de sensação da presença de Deus. Força de convicção da experiência não ponderada. Inferioridade do racionalismo no estabelecimento da crença. Ou o entusiasmo ou a solenidade podem prevalecer na atitude religiosa dos indivíduos. IV e V Conferências A RELIGIÃO DO EQUILÍBRIO MENTAL A felicidade é o principal escopo do homem. Caracteres “nascidos uma vez” e “nascidos duas vezes”. Walt Whitman. Natureza mista do sentimento grego. Equilíbrio mental sistemático. Sua razoabilidade. O cristianismo liberal a mostra. O otimismo tal como é estimulado pela Ciência Popular. O movimento da “cura psíquica”. Seu credo. Casos. Sua doutrina do mal. Sua analogia com a teologia luterana. A salvação pelo relaxamento. Seus métodos: sugestão; meditação; “recolhimento”; verificação. Diversidade dos esquemas possíveis de adaptação ao universo. APÊNDICE: Dois casos de cura psíquica. APÊNDICE VI e VII Conferências A ALMA ENFERMA O equilíbrio mental e o arrependimento. Pluralismo essencial da filosofia do equilíbrio mental. Moibosidade da mente - seus dois graus. O limiar da dor varia de acordo com os indivíduos. A insegurança dos bens naturais. Malogro, ou êxito vão de cada vida. Pessimismo de todo naturalismo puro. Desesperança dos modos de ver grego e romano. Infelicidade patológica. “Anedonia”. Melancolia plangente. O gosto da vida é pura dádiva. A sua perda faz o mundo físico parecer diferente. Tolstoi. Bunyan. Alline. Medo mórbido. Tais casos necessitam de uma religião sobrenatural para poderem aliviar-se. Antagonismo entre o equilíbrio mental e a morbosidade. Não há fugir ao problema do mal. VIII Conferência O EU DIVIDIDO E O PROCESSO DA SUA UNIFICAÇÃO Personalidade heterogênea. O caráter atinge gradativamente a unidade. Exemplos do eu dividido. A unidade atingida não precisa ser religiosa. Casos de “contra-conversão”. Outros casos. Unificação gradual e súbita. A cura de Tolstoi. A cura de Bunyan. IX Conferência CONVERSÃO O caso de Stephen Bradley. A psicologia das mudanças de caráter. As comoções emocionais produzem novos centros de energia pessoal. Maneiras esquemáticas de representálo. Starbuck compara a conversão à maturação moral normal. Idéias de Leuba. Pessoas aparentemente inconvertíveis. Dois tipos de conversão. A incubação subconsciente de motivos. Entrega de si mesmo. Sua importância na história religiosa. Casos. X Conferência CONVERSÃO (CONCLUSÃO) Casos de conversão súbita. A subitaneidade é essencial? Não, ela depende da idiossincrasia psicológica. Está provada a existência da consciência transmarginal, ou subliminal. Automatismos. As conversões instantâneas parecem dever-se à possessão de um eu subconsciente ativo pelo sujeito. O valor da conversão não depende do processo, mas dos frutos. Estes não são superiores na conversão súbita. As opiniões do Professor Coe. A santificação como resultado. A nossa explicação psicológica não exclui a presença direta da Divindade. Sentido de um controle superior. Relações entre o “estado de fé” emocional e as crenças intelectuais. Citação de Leuba. Características do estado de fé; sentido da verdade; o mundo parece novo. Automatismos sensoriais e motores. Permanência das conversões. XI, XII e XIII Conferências A SANTIDADE Sainte-Beuve sobre o Estado de Graça. Tipos de caráter que se devem ao equilíbrio dos impulsos e das inibições. Excitações soberanas. Irascibilidade. Efeitos das excitações elevadas em geral. A vida virtuosa é governada pela excitação espiritual. Isso pode anular permanentemente os impulsos sensuais. É provável que nisso estejam envolvidas influências subconscientes. Esquema mecânico para representar a alteração permanente do caráter. Características da santidade. Sentido da realidade de um poder superior. Paz de espírito, caridade. Equanimidade, fortaleza, etc.. Conexões delas com o relaxamento. Pureza de vida. Ascetismo. Obediência. Pobreza. Os sentimentos de democracia e de humanidade. Efeitos gerais das excitações elevadas. XIV E XV Conferências O VALOR DA SANTIDADE Deve ser julgado pelo valor humano de seus frutos. A realidade do Deus, entretanto, também deve ser julgada. Religiões “inadequadas” são eliminadas pela “experiência”. Empirismo não é ceticismo. Religião individual e religião tribal. índole solitária dos inovadores religiosos. A corrupção acompanha o êxito. Extravagâncias. Devoção excessiva, como fanatismo; como absorção teopática. Pureza excessiva. Caridade excessiva. O homem perfeito só se adapta ao ambiente perfeito. Os santos são fermentos. Excessos do ascetismo. Simbolicamente, o ascetismo representa a vida heróica. O militarismo e a pobreza voluntária como possíveis equivalentes. Prós e contras do caráter do santo. Os santos diante dos homens “fortes”. A função social deles precisa ser tomada em consideração. Do ponto de vista abstrato, o santo é o tipo mais elevado mas, no ambiente atual, pode falhar, de modo que nós nos fazemos santos por nossa conta e risco. A questão da verdade teológica. XVI E XVII Conferências O MISTICISMO Definição do misticismo. Quatro marcas de estados místicos. Eles constituem uma região distinta da consciência. Exemplos dos seus graus inferiores. Misticismo e álcool. “A revelação anestésica”. Misticismo religioso. Aspectos da natureza. Consciência de Deus. “Consciência cósmica”. Ioga. Misticismo budista. Sufismo. Místicos cristãos. O seu sentido da revelação. Efeitos tônicos dos estados místicos. Estes se descrevem por meio de negativas. Sentido de união com o Absoluto. Misticismo e música. Três conclusões. 1. Os estados místicos conferem autoridade a quem os tem. 2. Mas a mais ninguém. 3. Não obstante, eles destroem a autoridade exclusiva de estados racionalistas. E fortalecem as hipóteses monísticas e otimistas. XVIII Conferência FILOSOFIA Primazia do sentimento na religião, a filosofia é uma função secundária. O intelectualismo professa escapar aos critérios subjetivos em suas construções teológicas. “Teologia Dogmática” . Crítica da sua exposição dos atributos de Deus. O “Pragmatismo” como critério do valor das concepções. Os atributos metafísicos de Deus não têm significação prática. Os seus atributos morais são provados por matis argumentos; colapso da teologia sistemática. O idealismo transcendental se avém melhor? Seus princípios. Citàções de John Caird. Eles são bons como exposições da experiência religiosa, mas não convencem como provas razoadas. O que a filosofia pode fazer pela religião, transformando-se na “ciência das religiões”. XIX Conferência OUTRAS CARACTERÍSTICAS Elementos estéticos da religião. Contraste do Catolicismo com o Protestantismo. Sacrifício e confissão. Oração. A religião sustenta que uma obra espiritual é realmente levada a efeito na oração. Três graus de opinião em relação à obra levada a efeito. Primeiro grau. Segundo grau. Terceiro grau. Automatismos, sua freqüência entre os líderes religiosos. Casos judeus. Maomé. Joseph Smith. A religião e a região do inconsciente em geral. XX Conferência CONCLUSÕES Sumário das características religiosas. As religiões dos homens não precisam ser idênticas. “A ciência da religião” só pode sugerir, não pode proclamar um credo religioso. É a religião uma sobrevivência do pensamento primitivo?. A ciência moderna elimina o conceito da personalidade. Antropomorfismo e a crença nas forças pessoais caracterizavam o pensamento pré-científico. Apesar disso, as forças pessoais são reais. Os objetos científicos são abstrações, somente as experiências individualizadas são concretas. Á religião se atém ao concreto. Em primeiro lugar a religião é uma reação biológica. Os seus termos mais simples são um embaraço e uma libertação; descrição da libertação. A questão da realidade de um poder mais alto. Hipóteses do autor: 1. O eu subconsciente como intermediário entre a natureza e a região mais elevada; 2. A região mais elevada ou “Dçus”. Ele produz efeitos reais na natureza. PÓS-ESCRITO A posição filosófica deste livro definida como sobrenaturalismo parcial. Crítica do sobrenaturalismo universalístico. Princípios diferentes têm de ocasionar diferenças nos fatos. Que diferenças de fato pode produzir a existência de Deus?. A questão da imortalidade. A questão da unidade e da infinidade de Deus: a experiência religiosa não soluciona a questão de maneira afirmativa. A hipótese pluralista está mais conforme ao senso comum. SUGESTÕES PARA NOVAS LEITURAS I Conferência RELIGIÃO E NEUROLOGIA Não é sem certa apreensão que tomo assento a esta mesa e enfrento este culto auditório. Para nós, americanos, é muito familiar a experiência de receber instrução, não só de viva voz, mas também de livros, de doutos europeus. Em minha própria Universidade de Harvard, não se passa um inverno sem a sua messe, grande ou pequena, de conferências de representantes escoceses, ingleses, franceses ou alemães da ciência ou da literatura de seus respectivos países, ou induzidos por nós a atravessar o oceano para dirigir-nos a palavra, ou colhidos em pleno vôo durante sua visita à nossa terra. Parece-nos a coisa mais natural prestar atenção, calados, enquanto os europeus falam. Ainda não adquirimos o hábito contrário de falar enquanto os europeus prestam atenção; e naquele que primeiro se arrisca a essa aventura nasce certa necessidade de desculpar-se por ato tão presunçoso. E este há de ser, particularmente, o caso num solo tão sagrado para a imaginação americana quanto o de Edimburgo. As glórias da cátedra de filosofia desta universidade imprimiram-se fundamentalmente na minha imaginação durante a infância. Os Ensaios de Filosofia do Professor Fraser, que acabavam de ser publicados, foram o primeiro livro de filosofia em que pus os olhos; e bem me lembro do sentimento de admiração que me proporcionou a descrição que nele se continha da sala de aulas de Sir William Hamilton. As palestras de Hamilton, com efeito, foram os primeiros escritos filosóficos que me obriguei a estudar e, logo depois, mergulhei na leitura de Dugald Stewart e Thomas Brown. Tais emoções juvenis de reverência nunca se esquecem; e confesso que o ver a minha humilde pessoa arrancada à sua selvageria natural para exercer, por enquanto, uma alta função nesta instituição, transmudada num colega de nomes tão ilustres, é coisa que tem para mim sabor mais de sonho que de realidade. Mas desde que recebi a honra desta designação senti que não me seria possível furtar-me a ela. A carreira acadêmica também tem suas obrigações heróicas, e por isso aqui estou sem mais palavras depreciativas. Permitam- me dizer apenas que agora que a corrente, aqui e em Aberdeen, começou a fluir de oeste para leste, faço votos por que continue assim. À proporção que passarem os anos, espero que muitos conterrâneos meus sejam convidados a fazer conferências nas universidades escocesas, trocando de lugar com os conferencistas escoceses nos Estados Unidos; estimarei que os nossos povos venham a tomar-se, em todos esses assuntos mais elevados, um povo só; e que o temperamento filosófico peculiar, bem como o temperamento político peculiar, ligados ao nosso idioma inglês, possam, cada vez mais, inundar e influenciar o mundo. Quanto ao método que terei de seguir nestas conferências, não sou teólogo, nem entendido em história das religiões, nem antropólogo. A psicologia é o único ramo do saber que tenho versado particularmente. Para o psicólogo, as tendências religiosas do homem hão de ser, pelo menos, tão interessantes quanto quaisquer outros fatores pertencentes à sua constituição mental. Dir-se-á, por conseguinte, que a coisa mais natural para mim, como psicólogo, seja convidá-los a uma resenha descritiva dessas propensões religiosas. Se a indagação for filosófica, o seu tema deverá ser, não as instituições religiosas, senão os sentimentos e impulsos religiosos, e eu terei de limitarme aos fenômenos subjetivos mais desenvolvidos já registrados na literatura produzida por homens perfeitamente evoluídos e conscientes, em obras de piedade e autobiográficas. Por interessantes que sejam sempre as origens e primeiras fases de um assunto, se desejarmos seriamente buscar-lhe a plena significação, deveremos atentar para as suas formas completamente evolvidas e perfeitas. Disso se segue que os documentos mais interessantes para nós serão os dos homens que mais se distinguiram na vida religiosa e se mostraram mais capazes de fazer uma exposição compreensível de suas idéias e motivos. Claro está que esses homens ou serão escritores relativamente modernos, ou autores tão antigos que se tomaram clássicos religiosos. Não deveremos, portanto, procurar os documentos humanos mais instrutivos nos campos da erudição especializada - uma vez que eles jazem ao longo da estrada batida; e essa circunstância, que flui de modo tão natural do caráter do nosso problema, ajusta-se também admiravelmente à ausência de saber teológico deste conferencista. Posso tirar minhas citações, sentenças e parágrafos de confissão pessoal de livros que a maioria dos senhores, em algum momento, talvez tenha tido entre as mãos, mas isso em nada diminuirá o valor das minhas conclusões. É verdade que algum leitor e investigador mais corajoso do que eu, pronunciando conferências aqui, no futuro, venha a desenterrar das prateleiras de bibliotecas documentos aptos a proporcionar um entretenimento mais deleitoso e curioso de se ouvir do que os meus. Duvido, contudo, que, pelo controle de um material tão raro, ele chegue, por força, muito mais perto da essência da matéria em apreço. A pergunta, Que são as propensões religiosas? e a pergunta, Qual é a sua significação filosófica? são duas ordens totalmente diferentes da inquisição do ponto de vista lógico; e como o não reconhecimento desse fato pode gerar confusão, desejo insistir um pouco nesse ponto antes de entrarmos nos documentos e materiais que mencionei. Em livros recentes de lógica, faz-se distinção entre duas ordens de indagação tocantes a alguma coisa, seja ela qual for. Primeira, qual é a sua natureza? como veio a existir? qual é a sua constituição, sua origem, sua história? E, segunda, Qual é sua importância, sua significação, seu valor? A resposta à primeira pergunta é dada num juízo ou proposição existencial. A resposta à segunda é Uma proposição de valor, que os alemães denominam Werthurtheil, ou que nós, se o quisermos, podemos denominar juízo espiritual. Não é possível deduzir imediatamente um juízo do outro. Eles procedem de preocupações intelectuais diversas, e a mente só as combina formando-as primeiro separadamente e adicionando-as depois uma à outra. Em matéria de religiões, é particularmente fácil distinguir as duas ordens de perguntas. Todo fenômeno religioso tem sua história e sua derivação de antecedentes naturais. O que hoje se chama a crítica superior da Bíblia não passa de um estudo da Bíblia do ponto de vista existencial, descurado por muito tempo pela igreja primitiva. Em que precisas condições biográficas os escritores sacros produziram suas várias contribuições ao volume sagrado? E que tinham eles exatamente em suas várias mentes individuais, quando proferiram suas afirmações? É evidente que estas são perguntas históricas, e não vemos como a resposta dada a elas possa decidir, sem mais, a pergunta subsequente: que utilidade pode ter para nós como guia de vida e como revelação um volume como esse, nascido da maneira acima descrita? Para responder à essa pergunta precisamos ter em mente alguma teoria geral sobre quais devem ser as peculiaridades que dão a uma coisa valor de revelação; e essa mesma teoria seria o que acabo de chamar juízo espiritual. Combinando-o com o nosso juízo existencial, podemos, com efeito, deduzir outro juízo espiritual sobre o valor da Bíblia. Destarte, se a nossa teoria do valor da revelação afirmasse que qualquer livro, para possuíla, há de ter sido composto, automaticamente ou não, pelo livre capricho do autor, ou que não pode conter nenhum erro científico e histórico nem expressar nenhuma paixão local ou pessoal, a Bíblia, provavelmente, ver-se.ia em má situação em nossas mãos. Mas se, por outro lado, nossa teoria permitir que um livro seja uma revelação, em que pese aos erros e paixões e à deliberada composição humana, bastando que seja um registro verdadeiro das experiências íntimas de grandes almas em luta com as crises do seu destino, o veredicto será muito mais favorável. Como vêem os senhores, os fatos existenciais, por si mesmos, são insuficientes para determinar o valor; e os melhores adeptos da crítica superior, nessa conformidade, jamais confundem o problema existencial com o espiritual. Com as mesmas conclusões de fato diante deles, alguns perfilham uma opinião, outros outra, sobre o valor da Bíblia como revelação, de acordo com as diferenças do seu juízo espiritual quanto ao fundamento dos valores. Faço estes reparos de ordem geral acerca das duas espécies de juízo, porque existem muitas pessoas religiosas - e é possível que algumas delas se encontrem entre os senhores - que ainda não se valem utilmente de tais distinções e que, portanto, poderão sentir-se, a princípio, um tanto ou quanto perplexas diante do ponto de vista puramente existencial pelo qual, nas conferências que se seguirem, serão considerados os fenômenos da experiência religiosa. Quando os trato biológica e psicologicamente como se fossem meros fatos curiosos de história individual, alguns dos senhores poderão pensar que isso seja uma degradação de assunto tão sublime, e até suspeitar, enquanto o meu propósito não for plenamente expresso, que eu esteja procurando acinte desacreditar o lado religioso da vida. Claro está que tal resultado é absolutamente alheio à minha intenção; e visto que um preconceito dessa natureza da parte dos senhores obstruiria seriamente o devido efeito de muita coisa que tenho para relatar, dedicarei mais algumas palavras ao assunto. Não pode haver dúvida de que, na verdade, uma vida religiosa, levada de modo que exclua tudo o mais, tende a tomar a pessoa excepcional e excêntrica. Não me refiro agora ao ciente religioso comum, que segue fielmente as práticas religiosas convencionais do seu país, seja ele budista, cristão ou maometano. Sua religião foi feita para ele por outros, comunicada a ele pela tradição, reduzida a formas fixas pela imitação e conservada por hábito. Pouco, nos aproveitaria estudar essa vida religiosa de segunda mão. Precisamos procurar antes as experiências originais que fixaram padrões para toda a massa de sentimentos sugeridos e de procedimentos imitados. Só vamos encontrar essas experiências em indivíduos para os quais a religião existe não como hábito aborrecido, senão, por assim dizer, como febre ardente. Mas tais indivíduos são “gênios” na esfera religiosa; e como muitos outros gênios que produziram frutos dignos de comemoração nas páginas da história, tais gênios religiosos têm mostrado, não raro, sintomas de instabilidade nervosa. Mais até do que outros tipos de gênios, os líderes religiosos têm sido passíveis de manifestações psíquicas anormais. Têm sido, invariavelmente, criaturas de exaltada sensibilidade emocional, levando, com frequência, vidas intimamente discordantes e sofrido de melancolia durante parte da sua carreira. Não conheceram medida, sujeitos como estavam a obsessões e idéias fixas; e, muitas vezes, caíram em transes, ouviram vozes, tiveram visões e apresentaram toda sorte de peculiaridades, classificadas, de ordinário, como patológicas. Com frequência, além disso, esses fatos patológicos em sua carreira têm concorrido para conferir-lhes autoridade e influência religiosas. Se os senhores me pedirem um exemplo concreto, não haverá outro melhor que o fornecido pela pessoa de George Fox. A religião quacre, que ele fundou, é alguma coisa que nunca se poderá louvar em demasia. Num tempo em que a impostura era a regra, ela surgiu como religião veraz, radicada na espiritualidade, retomo a algo mais semelhante à verdade do evangelho original do que tudo o que os homens já haviam conhecido na Inglaterra. Na medida em que nossas seitas cristãs evolvem para a liberalidade, elas simplesmente revertem, na essência, à posição que Fox e seus primitivos quacres assumiram há tanto tempo. Ninguém pode sustentar sequer por um momento que, no tocante à sagacidade e capacidade espirituais, a mente de Fox não fosse sólida. Todos os que o conheceram pessoalmente, desde Oliver Cromwell até magistrados e carcereiros, parecem ter-lhe reconhecido a superioridade. Não obstante, do ponto de vista da constituição nervosa, Fox era um psicopata ou détraqué do tipo mais destacado. O seu “Diário” abunda em trechos deste gênero; “Enquanto eu caminhava com vários amigos, ergui a cabeça e vi três casas torreadas munidas de espiras, que me impressionaram profundamente. Perguntei que lugar era aquele. Lichfield, responderam. Imediatamente ouvi a voz do Senhor, que me ordenava fosse até lá. Chegados à casa a que nos dirigíamos, pedi aos amigos que entrassem, sem dizer nada a ninguém sobre o lugar a que eu iria. Assim que eles se foram, afastei-me e prossegui em meu caminho, transpondo sebes e vaiados, até chegar a uma milha de distância de Lichfield, onde, num grande pascigo, pastores cuidavam dos seus carneiros. Nisso, o Senhor me ordenou que descalçasse os sapatos. Imobilizei-me, porque estávamos no inverno: mas a palavra do Senhor era como fogo em mim. Por isso tirei os sapatos e deixei-os com os pastores; e os pobres pastores tremeram e ficaram assombrados. Em seguida, andei outra milha e, tanto que entrei na cidade, a palavra do Senhor soou em mim outra vez, dizendo: Grita, “Ai da sangrenta cidade de Lichfield!” Por isso me pus a subir e a descer as ruas, berrando em voz alta, Ai da sangrenta cidade de Lichfield! Como fosse dia de mercado, fui à praça do mercado, andei de um lado para outro pelas diversas partes dela e parei muitas vezes, urrando como antes, Ai da sangrenta cidade de Lichfield! E ninguém me pôs as mãos. E assim fui gritando pelas ruas, e tive a impressão de que um rio de sangue descia por elas abaixo, e a praça do mercado me pareceu um poço de sangue. Depois de declarar o que me estava acontecendo, senti-me sereno e saí da cidade em paz; e, voltando para junto dos pastores, dei-lhes algum dinheiro e tirei deles de novo os meus sapatos. Mas o fogo do Senhor me abrasava de tal modo os pés e todo o corpo, que já não me preocupava tomar a calçar os sapatos, e fiquei indeciso sobre se devia fazê-lo ou não, até que o Senhor me deu liberdade para agir: então, depois de haver lavado os pés, voltei a calçar os sapatos. A seguir, entrei a pensar seriamente no motivo por que me teria sido ordenado deblaterar contra aquela cidade e chamarlhe A cidade sangrenta! Pois se bem o parlamento acompanhasse o ministro numa época e o rei em outra, e muito sangue houvesse sido derramado na cidade durante as guerras entre eles, o mesmo sucedera em muitos outros lugares. Mais tarde, porém, vim a saber que, no tempo do imperador Diocleciano, mil cristãos tinham sido martirizados em Lichfield. Por isso eu devia atravessar-lhes, descalço, o rio de sangue e o charco de sangue na praça do mercado, para poder despertar a lembrança do sangue daqueles mártires, derramado mais de mil anos antes, e ora jazendo frio nas suas ruas. Assim, o sentido desse sangue estava em mim e eu obedeci à palavra do Senhor”. Por mais ocupados que estejamos em estudar as condições existenciais da religião, não nos é possível desprezar esses aspectos patológicos do assunto. Precisamos descrevê-los e nomeá-los exatamente como se ocorressem em homens irreligiosos. É verdade que, instintivamente, relutamos em ver um objeto a que estão ligadas nossas emoções e afetos tratado pelo intelecto como qualquer outro objeto é tratado. A primeira coisa que faz o intelecto com um objeto é classificá-lo juntamente com alguma outra coisa. Mas parece-nos que qualquer objeto infinitamente importante para nós e que nos desperta a devoção também deve ser sui generis e único. É provável que um caranguejo se enchesse de indignação ouvindo-nos classificá-lo, sem mais cerimônia, de crustáceo e, assim, liquidar o assunto. “Não sou nada disso”, diria ele. “Eu sou EU, só EU.” Em seguida, o intelecto expõe as causas que deram origem à coisa. Diz Spinoza: “Analisarei as ações e apetites dos homens como se fossem uma questão de linhas, planos e sólidos”. E em outro passo observa que considerará nossas paixões e suas propriedades com os mesmos olhos com que olha para todas as outras coisas naturais, visto que as consequências de nossas afeições fluem da sua própria natureza com a mesma necessidade que resulta da natureza de um triângulo o serem seus três ângulos iguais a dois ângulos retos. De maneira semelhante, o Sr. Taine, na introdução à sua história da literatura inglesa, escreveu: “Não importa que os fatos sejam morais ou físicos. Há causas para a ambição, a coragem, a veracidade exatamente como as há para a digestão, o movimento muscular, o calor animal. O vício e a virtude são produtos como o vitríolo e o açúcar”. Quando lemos tais proclamações do intelecto empenhado em mostrar as condições existenciais de tudo, nós nos sentimos - independentemente da nossa legítima impaciência pelo entono o seu tanto ridículo do programa, em vista do que os autores são realmente capazes de realizar - ameaçados e negados nas origens de nossa vida mais íntima. Achamos que tais confrontos a sangue-frio ameaçam desfazer os segredos vitais da nossa alma, como se o mesmo sopro que devera explicar-lhes a origem lhes explicasse de maneira muito plausível, ao mesmo tempo, o significado e os fizesse parecer não mais preciosos do que os úteis artigos de mercearia de que nos fala o Sr. Taine. Talvez a expressão mais comum da suposição de que o valor espiritual se anula quando se lhe afirma a origem inferior se encontre nos comentários que as pessoas não-sentimentais fazem com tanta frequência a respeito dos seus conhecidos mais sentimentais. Alfredo acredita na imortalidade com tanta força porque seu temperamento é muito emocional. A consciência extraordinária de Fanny deve-se apenas à hiper-sensibilidade dos seus nervos. A melancolia de Guilherme a respeito do universo é fruto da má digestão — o seu fígado, provavelmente, funciona mal. O prazer que Elisa encontra na igreja é um sintoma de sua constituição histérica. Pedro estaria menos perturbado em relação à própria alma se fizesse mais exercícios ao ar livre, etc. Um exemplo plenamente desenvolvido do mesmo tipo de raciocínio é a moda, muito comum hoje em dia entre certos escritores, de criticar as emoções religiosas mostrando uma conexão entre elas e a vida sexual. A conversão é uma crise da puberdade e da adolescência. As macerações dos santos e a devoção dos missionários são apenas manifestações de uma perversão do instinto paterno de auto-sacrifício. Para a monja histérica, que tem forma de vida natural, Cristo é apenas o substituto imaginário de um objeto mais terreno de afeição. E assim por diante.{1} Estamos todos seguramente familiarizados, de um modo geral, com esse método de desacreditar estados de espírito pelos quais sentimos antipatia. Todos o utilizamos até certo ponto ao criticar pessoas cujos estados de espírito reputamos demasiado forçados. Quando, porém, outras pessoas criticam nossos vôos de alma mais exaltados, chamando-lhes “nada mais” que expressões da nossa disposição orgânica, sentimo-nos ultrajados e magoados, pois sabemos que, sejam quais forem as peculiaridades do nosso organismo, nossos estados mentais têm o seu valor substantivo como revelações da verdade viva; e desejamos que se possa calar a boca a todo esse materialismo médico. Materialismo médico afigura-se-nos, com efeito, uma boa apelação para o sistema de pensamento demasiado simplista que estamos considerando. O materialismo médico dá cabo de São Paulo explicando sua visão na estrada de Damasco como uma descarga violenta do córtex occipital, visto ter sido ele epiléptico. Tacha Santa Teresa de histérica, São Francisco de Assis de vítima de uma degenerescência hereditária. O descontentamento de George Fox com as imposturas do seu tempo e o seu anseio de veracidade espiritual são consequência de um desarranjo no cólon. Os tons graves de tristeza de Carlyle decorrem do seu catarro gastro-duodenal. Todas essas hipertensões mentais, afiança o materialismo médico, revelam-se-nos, quando chegamos ao âmago da questão, meras questões de diátese (mais provavelmente autointoxicações), devida à ação viciosa de várias glândulas que a fisiologia ainda descobrirá. E o materialismo médico julga, então, bem solapada a autoridade espiritual de todos esses personagens.{2} Consideremos nós mesmos a matéria da maneira mais ampla possível. Encontrando conexões psico-físicas válidas, a psicologia moderna presume, como hipótese conveniente, que a dependência de estados mentais para com as condições corpóreas precisa ser perfeita e completa. Se adotarmos a suposição, está claro que aquilo em que o materialismo médico insiste, de fato, deve ser verdadeiro de um modo geral, se não em todos os pormenores: São Paulo teve, sem dúvida, certa vez, um ataque epileptiforme, se não epiléptico; George Fox era um degenerado hereditário; Carlyle foi, com certeza, intoxicado por um órgão qualquer, não importa qual - e assim por diante. Mas como, pergunto agora aos senhores, pode um relato existencial de fatos da história mental decidir de um modo ou de outro acerca da sua significação espiritual? De acordo com o postulado geral da psicologia a que acabamos de referir-nos, não existe um só dos nossos estados de espírito, baixo ou alto, saudável ou mórbido, que não tenha por condição algum processo orgânico. As teorias científicas estão condicionadas organicamente tanto quanto as emoções religiosas; e se conhecêssemos os fatos de maneira assaz íntima, veríamos, sem dúvida, o “fígado” determinando os pronunciamentos do ateu convicto de forma tão decisiva quanto os do metodista igualmente convicto cheio de ansiedade pela sua alma. Quando ele altera de um modo o sangue que se filtra através dos seus tecidos, temos a forma de espírito metodista mas quando o altera de outra maneira, temos a forma de espírito atéia. O mesmo se verifica com todos os nossos raptos e friezas, nossos anseios e agitações, nossas perguntas e crenças. Eles são igualmente de fundo orgânico, seja o seu conteúdo religioso ou não. Argumentar, portanto, com a causação orgânica de um estado de espírito religioso para refutar-lhe a pretensão de possuir um valor espiritual superior, é totalmente ilógico e arbitrário, a menos que já se tenha descoberto antecipadamente uma teoria psicofísica capaz de ligar os valores espirituais em geral a determinados gêneros de mudança fisiológica. De outro modo, nenhum dos nossos pensamentos e sentimentos, nem mesmo nossas doutrinas científicas, nem mesmo nossas des-crenças, poderiam ter algum valor como revelações da verdade, pois cada uma delas, sem exceção, dimana do estado do corpo do seu possuidor naquele momento. Fora ocioso lembrar que o materialismo médico não chega, para dizer a verdade, a nenhuma ampla conclusão cética dessa natureza. Ele tem certeza, como a tem todo homem simples, de que alguns estados de espírito são interiormente superiores a outros e nos revelam uma verdade maior, e nisso faz uso simplesmente de um juízo espiritual comum. O materialismo médico não tem nenhuma teoria fisiológica que explique a produção destes seus estados de espírito favoritos, por cujo meio possa aboná-los; e sua tentativa de desabonar os estados de que não gosta, associando-os vagamente aos nervos e ao fígado, e ligando-os a nomes que sugerem afecções corporais, é de todo ilógico e inconsistente. Sejamos justos em toda essa questão e totalmente francos com nós mesmos e com os fatos. Quando julgamos certos estados de espírito superiores a outros, é sempre por causa do que sabemos a respeito dos seus antecedentes orgânicos? Não! é sempre por duas razões inteiramente distintas. Ou porque eles nos proporcionam um prazer imediato, ou porque acreditamos que eles nos trazem bons frutos para a vida. Quando aludimos depreciativamente a “fantasias febris”, o processo da febre como tal não é o fundamento da nossa desestima - pois, ao que sabemos, temperaturas de 39 ou 40 graus podem ser muito mais favoráveis à germinação e ao desenvolvimento de verdades do que as temperaturas mais comuns do sangue. É a própria desagradabilidade das fantasias, ou a sua incapacidade de suportar as críticas da convalescença. Quando louvamos os pensamentos que a saúde nos traz, os metabolismos químicos peculiares da saúde não têm nada que ver com a determinação do nosso juízo. Na realidade, quase nada sabemos desses metabolismos. É o caráter de felicidade interior dos pensamentos que lhes dá a marca da bondade, ou a compatibilidade com nossas outras opiniões e sua utilidade para as nossas necessidades que as faz passar por verdadeiras em nossa estima. Ora, os mais intrínsecos e os mais remotos desses critérios nem sempre andam juntos. A felicidade interior e a utilidade nem sempre concordam entre si. O que imediatamente nos parece “melhor” nem sempre é mais “verdadeiro”, quando medido pelo veredicto do resto da experiência. A diferença entre Filipe bêbedo e Filipe sóbrio é o clássico exemplo que o corrobora. Se o simples “sentir-se bem” pudesse decidir, a embriaguez seria a experiência humana sumamente válida. Mas as suas revelações, por mais agudamente satisfatórias que sejam no momento, estão inseridas num ambiente que se recusa a justificá-las por qualquer espaço de tempo. A consequência dessa discrepância dos dois critérios é a incerteza que ainda prevalece em tomo de um número tão grande dos nossos juízos espirituais. Há momentos de experiência sentimental e mística - dos quais muito ouviremos falar daqui por diante - que trazem consigo, ao chegar, enorme sentido de autoridade e iluminação interiores. Mas chegam raramente, e não chegam para todos; e o resto da vida ou não faz conexão com elas ou tende menos a confirmá-las do que a contradizê-las. Algumas pessoas seguem mais a voz do momento nesses casos, ao passo que outras preferem deixar-se guiar pelos resultados médios. Daí a triste discordância de tantos juízos espirituais dos seres humanos; discordância que se oferecerá aos nossos olhos de maneira agudíssima antes que terminem estas conferências. Trata-se, contudo, de uma discordância que nunca poderá ser resolvida por nenhum critério de índole puramente médica. Bom exemplo da impossibilidade de nos atermos com rigor a critérios de natureza médica encontra-se na teoria da causação patológica do gênio promulgada por autores recentes. “O gênio”, disse o Dr. Moreau, “é apenas um dos muitos galhos da árvore neuropática.” “O gênio”, diz o Dr. Lombroso, “é um sintoma da degeneração hereditária da variedade epileptiforme, aliado à insanidade moral.” “Toda vez que a vida de um homem”, escreve o Sr. Nisbet, “é ao mesmo tempo, bastante ilustre e lembrada com suficiente amplitude para ser tema de um estudo proveitoso, cai inevitavelmente na categoria mórbida … E é digno de nota que, via de regra, quanto maior o gênio, tanto maior a insanidade”.{3} Acaso esses autores, depois de haverem conseguido estabelecer, para sua própria satisfação, que as obras do gênio são frutos da moléstia, passam sistematicamente a impugnar o valor dos frutos? Deduzem eles um novo julgamento espiritual da sua nova doutrina das condições existenciais? Proíbem-nos francamente de admirar, daqui por diante, as produções do gênio? e dizem abertamente que nenhum neuropata poderá ser, algum dia, revelador de novas verdades? Não! seus instintos espirituais imediatos são fortíssimos aqui e resistem às inferências que, por simples amor à coerência lógica, o materialismo médico teria imenso prazer em proclamar. Um discípulo da escola, com efeito, diligenciou impugnar o valor das obras de gênio de modo indiscriminado (como as obras de arte contemporânea, que ele mesmo é incapaz de apreciar, e que são muitas) usando argumento médico.{4} Em sua maior parte, porém, as obras-primas são respeitadas; e a linha de ataque médica ou se restringe às produções seculares, que toda a gente admite serem intrinsecamente excêntricas, ou aplica-se exclusivamente às manifestações religiosas. E porque as manifestações religiosas já foram condenadas, o crítico não as aprecia por motivos internos ou espirituais. Nas ciências naturais e nas artes industriais jamais ocorre a alguém tentar refutar opiniões pondo a nu a constituição neurótica do autor. As opiniões aqui são invariavelmente testadas pela lógica e pela experiência, seja qual for o tipo neurológico de quem as esposa. Não deveria ser diferente em se tratando de opiniões religiosas. O seu valor só pode ser determinado por juízos espirituais que lhes digam diretamente respeito, juízos baseados, primeiro que tudo, em nosso sentimento imediato; e, em segundo lugar, no que podemos averiguar acerca de suas relações, conhecidas por experiência, com as nossas necessidades morais e com o resto do que julgamos verdadeiro. Em suma, a luminosidade imediata, a razoabilidade filosófica e o valor moral são os únicos critérios legítimos. Mesmo que Santa Teresa tivesse o sistema nervoso do mais plácido dos animais, isso não lhe salvaria a teologia se o exame da teologia feito pelos outros critérios lhe mostrasse a completa invalidade. E, inversamente, se a sua teologia pudesse enfrentar os outros critérios, pouco importaria que Santa Teresa tivesse sido histérica ou nervosamente desequilibrada quando vivia conosco aqui embaixo. Vêem os senhores que, no fundo, somos arremessados de volta aos princípios gerais pelos quais a filosofia empírica sempre sustentou que devemos ser guiados na busca da verdade. As filosofias dogmáticas têm procurado provas da verdade que nos dispensem de apelar para o futuro. Alguma marca direta, cuja observação nos protegeria imediata e absolutamente, agora e sempre, contra todos os erros - tal tem sido o sonho querido dos filósofos dogmáticos. É manifesto que a origem da verdade seria um critério admirável desse tipo se as várias origens pudessem ser discriminadas umas das outras a partir deste ponto de vista, e a história da opinião dogmática mostra que a origem sempre foi um critério favorito. A origem da intuição imediata; a origem da autoridade pontifícia; a origem da revelação sobrenatural, quer pela visão, quer pela audição, quer pela impressão indizível; a origem da possessão direta por um espírito superior, que se expressa em profecias e admoestações; a origem das expressões automáticas de um modo geral — essas origens têm sido fundos de garantia da verdade de uma série de opiniões que encontramos representadas na história religiosa. Os materialistas médicos, portanto, são apenas outros tantos dogmatistas retardatários, que torcem os argumentos dos predecessores utilizando o critério da origem de modo destrutivo, em vez de fazê-lo de modo construtivo. Eles só são eficazes com o seu discurso sobre a origem patológica quando o outro lado reivindica a origem sobrenatural e só o argumento derivado da origem está em discussão. Mas o argumento da origem raramente se usa sozinho, pois é obviamente insuficiente. O Dr. Maudsley talvez seja o mais sagaz dos contraditores da religião sobrenatural a partir do argumento da origem. E, todavia, vê-se constrangido a escrever: “Que direito temos nós de acreditar que a Natureza tem a obrigação de fazer o seu trabalho somente por meio de mentes completas? Para ela, uma mente incompleta pode parecer um instrumento mais adequado a determinado propósito. A única coisa que importa é o trabalho feito e a qualidade do trabalhador que o fez; e talvez não seja uma questão de muito peso, do ponto de vista cósmico, que ele careça singularmente de outras qualidades de caráter - que seja, com efeito, hipócrita, adúltero, excêntrico ou lunático. … Voltamos, portanto, ao antigo e último critério da certeza - a saber, o assenso comum do gênero humano, dos indivíduos competentes pela instrução e pela experiência.”{5} Em outras palavras, não é a origem, senão o modo com que ela opera sobre o todo, segundo o Dr. Maudsley, o critério final de uma crença. Tal é o nosso critério empírico; e esse critério também foi usado pelos mais rijos defensores da origem sobrenatural. Entre as visões e mensagens, algumas têm sido sempre demasiado tolas; entre os transes e raptos convulsivos, alguns têm sido tão infrutíferos para o comportamento e para o caráter, que não podem passar por significativos, quanto mais por divinos. Na história do misticismo cristão, o problema de discriminar entre as mensagens e experiências que foram realmente milagres divinos e outras que o demônio em sua malícia conseguiu contrafazer, tomando assim a pessoa religiosa duas vezes mais filha do inferno do que antes, sempre foi difícil de resolver, exigindo toda a sagacidade e toda a experiência do melhor dos diretores de consciência. No fim, tiveram de chegar ao nosso critério empiricista: Pelos frutos os conhecereis, não pelas raízes. O Tratado dos Afetos Religiosos, de Jonathan Edwards, é uma elaboração dessa tese. As raízes da virtude de um homem nos são inacessíveis. Nenhuma aparência pode constituir-se em prova infalível da graça. A prática é a única prova segura, até para nós, de que somos genuinamente cristãos. “Ao formar agora um juízo de nós mesmos”, escreve Edwards, “devemos por certo adotar o método de prova que o nosso Juiz supremo utilizará principalmente quando entrarmos à sua presença no derradeiro dia … Não existe uma só graça do Espírito de Deus, de cuja existência, em qualquer pessoa que professe a religião, a prática cristã não seja a prova mais decisiva … O grau em que a nossa experiência produz a prática mostra o grau em que a nossa experiência é espiritual e divina.” Os escritores católicos são igualmente enfáticos. As boas disposições que uma visão, ou voz, ou outro aparente favor divino deixam após si são os únicos sinais que nos dão a certeza de que não se trata de possíveis enganos do tentador. Diz Santa Teresa: “Como o sono imperfeito que, em vez de dar mais força à cabeça, a deixa ainda mais exausta, o resultado de meras operações da imaginação é o enfraquecimento da alma. Em lugar de nutrição e energia, ela colhe tão-só lassidão e repugnância: ao passo que uma visão celeste autêntica lhe proporciona uma messe de inefáveis riquezas espirituais e uma admirável renovação das forças do corpo. Opus essas razões aos que tão frequentemente acusaram minhas visões de ser obra do inimigo do gênero humano e desporto da minha imaginação … Mostrei- lhes as jóias que a mão divina deixara comigo: - minhas verdadeiras disposições. Todos quantos me conheciam perceberam que eu estava mudada; meu confessor foi testemunha disso; a melhoria, palpável em todos os sentidos, longe de estar oculta, era brilhantemente evidente para todos os homens. Quanto a mim, fora impossível acreditar que, se o demônio fosse o seu autor, lançasse mão a fim de me perder e me levar ao inferno, de um expediente tão contrário aos seus próprios interesses, como erradicar meus vícios e encher-me de coragem masculina e de outras virtudes, pois conheci claramente que uma só dessas visões era suficiente para enriquecer-me com todos aqueles tesouros.”{6} Receio ter feito uma dissertação mais longa do que o necessário, e que menor quantidade de palavras teria bastado a dissipar o desassossego que pode ter salteado alguns dos senhores quando anunciei o meu programa patológico. Como quer que seja, todos os senhores devem estar agora preparados para julgar a* vida religiosa exclusivamente pelos resultados, e presumirei que o bicho-papão da origem mórbida já não lhes escandalizará a piedade. Ainda assim, poderão perguntar-me se os resultados têm de ser a base da nossa avaliação espiritual final de um fenômeno religioso, por que ameaçar-nos com tamanho estudo existencial de suas condições? Por que não deixar simplesmente de fora as questões patológicas? A isso respondo de duas maneiras: primeira, a curiosidade irreprimível nos impele irresistivelmente para a frente; e, segunda, sempre nos leva a um entendimento melhor da significação de uma coisa o exame dos seus exageros e perversões, dos seus equivalentes e substitutos e dos fenômenos afins em todos os sentidos. Não que possamos, por esse modo, incluir a coisa na condenação por atacado que estendemos aos seus congêneres inferiores, senão que podemos, pelo contraste, definir-lhe mais precisamente os méritos, e aprender, ao mesmo tempo, os perigos especiais da corrupção a que ela pode estar exposta. As condições insanas têm a vantagem de isolar fatores especiais da vida mental e permitir-nos inspecioná-las desmascaradas pelos seus concomitantes mais comuns. Elas desempenham, na anatomia mental, o papel que o bisturi e o microscópio representam na anatomia do corpo. Para bem compreender uma coisa precisamos vê-la não só fora mas também dentro do seu ambiente, e ter conhecimento de toda a série das suas variações. O estudo das alucinações tem sido, dessa maneira, para os psicólogos, a chave da compreensão da sensação normal, assim como o estudo das ilusões tem propiciado a chave da compreensão da percepção. Os impulsos mórbidos e as concepções imperativas, as chamadas “idéias fixas”, projetaram torrentes de luz sobre a psicologia da vontade normal; e as obsessões e delírios executaram o mesmo serviço para o estudo da faculdade normal da crença. De maneira semelhante, a natureza do gênio tem sido iluminada pelas tentativas, das quais já fiz menção, de classificá-lo entre os fenômenos psicopáticos. A insanidade fronteiriça, a excentricidade, o temperamento insano, a perda do equilíbrio mental, a degeneração psicopática (para usar alguns dos muitos sinônimos pelos quais tem sido chamado), tem certas peculiaridades e suscetibilidades que, ao se combinar com uma qualidade superior do intelecto num indivíduo, toma mais provável que ele venha a deixar a própria marca na sua época e influa nela, do que se o seu temperamento fosse menos neurótico. Claro está que não existe nenhuma afinidade especial entre a excentricidade como tal e o intelecto superior,{7} pois a maioria dos psicopatas possui intelectos fracos e os intelectos superiores, o mais das vezes, possuem sistemas nervosos normais. Mas o temperamento psicopático, seja qual for o intelecto com o qual se emparelha, não raro traz consigo ardor e excitabilidade de caráter. A pessoa excêntrica tem extraordinária suscetibilidade emocional. Está sujeita a idéias fixas e a obsessões. Suas concepções tendem a passar imediatamente da crença à ação; e quando lhe acode uma nova idéia, não descansa enquanto não a proclama ou, de certo modo, não a “descarrega”. “Que devo pensar disso?” pergunta a si mesma a pessoa comum a respeito de uma questão muito debatida. “Que devo fazer sobre isso?” é a forma que a pergunta tende a assumir num espírito “excêntrico”. Na autobiografia daquela mulher de alma grande, a Sra. Annie Besant, leio o trecho seguinte: “Muitas pessoas nutrem bons sentimentos para com qualquer boa causa, mas poucas se esforçam por ajudá-la, e muito poucas arriscarão alguma coisa para apoiá-la. ‘Alguém deve fazê-lo, mas por que eu?’ é a pergunta sempre repetida pela amabilidade irresoluta. ‘Alguém deve fazê-lo, por que não eu?’ é o grito de algum zeloso servo do homem, que se atira, animoso, para a frente a fim de enfrentar algum dever perigoso. Entre essas duas sentenças jazem séculos inteiros de evolução moral”. Nada mais verdadeiro! e entre essas duas sentenças jazem também os destinos diferentes do preguiçoso homem comum e do psicopata. Destarte, quando um intelecto superior e um temperamento psicopático se unem - e nas intermináveis permutações e combinações das faculdades humanas eles estão sujeitos a unir-se com muita frequência - no mesmo indivíduo, temos a melhor condição possível para o surgimento da casta de gênio operante com que topamos nos dicionários biográficos. Homens assim não se limitam a criticar e conhecer com o intelecto. Suas idéias os possuem e eles as impõem, para o bem ou para o mal, aos companheiros ou à sua época. São os enumerados quando os Srs. Lombroso, Nisbet e outros invocam estatísticas em defesa do seu paradoxo. Para passar agora aos fenômenos religiosos, tome-se a melancolia, que constitui, como veremos, um momento essencial em toda evolução religiosa completa. Tome-se a felicidade que a crença religiosa perfeita confere. Tomem-se os transes de visão interior da verdade que todos os místicos religiosos descrevem.{8} Cada um deles e todos em geral são casos especiais de tipos de experiência humana de muito maior extensão. A melancolia religiosa, sejam quais forem as peculiaridades que possa ter qua religiosa, não deixa de ser melancolia. A felicidade religiosa é felicidade. O transe religioso é transe. E a partir do momento em que renunciamos à noção absurda de que abandonamos uma coisa assim que a classificamos com outras, ou que sua origem se manifesta; a partir do momento em que concordamos em usar os resultados experimentais e a qualidade interior ao fazer um julgamento de valores - quem não vê que provavelmente determinaremos muito melhor o valor distintivo da melancolia e da felicidade religiosas, ou dos transes religiosos, comparando-os tão conscienciosamente quanto pudermos com as outras variedades de melancolia, felicidade e transe, do que se nos recusarmos a considerá-los dentro de um quadro de classificação geral muito mais vasta e os tratarmos como se estivessem completamente fora da ordem da natureza? Espero que o curso destas conferências nos confirme nesta suposição. No que tange à origem psicopática de tantos fenômenos religiosos, isso não seria para nós surpreendente nem desconcertante, ainda que tais fenômenos viessem estigmatizados do alto como as mais preciosas dentre as experiências humanas. Nenhum organismo fornece a quem o possui a forma completa da verdade. Quase todos nós, de algum modo, somos frágeis, se não enfermos; e nossas próprias enfermidades nos ajudam de forma inesperada. No temperamento psicopático temos a emocionalidade, que é o sine qua non da percepção moral; temos a intensidade e a tendência para a ênfase, que são a essência do vigor moral prático; e temos o amor da metafísica e do misticismo, que impele nossos interesses para além da superfície do mundo sensível. Que haverá, então, de mais natural que esse temperamento nos introduza em regiões de verdade religiosa, em cantos do universo que o sistema nervoso do nosso robusto filisteu, que vive oferecendo o bíceps para ser apalpado, que vive inflando o peito e agradecendo ao Céu por não ter uma única fibra mórbida em sua composição, esconderá, de certo, para sempre, dos seus satisfeitos possuidores? Se existisse alguma coisa como a inspiração vinda de um reino superior, pode ser que o temperamento neurótico fornecesse a condição principal da necessária receptividade. E, tendo dito isso, creio que posso deixar para trás a questão da religião e do neuroticismo. A massa de fenômenos colaterais, mórbidos ou sãos, com que precisamos cotejar os vários fenômenos religiosos para poder compreendêlos melhor, forma o que na gíria da pedagogia se denomina “a massa aperceptiva” pela qual os compreendemos. A única novidade que posso imaginar possua este curso de conferências reside na amplitude da massa aperceptiva. Eu talvez consiga discutir as experiências religiosas num contexto mais amplo do que o que tem sido habitual nos cursos universitários. II Conferência DELIMITAÇÃO DO ASSUNTO A maioria dos livros sobre a filosofia da religião tenta começar com uma definição precisa daquilo em que consiste a sua essência. Poderemos esbarrar em algumas dessas pretensas definições em segmentos subsequentes deste curso, e não serei tão pedante que as enumere agora. Entrementes, o próprio fato de serem elas tão numerosas e tão diferentes uma da outra basta para provar que a palavra “religião” não significa nenhum princípio ou essência singular, mas é antes um nome coletivo. A mente teorizante tende sempre para a super simplificação dos seus materiais. Essa é a raiz de todo o absolutismo e dogmatismo unilateral de que tanto a filosofia quanto a religião têm sido infestadas. Não resvalemos, porém, de pronto, a um ponto de vista parcial do nosso assunto, mas admitamos antes, desde o princípio, que muito provavelmente não encontraremos uma essência única, senão muitos caracteres que podem ser, de forma alternada, igualmente importantes na religião. Se perguntássemos a várias pessoas qual é a essência do “governo”, por exemplo, uma diria que é a autoridade, outra a submissão, outra a polícia, outra um exército, outra uma assembléia, outra um sistema de leis; e, contudo, na verdade nenhum governo concreto pode existir sem todas essas coisas, uma das quais é mais importante em determinado momento e outras em outro. O homem que mais conhece governos é o que menos se preocupa com dar-lhe uma definição essencial. Conhecendo a fundo e com intimidade todas as suas particularidades, cada qual por seu turno, ele encararia naturalmente uma concepção abstrata, em que todas estivessem juntas, como coisa mais apta a despistar do que a esclarecer. E por que não pode ser a religião uma concepção igualmente complexa?{9} Consideremos também o “sentimento religioso”, que vemos mencionado em tantos livros, como se fosse uma espécie única de entidade mental. Nas psicologias e filosofias da religião, encontramos os autores tentando especificar com precisão a espécie de entidade que ela é. Uma pessoa a liga ao sentimento de dependência; outra, a deriva do medo; outras a ligam à vida sexual; outras ainda a identificam com o sentimento do infinito; e assim por diante. Tais maneiras diferentes de concebê-la geram, por si mesmas, dúvidas quanto à possibilidade de ser ela uma coisa específica; e quando nos sentimos dispostos a tratar a expressão “sentimento religioso” como um nome coletivo para os muitos sentimentos que os objetos religiosos podem despertar com alternação, vemos que ela, com certeza, nada contém de uma natureza psicologicamente específica. Existe o medo religioso, o amor religioso, o terror religioso, a alegria religiosa, etc. Mas o amor religioso é apenas a natural emoção humana do amor dirigida a um objeto religioso; o medo religioso é tão-somente o medo comum da vida de todos os dias, por assim dizer, o tremor corriqueiro do peito humano, na medida em que a noção do castigo divino pode ocasioná-lo; o terror religioso é o mesmo estremecimento orgânico que sentimos numa floresta ao crepúsculo, ou no meio de um desfiladeiro; só que desta vez ele nos salteia à idéia das nossas relações sobrenaturais; e o mesmo se poderá dizer de todos os vários sentimentos que podem ser chamados a intervir na vida das pessoas religiosas. Como estados concretos de espírito, feitos de um sentimento mais um tipo específico de objeto, as emoções religiosas, naturalmente, são entidades psíquicas distinguíveis de outras emoções concretas; mas não existe fundamento para a presunção da existência de uma Simples e abstrata “emoção religiosa” como afeição mental elementar distinta por si mesma, presente em toda experiência religiosa, sem exceção. Nessas condições, como não parece existir nenhuma emoção religiosa elementar, mas apenas um cúmulo comum de emoções sobre o qual os objetos religiosos podem formar-se, assim também se pode provar concebível- mente que não existe nenhum tipo específico e essencial de objeto religioso, e nenhum tipo específico e essencial de ato religioso. Sendo o campo da religião tão vasto assim, é manifestamente impossível que eu me abalance a cobri-lo. Minhas conferências terão de limitar-se a uma fração do assunto. E conquanto fosse, de fato, tolice propor uma definição abstrata da essência da religião, e depois passar a defendê-la contra todos os ataques, isso não me impedirá de formular minha própria visão restrita do que será a religião para o propósito destas conferências, ou, dentre os muitos significados da palavra, de escolher o significado em que desejo interessar particularmente os senhores, e proclamar arbitrariamente que, ao falar em “religião”, estou-me referindo a essa determinada coisa. Isso, de fato, é o que tenho de fazer; e, agora, começo procurando demarcar o campo que escolhi. Uma forma fácil de marcá-lo consiste em enumerar os aspectos do tema que deixamos de lado. No princípio, chama-nos a atenção uma grande linha divisória que atravessa o campo religioso. De um lado, fica a religião institucional, de outro, a religião pessoal. Como diz o Sr. P. Sabatier, um ramo da religião visa mais à divindade, o outro, ao homem. O culto e o sacrifício, processos para influir nas disposições da divindade, a teologia, a cerimônia e a organização eclesiástica, são os elementos essenciais do ramo institucional da religião. Se nos fosse preciso limitar-nos a ele, teríamos de definir a religião como uma arte externa, a arte de granjear o favor dos deuses. No ramo mais pessoal, pelo contrário, são as disposições interiores do próprio homem que formam o centro de interesse, sua consciência, seus abandonos, seu desvalimento, sua imperfeição. E conquanto o favor do Deus, confiscado ou conquistado, ainda seja uma característica essencial da história, em que a teologia representa uma parte vital, os atos a que essa espécie de religião induz são atos pessoais e não rituais; o indivíduo faz o negócio sozinho, por si mesmo, e a organização eclesiástica, com seus padres, sacramentos e outros intermediários, é relegada a um lugar de todo secundário. A relação se estabelece, direta, de coração para coração, de alma para alma, entre o homem e seu criador. Ora, nestas conferências proponho-me deixar completamente de parte o ramo institucional, não dizer nada sobre a organização eclesiástica, considerar o menos possível a teologia sistemática e as idéias a respeito dos próprios deuses, e restringir-me, tanto quanto me for possível, à religião pessoal pura e simples. Para alguns dos senhores, a religião pessoal, consideradamente assim, parecerá, sem dúvida, uma coisa tão incompleta que não faz jus ao nome genérico. “É uma parte da religião”, dirão, “mas apenas o seu rudimento desorganizado; se tivéssemos de nomeá-la por si mesma, fora melhor chamar-lhe consciência ou moral do homem em lugar de sua religião. O nome ‘religião’ deve ser reservado para o sistema plenamente organizado de sentimentos, pensamentos e instituição, para a Igreja, em suma, da qual essa chamada religião pessoal não passa de um elemento fracionário.” Mas se os senhores disserem uma coisa dessas, apenas mostrarão de forma ainda mais patente que o problema da definição propende a tomar-se um debate a respeito de nomes. Para não prolongar uma disputa nessa ordem, estou disposto a aceitar, praticamente, qualquer nome para a religião pessoal que me proponho a tratar. Chamem-lhe consciência ou moral, se preferirem, e não religião - seja qual for o nome que lhe derem ela será igualmente merecedora do nosso estudo. Quanto a mim, creio que ela mostrará conter elementos que a moral pura e simples não contém, e logo buscarei indicar esses elementos; por isso continuarei a aplicar-lhe a palavra “religião”; e, na última conferência, apresentarei as teologias e os eclesiasticismos, e direi alguma coisa de sua relação com eles. Num sentido, pelo menos, a religião pessoal se revelará mais fundamental do que a teologia ou o eclesiasticismo. Depois de estabelecidas, as igrejas passam a viver de uma tradição de segunda mão; mas os fundadores de cada igreja deveram o poder, originalmente, à sua comunhão direta e pessoal com o divino. Não somente os fundadores sobre-humanos, o Cristo, o Buda, Maomé, mas todos os instituidores de seitas cristãs estão nesse caso; de modo que a religião pessoal deve ainda parecer primordial até aos que continuam a julgá-la incompleta. Existem, é verdade, na religião outras coisas cronologicamente anteriores à devoção pessoal no sentido moral. O fetichismo e a magia parecem haver precedido historicamente a piedade interior - pelo menos os nossos registros de piedade interior não chegam tão longe. E se o fetichismo e a magia forem encarados como estágios da religião, poderemos dizer que a religião pessoal no sentido interior e os eclesiasticismos genuinamente espirituais que ela funda são fenômenos de ordem secundária e até terciária. Mas, tirante o fato de muitos antropólogos - como, por exemplo, Jevons e Frazer - oporem expressamente uma à outra “religião” e “magia”, é certo que todo o sistema de pensamento que conduz à magia, ao fetichismo e às superstições inferiores tanto pode ser cognominado ao fetichismo e às superstições inferiores tanto pode ser cognominado ciência primitiva quanto religião primitiva. A questão, portanto, volta a ser verbal; e o nosso conhecimento de todas essas fases primitivas de pensamento e sentimento é tão conjetural e imperfeito que não vale a pena prolongar-lhes a discussão. A religião, por conseguinte, como agora lhes peço arbitrariamente que a aceitem, significará para nós os sentimentos, atos e experiências de indivíduos em sua solidão, na medida em que se sintam relacionados com o que quer que possam considerar o divino. Uma vez que a relação tanto pode ser moral quanto física ou ritual, é evidente que da religião, no sentido em que a aceitamos, podem brotar secundariamente teologias, filosofias e organizações eclesiásticas. Nestas conferências, no entanto, como eu já disse, as experiências pessoais imediatas encherão mantos que farte o nosso tempo, e escassamente trataremos de teologia ou eclesiasticismo. Essa definição arbitrária do nosso campo forra-nos a muitas questões controvertidas. Mas ainda assim, uma possibilidade de controvérsia nos aparece a respeito da palavra “divino”, se a definirmos num sentimento demasiado restrito. Existem sistemas de pensamento que costumamos chamar de religiosos mas que, na verdade, não postulam de forma positiva um Deus. O Budismo está nesse caso. Popularmente, é claro, o próprio Buda se coloca no lugar de um Deus; estritamente falando, porém, o sistema budista é ateístico. O idealismo transcendental moderno, o Emersonismo, por exemplo, também parece deixar Deus evaporar-se na Idealidade abstrata. Não uma divindade in concreto, não uma pessoa sobre-humana, mas a divindade imanente nas coisas, a estrutura essencialmente espiritual do universo, é o objeto do culto transcendentalista. No discurso dirigido por Emerson aos formandos do Divinity College em 1838, que o celebrizou, a expressão franca desse culto de meras leis abstratas foi o que provocou o escândalo maior. “Estas leis”, disse o orador, “cumprem-se por si mesmas. Elas estão fora do tempo, fora do espaço, e não sujeitas à circunstância: Assim, na alma do homem há uma justiça cujas retribuições são instantâneas e inteiras. Aquele que pratica uma boa ação é instantaneamente enobrecido. Aquele que pratica um ato vil é diminuído pelo próprio ato. Quem repele a impureza veste-se de pureza. Se for justo de coração, o homem será Deus enquanto justo; a segurança de Deus, a imortalidade de Deus, a majestade de Deus penetram nesse homem com a justiça. Se um homem dissimula e engana, engana-se a si mesmo e perde o conhecimento do próprio ser. O caráter é sempre conhecido. Os roubos nunca enriquecem; as esmolas nunca empobrecem; do assassínio falarão todas as paredes de pedra. A menor mescla de mentira - como, por exemplo, o vício da vaidade, qualquer tentativa de causar boa impressão, de mostrar uma aparência favorável viciará instantaneamente o efeito. Se ele, porém, falar verdade, todas as coisas vivas ou brutas lhe serão fiadoras, e até as raízes da relva debaixo da terra parecerão agitar-se e mover-se para dar o seu testemunho. Pois todas as coisas procedem do mesmo espírito, que é diferentemente chamado de amor, justiça, temperança, em suas diferentes aplicações, assim como o oceano recebe nomes diferentes nas diversas praias que banha. Na medida em que se afasta desses limites, o homem se despoja de poder, de auxiliares. O seu ser se contrai … ele se faz cada vez menor, um grão de poeira, um ponto, até que a maldade absoluta é a morte absoluta. A percepção dessa lei desperta na mente um sentimento que denominamos sentimento religioso e que faz a nossa maior felicidade. Maravilhoso é o seu poder de encantar e comandar. É um ar de montanha, que perfuma o mundo. Sublima o céu e as colmas, e é o canto silente das estrelas. É a beatitude do homem. Fá-lo incomensurável. Quando ele diz ‘devo’; quando o amor o admoesta; quando ele escolhe, avisado do alto, o bom e o grande feito; profundas melodias lhe invadem a alma, inspiradas pela sabedoria suprema. E ele, então, pode adorar e ser engrandecido pela sua adoração; pois nunca poderá subtrair-se a esse sentimento, cujas expressões são todas sagradas e permanentes na proporção de sua pureza. [Elas] nos afetam mais do que todas as outras composições. As sentenças de outro tempo, que destilam essa piedade, ainda são frescas e flagrantes. E a impressão única de Jesus sobre a humanidade, cujo nome não está escrito mas arado na história deste mundo, é prova da virtude sutil dessa infusão.”{10} Tal é a religião emersoniana. O universo tem uma alma divina de ordem, alma moral, que é também a alma que existe na alma do homem. Mas se a alma do universo é uma simples qualidade, como o brilho dos olhos ou a suavidade da pele, ou uma vida consciente de si mesma, como a visão dos olhos ou a sensação da pele, é uma decisão que nunca aparece, inequívoca, nas páginas de Emerson. Ela palpita na fronteira entre uma e outra coisa, inclinando-se às vezes para um lado, às vezes para outro, a fim de ajustar-se mais à necessidade literária do que à filosófica. Entretanto, seja o que for, é ativa. Tanto quanto se fosse um Deus, podemos confiar-lhe a proteção de todos os interesses ideais e a manutenção do equilíbrio do mundo. Ás sentenças com que Emerson, no fim, dá expressão a essa fé são tão belas quanto as que mais o sejam na literatura: “ Se amardes e servirdes os homens, não podereis, por nenhum estratagema ou tentativa de esconder-vos, escapar à remuneração. Retribuições secretas estão sempre restaurando o nível, quando perturbado, da justiça divina. É impossível alterar o travessão da balança. Todos os tiranos, proprietários e monopolistas do mundo metem ombros, em vão, à tarefa de mover-lhe o fiel. Acomoda para todo o sempre o ponderoso equador em sua linha; e o homem e o grão de poeira, a estrela e o sol, ou se modelam por ela ou são pulverizados pelo movimento de reação.”{11} Ora, seria absurdo dizer que as experiências interiores que provocam expressões de fé como essa e impelem o escritor a pô-las por escrito não merecem o nome de experiências religiosas. O tipo de atração que o otimismo emersoniano, de um lado, e o pessimismo budista, de outro, exercem sobre o indivíduo e o tipo de resposta que ele lhes dá em sua vida não se distinguem, de fato, da melhor atração e resposta cristã e, em muitos sentidos, são idênticas a elas. Precisamos, portanto, do ponto de vista da experiência, chamar esses credos ímpios ou quase ímpios de “religiões”; e, consequentemente, quando em nossa definição de religião falamos da relação do indivíduo com “o que ele considera divino”, faz-se mister interpretarmos o termo “divino” de modo muito lato, como se denotasse qualquer objeto semelhante à divindade, seja ele uma divindade concreta ou não. Mas a expressão “semelhante a Deus”, assim tratada como uma vaga qualidade geral, toma-se excessivamente indeterminada, pois muitos deuses floresceram na história religiosa, e seus atributos têm sido assaz discrepantes. Que é então essa qualidade essencialmente semelhante a Deus esteja ela incorporada numa divindade concreta, ou não - a nossa relação com a qual nos determina o caráter como homens religiosos? Não será de todo inútil buscarmos alguma resposta para isso antes de seguir adiante. Em primeiro lugar, concebem-se os deuses como as primeiras coisas no campo do ser e do poder. Eles nos cobrem e envolvem e deles não há escapar. O que se relaciona com eles é a primeira e a última palavra no caminho da verdade. O que quer que fosse então mais primevo, envolvente e profundamente verdadeiro, nesse caso, seria tratado como semelhante a Deus, e a religião de um homem poderia, assim, identificar-se com a sua atitude, fosse ela qual fosse, com o que ele julgasse ser a verdade primordial. Uma definição como essa, de certo modo, encontraria defensores. A religião, seja ela qual for, é a reação total de um homem à vida; portanto, por que não dizer que qualquer reação total à vida é uma religião? As reações totais diferem das reações casuais, e as atitudes totais diferem das atitudes usuais ou profissionais. Para chegar a elas precisamos colocar-nos atrás do primeiro plano da existência e estender a mão àquele curioso sentido do cosmo residual total como presença sempiterna, íntima ou estranha, terrível ou divertida, amável ou odiosa, que em certo grau todos possuímos. Esse sentido da presença do mundo, atraente como é para o nosso temperamento individual peculiar, nos faz esforçados ou negligentes, devotos ou blasfemos, macambúzios ou exultantes, diante da vida em geral; e a nossa reação, involuntária, ininteligível e amiúde inconsciente, é a mais completa de todas as respostas que damos à pergunta: “Qual é o caráter do universo que habitamos?” Ela expressa o sentido individual que temos dele da maneira mais definida. Por que, então, não apelidarmos de nossa religião tais reações, seja qual for o caráter específico que elas tenham? Embora possam ser irreligiosas, num dado sentido da palavra “religioso”, algumas dessas reações pertencem à esfera geral da vida religiosa e, portanto, devem ser classificadas genericamente como reações religiosas. “Ele acredita no NãoDeus, e o adora”, disse um colega meu a respeito de um estudante que manifestava um belo ardor ateísta; e os mais fervorosos adversários da doutrina cristã têm exibido, com muita frequência, uma índole que, psicologicamente falando, não se distingue do zelo religioso. Mas um emprego tão lato da palavra “religião” seria inconveniente, por mais defensável que fosse no terreno da lógica. Estas atitudes são fúteis e até escarninhas para com o conjunto da vida; e há homens em que elas são finais e sistemáticas. Seria forçar demasiado o emprego ordinário da língua qualificar de religiosas tais atitudes, muito embora, do ponto de vista de uma filosofia crítica despojada de preconceitos, elas possam ser tidas por maneiras perfeitamente razoadas de encarar a vida. Voltaire, por exemplo, assim escreve a um amigo, aos setenta e três anos de idade: “Quanto a mim”, diz ele, “fraco como sou, prossigo na guerra até o derradeiro momento, levo uma centena de chuçadas, devolvo duas centenas, e morro de rir. Vejo ao pé da minha porta Genebra incendiada por brigas sem propósito, e morro de rir outra vez; e, graças a Deus, posso ver no mundo uma farsa até quando ela se toma trágica, como às vezes acontece. Tudo se acalma quando se acaba o dia, e tudo se acalma ainda mais quando todos os dias se acabam”. Por mais que admiremos um robusto e velho espírito de galo de briga como esse num valetudinário, chamar-lhe espírito religioso seria estranho. No entanto, essa é, no momento, a reação de Voltaire ao complexo da vida. Je m’en fiche é o vulgar equivalente francês da nossa expressão “Pouco se me dá”. E a feliz expressão je m’en fichisme foi recentemente inventada para designar a determinação sistemática de não levar nada na vida muito a sério. “Tudo é vaidade” é a palavra de desafogo que nos oferece um modo de pensar semelhante em todas as crises difíceis, que o primoroso gênio literário de Renan se comprazia, em seus últimos dias de doce decadência, em pôr em formas deliciosamente sacrílegas, que ficaram para nós como excelentes expressões do estado de espírito segundo o qual “tudo é vaidade”. Tome-se, por exemplo, o passo seguinte - precisamos ater-nos ao dever, até contra a evidência, diz Renan, - que depois continua: “Existem muitas probabilidades de que o mundo não seja mais do que uma fantástica pantomima de que nenhum Deus se ocupa. Precisamos, portanto, arranjar-nos de modo que em nenhuma hipótese estejamos completamente errados. Precisamos atentar para as vozes superiores, porém de tal maneira que, se a segunda hipótese for verdadeira, não tenhamos sido tão excessivamente enganados. Se, com efeito, o mundo não fosse uma coisa séria, as pessoas dogmáticas seriam as néscias, e as que tivessem o espírito voltado para as mundanidades e que os teólogos chamam hoje de frívolas seriam as realmente sábias. “Portanto, in utrumque paratus. Estejamos preparados para o que der e vier - isso talvez seja sabedoria. Entreguemo-nos, de acordo com a hora, à confiança, ao ceticismo, ao otimismo, à ironia, e poderemos estar certos de que; pelo menos em determinados momentos, estaremos com a verdade … O bom humor é um estado de espírito filosófico; parece dizer à Natureza que não a levamos mais a sério do que ela nos leva a nós. Sustento que sempre nos cumpre falar de filosofia com um sorriso. Devemos ao Eterno o ser virtuosos; mas temos o direito de ajuntar a esse tributo nossa ironia como uma espécie de represália pessoal. Dessa maneira, devolvemos ao pé da letra brincadeira por brincadeira; pregamos a peça que nos foi pregada. A frase de Santo Agostinho: Senhor, se formos enganados, sê-lo-emos por ti! continua a ser uma bela frase, bem adequada ao nosso sentimento moderno. Só queremos que o Eterno saiba que, se aceitamos a fraude, aceitamo-la consciente e voluntariamente. Estamos resignados de antemão a perder os juros dos nossos investimentos na virtude, mas não queremos parecer ridículos por haver confiado com demasiada segurança neles”. Todas as costumeiras associações da palavra “religião” teriam de ser descartadas se um sistemático parti pris de ironia como esse também fosse designado pelo mesmo nome. Para os homens comuns, “religião”, seja qual for o significado mais especial que possa ter, significa sempre um estado de espírito sério. Se com alguma frase pudéssemos sintetizar-lhe a mensagem universal, esta seria: “Nem tudo é vaidade no Universo, seja o que for que as aparências possam sugerir”. Se a religião, entendida no sentido mais comum, é incompatível com alguma coisa, esta é o humorismo escarninho de Renan. Ela favorece a gravidade, não a petulância; impõe silêncio a todas as vãs tagarelices e agudezas de espírito. Mas se é hostil à ironia leve, a religião hostiliza igualmente as rabugens e lamúrias pesadas. O mundo aparece assaz trágico em algumas religiões, mas a tragédia é entendida como depuradora, e admite-se a existência de um modo de libertação. Analisaremos que-farte a melancolia religiosa numa futura conferência; mas a melancolia, de acordo com o uso comum da língua, perde todo o direito a ser chamada religiosa quando, segundo as palavras estimulantes de Marco Aurélio, o paciente não faz outra coisa senão espernear e berrar à maneira de um porco sacrificado. O humor de um Schopenhauer ou de um Nietzsche - e, em grau menor, podemos, às vezes, dizer o mesmo do nosso merencório Carlyle -, embora seja frequentemente uma tristeza enobrecedora, é quase tão frequentemente simples rabugice fugindo com o bocado entre os dentes. As argúcias dos dois autores alemães nos recordam, a cada instante, os guinchos mórbidos de dois ratos {12} agonizantes. Falta-lhes o elemento de purificação que emana da tristeza religiosa. Deve haver algo solene, sério e temo em relação a qualquer atitude que denominamos religiosa. Alegre, não sorri nem casquina; triste, não grita nem maldiz. É precisamente por serem experiências solenes que desejo interessálos nas experiências religiosas. Por isso proponho - mais uma vez arbitrariamente, se quiserem — estreitar novamente a nossa definição dizendo que a palavra “divino”, no sentido em que a empregamos, não significará para nós simplesmente o primitivo, o envolvente e o real pois, aceito sem restrições, esse significado pode revelar-se demasiado lato. O divino significará para nós tão-só uma realidade primitiva, de tal natureza que o indivíduo se sente impelido a responder-lhe solene e gravemente, e nunca com uma imprecação nem com um chiste. Mas a solenidade, a gravidade e todos os atributos emocionais dessa casta, admitem vários matizes; e façamos nós o que fizermos com a nossa definição, a verdade terá de ser afinal enfrentada, e a verdade é que estamos lidando com um campo de experiência em que não há uma única concepção que possa ser traçada com nitidez. A pretensão, em tais circunstâncias, de ser rigorosamente “científico” ou “exato” em nossos termos serviría apenas de marcar-nos como falhos na compreensão da tarefa que nos incumbe. As coisas são mais ou menos divinas, os estados de espírito são mais ou menos religiosos, as reações são mais ou menos totais, mas as fronteiras são sempre nevoentas, e em toda a parte a questão é de quantidade e de grau. Não obstante, no extremo do seu desenvolvimento, as experiências religiosas nunca permitirão a menor incerteza sobre a sua natureza. A divindade do objeto e a solenidade da reação são tão bem marcadas que não dão margem à dúvida. A hesitação quanto a ser um estado de espírito “religioso”, “irreligioso”, “moral” ou “filosófico” só tende a manifestar-se quando o estado de espírito é fracamente caracterizado mas, nesse caso, ele provavelmente não será digno do nosso estudo. Não devemos perder tempo com estados que só por cortesia podem ser denominados religiosos, visto que só será proveitoso o nosso trato daquilo que ninguém pode sentir-se tentado a chamar de outra coisa. Afirmei na conferência anterior que ficamos sabendo mais acerca de alguma coisa quando a examinamos através de um microscópio, por assim dizer, ou em sua forma mais exagerada. Isso é tão verdadeiro no que concerne aos fenômenos religiosos quanto ao que respeita a qualquer outra espécie de fato. Os únicos casos que propendem a ser tão profícuos que nos recompensem a atenção, por conseguinte, são aqueles em que o espírito religioso é inequívoco e extremo. Podemos passar tranquilamente ao largo das suas manifestações mais fracas. Aqui, por exemplo, está a reação total à vida de Frederick Locker Lampson, cuja autobiografia, intitulada “Confldences”, mostra que ele foi um homem muito amável. “Estou tão resignado com a minha sorte que escasso pesar me proporciona a idéia de separar-me do que se tem chamado o hábito aprazível da existência, a doce fábula da vida. Não se me daria viver outra vez a minha vida vazia e, assim, prolongar-lhe a duração. É estranho dizê-lo, mas tenho pouca vontade de ser mais moço. Submeto-me com um frio no coração. Submeto-me humildemente porque essa é a Vontade Divina e tal é o meu destino. Apavora-me o aumento das enfermidades que me transformarão num fardo para os que me rodeiam, para os que me são caros. Não! Seja-me permitido escapulir a furto, tão calma e confortavelmente quanto eu puder. Que venha o fim, se com ele vier a paz. “Não sei se há muita coisa para dizer em louvor deste mundo, ou da nossa estada nele; mas aprouve a Deus colocar-nos aqui, e isso deve aprazer-me também. Pergunto-vos, que é a vida humana? Não é uma felicidade mutilada - cuidados e fadigas, fadigas e cuidados, com a expectativa infundada, a estranha burla, de um amanhã mais brilhante? Pelo menos não passa de uma criança teimosa, com a qual é preciso brincar e condescender, para mantê-la tranquila até que adormeça, quando, então, os cuidados se findam.”{13} Esse é um estado de espírito complexo, temo, submisso e gracioso. No que me diz respeito, eu não faria objeções a chamar-lhe, em conjunto, religioso, embora deva dizer que, para muitos dos senhores, ele talvez pareça tão indiferente e frouxo que não merece um nome tão bom. Mas, afinal de contas, que importa chamarmos a um estado de espírito desse gênero religioso ou não? Seja como for, isso é por demais insignificante para a nossa instrução; e o seu próprio possessor o escreveu em termos que não teria usado se não estivesse pensando nas disposições de ânimo mais energicamente religiosas de outras pessoas, com as quais se julgava incapaz de competir. É só nesses estados mais enérgicos que se concentra o nosso interesse, e podemos deixar perfeitamente que escapem as notas menores e as fronteiras incertas. Eram os casos extremos que eu tinha em mente há pouco ao dizer que a religião pessoal, mesmo sem teologia ou ritual, mostraria possuir elementos que a moral pura e simples não contém. Os senhores hão de estar lembrados talvez de que prometí indicar logo esses elementos. De um modo geral, posso dizer agora o que eu estava pensando. “Aceito o universo” era, dizem, uma afirmação favorita da nossa transcendentalista da Nova Inglaterra, Margaret Fuller; e quando alguém repetiu essa frase a Thomas Carlyle, diz-se também que o seu sardônico comentário foi este: “E bem é que o faça!” No fundo, todo o interesse, tanto da moral quanto da religião, diz respeito à maneira da nossa aceitação do universo. Aceitamo-lo apenas em parte e mau grado nosso, ou de boa vontade e totalmente? Devem os nossos protestos contra certas coisas nele existentes ser radicais e implacáveis, ou devemos pensar que, mesmo com o mal, há maneiras de viver que devem conduzir ao bem? Se aceitarmos o todo, devemos fazê-lo como atordoados e submissos - como Carlyle quereria que o fizéssemos - “Bem é que o façamos!” - ou devemos fazê-lo com entusiástico assentimento? A moral pura e simples aceita a lei do todo que encontra reinando, a fim de reconhecê-la e obedecer-lhe, mas pode obedecer com o mais pesado e frio dos corações, e nunca deixará de senti-lo como um jugo. Para a religião, todavia, em suas manifestações vigorosas e plenamente desenvolvidas, o serviço do Altíssimo nunca é sentido como um jugo. A submissão apática ficou para trás, e uma disposição de ânimo de boas vindas, que pode preencher qualquer lugar na escala entre a serenidade prazenteira e a alegria entusiástica, tomou-lhe o lugar. Há uma tremenda diferença emocional e prática entre aceitarmos o universo da maneira insípida e descolorida da estóica resignação à necessidade e aceitá-lo com a apaixonada felicidade dos santos cristãos. A diferença é tão grande quanto a que existe entre a passividade e a atividade, entre a disposição de ânimo defensiva e a disposição de ânimo agressiva. Por graduais que sejam os degraus pelos quais um indivíduo pode passar de um estado a outro, por numerosas que sejam as fases intermediárias que diferentes indivíduos representam, quando colocamos os extremos típicos ao lado um do outro para cotejá-los, sentimos que temos à nossa frente dois universos psicológicos descontínuos e que, ao passar de um para o outro, tivemos de transpor um “ponto crítico”. Ao confrontarmos as exclamações estóicas com as cristãs, vemos muito mais que uma diferença de doutrina; separa-as, antes, uma diferença de disposição emocional. Quando Marco Aurélio reflete sobre a razão eterna que ordenou as coisas, nota-se-lhe nas palavras um frio de gelo, que raro se encontra num escrito religioso judeu e nunca num escrito religioso cristão. O universo é “aceito” por todos esses escritores; mas quão despojado de paixão ou de exultação é o espírito do imperador romano! Comparemos-lhe a formosa sentença: “Se os deuses não se importam comigo nem com meus filhos, há de haver uma razão para isso”, com o grito de Jó: “Ainda que ele me mate, confiarei nele!” e logo veremos a diferença a que aludo. A anima mundi, a cuja vontade o estóico consente em submeter seu destino pessoal, está lá para ser respeitada e obedecida, mas o Deus cristão está lá para ser amado; e a diferença de atmosfera entocional é semelhante à que existe entre o clima ártico e o clima dos trópicos, se bem o resultado no modo de aceitar as condições reais sem um gesto de queixa, possa parecer, em termos abstratos, praticamente o mesmo nos dois casos. “É dever do homem”, diz Marco Aurélio, “tomar coragem e esperar a dissolução natural, e não se entristecer, mas só encontrar alívio nestes pensamentos - primeiro, que nada me acontecerá que não se conforme com a natureza do universo; e, segundo, que não preciso fazer nada contra o Deus e a divindade dentro de mim; pois não há homem que possa compelir-me a transgredir.{14} É um abscesso no universo o que se retira e separa da razão da nossa natureza comum, por se haver desagradado das coisas que ocorrem. Pois a mesma natureza produziu essas coisas e produziu-te a ti também. Assim sendo, aceita tudo o que sucede, ainda que pareça desagradável, porque isso conduz à saúde do universo e à prosperidade e felicidade de Zeus. Pois ele não teria infligido a nenhum homem o que infligiu se não fosse útil ao todo. A integridade do todo será mutilada se lhe cortares alguma coisa. E cortas alguma coisa, até onde está em teu poder fazê-lo, quando estás insatisfeito e, de certo modo, tentas afastar alguma coisa do caminho.”{15} Compare-se agora esse estado de espírito com o do velho autor cristão da Theologia Germanica: “Quando estão iluminados pela verdadeira luz, os homens renunciam a todo desejo e escolha, e se entregam e encomendam, a si e a todas as coisas, à eterna Bondade, de modo que todo homem iluminado poderia dizer: ‘Eu gostaria de ser para a Bondade Eterna o que a própria mão é para o homem’. Homens assim estão em estado de liberdade, porque perderam o medo da dor ou do inferno, a esperança da recompensa ou do céu, e vivem em pura submissão à Bondade Eterna, na perfeita liberdade de um amor ardente. Quando um homem se conhece e considera verdadeiramente quem é e o que é, e se descobre de todo vil, perverso e indigno, cai numa degradação tão profunda que lhe parece razoável que todas as criaturas do céu e da terra se levantem contra ele. E, por isso, não quer nem ousa desejar consolo e libertação; mas está disposto a continuar desconsolado e não libertado; e não se mortifica com os seus padecimentos, que estão certos a seus olhos, e não tem nada para lhes censurar. Isto é o que quer dizer o verdadeiro arrependimento do pecado; e àquele que, neste momento, adentra semelhante inferno, ninguém pode consolar. Ora, Deus não desamparou o homem nesse inferno, mas está pondo a mão sobre ele, de modo que o homem não deseja nem considera outra coisa senão o eterno Bem. E então, quando o homem só se importa com o eterno Bem, e só a ele deseja, e não se procura a si mesmo nem às suas coisas, mas apenas a honra de Deus, toma-se partícipe de toda a ordem de alegria, bem-aventurança, paz, repouso e consolo, de modo que, a partir de então, se encontra no reino dos céus. Esse inferno e esse céu são dois caminhos seguros para o homem, e feliz é aquele que realmente os encontra”.{16} Quanto mais ativo e positivo é o impulso do escritor cristão para aceitar o seu lugar no universo! Marco Aurélio aceita o esquema — o teólogo alemão concorda com ele, abunda literalmente em concordância, sai correndo para abraçar os decretos divinos. É verdade que, de vez em quando, o estóico se alça a algo parecido com o calor do sentimento cristão, como no passo tão amiúde citado de Marco Aurélio; “Tudo o que é harmonioso para ti, ó Universo, se harmoniza comigo. Nada me é demasiado precoce nem demasiado tardio quando te é oportuno. Tudo o que trazem as estações, ó Natureza, é fruto para mim: de ti são todas as coisas, em ti estão todas as coisas, para ti regressam todas as coisas. Diz o poeta, Querida Cidade de Cecrópia; e não dirás tu, Querida Cidade de Zeus?”{17} Compare-se, porém, uma passagem devota como esta com uma autêntica efusão cristã, e ela parecerá algo fria. Folheie-se, por exemplo, a Imitação de Cristo: “Senhor, sabes o que é melhor; seja isto ou aquilo acorde com a tua vontade. Dá o que quiseres, quanto quiseres, quando quiseres. Faze comigo o que achares melhor, e que mais se ajuste à tua honra. Coloca-me onde quiseres, e opera livremente a tua vontade em mim em todas as coisas … Quando poderá surgir o mal se estás por perto? Prefiro ser pobre por amor de ti a ser rico sem ti. Quero antes ser peregrino na terra contigo do que, sem ti, possuir o céu. Onde estiveres, estará o céu; e onde não estiveres, contempla ali a morte e o inferno”.{18} É uma boa regra de fisiologia, quando estamos estudando o valor de um órgão, indagar do seu tipo mais peculiar e característico de atividade, e buscar-lhe a função principal na que nenhum outro órgão pode exercer. Está visto que a mesma máxima vale para a nossa procura atual. A essência das experiências religiosas, a coisa pela qual teremos finalmente de julgá-las, será o seu elemento ou qualidade que não encontramos em nenhum outro lugar, e que é, naturalmente, mais conspícua e fácil de notar nas experiências religiosas mais unilaterais, exageradas e intensas. Ora, quando comparamos essas experiências mais intensas com as de mentes mais dóceis, tão frias e razoadas que nos sentimos tentados a chamarlhes antes filosóficas do que religiosas, encontramos um caráter perfeitamente distinto. Tenho para mim que esse caráter deveria ser considerado a differentia praticamente mais importante da religião para a nossa finalidade; e o que ele é pode ser facilmente depreendido da comparação entre a mente do cristão abstratamente concebido e a mente do moralista concebido de maneira semelhante. Dizemos que a vida é viril, estóica, moral ou filosófica na proporção em que é menos governada por insignificantes considerações pessoais e mais por objetivos que demandam energia, ainda que essa energia acarrete perda pessoal e sofrimento. Esse é o lado bom da guerra, na medida em que requer “voluntários”. E para a moral a vida é uma guerra, e o serviço do Altíssimo uma espécie de patriotismo cósmico que também exige voluntários. Até um homem doente, incapaz de militar exteriormente, pode prosseguir na guerra moral. Pode desviar deliberadamente a sua atenção do próprio futuro, quer neste mundo quer no próximo. Pode adestrar-se para ser indiferente às suas deficiências atuais e mergulhar em quaisquer interesses objetivos que ainda lhe sejam acessíveis. Pode acompanhar as notícias públicas e simpatizar com os negócios de outras pessoas. Pode cultivar maneiras joviais e silenciar a respeito de suas atribulações. Pode matutar nos aspectos ideais da existência, sejam eles quais forem, que a sua filosofia for capaz de apresentar-lhe, e exercer as funções, como a paciência, a resignação, a confiança, que o seu sistema ético requer. Um homem assim vive no plano mais alto e mais amplo. É um homem livre de coração magnânimo e não um escravo choramigas. E, no entanto, carece de alguma coisa que o cristão par excellence, o santo místico e ascético, por exemplo, tem em abundância e que faz dele um ser humano digno de uma denominação totalmente distinta. O cristão também repele com desprezo a atitude angustiada e taciturna do quarto de doente, e as vidas dos santos estão cheias de uma espécie de insensibilidade a estados mórbidos do corpo que provavelmente nenhum outro registro humano apresenta. Mas ao passo que a rejeição desdenhosa meramente moralística exige um esforço de volição, a rejeição cristã resulta da excitação de um tipo superior de emoção, para cuja presença nenhum exercício de volição se requer. O moralista precisa suspender a respiração e manter os músculos tensos; e enquanto essa atitude atlética for possível, tudo correrá bem - a moral bastará. Mas a atitude atlética tende sempre a falhar, e falha inevitavelmente, por mais robusta que seja a pessoa quando o organismo principia a dar de si, ou quando o medo mórbido invade a mente. Sugerir a vontade e o esforço pessoais a um indivíduo debilitado pelo sentido da impotência irremediável é sugerir a mais impossível das façanhas. Ele anseia por ser consolado em sua própria impotência, por sentir que o espírito do universo o reconhece e protege, por decadente e falho que seja. Bem, somos todos fracassos indefesos desse tipo em última instância. O mais são e o melhor dentre nós foi feito do mesmo barro dos loucos e dos criminosos, e a morte, por fim, dá em terra com o mais robusto de nós. E quando damos tento disso, um sentido da vaidade e da transitoriedade da nossa carreira de voluntários da moral nos inunda de tal modo que toda a nossa moral parece apenas um emplastro sobre uma ferida que ela jamais poderá curar, e todo o nosso bem-fazer se nos afigura o mais vazio dos substitutos daquele bem-estar em que nossas vidas deveriam estar calcadas mas que, infelizmente, não estão. E aqui a religião acode em nosso auxilio e toma nas mãos o nosso destino. Existe um estado de espírito conhecido de homens religiosos, mas de ninguém mais, em que a vontade de afirmar-nos e de não ceder foi substituída pela disposição de fechar a boca e de ser um dócil instrumento nas mãos de Deus. Nesse estado de espírito, o que mais temíamos tomou-se o receptáculo da nossa salvação, e a hora da nossa morte moral converteu-se em nosso aniversário espiritual. Foi-se o tempo de tensão em nossa alma, e chegou o tempo do relaxamento feliz, da respiração calma e profunda, do presente eterno, sem nenhum futuro discordante para afligir-nos. O medo não se mantém sequer em estado jacente, como o mantém a simples moral, mas é positivamente expungido e eliminado. Veremos abundantes exemplos desse feliz estado de espírito em próximas conferências do nosso curso. Veremos que a religião pode ser uma coisa infinitamente arrebatada em seus vôos mais altos. A semelhança do amor, da ira, da esperança, da ambição, do ciúme, à semelhança de qualquer outra avidez e impulso instintivos, ela acrescenta à vida um encanto que não é racional nem logicamente deduzível de nenhuma outra coisa. Esse encantamento, que vem como um dom, quando vem, - um dom do nosso organismo, dir-nos-ão os fisiologistas, um dom da graça de Deus, dizem os teólogos, - ou está lá para nós ou não está, e há pessoas que já não podem ser possuídas por ele como não podem apaixonar-se por uma determinada mulher a uma simples palavra de ordem. Destarte, o sentimento religioso é uma adição absoluta à esfera de vida do indivíduo. Dá-lhe uma nova esfera de poder. Quando a batalha exterior está perdida, e o mundo exterior o renega, ele redime e vivifica um mundo interior que, de outro modo, não seria mais do que um ermo vazio. Se a religião há de significar alguma coisa definida para nós, quer parecer-me que devemos tomá-la como significando essa dimensão acrescida de emoção, esse espírito de entusiásticas núpcias com o Universo, em regiões em que a moral propriamente dita, na melhor das hipóteses, só pode inclinar a cabeça e aquiescer. Ela não deve significar senão esse novo âmbito de felicidade para nós, depois de terminada a refrega, quando a tônica do universo nos soa aos ouvidos e a posse eterna se estende diante dos nossos olhos.{19} Essa espécie de felicidade no absoluto e no eterno só encontramos na religião. Distingue-se de toda a mera felicidade animal, de todo o mero gozo do presente, graças ao elemento de solenidade a cujo respeito tanto já me estendi. A solenidade é uma coisa difícil de se definir de modo abstrato, mas algumas de suas marcas são manifestas. Um estado de espírito solene nunca é tosco nem simples - parece conter certa medida do seu próprio contrário em solução. Uma alegria solene preserva um pouco de amargo na doçura; uma tristeza solene é uma tristeza com a qual intimamente consentimos. Compreendendo, porém, que a felicidade de um tipo supremo é prerrogativa da religião, certos autores esquecem essa complicação e qualificam de religiosa, como tal, qualquer felicidade. O Sr. Havelock Ellis, por exemplo, identifica a religião com o campo inteiro da libertação da alma de estados de espírito opressivos. “As funções mais simples da vida fisiológica”, escreve ele, “podem ser os seus dispensadores. Todo aquele que estiver familiarizado de algum modo com os místicos persas sabe que o vinho pode ser considerado instrumento da religião. Com efeito, em todos os países e em todos os tempos, alguma forma de expansão física - o canto, a dança, a bebida, a excitação sexual - tem sido intimamente associada ao culto. Até a expansão momentânea da alma no riso, por menor que seja, é um exercício religioso. … Toda vez que um impulso do mundo golpeia o organismo, e disso não resulta desconforto nem dor, nem sequer a contração muscular da vigorosa virilidade, mas uma alegre expansão ou aspiração de toda a alma - aí está a religião. É o infinito por que ansiamos, e cavalgamos toda ondazinha que prometa levarnos a ele.”{20} Mas uma direta identificação da religião com toda e qualquer forma de felicidade deixa de fora a peculiaridade essencial da felicidade religiosa. As felicidades mais corriqueiras que logramos são “alívios”, ocasionados por nossas escapadas momentâneas dos males que experimentamos ou que nos ameaçam. Entretanto, em suas personificações mais características, a felicidade religiosa não é uma simples sensação do escape. Já pouco se lhe dá escapar. Consente no mal exteriormente como forma de sacrifício internamente sabe-o superado para sempre. Se os senhores me perguntarem como cai assim sobre os espinhos e enfrenta a morte e, no mesmo ato, anula o aniquilamento, não lhes poderei explicá-lo, pois é o segredo da religião e, para compreendê-lo, precisamos ser homens religiosos do tipo mais extremo. Em nossos futuros exemplos, até da categoria de consciência religiosa mais simples e de espírito mais sadio, encontraremos essa complexa constituição sacrificial, em que a felicidade mais elevada reprime a infelicidade mais baixa. Existe no Louvre um quadro de Guido Reni em que se vê São Miguel com o pé no pescoço de Satanás. A riqueza da pintura deve-se, em grande parte, à presença ali da figura do demônio. A riqueza do seu significado alegórico também se deve à sua presença - o que quer dizer que a presença do diabo enriquece o mundo, enquanto mantivermos o pé sobre o seu pescoço. Na consciência religiosa, esta é exatamente a posição em que o arqui-inimigo, o princípio negativo ou trágico, se encontra; e por essa mesmíssima razão a consciência religiosa é tão rica do ponto de vista emocional.{21} Veremos que, em certos homens e mulheres, isso assume uma forma monstruosamente ascética. Há santos que se alimentaram literalmente do princípio negativo, da humilhação, das privações e da idéia do sofrimento e da morte - e em suas almas crescia a felicidade na proporção em que o estado exterior se tomava mais e mais intolerável. Nenhuma outra emoção além da religiosa pode levar o homem a essa situação peculiar. E é por essa razão que, ao formular a nossa pergunta a respeito do valor da religião para a vida humana, deveríamos, na minha opinião, procurar a resposta antes entre esses exemplos mais violentos do que entre os de tonalidade mais moderada. Começando com o fenômeno que estudamos em sua forma mais aguda, poderemos atenuá-lo à vontade mais tarde. E se, nesses casos, por mais repulsivos que sejam para a nossa maneira mundana comum de julgar, nos virmos compelidos a reconhecer o valor da religião e tratá-la com respeito, ela terá provado, de um modo ou de outro, o seu valor para a vida em geral. Subtraindo e moderando extravagâncias podemos, a partir daí, passar a traçar os limites do seu legítimo domínio. É evidente que a precisão de lidar tanto com excentricidades e extremos nos dificulta a tarefa. “Como pode a religião, falando de um modo geral, ser a mais importante de todas as funções humanas”, inquirirão os senhores, “se cada uma de suas várias manifestações, tem de ser, por seu turno, corrigida, moderada e suprimida?” Uma tese dessa ordem parece um paradoxo impossível de sustentar razoadamente - e, todavia, acredito que alguma coisa parecida será a nossa contenção final. Aquela atitude pessoal que o indivíduo se sente impelido a adotar para com o que cuida ser o divino - e os senhores hão de estar lembrados de que esta foi a nossa definição - revelar-se-á, ao mesmo tempo, uma atitude impotente e sacrificial. Isto é, teremos de confessar pelo menos alguma dose de dependência da pura misericórdia, e praticar alguma dose de rentíncia, grande ou pequena, para salvar vivas as nossas almas. A constituição do mundo em que vivemos o exige: Entbehren sollst du! sollst entbehren! Das ist der ewige Gesang Der jedem an die Ohren klingt, Den unser ganzes Leben lang Uns heiser jede Stunde singt. Pois depois que tudo for dito e feito, estaremos, no fim, absolutamente dependentes do universo; e seremos arrastados e pressionados a sacrifícios e renúncias de toda sorte, deliberadamente examinados e aceitos, como às nossas únicas posições permanentes de repouso. Ora, nesses estados de espírito, sujeitamo-nos à renúncia como a uma imposição da necessidade, e fazemos o sacrifício, na melhor das hipóteses, sem lamentações. Na vida religiosa, ao contrário, a renúncia e o sacrifício são positivamente esposados: até se acrescentam abandonos desnecessários para aumentar a felicidade. A religião, desse modo, facilita e felicita o que, de qualquer maneira, é necessário, e se ela for o único agente capaz de obter esse resultado, sua importância vital como faculdade humana estará indiscutivelmente demonstrada. Torna-se um órgão essencial da nossa vida, exercendo uma função que nenhuma outra porção da nossa natureza pode cumprir de maneira tão bem-sucedida. Do ponto de vista meramente biológico, para assim chamá-lo, esta é uma conclusão a que, até onde posso ver agora, seremos inevitavelmente conduzidos, e conduzidos, além disso, seguindo o método puramente empírico de demonstração que esbocei para os senhores na primeira conferência. Do ofício subsequente da religião como revelação metafísica nada direi por ora. Mas prefigurar o fim da nossa investigação é uma coisa e chegar a ele em segurança é outra. Na próxima conferência, abandonando as extremas generalidades que nos absorveram até agora, proponho começarmos nossa jornada real dirigindo-nos diretamente aos fatos concretos. III Conferência A REALIDADE DO INVISÍVEL Se nos pedissem para caracterizar a vida da religião no sentido mais amplo e mais geral possível, poderíamos dizer que ela consiste na crença de que existe uma ordem invisível, e que o nosso bem supremo reside em ajustarmo-nos harmoniosamente a ela. Essa crença e esse ajustamento são a atitude religiosa da alma. Desejo, durante esta hora, chamar-lhes a atenção para algumas peculiaridades psicológicas de uma atitude como essa, de crença num objeto que não podemos ver. Todas as nossas atitudes, morais, práticas ou emocionais, bem como as religiosas, devem-se aos “objetos” da nossa consciência, às coisas que acreditamos existirem, seja real, seja idealmente, junto de nós. Tais objetos podem estar presentes aos nossos sentidos, ou podem estar presentes apenas ao nosso pensamento. Em qualquer um desses casos, eles provocam em nós uma reação; e a reação produzida por coisas do pensamento é, notoriamente, em muitos casos, tão forte quanto a produzida por presenças sensíveis. Pode ser até que seja mais forte. A lembrança de um insulto talvez nos deixe mais zangados do que nos deixou o próprio insulto quando o recebemos. Ficamos frequentemente mais envergonhados de nossas cincadas depois de cometidas do que no momento de cometê-las; e, em geral, toda a nossa vida prudencial e moral mais elevada estriba-se no fato de poderem as sensações materiais realmente presentes ter uma influência mais fraca sobre a nossa ação do que as idéias de fatos mais remotos. Os homens conhecem os objetos mais concretos da religião, as divindades que adoram, apenas em idéia. Foi concedida, por exemplo, a pouquíssimos crentes cristãos uma visão sensível do seu Salvador; embora tantos aparecimentos dessa sorte estejam registrados, como exceção milagrosa, que lhes daremos atenção mais tarde. Toda a força da religião cristã, portanto, na medida em que a crença nas personagens divinas determina a atitude predominante do crente, é exercida, em geral, por meio de idéias puras, para as quais nada na experiência passada do indivíduo serve diretamente de modelo. Mas em adição às idéias dos objetos religiosos mais concretos, a religião está cheia de objetos abstratos que mostram um poder igual. Os atributos de Deus como tais, sua santidade, sua justiça, sua misericórdia, sua incondicionalidade, sua infinidade, sua onisciência, sua tri-unidade, os vários mistérios do processo redentor, a ação dos sacramentos, etc., revelaram-se férteis mananciais de inspiradora meditação para os crentes cristãos.{22} Veremos mais tarde que as autoridades místicas de todas as religiões insistem positivamente na ausência de imagens sensíveis definidas como o sine qua non de uma prece bem-sucedida, ou da contemplação das supremas verdades divinas. Espera-se que tais contemplações (e a expectativa é fartamente corroborada, como também veremos) influam na atitude subsequente do crente, de maneira muito poderosa, para o bem. Emanuel Kant tinha uma doutrina curiosa a respeito dos objetos de crença como Deus, o plano da criação, a alma, sua liberdade e a vida futura. Essas coisas, dizia, não são propriamente objetos de nenhum conhecimento. Nossas concepções requerem sempre um conteúdo sensorial para podermos trabalhar com elas, e como as palavras “alma”, “Deus”, “imortalidade”, não cobrem nenhum conteúdo sensorial distintivo, disso se segue que, teoricamente falando, estas palavras são destituídas de qualquer significação. No entanto, por estranho que pareça, elas têm um significado definido para a nossa prática. Podemos agir como se existisse Deus; sentir como se fôssemos livres; considerar a Natureza como se ela andasse cheia de propósitos especiais; fazer planos como se devêssemos ser imortais; e verificamos então que essas palavras determinam uma genuína diferença na nossa vida moral. Nossa fé em que tais objetos ininteligíveis realmente existem revela-se assim um equivalente integral, in praktischer Hinsicht, como diz Kant, ou seja, do ponto de vista da nossa ação, do conhecimento do que eles poderiam ser, caso nos fosse permitido concebê-los positivamente. Assim sendo, temos o estranho fenômeno, assegura-nos Kant, de uma mente que acredita com toda a sua força na presença real de uma série de coisas, das quais não lhe é dado formar noção alguma, seja ela qual for. Meu objetivo ao recordar assim a doutrina de Kant à mente dos senhores não é expressar uma opinião relativa à exatidão dessa parte especialmente abstrusa da sua filosofia, mas tão-só ilustrar a característica da natureza humana que estamos considerando, com um exemplo tão clássico em sua exageração. O sentimento de realidade pode, de fato, ligar-se de maneira tão robusta ao nosso objeto de crença que toda a nossa vida é polarizada de fio a pavio, por assim dizer, pelo sentido que damos à existência da coisa em que acreditamos, embora dificilmente possamos dizer que essa mesma coisa, para a finalidade de uma descrição definida, está presente na nossa mente. E como se uma barra de ferro, sem tato nem vista, sem nenhuma faculdade representativa, pudesse, apesar disso, ser vigorosamente dotada da capacidade de perceber a energia magnética; e como se, ao despertar do seu magnetismo pela atividade ou inatividade de outros ímãs ao seu redor, pudesse ser conscientemente determinada a assumir atitudes e tendências diversas. A barra de ferro nunca poderia dar aos senhores uma descrição exterior dos agentes que tinham o poder de afetá-la com tanta força; entretanto, estaria inteiramente consciente, através de cada fibra do seu ser, da presença e da importância deles para a sua vida. Não são apenas as Idéias da Razão pura, como Kant gostava de denominá-las, que têm o poder de fazer-nos sentir vitalmente presenças que não conseguimos descrever com suficiente clareza. Todas as espécies de abstrações superiores trazem consigo o mesmo tipo de atração impalpável. Lembrem-se dos trechos de Emerson que li em minha última conferência. Todo o universo de objetos concretos, tais como os conhecemos, não só para um escritor transcendentalista como ele, mas também para todos nós, navega num universo mais amplo e mais alto de idéias abstratas, que lhe emprestam sua significação. Assim como o tempo, o espaço e o éter penetram todas as coisas, assim (sentimo-lo) a bondade, a beleza, a força, a importância, a justiça abstratas e essenciais penetram todas as coisas boas, fortes, importantes e justas. Tais idéias, e outras igualmente abstratas, formam o substrato de todos os nossos fatos, o manancial de todas as possibilidades que concebemos. Elas emprestam sua “natureza”, como lhe chamamos, a cada coisa especial. Tudo o que conhecemos é o “que é” porque partilha da natureza de uma dessas abstrações. Nunca poderemos olhar diretamente para elas, pois não têm corpo, nem traços, nem pés, mas captamos todas as outras coisas por meio delas e, no trato com o mundo real, nós nos veríamos impotentes na exata medida em que perdêssemos esses objetos mentais, esses adjetivos, advérbios, predicados e chaves de classificação e concepção. A determinabilidade absoluta da nossa mente por abstrações é um dos fatos cardeais da nossa constituição humana. Embora nos polarizem e magnetizem, voltamo-nos para elas, apartamo-nos delas, procuramo-las, agarramo-las, odiamo-las, abençoamo-las, exatamente como se fossem outros tantos seres concretos. E seres elas são, seres tão reais no reino que habitam quanto as coisas mutáveis dos sentidos o são no reino do espaço. Platão fez uma defesa tão brilhante e notável desse sentimento humano comum que a doutrina da realidade dos objetos abstratos tem sido conhecida, desde então, como a teoria platônica das idéias. A Beleza abstrata, por exemplo, é para Platão um ser individual perfeitamente definido, do qual o intelecto se dá conta como de algo adicional a todas as belezas perecedoras da terra. “A verdadeira ordem pela qual se deve proceder”, diz ele, no trecho amiúde citado do seu “Banquete”, “é usar as belezas da terra como degraus que transpomos em busca da outra Beleza, passando de uma a duas, de duas a todas as formas belas, e das belas formas para as belas ações, e das belas ações para as belas noções, até que das belas noções chegamos à noção da Beleza absoluta e, por fim, conhecemos o que é a essência da Beleza.”{23} Em nossa última conferência, vislumbramos o modo com que um escritor platonizante como Emerson pode tratar a divindade abstrata das coisas, a estrutura moral do universo, como fato digno de adoração. Nas várias igrejas sem Deus que hoje se espalham pelo mundo sob o nome de sociedades éticas, temos um culto similar do divino abstrato, da lei moral considerada como objeto final. Em muitas mentes, a “ciência” está tomando o lugar da religião. Onde isso acontece, o cientista trata as “Leis da Natureza” como fatos objetivos que devem ser reverenciados. Uma escola brilhante de interpretação da mitologia grega sustentava que, em sua origem, os deuses gregos eram apenas personificações semimetafóricas das grandes esferas de lei e ordem abstratas em que o mundo natural se divide — a esfera do céu, a esfera do oceano, a esfera da terra, e quejandas; exatamente como, mesmo agora, podemos falar no sorriso da manhã, no beijo da brisa ou na mordida do frio, sem na verdade querer significar com isso que tais fenômenos da natureza ostentem realmente um rosto humano.{24} No que concerne à origem dos deuses gregos, não precisamos agora formar uma opinião. Mas todo o rol de nossos exemplos leva a uma conclusão parecida com esta: É como se houvesse na consciência humana em sentido de realidade, um sentimento de presença objetiva, uma percepção do que podemos chamar “alguma coisa ali”, mais profunda e mais geral do que qualquer um dos “sentidos” especiais e particulares pelos quais a psicologia atual supõe que as realidades existentes são originalmente reveladas. Se tal fosse o caso, poderíamos cuidar que os sentidos nos despertam as atitudes e o comportamento, como habitualmente o fazem, excitando primeiro o sentido da realidade; mas qualquer outra coisa, qualquer idéia, por exemplo, capaz de excitá-lo, teria as mesmas prerrogativas que os objetos dos sentidos normalmente possuem de parecerem reais. Na medida em que as concepções religiosas fossem aptas a tocar esse sentimento da realidade, seriam cridas a despeito da crítica, ainda que fossem tão vagas e remotas a ponto de serem quase inimagináveis, ainda que pudessem ser não-entidades do ponto de vista da natureza essencial como Kant quer que sejam os objetos da sua teologia moral. As provas mais curiosas da existência de um sentido não-diferenciado como esse encontram-se nas experiências de alucinação. Acontece muitas vezes que uma alucinação é imperfeitamente desenvolvida: a pessoa afetada sente uma “presença” na sala, localizada com precisão, voltada para uma direção determinada, real no sentido mais enfático da palavra, que não raro surge de repente, tão de repente como desaparece; e, todavia, não vista, não ouvida, não tocada, não cognoscida de nenhuma das maneiras “sensíveis” habituais. Permitam-me dar-lhes um exemplo disso, antes de passar para os objetos cuja presença mais interessa à religião. Um íntimo amigo meu, um dos intelectos mais agudos que conheço, teve diversas experiências desse tipo. Ele escreve o seguinte em resposta às minhas indagações: “Senti várias vezes, nos últimos anos, a chamada ‘consciência de uma presença’. As experiências que tenho em mente são claramente distinguíveis de outro tipo de experiência que me têm ocorrido com muita frequência, e às quais imagino que muitas pessoas também chamariam ‘consciência de uma presença’. Mas a diferença, para mim, entre as duas séries de experiências é tão grande quanto a diferença entre sentir um leve calor que vem não sei de onde e ficar no meio de uma conflagração com todos os sentidos comuns alertas. “Foi por volta de setembro de 1884 que tive a primeira experiência. Na noite anterior eu experimentara, depois de ir para a cama em meus aposentos no College, uma vivida alucinação táctil de ser agarrado pelo braço, que me fez levantar e vasculhar o quarto à procura de um invasor; mas o sentido de presença propriamente dito apareceu na noite seguinte. Depois de enfiar-me na cama e apagar a vela, fiquei acordado pensando na experiência da noite anterior, quando, de repente, senti alguma coisa entrar no quarto e aproximar-se da minha cama. Ali ficou apenas um ou dois minutos. Não a reconheci por nenhum dos sentidos comuns e, no entanto, havia uma ‘sensação’ horrivelmente desagradável ligada a ela. Mexeu mais com as raízes do meu ser do que qualquer percepção ordinária. A sensação tinha o que quer que fosse da qualidade da dor vital de uma dilaceração muito grande, que se espalhava principalmente pelo peito, mas por dentro do organismo - e, contudo, não era tanto de dor quanto de aversão. Fosse como fosse, alguma coisa se achava presente, ao meu lado, e conheci-lhe a presença muito mais seguramente do que jamais conheci a de alguma criatura viva de carne e osso. Tive consciência da sua partida como a tivera da sua’ chegada; e quase instantaneamente um rápido atravessar a porta e a ‘sensação horrível’ desapareceu. “Na terceira noite, quando me recolhi, eu tinha a mente absorta em algumas conferências que estava preparando, e ainda me achava entretido com elas quando dei tento da presença real (se bem não lhe tivesse percebido a vinda) da coisa que lá estivera na noite anterior, e da ‘sensação horrível’. Concentrei então, mentalmente, todos os meus esforços no sentido de ordenar àquela ‘coisa’, se fosse má, que saísse e, se não fosse má, que me dissesse quem ou o quê era e, se não pudesse explicar-se, que se fosse, pois eu a obrigaria a partir. Tudo aconteceu como na véspera, e meu corpo logo recuperou o estado normal. “Em duas outras ocasiões em minha vida tive precisamente a mesma ‘sensação horrível’. De uma feita, durou um quarto de hora inteiro. Nos três casos, a certeza de que no espaço exterior havia alguma coisa foi indescritivelmente mais forte do que a certeza comum de termos companhia quando estamos próximos de pessoas vivas. Essa alguma coisa parecia vizinha de mim, e intensamente mais real do que qualquer percepção ordinária. E embora eu a sentisse parecida comigo, por assim dizer, ou definida, pequena, angustiada, não a reconheci como nenhum ser ou coisa individual.” Claro está que uma experiência dessa ordem não se liga à esfera religiosa. Em certas ocasiões, todavia, pode fazê-lo; e o mesmo correspondente me informa que em mais de uma conjuntura experimentou o sentido de presença desenvolvido com intensidade e repentinidade iguais, com a diferença de que, então, o acompanhava uma espécie de alegria. “Não era a simples consciência de alguma coisa ali, senão fundida na felicidade central dela, uma surpreendente consciência de algum bem inefável. Nada de vaga, nada como o efeito emocional de algum poema, ou cena, ou flor, ou frase musical, mas o conhecimento seguro da próxima presença de uma espécie de pessoa poderosa e, depois que ela se foi, persistiu a lembrança como a única percepção da realidade. Tudo o mais pode ser sonho, mas isso, não.” O meu amigo, por estranho que pareça, não interpreta essas últimas experiências teisticamente, como se significassem a presença de Deus. Mas é evidente que não teria sido desnatural interpretá-las como revelação da existência da divindade. Quando chegarmos ao assunto do misticismo, teremos muito mais para dizer a esse respeito. Para que a estranheza dos fenômenos não desconcerte os senhores, abalançar-me-ei a ler-lhes um par de narrativas semelhantes, muito mais curtas, apenas para mostrar que estamos lidando com um tipo de fato natural bem marcado. No primeiro caso, que extraio do “Journal of the Society for Psychical Research”, o sentido de presença desenvolveu-se numa alucinação distintamente visualizada - mas deixo de lado essa parte da história. “Eu estava lendo”, diz o narrador, “havia uns vinte minutos, absorto na leitura, com a mente perfeitamente serena, e já me esquecera dos amigos, quando, a súbitas, sem um aviso, todo o meu ser pareceu estimulado ao mais alto estado de tensão ou plena consciência, e percebi, com uma intensidade que os que nunca experimentaram a mesma sensação não compreenderão com facilidade, que outro ser ou presença não somente se encontrava no quarto mas também perto de mim. Larguei o livro e, posto que a minha excitação fosse grande, senti-me perfeitamente senhor de mim e sem consciência de nenhuma sensação de medo. Sem mudar de posição e com os olhos fitos no lume, conheci que meu amigo A. H. estava de pé, junto ao meu ombro esquerdo, mas tão para trás que ficava escondido pela poltrona em que eu me sentara. Movendo os olhos ligeiramente, sem aliás mudar de posição, a porção inferior de uma perna tomou-se-me visível, e reconheci instantaneamente o material azul-cinzento das calças que ele usava com frequência, embora o pano parecesse semitransparente, com uma consistência que me recordava a da fumaça de um cigarro ou cachimbo”,{25} — e disso nasceu a alucinação visual. Outro informante escreve: “A noite mal começara quando acordei. … Tive a impressão de haver sido despertado de propósito e, a princípio supus que alguém estivesse entrando na casa. … Virei-me, então, de lado para voltar a dormir; imediatamente, senti a consciência de uma presença no quarto e, embora seja estranho dizê-lo, não era a consciência de uma pessoa viva, mas de uma presença espiritual. Isso talvez provoque riso, mas só posso narrar-lhes os fatos como estes me ocorreram. Não conheço maneira melhor de descrever minhas sensações do que afirmar simplesmente que senti a consciência de uma presença espiritual. … Senti também, ao mesmo tempo, forte sensação de medo supersticioso, como se algo estranho e pavoroso estivesse para acontecer.”{26} O Professor Floumoy de Genebra dá-me o seguinte depoimento de uma amiga sua, uma dama, que tem o dom da escrita automática ou involuntária: “Toda vez que pratico a escrita automática, o que me faz sentir que isso não se deve a um eu subconsciente é a sensação que sempre tenho de uma presença estranha, fora do meu corpo. Está, às vezes, tão definidamente caracterizada que eu poderia apontar para a sua posição exata. É impossível descrever essa impressão de presença. Varia de intensidade e clareza de acordo com a personalidade da qual a escrita professa vir. Se é alguém que amo, sinto-o imediatamente, antes que comece a escrita. Meu coração parece reconhecê-lo”. Num dos meus livros anteriores citei integralmente um caso curioso de presença sentida por um cego. A presença era a da figura de um homem de barba grisalha, que vestia um temo de mescla, espremia-se debaixo da frincha da porta e movia-se pelo chão da sala na direção de um sofá. O cego dessa quase alucinação é um repórter excepcionalmente inteligente. Inteiramente destituído de imagens visuais internas, não pode representar para si mesmo nem luz nem cores, e é certo que os seus outros sentidos, audição, etc., não estavam envolvidos nessa falsa percepção. Parece ter sido antes uma concepção abstrata, com as sensações de realidade e exterioridade espacial diretamente ligadas a ela - em outras palavras, uma idéia plenamente objetivada e exteriorizada. Tais casos, a par de outros que seria demasiado tedioso citar, parecem provar à saciedade a existência, em nosso mecanismo mental, de um sentido da realidade presente mais difundido e geral do que aquele que os nossos sentidos especiais nos fornecem. Para os psicólogos, a definição da sede orgânica de um sentimento dessa natureza constituiria um belo problema nada poderia ser mais natural do que ligá-lo ao sentido muscular, à sensação de que os nossos músculos estão se inervando para a ação. O que quer que assim nos inervasse a atividade, ou “deixasse arrepiada a nossa pele” - são os nossos sentidos que o fazem com maior frequência - poderia então parecer verdadeiro e presente, ainda que fosse apenas uma idéia abstrata. Mas não nos interessam conjecturas vagas dessa natureza, pois o nosso interesse visa mais à faculdade do que à sua sede orgânica. Como todas as afeições positivas de consciência, o sentido da realidade tem o seu oposto negativo na forma de uma sensação de irrealidade que pode perseguir as pessoas, e a cujo respeito, de vez em quando, ouvimos queixas: “Quando reflito no fato de que apareci por acidente num globo que gira, célere, através do espaço à mercê das catástrofes dos céus”, diz a Sra. Ackermann; “quando me vejo cercada de seres tão efêmeros e incompreensíveis como eu, todos os quais, excitadíssimos, perseguem quimeras vãs, experimento a estranha sensação de viver num sonho. Parece-me que amei e sofri e que dentro em pouco morrerei, num sonho. Minha última palavra será: ‘Sonhei.”{27} Em outra conferência, veremos que, na lipemania, esse sentido da irrealidade das coisas pode converter-se num sofrimento opressivo e até conduzir ao suicídio. Podemos agora admitir como certo que na esfera puramente religiosa da experiência, muitas pessoas (não podemos dizer quantas) possuem os objetos da sua crença, não na forma das meras concepções que seus intelectos aceitam por verdadeiras, mas em forma de realidades quase sensíveis, diretamente apreendidas. Assim como flutua o seu sentido da presença real desses objetos, assim oscila o crente entre o calor e a frieza em sua fé. Outros exemplos mostrarão ao leitor, mais que uma descrição abstrata, que isso é evidente e, portanto, passo incontinenti a citar alguns. O primeiro exemplo, negativo, deplora a perda do sentido em apreço. Tirei-o de um relato que um homem de ciência, meu conhecido, me fez de sua vida religiosa. Segundo me parece, ele mostra claramente que o sentido da realidade pode ser algo mais parecido com uma sensação do que com uma operação intelectual propriamente dita. “Entre os vinte e os trinta anos fui me tomando, gradativamente, mais e mais agnóstico e irreligioso, mas ainda assim não posso dizer que tivesse perdido, algum dia, a ‘Consciência indefinida’, que Herbert Spencer descreve tão bem, de uma Realidade Absoluta por detrás dos fenômenos. Para mim, essa Realidade não era o puro Incognoscível da filosofia de Spencer pois, se bem eu tivesse cessado de erguer minhas orações infantis a Deus, e nunca rezasse para Ele de maneira formal, minha experiência mais recente mostra que eu mantinha com Ele uma relação que era, praticamente, idêntica à oração. Toda vez que me surgia algum problema, especialmente quando entrava em conflito com outras pessoas, quer em casa quer no trabalho, ou quando me sentia deprimido ou aflito por causa dos negócios, eu costumava buscar apoio, agora o reconheço, nessa curiosa relação em que me sentia preso ao Ele cósmico, fundamental. Ele estava do meu lado, ou eu estava ao Seu lado, como quer que lhe apraza dizê-lo, diante do problema, e isso sempre me fortalecia e parecia dar-me permanente vitalidade sentir-lhe a presença básica e sustentadora. Na realidade, era uma fonte infalível de justiça, verdade e força vivas, para a qual eu me voltava instintivamente em momentos de fraqueza, e que sempre me tirava do meu estado de angústia. Sei agora que eu me empenhara numa relação pessoal, porque nos últimos anos o poder de comunicar-me com Ele me deixou, e tenho consciência de uma perda perfeitamente definida. Eu nunca deixava de encontrá-lo quando me voltava para ele. Veio depois uma série de anos em que às vezes o encontrava e, às vezes, me sentia totalmente incapaz de fazer conexão entre nós. Lembro-me de muitas ocasiões em que à noite, na cama, eu não conseguia conciliar o sono em razão das minhas preocupações. Virava-me de um lado e de outro, no escuro, e procurava mentalmente, às apalpadelas, o sentido familiar daquela mente superior à minha, que sempre parecera estar perto de mim, por assim dizer, fechando a passagem e dando apoio, mas não se estabelecia a corrente elétrica. Havia ali um branco em lugar d’Ele: eu não conseguia encontrar coisa alguma. Agora, beirando os cinquenta anos de idade, meu poder de entrar em conexão com ele deixou-me de todo; e sou obrigado a confessar que minha vida perdeu uma grande ajuda. A existência tornou-se-me curiosamente morta e indiferente; e posso ver agora que a minha velha experiência era, com certeza, o mesmo que são as orações para o ortodoxo, só que eu não a chamava por esse nome. O que mencionei como “Ele” não era, praticamente, o Incognoscível de Spencer, senão apenas o meu próprio Deus, instintivo e individual, com cuja simpatia mais alta eu contava, mas que, de um jeito ou de outro, acabei perdendo.” Nada é mais comum nas páginas da biografia religiosa do que o modo com que se alternam as temporadas de fé viva e as de fé difícil. É provável que toda pessoa religiosa tenha a lembrança de crises particulares em que uma visão mais direta da verdade, uma percepção direta, talvez, da existência de um Deus vivo sucedesse à tepidez mais comum da fé. Na correspondência de James Russel Lowell encontra-se breve memorando de uma experiência desse gênero: “Tive uma revelação na sexta-feira passada, à noite. Eu estava em casa de Mary e falava, por acaso, a respeito da presença de espíritos (da qual, afirmei, tinha frequentemente uma vaga consciência), quando o Sr. Putnam se travou de razões comigo acerca de assuntos espirituais. Enquanto eu falava, todo o sistema se ergueu à minha frente como um vago destino que subia do Abismo. Nunca, até então, eu sentira tão claramente o Espírito de Deus em mim e em torno de mim. Dir-se-ia que toda a sala estivesse repleta de Deus. O ar parecia ondular de um lado para outro com a presença de Alguma Coisa que eu não sabia o que era. Falei com a calma e a clareza de um profeta. Não posso contar-lhes o que foi essa revelação. Ainda não a estudei o suficiente. Mas hei de completá-la num dia destes e vocês a ouvirão e lhe reconhecerão a grandiosidade.”{28} Aqui está uma experiência mais longa e mais desenvolvida de uma comunicação manuscrita feita por um clérigo - que tirei da coleção de manuscritos de Starbuck: “Lembro-me da noite e quase me lembro exatamente do lugar, no topo do morro, em que minha alma se abriu, por assim dizer, para o Infinito, e os dois mundos, o interno e o externo, pareceram fundir-se num só. Era o abismo chamando o abismo - o abismo que a minha própria luta abrira no interior, correspondido pelo insondável abismo exterior, que se estendia além das estrelas. Que- dei-me a sós com Aquele que me fizera, e toda a beleza do mundo, e o amor, e a tristeza e até a tentação. Não O procurei, mas senti a perfeita harmonia do meu espírito com o Seu. Desvaneceu-se o sentido ordinário das coisas à minha volta. Por um momento, nada ficou além de uma alegria e uma exaltação inefáveis. É impossível descrever plenamente a experiência. Dir-se-ia o efeito de alguma grande orquestra, quando todas as notas separadas se fundem numa única harmonia transbordante, que deixa o ouvinte cônscio de nada mais a não ser de que sua alma está sendo levada para o alto, quase rebentando de emoção. A perfeita quietude da noite vibrava por efeito de um silêncio mais solene. A escuridão tinha uma presença tanto mais sentida quanto menos visível. Eu não poderia duvidar mais da presença d’Ele ali do que da minha. Na verdade, senti-me, se possível, o menos real dos dois. Minha fé mais alta em Deus e minha idéia mais verdadeira d’Ele nasceram, então, em mim. Tenho subido ao Monte da Visão depois disso e sentido o Eterno ao meu redor. Nunca mais, porém, experimentei o mesmo despertar do coração. Se alguma vez estive frente a frente com Deus, creio que foi nesse momento, quando nasci de novo do seu espírito. Não houve, se bem me lembro, nenhuma mudança súbita de pensamento ou de crença, a não ser que a minha primitiva e grosseira concepção explodira, por assim dizer, numa flor. Não houve destruição do antigo, senão um rápido e maravilhoso desdobrar-se. Desde esse momento, nenhuma discussão que eu tenha ouvido das provas da existência de Deus foi capaz de abalar-me a fé. Tendo sentido uma vez a presença do espírito divino, nunca tomei a perdê-lo por muito tempo. Minha prova mais indubitável da sua existência está profundamente enraizada naquela hora de visão, na lembrança daquela experiência suprema, e na convicção, que me incutiram a leitura e a reflexão, de que alguma coisa parecida ocorreu a quantos já encontraram Deus. Estou ciente de que isso pode, com justeza, ser chamado místico. Não estou tão familiarizado com a filosofia que possa defendê-la dessa ou de qualquer outra acusação. Sinto que, ao escrever sobre ela, sobrecarreguei-a de palavras em lugar de expô-la com clareza para o pensamento do leitor. Mas, tal como é, descrevi-a tão cuidadosamente quanto me foi possível fazêlo”. Aqui está outro documento, de caráter ainda mais definido, o qual, por ter sido escrito por um suíço, traduzo do original francês.{29} “Eu gozava de perfeita saúde: estávamos em nosso sexto dia de caminhada, e em bom estado atlético. Tínhamos ido, na véspera, de Sixt a Trient, passando por Buet. Eu não sentia cansaço, nem fome, nem sede, e meu estado de espírito era igualmente saudável. Recebera, em Forlaz, boas notícias de casa. Não me afligia nenhum tipo de ansiedade, nem próxima nem remota, pois tínhamos um bom guia, e não havia sequer a sombra de uma incerteza quanto à estrada que deveríamos seguir. A melhor maneira que tenho de descrever o estado em que eu me achava era chamar-lhe um estado de equilíbrio. Eis senão quando experimentei a repentina sensação de estar sendo erguido acima de mim, senti a presença de Deus - conto a coisa exatamente como dela tive consciência - como se a sua bondade e o seu poder me estivessem penetrando de todo em todo. A vibração da emoção foi tão violenta que mal pude dizer aos rapazes que passassem e não esperassem por mim. Sentei-me, então, numa pedra, incapaz de ficar de pé por mais tempo, e meus olhos se inundaram de lágrimas. Agradeci a Deus o haver- me ensinado, no curso da minha vida, a conhecê-lo, o haver sustentado minha vida e compadecido não só da criatura insignificante mas também do pecador que eu era. Supliquei-lhe ardentemente que me permitisse consagrar minha existência a fazer-lhe a vontade. Senti-lhe a resposta, segundo a qual eu deveria fazer-lhe a vontade dia a dia, na humildade e na pobreza, deixando que ele, o Deus Todo- Poderoso, fosse o juiz da conveniência ou não de eu ser, algum dia, chamado a dar testemunho dele de maneira mais conspícua. Depois, devagarinho, o êxtase deixou-me o coração; isto é, senti que Deus recolhera a comunhão que havia concedido, e pude andar, mas muito devagar, tão vigorosamente ainda me possuía a emoção interior. Além disso, eu chorara sem interrupção por vários minutos, tinha os olhos inchados e não queria que meus companheiros me vissem. O estado de êxtase pode ter durado quatro ou cinco minutos, embora parecesse na ocasião haver durado muito mais. Meus companheiros esperaram por mim dez minutos na encruzilhada de Barine, mas levei cerca de vinte e cinco ou trinta para juntar-me a eles pois, se não me falha a memória, eles me acusaram de havê-los atrasado cerca de meia hora. A impressão fora tão profunda que, enquanto subia lentamente o aclive, eu perguntava a mim mesmo se era possível que Moisés no Sinai tivesse tido uma comunicação mais íntima com Deus. Creio dever acrescentar que, no meu êxtase, Deus não tinha forma, nem cor, nem cheiro, nem sabor; além disso, a sensação da sua presença não era acompanhada de nenhuma localização determinada. Era antes como se a minha personalidade houvesse sido transformada pela presença de um espírito espiritual. Mas, por mais que eu procure palavras para expressar esse intercâmbio íntimo, mais sinto a impossibilidade de descrever a coisa por qualquer uma de nossas imagens costumeiras. No fundo, a expressão mais capaz de traduzir o que senti é esta: Deus estava presente, embora invisível; não caiu debaixo de nenhum dos meus sentidos e, no entanto, minha consciência o percebeu.” O adjetivo “místico” aplica-se, o mais das vezes, tecnicamente a estados de breve duração. É manifesto que horas de rapto como as que as duas últimas pessoas descrevem são experiências místicas, sobre as quais ainda terei muito que dizer numa próxima conferência. Entrementes, eis, aqui está o registro resumido de outra experiência mística, ou semimística, num espírito evidentemente forjado pela natureza para a piedade ardente. Devo-a à coleção de Stafbuck. A senhora que faz o relato é filha de um homem muito conhecido em seu tempo como escritor adversário do Cristianismo. A subitaneidade da conversão mostra muito bem como há de ser ingênito a certas mentes o sentido da presença de Deus. Conta ela que foi educada na total ignorância da doutrina cristã, mas, estando na Alemanha, persuadida a isso por amigos cristãos, leu a Bíblia, orou e, finalmente, o plano da salvação surgiu-lhe à frente como um jorro de luz. “Até o dia de hoje”, escreve ela, “não consigo compreender que se possa brincar com a religião e com os mandamentos de Deus. No mesmo instante em que ouvi o grito de meu Pai me chamando, meu coração deu um pulo de reconhecimento. Corri, estendi os braços, gritei: ‘Aqui, aqui estou, Pai’. ‘Oh, criança feliz, o que devo fazer?’ ‘Ama-me’, respondeu meu Deus. ‘Eu o amo, eu o amo’, gritei apaixonadamente. ‘Vem para mim’, chamou meu Pai. ‘Irei’, meu, coração pulsava. Acaso parei para fazer uma única pergunta? Nenhuma. Nunca me ocorreu perguntar se eu era suficientemente boa, ou hesitar diante da minha incompetência, ou descobrir o que eu achava da sua igreja, ou … esperar até me sentir satisfeita. Satisfeita! Eu estava satisfeita. Não havia porventura encontrado meu Deus e meu Pai? Não me amava ele? Não me chamara? Não havia uma Igreja em que eu podia entrar? … Desde então tenho tido respostas diretas para a oração - tão significativas que é quase o mesmo que falar com Deus e ouvir- lhe a resposta. A idéia da realidade de Deus nunca me deixou nem por um momento.” Aqui está ainda outro caso, cujo autor é um homem de vinte e sete anos, em que a experiência, provavelmente quase tão característica, é menos vividamente descrita: “Em muitas ocasiões senti que eu havia provado um período de íntima comunhão com o divino. Essas reuniões chegavam sem que eu as pedisse ou esperasse, e pareciam consistir tão-só na temporária obliteração das convencionalidades que, de ordinário, me cercam e cobrem a vida. … Uma vez foi quando, do cume de uma alta montanha, olhei à minha frente e vi uma paisagem cortada e ondulada, que se estendia até um longo convexo de oceano que subia para o horizonte, e outra vez do mesmo ponto, quando não me era dado ver nada abaixo de mim a não ser uma extensão sem limites de nuvem branca, em cuja inflada superfície alguns picos mais altos, incluindo aquele em que eu me achava, pareciam mergulhar como se suas âncoras não se fixassem no fundo. O que senti nessas ocasiões foi uma perda temporária de minha própria identidade, acompanhada de uma iluminação que me revelava um significado mais profundo do que o que eu estava acostumado a emprestar à vida. Nisso encontro minha justificativa para dizer que me tenho comunicado com Deus. Está claro que a ausência de um ser como esse significaria o caos. Não posso conceber a vida sem a sua presença”. A amostra seguinte da coleção de manuscritos do Professor Starbuck pode dar uma idéia do sentido por assim dizer crônico da presença de Deus. Trata-se de um homem de quarenta e nove anos de idade - provavelmente milhares de cristãos sinceros escreveriam um relato quase idêntico ao dele. “Deus é mais real para mim do que qualquer pensamento, ou coisa, ou pessoa. Sinto-lhe a presença positivamente, e tanto mais quanto mais vivo em íntima harmonia com suas leis tais como estão escritas em meu corpo e em minha mente. Sinto-o no brilho do sol ou na chuva; e um respeitoso temor misturado a uma deliciosa tranquilidade são os termos mais aptos a descrever meus sentimentos. Converso com ele como o faço com um companheiro na oração e no louvor, e a nossa comunhão é deleitosa. Ele responde muitas e muitas vezes, amiúde com palavras tão claramente proferidas que, tenho a impressão de que o meu ouvido externo deve ter-me trazido o som mas, por via de regra, com fortes impressões mentais. Geralmente é um texto da Escritura que me desvela alguma nova visão dele e do seu amor a mim, do seu zelo pela minha segurança. Eu poderia dar centenas de exemplos, de assuntos escolares, problemas sociais, dificuldades financeiras, etc. A sensação de que ele é meu e de que eu sou dele nunca me deixa e constitui paira mim uma alegria permanente. Sem ela a vida seria um branco, um deserto, um ermo sem praias e sem pistas.” Junto mais alguns exemplos de escritores de idades e sexos diferentes. Foram tirados também da coleção do Professor Starbuck, e o seu número pode ser grandemente multiplicado. O primeiro é de um homem de vinte e sete anos de idade: “Deus é perfeitamente real para mim. Falo com ele e muitas vezes obtenho respostas. Pensamentos súbitos e distintos de quaisquer outros que já tive me acodem à mente depois de pedir-lhe a orientação. Pouco mais de um ano atrás passei algumas semanas na mais terrível perplexidade. Quando o problema se apresentou pela primeira vez diante de mim fiquei atordoado, mas não demorou muito (duas ou três horas) e ouvi distintamente uma passagem da Escritura: ‘Minha graça é suficiente para ti’. Todas as vezes que os meus pensamentos se voltavam para o problema eu ouvia a citação. Não creio que eu tenha, alguma vez, duvidado da existência de Deus, ou deixado que ele se afastasse da minha consciência. Deus tem intervindo amiúde nos meus negócios de maneira muito perceptível, e sinto que ele está sempre dirigindo muitos detalhezinhos. Mas em duas ou três ocasiões tem-me dado ordens assaz contrárias às minhas ambições e aos meus planos”. Outra declaração (não menos valiosa do ponto de vista psicológico por ser decididamente tão infantil), é a de um rapaz de dezessete anos: “Às vezes, quando vou à igreja, sento-me, participo do serviço e, antes de sair, sinto que Deus esteve comigo, ao meu lado, cantando e lendo os Salmos comigo. … E volto a sentir que eu poderia sentar-me ao seu lado, envolvê-lo com os braços, beijá-lo, etc. Quando estou tomando a Santa comunhão no altar, tento juntar-me a ele e geralmente sinto-lhe a presença”. Seguem-se outros casos, a esmo: “Deus me envolve como a atmosfera física. Ele está mais perto de mim do que a minha própria respiração. Nele, literalmente, vivo, movo-me e tenho o meu ser.” “Há ocasiões em que pareço estar na sua presença, falar com ele. Respostas a orações têm-me chegado, às vezes, diretas e irresistíveis em sua revelação da presença e dos poderes dele. Momentos há em que Deus parece muito distante mas, nesses casos, a culpa é sempre minha.” “Tenho o sentido de uma presença, forte e, ao mesmo tempo, meiga, que paira sobre mim. Às vezes parece envolver-me com braços que me sustentam.” Tal é a imaginação ontológica humana, e tal é o poder de convicção do que ela cria. Seres irretratáveis são concebidos, e concebidos com uma intensidade quase igual à de uma alucinação. Eles determinam nossa atitude vital da forma tão decisiva quanto a atitude vital das pessoas que se amam é determinada pelo sentido habitual, que obseda cada uma delas, da presença da outra no mundo. Quem ama tem notoriamente esse sentido da existência continuada do seu ídolo, até quando sua atenção é dirigida para outros assuntos e ele já não lhe figura os traços. Mas não pode esquecê-la, pois ela o afeta ininterrupta e inteiramente. Aludi ao poder de convicção dessas sensações da realidade, e preciso estender-me um pouco mais sobre o assunto. Elas são tão convincentes para os que têm como pode sê-lo qualquer experiência sensível direta, e são, em regra geral, muito mais convincentes do que os resultados estabelecidos pela simples lógica. Podemos ser, de fato, inteiramente despojados delas; é provável que mais de um dentre os senhores aqui presentes não as tenha em nenhum grau acentuado; mas se as têm, e as têm rigorosas, a probabilidade é a de que não podem deixar de considerá-las genuínas percepções da verdade, revelações de uma espécie de realidade que nenhum argumento contrário, por menos que os senhores possam responder-lhe com palavras alcançará expelir da sua crença. A opinião oposta ao misticismo, em filosofia, é qualificada, às vezes, de racionalismo. O racionalismo insiste em que todas as nossas crenças devem finalmente encontrar para si mesmas bases definíveis. Tais bases, para o racionalismo, consistem em quatro coisas: (1) princípios abstratos definidamente constáveis; (2) fatos de sensação definidos; (3) hipóteses definidas baseadas nesses fatos; e (4) inferências definidas deduzidas logicamente umas das outras. Impressões vagas de algo indefinido não têm lugar no sistema racionalístico, o qual, do lado positivo, é seguramente uma esplêndida tendência intelectual, pois não só todas as nossas filosofias são frutos dele, como também a ciência física (entre outras coisas boas) é um resultado seu. Sem embargo disso, se olharmos para toda a vida mental de um homem, tal como ela existe, ou para a vida dos homens que neles jaz separada do saber e da ciência, e que eles seguem última e privadamente, temos de confessar que a parte dela explicada pelo racionalismo é relativamente superficial. É a parte que tem o prestígio, sem dúvida, pois tem a loquacidade, pode desafiá-los a apresentar provas, argumentar e demoli-los com palavras. Mas, de qualquer maneira, não vingará convencê-los nem convertê-los, se as suas intuições se opuserem à conclusões dela. Se os senhores possuem intuições, estas provêm de um nível mais profundo da sua natureza do que o nível loquaz habitado pelo racionalismo. Toda a sua vida subconsciente, seus impulsos, suas crenças, suas necessidades, suas adivinhações, prepararam as premissas, de cujo resultado a sua consciência sente agora o peso; e alguma coisa nos senhores sabe, de maneira absoluta, que esse resultado há de ser mais verdadeiro do que qualquer argumentação racionalística, por mais inteligente que seja, que possa contraditá-lo. A inferioridade/do nível racionalístico é tão manifesta quando o racionalismo argui em favor da religião do que quando argui contra ela. A vasta literatura das provas da existência de Deus tiradas da ordem da natureza, que há um século parecia tão irresistivelmente convincente, hoje em dia pouco mais faz do que juntar poeira nas bibliotecas, pela simples razão de que a nossa geração deixou de acreditar na espécie de Deus em cujo favor ela argumentava. Seja qual for a espécie de ser que Deus é, sabemos hoje que ele já deixou de ser o mero inventor externo de “artifícios” destinados a pôr de manifesto a sua “glória”, em que tanto se compraziam os nossos antepassados, embora o modo exato com que o sabemos não nos seja possível elucidar com palavras, nem aos outros nem a nós mesmos. Desafio qualquer um dos senhores a explicar plenamente a sua persuasão de que, se existe um Deus, ele há de ser um personagem mais cósmico e mais trágico do que aquele Ser. A verdade é que, na esfera metafísica e religiosa, as razões definíveis só são irresistíveis para nós quando nossos sentimentos indefiníveis da realidade já foram impressionados em favor da mesma conclusão. Então, com efeito, nossas intuições e nossa razão trabalham juntas, e grandes sistemas capazes de governar o mundo, como o da filosofia budista ou o da filosofia católica, podem medrar. Nossa crença impulsiva é sempre o que ergue o corpo original da verdade, e a nossa filosofia definivelmente verbalizada é apenas a sua aparatosa tradução em fórmulas. A segurança desarrazoada e imediata é o que há de profundo em nós; o argumento razoado não passa de uma exibição superficial. O instinto conduz, a inteligência acompanha. Se uma pessoa sente a presença de um Deus vivo à maneira descrita pelas minhas citações, os argumentos críticos de outros, por superiores que sejam, debalde buscarão alterar-lhe a fé. Façam, porém, o favor de observar que ainda não estou dizendo que é melhor que o subconsciente e o não-racional detenham a primazia no reino religioso. Limito-me, tão-somente, a assinalar que assim é. Isso basta pelo que respeita ao nosso sentido da realidade dos objetos religiosos. Seja-me permitido dizer agora uma palavrinha sobre as atitudes que eles despertam caracteristicamente. Já concordamos em que elas são solenes; e temos razões para pensar que a mais característica é a espécie de alegria que pode resultar em casos extremos de total entrega de si mesmo. O sentido do tipo de objeto ao qual se faz a entrega é muito importante para determinar a natureza precisa da alegria; e todo fenômeno é mais complexo do que o permitido por qualquer fórmula simples. Na literatura sobre o assunto, enfatizaram-se a tristeza e o contentamento, cada qual por seu turno. O antigo dito, segundo o qual o primeiro criador dos Deuses foi o medo, recebe volumosa corroboração de todas as eras da história religiosa; mas, apesar disso, a história religiosa mostra a parte que a alegria tem tido sempre a representar. Às vezes, a alegria se mostra primária; às vezes, secundária, resultando do júbilo de haver-se libertado do medo. Sendo o mais complexo, esse último estado de coisas é também o mais completo; e, à proporção que prosseguirmos, creio que teremos razões bastantes para recusar-nos a deixar de fora tanto a tristeza como a alegria se olharmos para a religião com a amplitude de espírito que ela exige. Enunciada nos termos mais completos, a religião do homem envolve tanto os estados mentais de contração quanto os estados mentais de expansão do ser. Mas a mistura quantitativa e a ordem desses estados mentais variam tanto de uma época do mundo, de um sistema de pensamento e de um indivíduo para outro, que podemos insistir não só no pavor e na submissão, mas também na paz e na liberdade como a essência da matéria, e ainda permanecer materialmente dentro dos limites da verdade. O espectador constitucionalmente taciturno e o constitucionalmente sanguíneo enfatizarão aspectos opostos daquilo que têm à sua frente. A pessoa religiosa de constituição taciturna faz até da sua paz religiosa uma coisa muito solene. O perigo ainda paira no ar em tomo dela. A flexão e a contração não estão totalmente controladas. Seria coisa de pardal e de criança, depois da libertação, explodir em risos excitados e em cabriolas, e esquecer completamente o gavião no galho. Prostrai-vos, prostrai-vos, pois estais nas mãos de um Deus vivo. No Livro de Jó, por exemplo, a impotência do homem e a onipotência de Deus são os pensamentos dominantes da mente do autor. “É tão alto quanto o céu; que podes fazer? — é mais fundo que o inferno; que podes saber?” Há um sabor adstringente na verdade desta convicção que alguns homens poderão sentir, e que para eles é a maior aproximação que se pode fazer do sentimento de alegria religiosa. “Em Jó, diz o escritor friamente veraz, autor de Mark Rutherford, “Deus nos lembra que o homem não é a medida da sua criação. O mundo é imenso e foi construído segundo um plano ou uma teoria que o intelecto do homem não pode apreender. É transcendente em toda parte. Este é o teor de cada versículo, e o segredo, se é que há algum, do poema. Suficiente ou insuficiente, não há mais nada. … Deus é grande, não conhecemos os seus desígnios. Ele tira de nós tudo que temos mas, se possuirmos nossas almas com paciência, poderemos transpor o vale das sombras, e sair de novo à luz do sol. Poderemos ou não poderemos! … Que temos nós para dizer agora dos aguaceiros além do que Deus já disse, há mais de dois mil e quinhentos anos?”{30} Se nos voltarmos para o espectador sanguíneo, por outro lado, verificaremos que a libertação só será julgada completa depois que o sofrimento for de todo superado e o perigo esquecido. Esses espectadores nos dão definições que, para as mentes taciturnas de que falávamos há pouco, parecem deixar de fora toda a solenidade que toma a paz religiosa tão diferente das alegrias meramente animais. Na opinião de alguns autores, uma atitude pode ser capitulada de religiosa, embora nenhum toque tenha ficado nela de sacrifício ou submissão, nenhuma tendência para a flexão, nenhuma inclinação da cabeça. Toda “admiração habitual e regulada”, diz o Professor J. R. Seeley,{31} “merece chamar-se religião”; e, consequentemente, ele acha que a nossa Música, a nossa Ciência e a nossa pretensa “Civilização”, tal como estão agora organizadas e com a admiração que lhes são dedicadas, formam a religiões mais autênticas do nosso tempo. Não há dúvidas que a maneira decidida e irracional com que sentimos dever infligir nossa civilização a raças “inferiores”, por meio de metralhadoras Hotchkiss, etc., nos recorda nada menos que o espírito primitivo do Islamismo difundindo sua religião pela espada. Em minha última conferência citei para os senhores a opinião ultraradical do Sr. Havelock Ellis, de que toda espécie de riso deve ser considerada um exercício religioso, pois dá testemunho da emancipação da alma. Citei essa opinião para negar-lhe a exatidão. Cumpre-nos agora, porém, saldar nossas contas mais cuidadosamente com esse jeito otimista de pensar. Este é um problema tão complexo que não pode ser decidido de improviso. Proponho, portanto, que façamos do otimismo o tema das duas próximas conferências. IV e V Conferências A RELIGIÃO DO EQUILÍBRIO MENTAL Se tivéssemos de fazer a pergunta: “Qual é a principal preocupação da vida humana?”, uma das respostas seria: “A felicidade”. Como alcançar, como conservar, como recobrar a felicidade é, de fato, para a maioria dos homens em todos os tempos, o motivo secreto de tudo o que fazem e de tudo o que estão dispostos a suportar. A escola hedonística de ética deduz a vida moral inteiramente das experiências de felicidade e infelicidade produzidas pelos diferentes gêneros de conduta; e, ainda mais na vida religiosa do que na vida moral, a felicidade e a infelicidade parecem ser os pólos ao redor dos quais gira o interesse. Não precisamos ir tão longe a ponto de dizer, com o autor recentemente citado, que todo entusiasmo persistente é, como tal, religião, nem precisamos qualificar o mero riso de exercício religioso; mas somos obrigados a admitir que qualquer gozo persistente pode produzir o tipo de religião que consiste na admiração agradecida do dom de uma existência tão feliz; e precisamos também reconhecer que as maneiras mais complexas de experimentar a religião são novas maneiras de produzir felicidade, maravilhosos caminhos interiores para uma categoria sobrenatural de felicidade, quando o primeiro dom da existência natural é infeliz, como tantas vezes acontece. Com tais relações entre religião e felicidade, talvez não seja surpreendente que os homens venham a considerar a felicidade proporcionada por uma crença religiosa prova da sua verdade. Se um credo faz o homem sentir-se feliz, ele o adota quase inevitavelmente. Uma crença como essa tem de ser verdadeira; portanto, é verdadeira - esta, certa ou erradamente, é uma das “inferências imediatas” da lógica religiosa usada pelo homem comum. “A presença próxima do espírito de Deus”, diz um escritor alemão,{32} “pode ser experimentada na sua realidade - de feito, apenas experimentada. E a marca pela qual a existência e a proximidade do espírito se tornam irrefutavelmente claras para os que já tiveram alguma vez a experiência, é o sentimento de felicidade, totalmente incomparável, que está ligado à proximidade e, é, portanto, não só um sentimento possível e de todo apropriado para experimentarmos aqui embaixo, mas também a prova melhor e mais indispensável da realidade de Deus. Nenhuma outra prova é igualmente convincente e, por conseguinte, a felicidade é o ponto pelo qual toda teologia nova e eficaz deveria começar.” Na hora que está imediatamente à nossa frente, eu os convido a examinar as espécies mais singelas da felicidade religiosa, deixando as mais complexas para outro dia. Em muitas pessoas, a felicidade é congênita e irrevogável. A “emoção cósmica” toma nelas, inevitavelmente, a forma do entusiasmo e da liberdade. Não me refiro apenas aos animalmente felizes. Refiro-me aos que, quando a infelicidade lhes é oferecida ou proposta, se recusam positivamente a sentila, como se fosse alguma coisa mesquinha e errada. Encontramos tais pessoas em todas as idades, atirando-se, apaixonadas, ao sentido da bondade da vida, apesar das provações da própria condição e em que pese às sinistras teologias em que possam ter nascido. Desde o princípio, sua religião é de união como o divino. Os hereges que viveram antes da Reforma são profusamente acusados pelos escritores da igreja de práticas antinômicas, exatamente como os cristãos eram acusados de orgiastas pelos romanos. É provável que nunca tenha havido um século em que a recusa deliberada de pensar mal da vida não tenha sido idealizada por um número de pessoas suficiente para formar seitas, abertas ou secretas, que proclamavam a permissibilidade de todas as coisas naturais. A máxima de Santo Agostinho, Dilige et quod vis fac - ama a Deus e faze o que desejas - é uma das observações mais profundas do ponto de vista moral e, sem embargo disso, está prenhe, para as pessoas assim, de passaportes além dos limites da moral convencional. De acordo com seus caracteres, elas têm-se mostrado requintadas ou grosseiras; mas a sua crença tem sido em todos os tempos tão sistemática que constitui uma atitude religiosa definida. Para elas, Deus era um dador de liberdade, e o ferrete do mal fora superado. São Francisco e seus discípulos imediatos pertenciam, de um modo geral, a essa companhia de espíritos, da qual existem, naturalmente, infinitas variedades. Rousseau, nos primeiros anos dos seus escritos, Diderot, B. de Saint Pierre, e muitos chefes do movimento anti- cristão do século XVIII foram desse tipo otimista. Eles deviam a própria influência a uma certa autoridade do seu sentimento, segundo o qual a Natureza, para os que nela sabem confiar, é absolutamente boa. É de se esperar que todos tenhamos algum amigo, talvez mais amiúde feminino do que masculino, e mais frequentemente jovem do que velho, cuja alma seja dessa cor azul celeste, que tenha mais afinidades com flores e pássaros e com todas as encantadoras inocências do que com escuras paixões humanas, que não saiba pensar mal do homem nem de Deus, e no qual a alegria religiosa, de que está de posse desde o princípio, não precisa libertar-se de nenhum sofrimento anterior. “Deus tem duas famílias de filhos nesta terra”, diz Francis W. Newman,{33} “os nascidos uma vez e os nascidos duas vezes”, e descreve os nascidos uma vez da seguinte forma: “Eles vêem Deus, não como Juiz rigoroso, nem como Glorioso Potentado; senão como Espírito animador de um belo mundo harmonioso, Benfazejo e Bondoso, Misericordioso e Puro. Esses personagens geralmente não têm tendências metafísicas: não olham para dentro si mesmos. Por conseguinte, não sé afligem com as próprias imperfeições; e, todavia, fora absurdo chamar- lhes presunçosos; pois escassamente pensam em si mesmos. Essa qualidade infantil da sua natureza faz o caminho da religião muito feliz para eles: pois eles não se encolhem mais diante de Deus quanto uma criança diante de um imperador, cuja presença faz tremer seus pais: com efeito, eles não têm qualquer concepção vivida de nenhuma das qualidades da mais severa Majestade de Deus,{34} que é, para eles, a personificação da Bondade e da Beleza. Eles lêemlhe o caráter, não no mundo desordenado do homem, mas na natureza romântica e harmoniosa. Do pecado humano talvez pouco saibam em seus corações e não muito no mundo; e o sofrimento humano mal lhes desperta a ternura. Assim sendo, quando se aproximam de Deus, nada lhes perturba o interior; e, sem ser espirituais, têm certa complacência e talvez um sentido romântico de excitamento em sua singela adoração.” Tais personagens encontram um solo mais favorável para medrar na Igreja de Roma do que no Protestantismo, cujos modos de sentir foram estabelecidos por mentes de uma ordem decididamente pessimista. Mas até no Protestantismo têm sido abundantes; e em seus recentes desenvolvimentos “liberais” de Unitarismo e Latitudinarismo em geral, mentes dessa ordem têm desempenhado e ainda desempenham papéis condutores e construtivos. O próprio Emerson é um exemplo admirável. Theodore Parkes é outro - e aqui está um par de passagens características da correspondência de Parker.{35} “Dizem os eruditos ortodoxos: ‘Nos clássicos pagãos não encontrais a consciência do pecado’. É a pura verdade - e Deus seja louvado por isso. Eles tinham consciência da ira, da crueldade, da avareza, da intemperança, da luxúria, da preguiça, da covardia e de outros vícios reais; lutavam e livravam-se das deformidades, mas não tinham consciência da ‘inimizade a Deus’, e não ficavam sentados, choramingando e gemendo contra o mal inexistente. Tenho feito muita coisa errada em minha vida, e continuo a fazê-lo; erro o alvo, reteso o arco e tento outra vez. Mas não tenho consciência de odiar a Deus, nem ao homem, nem ao direito, nem ao amor, e sei que há muita ‘saúde em mim’; e em meu corpo, mesmo agora, há muita coisa boa, apesar da tísica e de São Paulo.” Em outra carta, escreve Parker: “Tenho nadado em águas claras e doces todos os dias: e se, algumas vezes, elas foram muito frias, e a corrente fluiu em sentido contrário e de um modo algo turbulento, nunca foi tão forte que eu tivesse de pôr peito a ela e vencê-la. Desde os dias da minha primeira meninice, quando eu andava tropeçando pela grama, … até a virilidade agrisalhada de hoje, não se passou um só dia que não me tenha deixado algum mel na colméia da memória de que agora tiro o alimento para o atual deleite. Quando me lembro dos anos … invademe um sentido de doçura e pasmo de que coisas tão pequenas possam tomar um mortal tão excessivamente rico. Devo confessar, contudo, que o principal dos meus deleites ainda é o religioso”. Outra boa expressão do tipo de consciência dos “nascidos uma vez”, que se desenvolvem direta e naturalmente, sem nenhum elemento de compunção mórbida ou crise, está contida na resposta do Dr. Edward Everett Hale, eminente pregador e escritor unitarista, a uma das circulares do Dr. Starbuck. Cito parte dela: “Observo, com profundo pesar, as lutas religiosas que surgem em muitas biografias, como se fossem quase essenciais à formação do herói. Devo falar delas para dizer que goza de uma vantagem inestimável todo homem que nasce, como eu nasci, numa família em que a religião é simples e racional; que é educado na teoria dessa religião, de modo que nunca sabe, nem mesmo por uma hora, o que são as lutas religiosas ou irreligiosas. Eu sempre soube que Deus me amava, e sempre lhe fui grato pelo mundo em que me colocou. Sempre me agradou dizer-lhe isso, e sempre me alegrou receber as sugestões que ele me fazia …. Lembro-me perfeitamente de que, quando eu me avizinhava da idade viril, os romances semifilosóficos da época tinham muita coisa para dizer a respeito dos moços e moças que defrontavam com o ‘problema da vida’. Eu não fazia a menor idéia do que fosse o problema da vida. Viver com toda a minha força me parecia fácil; aprender onde havia tanta coisa para aprender me parecia agradável e quase óbvio; dar, uma mão, quando se me oferecia oportunidade de dá-la, natural; e, se alguém o fizesse, gozava a vida porque não podia deixar de fazê-lo, e sem precisar provar a si mesmo que devia gozá-la. … Uma criança a quem ensinam desde o começo que é filha de Deus, que pode viver e mover-se e ter o seu ser em Deus, e que tem, portanto, uma força infinita à mão para vencer qualquer dificuldade, levará a vida com maior facilidade e, provavelmente, o fará melhor do que aquela a quem disseram que nasceu filha da ira e que é totalmente incapaz de fazer o bem”. {36} Não podemos deixar de reconhecer em escritores como esses a presença de um temperamento organicamente voltado para o lado da alegria e fatalmente proibido de demorar-se, como se demoram os de temperamento oposto, nos aspectos mais escuros do universo. Em alguns indivíduos, o otimismo toma-se quase patológico, como se não fossem capazes nem mesmo de uma tristeza transitória ou de uma humildade momentânea, graças a uma espécie de anestesia congênita.{37} O supremo exemplo contemporâneo dessa incapacidade de sentir o mal é, evidentemente, Walt Whitman. “Suas projeções favoritas”, escreve seu discípulo, Dr. Bucke, “pareciam ser caminhar ao léu ou perambular a esmo, sozinho, olhando para a relva, as árvores, as flores, os efeitos de luz, os aspectos cambiantes do céu, e prestar atenção aos pássaros, aos grilos, às rainetas e a todas as centenas de sons naturais. Era evidente que essas coisas lhe davam um prazer muito maior do que o que dão às pessoas comuns. Até conhecer o homem”, continua o Dr. Bucke, “não me ocorrera que alguém pudesse encontrar tanta felicidade absoluta nessas coisas quanto ele. Gostava intensamente de flores, quer silvestres, quer cultivadas; amava todos os tipos. Creio que admirava os lilases e girassóis tanto quanto as rosas. Talvez, na verdade, homem nenhum que já viveu gostasse de tantas coisas e desgostasse de tão poucas quanto Walt Whitman. Todos os objetos naturais pareciam ter um encanto especial para ele. Dir-se-ia que todas as vistas e todos os sons lhe agradassem. Ele dava a impressão de gostar (e creio que gostava mesmo) de todos os homens, mulheres e crianças que via (embora eu nunca o ouvisse dizer que se agradava de alguém), mas todas as pessoas que o conheciam sentiam que ele as apreciava e apreciava outras também. Nunca o vi discutir nem brigar, nem ouvi dizer que o tivesse feito, e ele nunca falava em dinheiro. Justificava sempre, às vezes em tom brincalhão, às vezes a sério, os que se referiam duramente a ele ou aos seus escritos, e muita vez me pareceu que encontrava prazer na oposição dos inimigos. Quando o conheci, eu costumava pensar que ele se policiava e não permitia à própria língua dar expressão ao mau humor, à antipatia, a queixas e admoestações. Não me ocorreu a possibilidade que esses estados mentais estivessem ausentes nele. Depois de longa observação, no entanto, compenetrei-me de que tal ausência ou inconsciência era inteiramente real. Ele nunca falava de forma depreciativa de nenhuma nacionalidade ou classe de homens, nem de épocas na história do mundo, nem de quaisquer ofícios ou ocupações - nem sequer de animais, insetos ou coisas inanimadas, nem das leis da natureza, nem de nenhum resultado dessas leis, como doenças, deformidades e morte. Nunca se queixava do tempo, nem de dores, nem de doenças, nem de coisa alguma, e tampouco resmungava contra elas. Nunca xingava. Nem saberia fazê-lo, visto que nunca falava com raiva e, aparentemente, nunca se zangava. Nunca demonstrou ter medo, e não acredito que alguma vez o tivesse sentido.” {38} Walt Whitman deve sua importância na literatura à expulsão sistemática dos seus escritos de quaisquer elementos contráteis. Os únicos sentimentos que se permitia expressar eram de ordem expansiva; e expressava-os na primeira pessoa, não como outros indivíduos monstruosamente vaidosos poderiam expressá-los, mas em nome de todos os homens, de modo que uma apaixonada e mística emoção ontológica lhe penetra as palavras, que acabam persuadindo o leitor de que homens e mulheres, a vida e a morte, e todas as coisas são divinamente boas. Dessa maneira aconteceu que, para muitas pessoas, Walt Whitman é hoje o restaurador da eterna religião natural. Ele as contagiou com o seu próprio amor aos companheiros, com sua própria alegria por ele e eles existirem. Formam-se realmente sociedades para o seu culto; existe um órgão periódico destinado à sua propagação, em que as linhas da ortodoxia e da heterodoxia já estão começando a ser traçadas;{39} hinos são escritos por outros em sua prosódia peculiar; e ele é até comparado explicitamente com o fundador da religião cristã, nem sempre com vantagem para este último. Fala-se não raro de Whitman como de um “pagão”. A palavra, hoje em dia, significa, às vezes, o simples homem animal, natural, despojado de sentido do pecado; às vezes, significa um grego ou um romano com sua consciência religiosa peculiar. Em nenhum desses sentidos o vocábulo define convenientemente o poeta. Ele é mais do que o mero homem animal que não provou da árvore do bem e do mal. Está tão cônscio do pecado que há uma certa arrogância na sua indiferença a ele, um orgulho consciente da sua liberdade de flexões e contrações, que o autêntico pagão no primeiro sentido jamais seria capaz de mostrar. “Eu poderia virar e viver com animais, eles são tão plácidos e auto-suficientes, Fico de pé e contemplo-os longamente; Eles não suam nem lamuriam a sua condição. Não ficam acordados no escuro nem choram por seus pecados. Nenhum deles está insatisfeito, nenhum dementado pela mania de possuir coisas, Nenhum se ajoelha diante do outro, nem diante dos animais da sua espécie que viveram há milhares de anos, Não há nenhum respeitável ou infeliz em toda a terra.” {40} Nenhum pagão natural teria escrito estes versos tão conhecidos. Por outro lado, porém, Whitman é menos do que um grego ou um romano, cuja consciência, mesmo nos tempos homéricos, estava cheia até a borda da triste mortalidade deste mundo ensolarado, e Walt Whitman recusa-se a adotar uma consciência dessa natureza. Quando, por exemplo, Aquiles, prestes a matar Licáon, filho de Príamo, ouve o rapaz suplicar misericórdia, detém-se para dizer: “Eis, meu amigo, morre tu também! Por que lamentas a sorte? Também morreu Pátroclo, que valia muito mais do que tu …. Sobre mim também está suspensa a morte e o destino poderoso. Será ao surdir da aurora, será à tarde, será no meio do dia que alguém me arrancará também a vida a mando de Ares, ferindo-me com a lança ou a flecha de um arco”.{41} Em seguida, Aquiles, selvagemente, corta com a espada o pescoço do pobre rapaz, ergue-o pelo pé e joga-o no Escamandro, chamando os peixes do rio para comer a alva gordura de Licáon. E assim como aqui a crueldade e a simpatia soam verdadeiras, e não se misturam nem interferem uma com a outra, assim também os gregos e romanos mantêm inteiras e sem mistura toda a sua tristeza e toda a sua alegria. Instintivamente bons, não reconheciam o pecado; nem tinham um desejo tão grande de salvar o crédito do universo que os fizesse insistir, como muitos dentre nós insistimos, em que o que imediatamente surge como mal há de ser “um bem em formação”, ou qualquer outra coisa igualmente engenhosa. Para os primitivos gregos, o bom era bom e o mau era mau. Eles nem negavam os males da natureza - o verso de Walt Whitman, “O que se chama bom é perfeito e o que se chama mau é igualmente perfeito”, teria sido para eles mera tolice - nem inventavam, para escapar desses males, “outro modo melhor” da imaginação, em que, a par com os males, os bens inocentes dos sentidos também não encontrariam lugar. A integridade das reações instintivas, a liberdade de toda sofisticaria e tensão morais confere uma dignidade patética ao antigo sentimento pagão. E essa qualidade as efusões de Whitman não têm. Seu otimismo é demasiado voluntário e desafiador; seu evangelho tem laivos de fanfarronice e afetação, {42} e isso lhe diminui o efeito sobre muitos leitores, aliás, bem dispostos em relação ao otimismo e, de um modo geral, perfeitamente inclinados a admitir que, em sentidos importantes, Whitman pertence à linhagem autêntica dos profetas. Se, portanto, dermos o nome de equilíbrio mental à tendência que olha para todas as coisas e vê que são boas, chegaremos à conclusão de que precisamos distinguir entre um meio mais involuntário e um meio mais voluntário ou sistemático de ser mentalmente equilibrado. Em sua variedade involuntária, o equilíbrio mental é um modo de sentir-se a gente feliz ao contato imediato das coisas. Em sua variedade sistemática, é um modo abstrato de conceber as coisas como boas. Toda maneira abstrata de conceber as coisas escolhe um aspecto delas como sua essência por algum tempo, e despreza os outros aspectos. O equilíbrio mental sistemático, concebendo o bem como o aspecto essencial e universal do ser, exclui deliberadamente o mal do seu campo de visão; e, todavia, assim nuamente enunciado, isso pode parecer uma proeza difícil de executar-se para quem é intelectualmente sincero consigo mesmo e honesto em relação aos fatos; basta, porém, refletir um pouco para ver que a situação é tão complexa que não pode prestar-se a uma crítica tão simples. Em primeiro lugar, a felicidade, como todos os outros estados emocionais, é cega e insensível aos fatos contrários dados a ela como arma instintiva para se proteger de uma possível perturbação. Quando a felicidade impera realmente, a idéia do mal já não pode lograr o sentido da realidade, como a idéia do bem não pode obtê-lo quando impera a melancolia. Para o homem ativamente feliz, seja qual for a causa, o mal não pode ser criado, naquele momento e naquele lugar. Cumpre-lhe não fazer caso dele; e, para o circunstante, pode ser que ele pareça estar fechando perversamente os olhos para o mal e impondo-lhe silêncio. Mais do que isso, porém: o impor-lhe silêncio, num espírito perfeitamente sincero e honesto, pode converter-se numa política religiosa deliberada, ou parti pris. Muita coisa do que denominamos mal se deve inteiramente ao modo com que os homens encaram o fenômeno. Ele muitas vezes se converte num bem estimulante e tônico por simples mudança da atitude interna daquele que sofre, que passa do medo à luta; seu ferrão tantas vezes desaparece e muda-se em prazer quando, depois de procurar em vão evitá-lo, concordamos em enfrentá-lo e suportá-lo com alegria, que o homem se vê simplesmente obrigado, até por uma questão de honra, diante de muitos fatos que parecem, de início, turbar-lhe a paz, a adotar esse modo de fuga. Recusa-se a admitir-lhes a maldade; despreza-lhes o poder; não dá importância à sua presença; desvia a atenção para outro lado; e, de qualquer maneira, no que concerne a si próprio, embora os fatos ainda existam, o seu caráter perverso já deixou de existir. Visto ser a pessoa quem os faz maus ou bons pelos próprios pensamentos, governá-los há de ser a sua principal preocupação. Destarte, a adoção deliberada de uma propensão otimista da mente ingressa na filosofia. E, depois de haver ingressado, é difícil traçar-lhe os limites legítimos. Não apenas o instinto humano da felicidade, empenhado em proteger-se pela ignorância, continua trabalhando em seu favor, mas também ideais últimos mais elevados têm palavras de peso para dizer. A atitude de infelicidade não é somente penosa, mas também mesquinha e feia. Que é o que pode ser mais baixo e indigno do que o estado de espírito choramingas, lamurioso, mal-humorado, sejam quais forem os inales externos que o possam ter engendrado? Que é mais prejudicial aos outros? Que é menos útil como meio de livrar-se da dificuldade? Ele apenas fixa e perpetua o problema que o ocasionou, e aumenta o mal total da situação. A todo custo, portanto, impende reduzir a influência desse estado de espírito; devemos investigá-lo em nós mesmos e nos outros, e nunca mostrar-lhe tolerância. Mas é impossível prosseguir nessa disciplina na esfera subjetiva sem enfatizar zelosamente os aspectos mais brilhantes e sem minimizar, ao mesmo tempo, os aspectos mais escuros da esfera objetiva das coisas. E, dessa forma, nossa resolução de não condescender com o sofrimento, começando num ponto relativamente pequeno dentro de nós, pode não se interromper enquanto não tiver colocado toda a estrutura da realidade sob uma concepção sistemática tão otimista que se toma congenial às suas necessidades. Em tudo isso não aludo a nenhuma visão intuitiva ou persuasão mística de que a estrutura total das coisas precisa absolutamente ser boa. Tal persuasão mística representa uma parte enorme na história da consciência religiosa, e teremos de examiná-la mais tarde com algum cuidado. Agora, porém, não precisamos ir tão longe. Condições não-místicas mais comuns de ruptura bastam à minha arguição imediata. Todos os estados morais agressivos e entusiasmos apaixonados nos fazem sentir insensíveis ao mal de alguma forma. As penas comuns já não tolhem o patriota, as prudências costumeiras são lançadas ao vento pelo apaixonado. Quando a paixão é extrema, o sofrimento, na verdade, pode ser exaltado; contanto que seja para a causa ideal, a morte perde o acúleo e o túmulo, a vitória. Nesses estados, o contraste comum entre o bem e o mal parece absorvido numa denominação mais alta, numa excitação onipotente que engolfa o mal e que o ser humano recebe como a experiência crucial de sua vida. Isto, diz ele, é realmente viver, e eu exulto pela oportunidade e pela aventura heróicas. O cultivo sistemático do equilíbrio mental como atitude religiosa consentâneo com correntes importantes da natureza humana, pode ser tudo, menos absurdo. Com efeito, todos nós o cultivamos mais ou menos, até quando a teologia que professamos deveria, por coerência, vedá-lo. Desviamos a atenção da doença e da morte quanto podemos; e os matadouros e as indecências sem fim sobre as quais se funda a nossa vida são afastadas atabalhoadamente da nossa vista e nunca mencionadas, de sorte que o mundo que reconhecemos oficialmente na literatura e na sociedade é uma ficção poética muito mais bonita, mais asseada e melhor do que o mundo real.{43} O progresso do chamado liberalismo no Cristianismo, durante os últimos cinquenta anos, pode chamar-se com justiça uma vitória do equilíbrio mental, dentro da igreja, sobre a morbidez com a qual a velha teologia do fogo do inferno se relacionava mais harmoniosamente. Temos agora toda uma congregação cujos pregadores, longe de dilatar a nossa consciência do pecado, parecem empenhados em fazer pouco dela. Desprezam, e até negam, o castigo eterno, e insistem mais na dignidade do que na depravação do homem. Olham para a contínua preocupação do cristão à moda antiga com a salvação da sua alma como algo mais enfermiço e repreensível do que admirável; e uma atitude sanguínea e “muscular”, que para os nossos maiores teria parecido puramente pagã, tomou-se aos seus olhos um elemento ideal do caráter cristão. Não pergunto se eles estão certos ou não, apenas assinalo a mudança. As pessoas a que me refiro ainda conservam, na maior parte, a conexão nominal com o Cristianismo, apesar de haverem posto de lado seus elementos teológicos mais pessimistas. Mas nessa “teoria da evolução”, que vem reunindo forças há um século, e se espalham, nos últimos vinte e cinco anos, com tanta rapidez, pela Europa e pela América, vemos o solo preparado para uma nova espécie de religião da Natureza, que deslocou inteiramente o Cristianismo da idéia de grande parte da nossa geração. A noção da evolução universal presta-se a uma doutrina de meliorismo e progresso, que tão bem se ajusta às necessidades religiosas dos mentalmente equilibrados que até parece ter sido criada para o seu uso. Por conseguinte, encontramos o “evolucionismo” interpretado assim otimistamente, e abraçado como substituto da religião em cujo seio nasceram, por uma multidão de contemporâneos nossos que ou receberam uma educação científica, ou sempre gostaram de ler artigos sobre ciência popular, e que já estavam começando a ficar interiormente insatisfeitos com o que lhes parecia o rigor e a irracionalidade do esquema ortodoxo cristão. Como os exemplos são melhores do que as descrições, citarei um documento recebido em resposta a um questionário elaborado pelo Professor Starbuck. O estado de espírito do autor às respostas pode ser chamado, por cortesia, de religião, pois sua reação a toda a natureza das coisas é sistemática e reflexiva, e lealmente o liga a certos ideais íntimos. Creio que os senhores reconhecerão na sua falta de sensibilidade e na sua invulnerabilidade um tanto grosseira de espírito, um tipo contemporâneo assaz familiar. P. Que significa a Religião para você? R. Não significa nada; e me parece, pelo que me é dado observar, inútil para os outros. Tenho sessenta e sete anos de idade, residi em X. por cinquenta anos e estou no comércio há quarenta e cinco; tenho, portanto, alguma experiência da vida e dos homens, e de algumas mulheres também, e descobri que as pessoas mais religiosas e piedosas são, por via de regra, as menos íntegras e morais. Os homens que não frequentam a igreja ou não têm convicções religiosas são os melhores. Isso de rezar, cantar hinos e fazer sermões é pernicioso - ensina a gente a confiar em algum poder sobrenatural, quando devíamos confiar em nós mesmos. Desacredito totalmente de Deus. A idéia de Deus foi engendrada na ignorância, no medo e numa falta geral de qualquer conhecimento da Natureza. Se eu devesse morrer agora, estando bem de saúde para a minha idade, tanto mental quanto física, morreria de bom grado ouvindo música, praticando esporte ou empenhado em qualquer outro passatempo racional. Assim como o relógio para, assim também morremos - não há imortalidade em nenhum dos casos. P. Que é o que corresponde, em sua mente, às palavras Deus, Céu, Anjos, etc.? R. Absolutamente nada. Sou um homem sem religião. Essas palavras não passam de baboseiras míticas. P. Você já teve alguma experiência que lhe tivesse parecido providencial? R. Absolutamente nenhuma. Não há poder algum que superintenda as nossas vidas. Uma pequena observação judiciosa bem como o conhecimento da lei científica convencerão qualquer um desse fato. P. Quais são as coisas que atuam com, maior vigor sobre as suas emoções? R. Cantos e músicas alegres; Bibe em vez de Oratório. Gosto de Scott, Bums, Byron, Longfellow, especialmente Shakespeare, etc., etc. No tocante às canções, a Star-spangled Banner, a América, a Marselhesa e todos os cantos morais que mexem com a alma da gente, mas detesto hinos água-comaçúcar. Aprecio imensamente a natureza, sobretudo quando faz bom tempo, e até há poucos anos eu costumava ir para o campo aos domingos, andando muitas vezes dezesseis milhas, sem me cansar, e pedalando quarenta ou cinquenta. Larguei a bicicleta. Nunca vou à Igreja, mas assisto a conferências, quando são boas. Todos os meus pensamentos e cogitações têm sido de um tipo saudável e jovial pois, em lugar de ter dúvidas e medo, vejo as coisas como elas são, forcejando por ajustar-me ao meu ambiente. Essa é a lei que considero mais profunda. O gênero humano é um animal progressivo. Tenho a certeza de que terá feito um grande avanço sobre o seu status atual daqui a mil anos. P. Qual é a sua idéia de pecado? R. A mim me parece que o pecado é uma condição, uma moléstia, a que o homem está sujeito porque o seu desenvolvimento ainda não se adiantou bastante. Devemos pensar que daqui a um milhão de anos a equidade, a justiça e a boa ordem mental e física estarão tão fixas e organizadas que ninguém terá nenhuma idéia do mal nem do pecado. P. Como é o seu temperamento? R. Nervoso, ativo, desperto, mental e fisicamente. É uma pena que a Natureza nos obrigue a dormir. Se estivermos à procura de um coração partido e contrito, é evidente que não devemos olhar para esse irmão. Seu contentamento com o finito envolve-o como uma concha de ostra e escuda-o contra toda a mórbida aflição provocada pelo seu distanciamento do Infinito. Temos dele excelente exemplo do otimismo que pode ser estimulado pela ciência popular. A meu parecer, uma corrente muito mais importante e interessante, do ponto de vista religioso, do que a que vai da ciência natural ao equilíbrio mental é a que recentemente se derramou sobre a América e parece estar ganhando força todos os dias, - ignoro completamente o, apoio que ela pode ter conseguido na Grã-Bretanha - e à qual, por amor de uma designação lacônica, darei o nome de “Movimento da cura psíquica”. Existem várias seitas desse “Pensamento Novo”, para usar outro nome que ela confere a si mesma; mas suas concordâncias são tão profundas que suas diferenças podem ser descuradas para o que tenho em mente, e tratarei o movimento, sem maiores justificativas, como se fosse uma coisa simples. Trata-se de um esquema de vida deliberadamente otimista, com um lado ao mesmo tempo especulativo e prático. Em seu gradativo desenvolvimento no derradeiro quarto de século, absorveu certo número de elementos contributivos e agora deve ser considerado um autêntico poder religioso. Chegou à fase, por exemplo, em que a procura da sua literatura é tão grande que justifica a produção de materiais insinceros, mecanicamente produzidos para o mercado, até certo ponto fornecidos por editores - fenômeno nunca observado, imagino eu, enquanto a religião não ultrapassa os seus primórdios inseguros. Uma das fontes doutrinárias da cura psíquica são os quatro Evangelhos; outra é o emersonianismo ou o trancendentalismo da Nova Inglaterra; outra é o idealismo de Berkeley; outra é o espiritismo, com suas mensagens de “lei”, “progresso” e “desenvolvimento”; outra é o evolucionismo da ciência popular otimista de que falei há pouco; e, finalmente, o estudo do Hinduísmo. Mas o traço mais característico do movimento da cura psíquica é uma inspiração muito mais direta. Os chefes dessa fé tiveram uma crença intuitiva no poder salvador das atitudes de equilíbrio mental como tais, na eficácia conquistadora da coragem, da esperança e da confiança, e num desprezo correlativo da dúvida, do medo, da preocupação e de todos os estados de espírito nervosamente admonitórios.{44} De um modo geral, sua crença foi corroborada pela experiência prática dos discípulos; e essa experiência forma hoje uma massa imponente pelo vulto. Os cegos viram, os coxos andaram; os que carregavam uma existência inteira de invalidez tiveram a saúde restaurada. Os frutos morais não foram menos notáveis. A adoção deliberada de uma atitude de equilíbrio mental revelou-se possível a muitos que nunca supuseram tê-la em si mesmos; a regeneração do caráter prosseguiu em larga escala; e a jovialidade foi restaurada em lares sem conta. A influência indireta de tudo isso tem sido grande. Os princípios da cura psíquica estão começando a difundir-se pelo ar de tal maneira que lhes captamos o espírito de segunda-mão. Ouvimos falar no “Evangelho do Relaxamento”, no “Movimento do Não-se-Preocupe”, das pessoas que repetem para si mesmas, “Mocidade, saúde, vigor!” enquanto se vestem pela manhã, como divisa para o resto do dia. As queixas contra o tempo estão começando a ser proibidas em muitas casas; e um número cada vez maior de pessoas reconhece que não fica bem falar em sensações desagradáveis, ou fazer muito caso das inconveniências e aborrecimentos da vida. Esses efeitos tônicos gerais sobre a opinião pública seriam bons mesmo que não existissem os resultados mais surpreendentes. Mas estes últimos abundam de tal forma que podemos dar-nos ao luxo e passar por alto os inumeráveis fracassos e decepções com que eles vêm misturados (pois em tudo o que é humano o fracasso é natural), como também podemos passar por alto a verbosidade de muita literatura da cura psíquica, parte da qual está tão adoidada pelo otimismo e é tão vagamente expressa que a sua leitura é quase impossível para um intelecto que tenha tido uma educação acadêmica. Subsiste, porém, o fato de que a propagação do movimento se deveu aos seus frutos práticos, e o caráter sumamente pragmático do povo americano jamais encontrou melhor oportunidade para mostrar-se do que esta, sua única contribuição decididamente original à filosofia sistemática da vida, tão intimamente ligada à terapêutica concreta. As profissões médica e clerical dos Estados Unidos estão começando a abrir os olhos, embora com muita recalcitrância e protestos, para a importância da cura psíquica. É manifesto que ele está destinado a desenvolver-se ainda mais, tanto especulativa quanto praticamente, e os seus últimos escritores são, sem contestação, os mais hábeis do grupo.{45} Não importa que, assim como há muitíssimas pessoas que não sabem rezar, assim há, em maior número ainda, as que não podem ser influenciadas pelas idéias dos apologistas da cura psíquica. Elas formam um tipo psíquico que merece ser estudado com respeito.{46} Cheguemos, porém, um pouco mais perto do credo deles. O pilar fundamental sobre o qual se assenta nada mais é do que a base geral de toda experiência religiosa, ou seja, o ter o homem dupla natureza e estar ligado a duas esferas de pensamento, uma superficial e outra profunda, em qualquer uma das quais pode aprender a viver mais habitualmente. A esfera mais superficial e mais baixa é a das sensações da carne, dos instintos e dos desejos, do egoísmo, da dúvida e dos interesses pessoais inferiores. Mas, ao passo que a teologia cristã sempre considerou a obstinação o vício essencial dessa parte da natureza humana, os adeptos da cura psíquica afirmam que, nela, a marca da besta é o medo; e é isso que dá um feitio religioso tão inteiramente novo às suas convicções. “O medo”, para citarmos um escritor da escola, “tem tido suas utilidades no processo evolutivo, e parece constituir toda a previdência na maioria dos animais; mas que deva continuar fazendo parte do equipamento mental da vida humana civilizada é um absurdo. Tenho para mim que o elemento do medo na previsão, longe de estimular as pessoas mais civilizadas, para as quais o dever e a inclinação são os motivos naturais, as debilita e dissuade. Logo que se toma desnecessário, o medo se transforma em obstáculo positivo e deve ser inteiramente removido, como se remove a carne morta de um tecido vivo. Para ajudar na análise do medo e na denunciação de suas expressões, cunhei a palavra fearthought (pensamento do medo) para representar o elemento não aproveitável do forethought (pensamento prévio = previsão), e defini a palavra ‘preocupação’ como fearthought em contraposição com forethought. Também defini fearthought como sugestão auto-imposta ou autopermitida de inferioridade, a fim de colocá-la no seu verdadeiro lugar, a categoria das coisas nocivas, desnecessárias e, portanto, não respeitáveis.”{47} O “hábito da miséria”, o “hábito do martírio”, engendrados pelo “fearthought”, receberam críticas mordazes dos escritores que defendem a cura psíquica: “Considerem-se, por um momento, os hábitos de vida nos quais nascemos. Existem convenções sociais ou costumes e pretensos requisitos, existe uma predisposição teológica, uma visão geral do mundo. Há idéias conservadoras em relação à nossa primeira educação, ao casamento, ao mister da vida Acompanhando tudo isso bem de perto, há uma longa série de antecipações, como a de que sofreremos certas moléstias infantis, da meia idade e da velhice; o pensamento de que envelheceremos, perderemos nossas faculdades e voltaremos a ser como crianças; ao mesmo tempo, coroando tudo, há o medo da morte. Segue-se uma longa linha de medos particulares e expectativas carregadas de problemas, como, por exemplo, idéias associadas a certas comidas, o medo do vento leste, os terrores do tempo do calor, as dores e mal-estares associados ao tempo do frio, o medo de apanhar um resfriado expondo-se a uma corrente de ar, a vinda da febre de feno no dia 14 de agosto ao meio do dia, e assim por diante, numa longa lista de medos, pavores, preocupações, ansiedades, antecipações, expectativas, pessimismo, morbidezas, e toda a enfiada fantasmagórica de formas funestas que os nossos semelhantes, especialmente os médicos, estão prontos a ajudar-nos a conjurar, uma série digna de figurar no ‘balé macabro das categorias exangues’ de Bradley. “Isso, todavia, não é tudo. Essa vasta série é acrescida dos inumeráveis voluntários da vida cotidiana - o medo do acidente, possibilidade de uma catástrofe, a perda de propriedades, a possibilidade de roubo, de incêndio, de uma guerra. E não nos basta temer por nós mesmos. Quando um amigo adoece, temos de temer incontinenti o pior e recear a morte. Se topamos com a dor … simpatia significa partilhar dela e aumentar o sofrimento.”{48} “O homem”, para citar outro escritor, “muitas vezes tem o medo estampado em si antes mesmo de ingressar no mundo exterior; criado no medo, toda a sua vida se passa na servidão do medo, medo da doença e da morte e, nessas circunstâncias, toda a sua mentalidade se toma restrita, apoucada e deprimida, e o corpo lhe segue o modelo e a especificação minguados … Pensem nos milhões de almas sensíveis e suscetíveis, entre os nossos antepassados, dominadas por um pesadelo perpétuo dessa espécie! Não é muito para admirar que ainda exista a saúde? Nada senão o ilimitado amor divino, a sua exuberância e vitalidade constantemente derramados em nós, ainda que inconscientemente, poderiam, até certo ponto, neutralizar tamanho oceano de morbidez.”{49} Embora os discípulos da cura psíquica usem com frequência a terminologia cristã, vê-se de tais citações, quão amplamente a sua noção da queda do homem diverge da noção dos cristãos comuns.{50} A idéia que eles fazem da natureza superior do homem, decididamente panteísta, é pouco menos divergente. O espiritual no homem aparece na filosofia da cura psíquica como sendo, em parte, consciente mas, sobretudo, subconsciente; e, através da sua parte subconsciente, já estamos em comunhão com o Divino, sem nenhum milagre da graça e sem a abrupta criação de um novo homem interior. Como esse modo de ver é variamente expresso por diferentes escritores, nele encontramos vestígios de misticismo cristão, de idealismo transcendental, de vedantismo e da moderna psicologia do eu subliminal. Uma ou duas citações nos colocarão no ponto de vista central: “O grande fato central do universo é aquele espírito de vida e de poder infinitos que está por detrás de tudo, que se manifesta em tudo e através de tudo. É a esse espírito de vida e poder infinitos, que está por detrás de tudo, que chamo Deus. Pouco se me dá do nome que lhe possam dar, Luz Bondosa, Providência, Super-Alma, Onipotência, ou o termo, seja ele qual for, que lhes pareça mais conveniente, contanto que concordemos em relação ao próprio grande fato central. Deus, então, enche sozinho o universo, de modo que tudo vem d’Ele e está n’Ele, e nada está fora d’Ele. É a vida da nossa vida, a nossa própria vida. Somos partícipes da vida de Deus; e se bem difiramos d’Ele por sermos espíritos individualizados, enquanto que Ele, o Espírito Infinito, nos inclui a nós e a tudo o mais, em essência, a vida de Deus e ado homem são idênticas e, portanto, uma só. Elas não diferem em essência nem em qualidade; só diferem em grau. “O grande fato central da vida humana consiste em chegarmos a uma compreensão consciente e vital da nossa identidade com essa Vida Infinita, e nos abrirmos plenamente ao influxo divino. Na medida em que chegamos à compreensão consciente da nossa identidade com essa Vida Infinita e nos abrirmos plenamente ao influxo divino. Na medida em que chegamos à compreensão consciente da nossa identidade com a Vida Infinita e nos abrimos ao influxo divino, damos realidade, em nós mesmos, às qualidades e poderes da Vida Infinita, transformamo-nos em canais através dos quais a Inteligência e o Poder Infinitos podem trabalhar. Na exata medida em que compreende sua identidade com o Espírito Infinito, o homem trocará o mal-estar pelo bem-estar, a desarmonia pela harmonia, o sofrimento e a dor pela saúde e força abundantes. Reconhecer a nossa própria divindade e nossa íntima relação com o Universal é ligar as correias do nosso maquinismo com a casa de força do Universo. Não precisamos ficar no inferno por mais tempo do que desejamos; podemos alçar-nos a qualquer céu que tenhamos escolhido; e, quando decidirmos erguernos assim, todos os poderes superiores do Universo se combinarão para ajudar-nos a subir na direção do céu.”{51} Permitam-me os senhores passar agora dessas ponderações mais abstratas para alguns relatos mais concretos de experiência com a religião da cura psíquica. Tenho muitas respostas de correspondentes - a única dificuldade reside na escolha. Os dois primeiros que citarei são de amigos meus. Um deles, uma mulher, escrevendo como se verá a seguir, expressa bem o sentimento de continuidade com o Poder Infinito, no qual se inspiram todos os discípulos da cura psíquica. “A primeira causa fundamental de todas as doenças, fraquezas ou depressões é o sentido humano de separação daquela Energia Divina a que chamamos Deus. A alma que pode sentir e afirmar, em serena mas jubilosa confiança, como fez o Nazareno: ‘Eu e meu Pai somos um’, já não tem necessidade de curador, nem de cura. Esta é a verdade inteira encerrada numa casca de noz, e o homem não pode encontrar outro fundamento para a integralidade além do fato da inexpugnável união divina. A moléstia já não ataca ninguém cujos pés estão plantados nessa rocha, que sente, de hora em hora, de momento a momento, o influxo do Sopro Divino. Se a consciência tem consigo a Onipotência, como pode penetrá-la o Cansaço, como pode a enfermidade saltear assim essa centelha indômita? “A possibilidade de anular para sempre a lei da fadiga ficou de sobejo provada no meu próprio caso; pois o começo da minha vida tem um registro de muitos, muitos anos de invalidez na cama, com a espinha e os membros inferiores paralisados. Meus pensamentos não eram mais impuros do que o são hoje, conquanto minha crença na necessidade da doença fosse densa e insciente; mas desde a minha ressurreição na carne, trabalhei como curadora sem parar durante catorze anos a fio, e posso em sã consciência afirmar que jamais conheci um momento de fadiga ou dor, não obstante meu contacto contínuo com a fraqueza excessiva, com a enfermidade e as moléstias de todo o gênero. Pois como pode uma parte consciente da Divindade ficar doente? - visto que “Maior é o que está conosco do que todos os que possam lutar contra nós’.” Minha segunda correspondente, outra mulher, manda-me a seguinte declaração: “Houve um tempo em que a vida me parecia difícil. Eu estava sempre perdendo o domínio de mim mesma, e tive diversos ataques do que se chama prostração nervosa, com uma insônia terrível, que me levou à beira da insanidade; além de muitas outras perturbações, especialmente dos órgãos digestivos. Eu havia sido afastada de casa e confiada aos cuidados de médicos, tomara todos os narcóticos, interrompera todos os trabalhos, fora hiperalimentada e, com efeito, consultara todos os facultativos ao meu alcance. Mas nunca me recuperei permanente enquanto esse Novo Pensamento não tomou conta de mim. “Creio que o que mais me impressionou foi o ficar sabendo que precisamos estar em relação absolutamente constante, em contato mental (essa locução é para mim muito expressiva) com a essência vital que tudo impregna e a que nós chamamos Deus. Ela é quase irreconhecível, a menos que a vivamos em nós mesmos realmente, isto é, virando-nos constantemente para a mais íntima, a mais profunda consciência do nosso verdadeiro eu ou de Deus em nós, a fim de sermos iluminados por dentro, como nos voltamos para o sol a fim de receber a luz, o calor e o fortalecimento que vêm de fora. Quando o fazemos conscientemente, compreendendo que ao voltar-nos para dentro, para a luz que brilha no nosso interior, estamos vivendo na presença de Deus ou do nosso eu divino, descobrimos a irrealidade dos objetos para os quais nos temos voltado até agora e que nos têm mantido absortos no exterior. “Acabei não fazendo caso do sentido dessa atitude para com a saúde do corpo como tal, porque isso vem por si mesmo, como resultado incidental, e não pode ser encontrado por nenhum ato mental especial ou desejo de tê-lo, senão pela atitude mental geral que acima mencionei. Aquilo de que costumamos fazer o objetivo da vida, as coisas externas que estamos sempre procurando com tanto afã, pelas quais tão frequentemente vivemos e morremos, mas que não nos dão paz nem felicidade, devem todas vir por si mesmas como acessórios e como mero efeito ou resultado natural de uma vida muito mais alta, que se desenvolve profundamente no seio do espírito. Essa vida é a verdadeira busca do reino de Deus, o desejo da sua supremacia em nossos corações, de modo que tudo o mais vem como o que será ‘acrescentado’ - como inteiramente incidental e inesperado, talvez; embora isso seja a prova da realidade do perfeito equilíbrio no próprio centro do nosso ser. “Quando digo que costumamos adotar por objetivo da nossa vida o que não deveria ser a principal finalidade do nosso trabalho, refirome a muitas coisas que o mundo considera louváveis e excelentes, quais o bom êxito dos negócios, a fama como autor ou artista, médico ou advogado, ou o renome em empreendimentos filantrópicos. Essas coisas devem ser resultados e não objetivos. Eu incluiria também entre elas os prazeres de muitos gêneros que parecem inofensivos e bons no momento, e são procurados porque muitos os aceitam - refirome a convencionalidades, sociabilidades e modas em seus vários desenvolvimentos, aprovadas, em sua maior parte, pelas massas, conquanto possam ser superfluidades irreais e até malsãs.” Aqui está outro caso, mais concreto, também de uma mulher. Li para os senhores esses casos sem tecer comentários — uma vez que eles expressam tantas variedades do estado de espírito que estamos estudando. “Eu havia padecido desde a infância até completar quarenta anos. [Omito os pormenores de enfermidades incluídos no relato.] Estivera em Vermont vários meses, esperando que a mudança de ares me fizesse bem, mas ficando cada vez mais fraca, quando, um belo dia, durante a última parte de outubro, enquanto descansava depois do almoço, ouvi de repente, por assim dizer, estas palavras: ‘Você ficará curada e realizará um trabalho com que nunca sonhou’. Elas ficaram impressas em minha mente com tanta força que eu disse imediatamente que só Deus teria podido tê-las sugerido. Acreditei nelas apesar de mim mesma, dos meus padecimentos e da minha fraqueza, que continuaram até o Natal, quando voltei para Boston. Dois dias depois, uma jovem amiga se ofereceu para levar- me a uma curadora mental (isso foi no dia 7 de janeiro de 1881). Disse a curadora: ‘Não há nada senão Mente; somos expressões da Mente Única; o corpo é apenas uma crença mortal; o homem é o que ele pensa que é não podendo aceitar tudo o que ela dizia, traduzida da seguinte maneira o que havia ali para mim: ‘Não há nada senão Deus; fui criada por Ele, e sou absolutamente dependente d’Ele; a mente me é dada para usar; e pelo quanto dela eu aplicar ao pensamento de uma ação física oportuna serei arrancada da minha servidão à ignorância, ao medo e à experiência passada’. Nessa conformidade, comecei, no mesmo dia, a ingerir um pouco de todas as comidas preparadas para a família, dizendo constantemente a mim mesma: ‘O Poder que criou o estômago terá de cuidar do que comi.’ Perseverando nessas sugestões durante a noite, fui para a cama e adormeci dizendo: ‘Sou alma, espírito, identificada com o Pensamento de Deus a meu respeito’, e dormi a noite inteira sem acordar, pela primeira vez em vários anos [Os incômodos costumavam manifestar-se por volta das duas horas da madrugada]. Senti- me no dia seguinte como uma prisioneira que tivesse escapado, e acreditei haver encontrado o segredo que, com o tempo, me daria a saúde perfeita. Dali a dez dias eu era capaz de comer qualquer coisa preparada para os outros e, duas semanas depois, comecei a ter minhas próprias sugestões mentais positivas da Verdade, que eram para mim como pedras de apoio para prosseguir adiante. Tomarei nota de umas poucas dentre elas, que vieram com um intervalo aproximado de duas semanas. 1º Sou uma Alma; portanto, tudo está bem comigo. 2º Sou uma Alma; portanto, estou bem. 3º Uma espécie de visão interior de mim mesma como um animal de quatro patas com uma protuberância em cada parte do corpo em que estivera sofrendo, com o meu próprio rosto, pedindo-me que reconhecesse como eu mesma. Fixei minha atenção resolutamente na idéia de estar bem, e recusei-me até a olhar para o meu velho eu nessa forma. 4º Novamente a visão do animal, porém longe, no fundo do quadro, com voz fraca. Novamente a recusa do reconhecimento. 5º Mais uma vez a visão, mas apenas dos olhos com o olhar anelante; e mais uma vez a recusa. Veio depois a convicção, a consciência interior de que eu estava e sempre estivera perfeitamente bem, pois era uma Alma, uma expressão do Pensamento Perfeito de Deus. Essa foi para mim a separação perfeita e completa entre o que eu era e o que parecia ser. Consegui nunca mais perder de vista, depois disso, o meu verdadeiro ser, afirmando constantemente a verdade e, aos poucos, (embora eu levasse dois anos de trabalho afincado para chegar lá) pus-me a expressar saúde continuamente através do corpo todo. “Em meus dezenove anos de experiência subsequente nunca vi a Verdade falhar quando aplicada, embora, em minha ignorância, eu deixasse muitas vezes de aplicá-la mas, através dos meus fracassos, conheci a simplicidade e a confiança da criancinha.” Receio, porém, cansá-los com tantos exemplos, e devo conduzi-los de volta às generalidades filosóficas. Os senhores estão vendo, por esses registros de experiências, a impossibilidade de não classificar a cura espiritual como sendo, antes de tudo, um movimento religioso. Sua doutrina da identidade da nossa vida com a vida de Deus, não se distingue, na verdade, de uma interpretação da mensagem de Cristo, defendida, nestas mesmas conferências Gifford, por alguns dos seus habilíssimos filósofos religiosos escoceses.{52} Os filósofos, todavia, costumam dar uma explicação quase lógica da existência do mal, ao passo que os curadores psíquicos, até onde os conheço, não dão nenhuma explanação especulativa do fato genérico do mal no mundo, da existência da consciência egoísta, sofredora, timorata e finita. Para eles, o mal está empiricamente presente, como está para toda gente, mas predomina o ponto de vista prático, e não se harmonizaria com o espírito do seu sistema perder tempo preocupando-se com ele como um “mistério”, um “problema”, ou “ponderando gravemente” sobre a lição da sua experiência, à maneira dos evangélicos. Não penses nisso, como diz Dante, mas olha e passa! É Avidhya, a ignorância! alguma coisa que deve apenas ser ultrapassada e deixada para trás, transcendida e esquecida. A chamada Ciência Cristã, a seita da Sra. Eddy, é o ramo mais radical da cura psíquica em seu contacto com o mal. Pois o mal é simplesmente uma mentira, e quem quer que o mencione é um mentiroso. O ideal otimista do dever nos veda prestar-lhe sequer a homenagem da atenção explícita. É manifesto, como nos mostrarão as próximas conferências, que essa é uma danosa omissão especulativa, mas intimamente ligada aos méritos práticos do sistema que estamos examinando. Por que lamentar a perda de uma filosofia do mal, perguntar-nos-ia um adepto da cura psíquica, se posso dar-lhe a posse de uma vida de bem? Afinal de contas, é a vida que importa; e a cura psíquica desenvolveu um sistema vivo de higiene mental que pode perfeitamente proclamar haver deixado na sombra toda a literatura anterior da Diàletik der Seele. O sistema é total e exclusivamente composto de otimismo: “O pessimismo leva à fraqueza. O otimismo conduz ao poder”. “Pensamentos são coisas”, escreve um dos mais vigorosos escritores da cura psíquica, em negrito, no rodapé de cada uma das suas páginas; e se os seus pensamentos forem de saúde, mocidade, vigor e sucesso, antes que os senhores dêem por isso, essas coisas serão também a sua porção exterior. Ninguém pode deixar de sofrer a influência regenerativa do pensamento otimista seguindo com pertinácia. Todo homem possui, inalienável, essa via de acesso ao divino. O medo, pelo contrário, e todos os modos limitados e egoístas de pensamento são caminhos para a destruição. A maioria dos seguidores da cura psíquica apresenta aqui uma doutrina segundo a qual os pensamentos são “forças” e, em virtude de uma lei que dispões que o semelhante atrai o semelhante, os pensamentos de um homem atraem para si, como aliados, todos os pensamentos do mesmo teor existentes no mundo. Assim sendo, pensando, obtemos reforços de outros lugares para a realização dos nossos desejos; e o grande ponto na condução da vida é conseguir que as forças celestes fiquem do nosso lado abrindo-nos a mente para receber-lhes o influxo. De um modo geral, o que nos impressiona é a similaridade psicológica entre o movimento da cura psíquica e os movimentos luterano e wesleyano. Àquele que acredita na moral e nas obras, com sua pergunta ansiosa, “Que hei de fazer para salvar-me?” Lutero e Wesley respondem: “Estás salvo agora, se acreditas nisso”. E os partidários da cura psíquica se apresentam com palavras análogas de emancipação. É verdade que se dirigem a pessoas para as quais a concepção da salvação perdeu o antigo sentido teológico, mas que labutam, apesar disso, com a mesma eterna dificuldade humana. As coisas vão mal para eles; e “Que hei de fazer para ser claro, direito, sadio, inteiro, bom?” é a forma da pergunta que fazem. E a resposta é: “Você já está bem, são e claro, basta-lhe sabê-lo”. “Toda a questão se resume numa sentença”, diz um dos autores que já citei, ‘ ‘Deus está bem, e assim está você. Só lhe é preciso despertar para o conhecimento do seu verdadeiro ser”. A adequação da sua mensagem às necessidades mentais de ampla fração do gênero humano foi o que deu força aos evangelhos primitivos. A mesma adequação vale para o caso da mensagem da cura psíquica, por mais tola que possa soar à superfície; e ao ver-lhe o rápido crescimento da influência e os triunfos terapêuticos, sentimo-nos tentados a perguntar se ela não estará destinada (provavelmente pela própria razão da crueza e extravagância de muitas de suas manifestações{53}) a representar um papel quase tão grande na evolução da religião popular do futuro quanto o desses movimentos anteriores em sua época. Temo aqui, todavia, estar começando a “dar nos nervos” de alguns membros deste acadêmico auditório. Os senhores poderão pensar que tais excentricidades contemporâneas não deveriam ocupar espaço tão grande nas nobres conferências Gifford. Só posso implorar-lhes que tenham paciência. Imagino que todo o resultado dessas conferências será enfatizar em suas mentes as enormes diversidades que exibe a vida espiritual de homens diferentes. Suas necessidades, suas suscetibilidades e suas capacidades, todas variam e precisam ser classificadas em capítulos diferentes. Em decorrência disso temos, com efeito, tipos diferentes de experiência religiosa; e procurando, nestas conferências, mais íntimo conhecimento do tipo mentalmente equilibrado, precisamos ir buscá-lo onde o encontramos na forma mais radical. A psicologia dos tipos individuais de caráter mal começou a ser esboçada - nossas conferências talvez sirvam de ínfima contribuição para a estrutura. A primeira coisa que se deve ter em mente (mormente se nós mesmos pertencermos ao tipo clérico-acadêmicocientífico, o tipo oficial e convencionalmente “correto”, o tipo “extremamente respeitável”, para o qual não fazer caso dos outros é assediante tentação) é que nada pode ser mais estúpido do que excluir fenômenos da nossa observação, tão-somente porque somos incapazes de participar de alguma coisa parecida com eles. Ora, a história da salvação luterana pela fé, das conversões metodistas e do que denomino o movimento da cura psíquica parece provar a existência de numerosas pessoas nas quais - pelo menos em certo estágio do seu desenvolvimento - uma mudança de caráter para melhor, longe de ser facilitada pelas regras estabelecidas por moralistas oficiais, ocorrerá de maneira tanto mais bem-sucedida quanto mais exatamente se processar a inversão dessas regras. Os moralistas oficiais nos aconselham a não relaxar o nosso zelo. “Sede vigilantes, dia e noite”, instam conosco; “reprimi vossas tendências passivas; não vos furteis a nenhum esforço; mantende a vossa vontade, como um arco, sempre retesado”. Mas as pessoas de que falo acham que todo esse esforço consciente não leva nas suas mãos a nada senão ao malogro e ao vexame e só faz delas duplamente mais filhas do inferno do que antes. A atitude tensa e voluntária transforma-se nelas numa febre e num tormento impossíveis. Seu mecanismo recusa-se a funcionar com mancais tão quentes e correias tão apertadas. Em tais circunstâncias, o caminho do sucesso, tal como o atestam inúmeras narrativas pessoais autênticas, se encontra seguindo um método anti- moralista, pela “entrega” de que falei em minha segunda conferência. Passividade, não-atividade; relaxação, não concentração, será agora a regra. Desista do sentimento de responsabilidade, solte o que o está segurando, confie o cuidado do seu destino a poderes mais altos, seja genuinamente indiferente ao que será feito de tudo, e descobrirá não só que ganhou um perfeito alívio interior, mas muitas vezes também, de quebra, os próprios bens aos quais supunha estar renunciando. Esta é a salvação através do desespero, o morrer para nascer de verdade da teologia luterana, a passagem para o nada a cujo respeito escreve Jacó Behmen. Para chegar a isso, faz-se mister, quase sempre, ultrapassar um ponto crítico, virar uma esquina dentro de nós mesmos. Há que ceder alguma coisa, uma dureza nativa deve quebrarse e liquifazer-se; e esse acontecimento (como veremos abundantemente daqui por diante), não raro, é repentino e automático, e deixa no Sujeito uma impressão de ter sido manejado por um poder de fora. Seja o que for que a sua significação final revele ser, esta, sem dúvida, é uma forma fundamental da experiência humana. Dizem alguns que para ela a capacidade ou incapacidade é o que separa o caráter religioso do caráter meramente moralista. Para os que a experimentam em sua plenitude, nenhuma crítica alcança projetar dúvidas sobre a sua realidade. Eles sabem; pois realmente sentiram os poderes superiores, ao desistirem da tensão da sua vontade pessoal. Uma história que os pregadores revivalistas contam amiúde é a do homem que se viu, à noite, escorregando por um precipício abaixo. Em dado momento, agarrou um galho, que lhe deteve a queda e permaneceu agarrado a ele, no maior sofrimento, durante horas. Finalmente, porém, seus dedos tiveram de largar o galho que estavam segurando e, com um adeus desesperado à vida, deixou-se cair. Caiu apenas seis polegadas. Se tivesse desistido antes da luta, ter-se-ia forrado ao desespero. Assim como a mãe terra o recebeu, assim também, dizem os pregadores, os braços eternos nos receberão, se confiarmos absolutamente neles e renunciarmos ao hábito hereditário de confiar em nossa força pessoal, com suas precauções que não nos podem defender e suas salvaguardas que nunca nos salvam. Os apologistas da cura psíquica deram a maior extensão a esse tipo de experiência. Demonstraram que uma forma de regeneração pelo relaxamento, pelo abandono, psicologicamente indistinguível da justificação luterana através da fé e da aceitação wesleyana da graça livre, está ao alcance de pessoas que não têm a convicção do pecado e não dão importância à teologia luterana. Trata-se apenas de dar um descanso ao seu euzinho convulsivo particular e descobrir que um Eu maior ali está. Os resultados, lentos ou súbitos, grandes ou pequenos, do otimismo e da expectação combinados, os fenômenos regenerativos que se seguem à abnegação do esforço, continuam sendo fatos estabelecidos da natureza humana, quer adotemos uma visão teísta, quer uma visão panteísta-idealista, quer uma visão médicomaterialista da sua explicação causai final.{54} Quando voltarmos aos fenômenos da conversão revivalista, aprenderemos mais alguma coisa a esse respeito. Enquanto isso, direi uma ou duas palavras acerca dos métodos postos em prática pelo curador psíquico. Está visto que são largamente sugestivos. A influência sugestiva do ambiente desempenha parte enorme em toda educação espiritual. Mas a palavra “sugestão”, tendo adquirido status oficial, já está começando, infelizmente, a desempenhar, em muitas áreas, o papel de balde de água fria sobre a investigação, sendo usada para desviar toda e qualquer indagação das cambiantes suscetibilidades dos casos individuais. “Sugestão” é apenas outro nome para o poder das idéias, na medida em que se revelam eficazes na crença e na conduta. Idéias eficazes para determinadas pessoas mostramse ineficazes para outras. As idéias eficazes em certas ocasiões e em determinados ambientes humanos deixam de sê-lo em outras ocasiões e em outros ambientes. As idéias das igrejas cristãs não são eficazes hoje na direção terapêutica, em que pese ao que tenham sido nos primeiros séculos; e quando toda a questão se resume em saber por quê o sal perdeu o sabor aqui ou ganhou ali, o simples acenar com a palavra “sugestão” não fornece luz alguma. O Dr. Goddard, cujo ensaio psicológico imparcial sobre as Curas pela Fé as atribui tão-somente à sugestão comum, remata dizendo que “a Religião [e com isso parece aludir ao nosso Cristianismo popular] tem em si tudo o que existe na terapêutica mental, e tem-no em sua melhor forma. O viver de acordo com as idéias [da nossa religião] fará por nós tudo o que pode ser feito.” E isso apesar do fato real de que o Cristianismo popular não faz absolutamente nada, ou não fez nada até que a cura psíquica acudiu em seu auxílio.{55} Para ser sugestiva, uma idéia precisa chegar ao indivíduo com a força de uma revelação. A cura psíquica, com o seu evangelho do equilíbrio mental, chegou como uma revelação para muitos cujos corações o Cristianismo deixara endurecidos. Abriu-lhes as pontes da vida superior. Em que pode consistir a originalidade de qualquer movimento religioso, se não em descobrir um canal, até então fechado, através dos quais essas fontes podem chegar a algum tipo de seres humanos? A força da fé, do entusiasmo e do exemplo pessoais e, acima de tudo, a força da novidade, são sempre o primeiro agente sugestivo desse gênero de sucesso. Se a cura psíquica se tomar, algum dia, oficial, respeitável e estabelecida, esses elementos de eficácia sugestiva se perderão. Em suas fases mais agudas toda religião há de ser um árabe nômade do deserto. Sabeo a igreja muito bem, com sua eterna luta interior entre a região aguda dos poucos e a religião crônica dos muitos, empedernida numa obstruência pior do que aquela que a irreligião opõe aos movimentos do Espírito. “Podemos rezar”, diz Jonathan Edwards, “em relação a todos esses santos que não são cristãos vivos, para que sejam revivificados ou levados embora; pois, se for verdade o que tantas vezes repetem alguns no dia de hoje, que esses santos mortos e frios são mais danosos do que os homens naturais, e levam mais almas para o inferno, melhor fora para o gênero humano que estivessem mortos.”{56} A condição seguinte de sucesso é a existência aparente, em grandes números, de mentes que unam o equilíbrio mental à disposição para a regeneração pelo abandono. O Protestantismo tem sido demasiado pessimista no tocante ao homem natural, o Catolicismo tem sido demasiado legalista e moralista, para que um ou outro possam corresponder generosamente ao tipo de caráter formado dessa mistura peculiar de elementos. Por menor que seja o número dos que, entre nós aqui presentes, pertencem a um tipo assim, é agora evidente que esse tipo forma uma combinação moral específica, bem representada no mundo. Finalmente, em nossos países protestantes, a cura psíquica fez uso, em escala sem precedentes, da vida subconsciente. Aos seus conselhos ponderados e às suas afirmações dogmáticas os fundadores da cura psíquica acrescentaram o exercício sistemático da relaxação passiva, da concentração e da meditação, e até invocaram alguma coisa como a prática hipnótica. Cito trechos ao acaso: “O valor, a potência dos ideais é a grande verdade prática no qual o Novo Pensamento insiste com mais vigor - a saber, o desenvolvimento de dentro para fora, do pequeno para o grande.{57} Por conseguinte, nosso pensamento deveria concentrar-se no resultado ideal, ainda que essa confiança seja literalmente como um degrau no escuro.{58} Para alcançar a capacidade de dirigir a mente dessa maneira, com eficácia, o Novo Pensamento aconselha a prática da concentração ou, em outras palavras, o atingimento do domínio sobre si mesmo. Devemos aprender a disciplinar as tendências da mente, de modo que o ideal escolhido possa mantê-las juntas, como uma unidade. Com esse propósito, devemos reservar momentos para a meditação silenciosa, a sós, de preferência em um aposento cujo ambiente seja favorável ao pensamento espiritual. Nos termos do Novo Pensamento, a isso se chama ‘entrar no silêncio’.”{59} “Tempo virá em que no escritório movimentado ou na rua barulhenta poderemos entrar no silêncio simplesmente envolvendonos no manto dos nossos próprios pensamentos e compreendendo que ali e em toda parte o Espírito da Vida Infinita, do amor, da Sabedoria, da Paz, do Poder e da Abundância nos guia, guarda, protege, conduz. Esse é o espírito da oração contínua.{60} Um dos homens mais intuitivos que já conhecemos tinha uma mesa num escritório da cidade em que vários outros cavalheiros viviam fazendo negócios e, muitas vezes, falando em voz alta. Não se deixando perturbar pelos muitos e variados sons à sua volta, esse homem confiante, concentrado em si mesmo, em qualquer momento de perplexidade, fechava as cortinas da sua intimidade tão completamente em torno de si que se encerrava na própria aura psíquica e, por esse modo, se afastava de todas as distrações, como se estivesse a sós consigo em alguma floresta primeva. Levando sua dificuldade para o silêncio místico, na forma de uma pergunta direta para a qual esperava determinada resposta, permanecia inteiramente passivo até chegar a resposta e, nem sequer uma vez, durante uma experiência de muitos anos, se viu decepcionado, ou mal conduzido.”{61} Eu gostaria de saber em que difere isso, intrinsecamente, da prática que o “recolhimento” que desempenha tão grande papel na disciplina católica? Chamada, aliás, a prática da presença de Deus (e assim conhecida entre nós, como, por exemplo, em Jeremy Taylor) o eminente professor Alvarez de Paz a define da seguinte maneira em sua obra sobre a Contemplação. “É o recolhimento em Deus, o pensamento de Deus, que em todos os lugares e circunstâncias faz que o vejamos presente, que nos deixa comungar respeitosa e amorosamente com ele, e nos enche de desejo e afeição por ele …. Gostaria você de escapar de todo e qualquer mal? Pois, então, nunca perca o recolhimento em Deus, nem na prosperidade nem na adversidade, nem em qualquer outra ocasião, seja ela qual for. Não invoque, para escusar-se da obrigação, nem a dificuldade nem a importância do seu trabalho, pois nunca se esqueça de que Deus o vê, de que você está sempre debaixo dos seus olhos. Se por mil vezes, durante uma hora, você o esquecer, reative mil vezes o recolhimento. Se não lhe for possível praticar esse exercício de modo contínuo, pelo menos familiarize-se com ele o mais que puder; e, como os que, num inverno rigoroso, se abeiram do fogo sempre que podem, procure amíude esse fogo ardente que lhe aquecerá a alma.”{62} Todas as associações externas da disciplina católica diferem, naturalmente, de tudo o que existe na idéia da cura psíquica, mas a parte puramente espiritual do exercício é idêntica em ambas as comunhões, e em ambas as comunhões os que a recomendam, instantes, escrevem com autoridade, pois é evidente que experimentaram em suas próprias pessoas aquilo de que falam. Comparem de novo algumas declarações da cura psíquica: “O pensamento elevado, saudável e puro pode ser incentivado, promovido e reforçado, e sua corrente dirigida para ideais grandiosos até formar um hábito e cavar um canal. Por meio dessa disciplina, os raios solares da beleza, da integridade e da harmonia, inundam o horizonte mental. Dar início a uma linha elevada e pura de pensamento talvez pareça difícil e até forçado a princípio, mas a perseverança o tomará, primeiro, fácil, depois, agradável e, por fim, delicioso. “O mundo real da alma é o que ela construiu com seus pensamentos, estados mentais e imaginações. Se o quisermos, poderemos voltar as costas para o plano inferior e sensorial, erguermo-nos até o reino do espiritual, que nos penetrará com a mesma naturalidade com que o ar se inclina para o vácuo …. Sempre que não tivermos o pensamento ocupado com as obrigações diárias ou a profissão, devemos mandá-lo para cima, para a atmosfera espiritual. Há tranquilos momentos de lazer durante o dia e horas de vigília à noite, em que este saudável e delicioso exercício pode ser levado a cabo com grande proveito. Se nunca envidamos um esforço sistemático para alçar e controlar a vontade das forças do pensamento, nem que fosse por um mês, sigamos com afinco o curso aqui sugerido, e ficaremos surpresos e encantados com o resultado, e nada mais induzirá a voltar ao pensamento descuidado, inútil e superficial. Nesses momentos favoráveis, exclui-se o mundo exterior, com toda a sua corrente de eventos diários, e entramos no santuário silencioso do templo íntimo da alma para comungar e aspirar. A audição espiritual toma-se delicadamente sensível, de modo que a “vozinha fraca” se faz audível, silenciam as ondas tumultuosas dos sentidos externos, e uma grande calma impera. O ego, aos poucos, adquire a consciência de estar frente a frente com a Presença Divina; com aquela vida robusta, curativa, amorosa, paternal que está mais próxima de nós do que nós mesmos. Verifica-se o contacto da alma com a Alma Paterna e um influxo de vida, amor, virtude, saúde e felicidade proveniente da Fonte Inextinguível.” {63} Quando chegarmos ao tema do misticismo, os senhores sofrerão uma imersão tão profunda nesses estados exaltados de consciência que ficarão inteiramente molhados, se assim me for permitido expressar-me; e o frio estremecimento de dúvida com que essa pequena aspersão poderá afetá-los terá passado há muito tempo - dúvida, quero dizer, quanto a serem ou não todos os escritos desse tipo mera conversa e retórica abstratas ali inscritas pour encourager les autres. Confio em que os senhores se convencerão de que tais estados de consciência de “união” formam uma classe perfeitamente definida de experiências, das quais a alma comparte ocasionalmente, e nas quais certas pessoas podem viver num sentido mais profundo do que em qualquer outra coisa de que tenham conhecimento. Isso me traz uma reflexão filosófica geral com a qual eu gostaria de encerrar o assunto do equilíbrio mental e rematar um tópico sobre o qual receio haver-me alongado em demasia. Trata- se da relação entre toda essa religião sistematizada do equilíbrio mental e da cura psíquica e o método científico e a vida científica. Numa próxima conferência tratarei explicitamente da relação entre a religião e a ciência, de um lado, e entre a religião e o pensamento selvagem, primitivo de outro. Muitas pessoas hoje em dia - “cientistas” ou “positivistas”, como gostam de ser chamadas - lhes dirão que o pensamento religioso é mero sobrevivente, reversão atávica a um tipo de consciência que o gênero humano, em seus exemplos mais iluminados, superou e abandonou há muito tempo. Se os senhores lhes pedirem que se expliquem melhor, eles responderão provavelmente que o pensamento primitivo concebe tudo sob a forma de uma personalidade. Pensa o selvagem que as coisas operam por intermédio de forças pessoais e por amor de finalidades individuais. No seu entender, até a natureza externa obedece às necessidades e pretensões individuais, como se fossem poderes elementares. Ora, a ciência, por outro lado, dizem os positivistas, provou que a personalidade, longe de ser uma força elementar da natureza, é apenas uma resultante passiva das forças realmente elementares, físicas, químicas, fisiológicas e psicofísicas, todas de caráter impessoal e geral. O individual não realiza coisa alguma no universo, a não ser na medida em que obedece a alguma lei universal e a exemplifique. Se os senhores, em seguida, lhes perguntarem por que meios a ciência suplantou o pensamento primitivo e desacreditou-lhe a maneira pessoal de olhar para as coisas, eles dirão, sem sombra de dúvida, que isso aconteceu graças ao emprego rigoroso do método da verificação experimental. Sigam praticamente as concepções da ciência, dirão eles, as concepções que põem totalmente de lado a personalidade, e encontrarão sempre uma confirmação. O mundo é feito de tal modo que suas expectativas só serão verificadas experimentalmente se os senhores mantiverem impessoais e universais os termos dos quais as inferem. Mas aqui temos a cura psíquica, com uma filosofia diametralmente oposta, formulando idêntica pretensão. Vive como se eu fosse verdadeira, diz ela, e cada dia provará, praticamente, que estás certo. Que as energias controladoras da natureza são pessoais, que os teus próprios pensamentos pessoais são forças, que os poderes do universo responderão diretamente aos teus apelos e necessidades individuais são proposições que toda a tua experiência física e mental confirmará. E o fato de que o movimento da cura psíquica não se espalha simplesmente pela proclamação e pela afirmação, senão pelos resultados palpáveis de experimento prova que a experiência confirma amplamente essas idéias religiosas primitivas. Aqui, no próprio apogeu da autoridade da ciência, a cura psíquica trava uma guerra agressiva contra a filosofia científica, e triunfa empregando os métodos e as armas da própria ciência. Acreditando que uma potência superior cuidará de nós, em certos sentidos, melhor do que nós mesmos o poderemos fazer, bastando para isso que nos entreguemos genuinamente a ela e consintamos em usá-la, a cura psíquica encontrará a crença, não somente não impugnada, senão corroborada pela sua observação. O modo com que se fazem, assim, as conversões e se confirmam os convertidos ressalta, mais do que evidente, das narrativas que citei. Citarei outro par de exemplos, mais curtos, para dar ao assunto um torneio perfeitamente concreto. Aqui está um deles: “Uma das minhas primeiras experiências na aplicação do que eu aprendera verificou-se dois meses depois que vi, pela primeira vez, o curador. Caí, torcendo o tornozelo direito, o que já me havia acontecido uma vez quatro anos antes, quando tive de usar muleta e tornozeleira elástica por alguns meses, sendo-me preciso andar com muito cuidado desde então. Assim que me ergui em pé, fiz a sugestão positiva (e senti-a através de todo o meu ser): ‘Nada há senão Deus, toda a vida vem dele e só dele. Não posso ser torcido nem ferido, deixarei que ele cuide disso’. Pois bem, nunca mais senti dor no tornozelo e, no mesmo dia, caminhei duas milhas”. O caso seguinte não só ilustra a experiência e a confirmação, mas também o elemento de passividade e abandono do qual, faz um momento, apresentei um relato. “Fui à cidade, uma bela manhã, para fazer algumas compras, e, pouco depois de chegar, comecei a me sentir mal. O mal-estar aumentou depressa, até que tive dores em todos os ossos, náuseas, tonturas, cefaléia, todos os sintomas, enfim, que precedem um surto de influenza. Cuidei estar a pique de contrair a gripe que então grassava em Boston, em caráter epidêmico, ou coisa pior. Ocorreram-me porém, à mente os ensinamentos da cura psíquica a que assistira durante todo o inverno, e achei ser aquela a oportunidade de pô-los à prova. A caminho de casa topei com uma amiga e abstive-me, com algum esforço, de contar a ela o que sentia. Esse foi o primeiro passo vencido. Enfiei-me incontinenti na cama, e meu marido quis chamar o médico. Eu lhe disse, contudo, que preferia esperar até o dia seguinte para ver como me sentia. Aconteceu, então, uma das mais belas experiências de minha vida. “Não posso expressá-la de nenhum outro modo senão dizendo que ‘me deitei na corrente da vida e deixei que ela passasse sobre mim’. Lancei de mim todo o medo de alguma doença iminente; eu estava perfeitamente disposta e obediente. Não houve esforço intelectual nem sequência de pensamentos. Minha idéia dominante era esta: ‘Olha para a serva do Senhor: faze de mim o que quiseres’, e uma perfeita confiança em que tudo estaria bem, em que tudo estava bem. A vida criativa fluía em mim a todo instante, e eu me sentia aliada ao Infinito, em harmonia, e cheia da paz que ultrapassa o entendimento. Não havia lugar em minha mente para um corpo enfermo. Eu não tinha consciência do tempo, nem do espaço, nem das pessoas; apenas de amor, de felicidade e de fé. “Não sei quanto tempo durou esse estado, nem quando adormeci; mas, ao despertar na manhã seguinte, eu estava bem.” Estes casos são excessivamente triviais,{64} mas neles, se não temos outra coisa, temos o método da experiência e da confirmação. Para o ponto a que me dirijo agora, pouco importa que os senhores considerem as pacientes vítimas ilusas da própria imaginação, ou não. Que elas parecessem a si mesmas curadas pelas experiência que haviam tentado era o suficiente para convertê-las ao sistema. E se bem seja evidente que o nosso molde mental precisa ser de determinado feitio para obter tais resultados (pois nem toda gente pode curar-se assim para sua própria satisfação, como nem todos podem curar-se por obra e graça do primeiro facultativo que chamam à sua cabeceira), seria, sem dúvida, pedantesco e supermeticuloso para os que podem fazer que a sua selvagem e primitiva filosofia de cura mental seja confirmada de maneiras experimentais como essa, abrir mão delas a uma palavra de ordem de uma terapêutica mais científica. Que havemos nós de pensar de tudo isso? Terá tido a ciência uma pretensão demasiado ampla? Acredito que as pretensões do cientista sectário são, para dizer o menos, prematuras. As experiências que temos estudado nesta hora (e muitíssimas outras espécies de experiências religiosas se parecem com elas) mostram francamente que o universo é um negócio mais multiforme do que qualquer seita, incluindo a científica, admite. No fim de contas, que são todas as nossas confirmações se não experiências que concordam com sistemas mais ou menos isolados de idéias (sistemas conceituais) que nossas mentes construíram? Mas por quê, em nome do bom senso, precisamos presumir que apenas um desses sistemas de idéias há de ser verdadeiro? O resultado óbvio da nossa experiência total é que se pode tratar o mundo de acordo com muitos sistemas de idéias, e que ele é assim tratado por homens diferentes, e dará, cada vez, algum tipo característico de proveito a quem o trata ao mesmo tempo que outro tipo de proveito tem de ser omitido ou adiado. A ciência nos dá a todos a telegrafia, a iluminação elétrica e a diagnose, e consegue prevenir e curar algumas moléstias. Na forma da cura psíquica, a religião nos dá a muitos de nós serenidade, equilíbrio moral e felicidade, e previne determinadas formas de doenças, como faz a ciência, ou até mais, com certa classe de pessoas. É evidente, portanto, que a ciência e a religião são ambas chaves genuínas destinadas a abrir a casa do tesouro do mundo àquele que for capaz de usar qualquer uma delas praticamente. Bem como, é claro, nenhuma das duas saberia tomar supérfluo o uso simultâneo da outra. E por quê, afinal de contas, não pode o mundo ser tão complexo que consista em muitas esferas entrepenetrantes de realidade, que podemos enfocar alternadamente, usando diferentes concepções e assumindo atitudes diferentes, do mesmo modo com que os matemáticos manejam os mesmos fatos numéricos e espaciais através da geometria analítica, da álgebra, do cálculo ou dos quaterniões, e sempre obtendo um resultado certo? Desse ponto de vista, a religião e a ciência, cada qual confirmada à sua maneira, de hora em hora e de vida em vida, seriam coe temas. O pensamento primitivo, com sua crença nas forças pessoais individualizadas, parece, de qualquer modo, mais longe do que nunca de ser expulso do campo pela ciência. Muitas pessoas cultas ainda o consideram o canal experimental mais direto pelo qual podem prosseguir em seu intercâmbio com a realidade.{65} O caso da cura psíquica se me oferecia tão fácil e cômodo que não pude resistir à tentação de utilizá-lo para dirigir a atenção dos senhores a estas verdades, mas hoje devo contentar-me com essa brevíssima indicação. Numa próxima conferência, as relações da religião com a ciência e com o pensamento primitivo receberão uma atenção muito mais explícita. APÊNDICE CASO I. “Minha experiência é a seguinte: fazia muito tempo que estava doente, e um dos primeiros resultados da minha doença, uns doze anos antes, havia sido uma diplopia que me privou quase completamente do uso dos olhos para a leitura e para a escrita, ao mesmo tempo que, pouco tempo depois, me impediu de fazer qualquer espécie de exercícios sob pena de imediata e grande exaustão. Eu estivera entregue aos cuidados de médicos do mais alto prestígio tanto na América como na Europa, homens em cujo poder para ajudar-me eu depositara muita fé, com pouco ou nenhum resultado. Depois, numa ocasião em que eu parecia estar perdendo terreno rapidamente, ouvi algumas coisas que me despertaram tanto interesse pela cura mental que me levaram a experimentá-la; eu não alimentava muita esperança de que isso me fizesse algum bem - era uma oportunidade que eu tentava, em parte porque meu pensamento estava interessado na nova possibilidade que ela parecia abrir, em parte por se tratar, então, da única probabilidade que se me oferecia. Fui procurá-la em Boston, da qual alguns amigos meus tinham obtido, ou supunham ter obtido, grande auxílio; o tratamento foi silencioso; pouco se falou, e esse pouco não levou convicção alguma à minha mente; fosse qual fosse a influência exercida, esta era a do pensamento ou do sentimento de outra pessoa projetado em silêncio na minha mente inconsciente, no meu sistema nervoso, por assim dizer, enquanto estivemos sentados, calados, ao lado um do outro. Acreditei, desde o princípio, na possibilidade de tal ação, pois eu conhecia o poder da mente de afeiçoar, ajudando ou estorvando, as atividades nervosas do corpo, e achava a telepatia provável, embora não provada, mas não acreditava nela senão como simples possibilidade, e nenhuma convicção forte nem fé mística ou religiosa estavam ligadas ao meu pensamento sobre ela que me pudessem ter ativado, vigorosamente, a imaginação. “Eu me sentava em silêncio em companhia do curador, durante meia hora, todos os dias, a princípio sem nenhum resultado; volvidos, porém, uns dez dias, repentina e rapidamente tive consciência de uma onda de energia nova que se erguia dentro de mim, um sentido de poder que passava além de velhos sítios de parada, do poder de romper os limites que, a despeito das minhas inúmeras tentativas anteriores, tinha sido por muito tempo verdadeiras muralhas erguidas em torno da minha vida, altas demais para escalar. Comecei a ler e a caminhar como não o fazia havia anos, e a mudança foi súbita, acentuada e inequívoca. A onda pareceu subir durante algumas semanas, umas três ou quatro talvez, quando, tendo chegado o verão, vim-me embora, retomando o tratamento alguns meses mais tarde. A injeção de ânimo que recebi revelou-se permanente e me fez ganhar terreno aos poucos, em vez de perdê-lo mas, com essa injeção, a influência, de certo modo, como se dissipou e, conquanto minha confiança na realidade do poder houvesse ganho imensamente, mercê da primeira experiência, e devesse terme ajudado a obter novos ganhos de saúde e força se minha crença nela tivesse sido ali o fator preponderante, nunca mais, depois disso, alcancei resultado tão surpreendente e tão claramente marcado como o que tive quando fiz a experiência pela primeira vez, com pouca fé e dúbia expectativa. E muito difícil expressar com palavras toda a evidência de um assunto como esse, reunir num enunciado distinto tudo aquilo em que fundamos nossas conclusões, mas sempre senti que eu dispunha de provas copiosas para justificar (pelo menos aos meus olhos) a conclusão a que cheguei nessa ocasião, e que nunca mais alterei, de que a modificação física ocorrida então era, primeiro, resultado de uma mudança operada dentro de mim por uma alteração do estado mental; e, segundo, que a alteração do estado mental não fora, a não ser de um modo muito secundário, produzida pela influência de uma imaginação excitada, ou de uma sugestão de tipo hipnótico conscientemente recebida. Por fim, acredito que a mudança resultasse do fato de haver eu recebido telepaticamente, e num estrato mental bem abaixo do nível da consciência imediata, uma atitude mais sadia e mais enérgica, recebendo-a de outra pessoa, cujo pensamento se dirigia para mim com a intenção de imprimir em mim a idéia dessa atitude. Em meu caso, a doença, sem dúvida alguma, devia ser classificada como nervosa, não orgânica; mas, partindo das oportunidades que se me ensejaram de fazer observações, cheguei à conclusão de que a linha divisória traçada entre os dois tipos de doenças é arbitrária, já que os nervos controlam de todo em todo as atividades internas e a nutrição do corpo; e acredito que o sistema nervoso central, ativando e inibindo centros locais, pode exercer vasta influência sobre qualquer espécie de enfermidade, bastando para isso que seja posto em ação. No meu entender, a questão se resume simplesmente na maneria de pô-lo em ação, e creio que a incerteza e as notáveis diferenças registradas nos resultados obtidos através da cura mental só mostram o quanto ainda somos ignorantes das forças em operação e das medidas que deveríamos tomar para tomá-las efetivas. Minha observação de mim mesmo e de outros dão-me a certeza de que tais resultados não se devem a coincidências casuais; é sem dúvida verdadeiro que a mente consciente, a imaginação, em muitos casos, participa deles como fator, mas é também verdadeiro que, em muitos outros, às vezes até casos extraordinários, mal parece participar. De um modo geral, inclino-me a pensar que a ação curativa, como a mórbida, salta do plano da mente normalmente inconsciente, de modo que as impressões mais fortes e eficazes são as que ela recebe, de algum modo sutil, ainda desconhecido, diretamente de uma mente mais sadia, cujo estado, através de uma lei oculta de simpatia, ela reproduz.” CASO II. “Por solicitação urgente de amigos, e com nenhuma fé e pouquíssima esperança (em virtude, provavelmente, de uma experiência anterior malograda com um seguidor da Ciência Cristã), nossa filhinha, confiada aos cuidados de um curador, foi curada de uma afecção a respeito de cujo diagnóstico o médico havia sido desalentador. Isso me interessou, e pus-me a estudar com afã o método e a filosofia desse processo de cura. Pouco a pouco, uma paz e uma tranquilidade interiores se apossaram de mim de forma tão positiva que minha maneira de ser se modificou consideravelmente. Meus filhos e meus amigos perceberam e comentaram a mudança. Todos os sentimentos de irritabilidade haviam desaparecido. Até a expressão do meu rosto se alterou de modo digno de nota. “Eu costumava mostrar-me fanático, agressivo e intolerante nas discussões que travava, não só em público mas também em particular. Passei a mostrar-me amplamente tolerante e receptivo em relação aos pontos de vista dos outros. Eu me havia revelado nervoso e irritável, voltando para casa, duas ou três vezes por semana, acometido de uma enxaqueca que supunha induzida por uma dispepsia e pelo catarro. Tomei-me sereno e delicado, e os incômodos físicos desapareceram completamente. Eu me havia habituado a aproximar-me de toda e qualquer entrevista de negócios com um sentimento quase mórbido de pavor. Agora enfrento todas as entrevistas com confiança e calma interior. “Cumpre-me dizer que o crescimento todo se dirigiu no sentido da eliminação do egoísmo. Vejam bem que não me refiro simplesmente às formas mais grosseiras, mais sensuais, do egoísmo, senão aos tipos mais sutis e geralmente não reconhecidos, como os que se expressam em tristeza, mágoa, pesar, inveja, etc. O crescimento processou-se no sentido de uma compreensão prática, operosa, da imanência de Deus e da Divindade do eu mais verdadeiro e mais íntimo do homem.” VI e VII Conferências A ALMA ENFERMA Em nosso último encontro, consideramos o temperamento equilibrado, o temperamento que tem uma incapacidade constitucional para o sofrimento prolongado, e no qual a tendência para ver as coisas por um prisma otimista é como a água de cristalização em que se coloca o caráter do indivíduo. Vimos que esse temperamento pode tomar-se a base de um tipo especial de religião, uma religião em que o bem, até o bem da vida deste mundo, é considerado a coisa essencial a que um ser racional deve atender. Essa religião o leva a acertar suas contas com os aspectos piores do universo, declinando sistematicamente de tomá-los em consideração ou de dar-lhes alguma importância, ignorando-os em suas reflexões, ou até, conforme a ocasião, negando-lhes pura e simplesmente a existência. O mal é uma doença; e preocupar-se a gente com a doença é por si só uma forma adicional de doença, que só serve de agravar a afecção original. Até o arrependimento e o remorso, afeições que entram no caráter dos ministros do bem, podem ser apenas impulsos enfermiços e debilitantes. O melhor arrependimento é a gente erguer-se, agir pela justiça e esquecer que alguma vez manteve relações com o pecado. Na filosofia de Spinoza se encontra essa espécie de equilíbrio mental entretecido no coração, e este tem sido um segredo do seu fascínio. Aquele que é conduzido pela Razão, de acordo com Spinoza, é conduzido totalmente pela influência do bem sobre a sua mente. O conhecimento do mal é um conhecimento “inadequado”, apropriado apenas às mentes servis. Assim sendo, Spinoza condena categoricamente o arrependimento. Quando os homens cometem erros, diz ele, “Pode-se talvez esperar que as torturas da consciência e o arrependimento ajudem a trazê-los para o bom caminho, e pode-se, em vista disso, concluir (como todo mundo conclui) que essas afeições são coisas boas. Entretanto, se examinarmos a questão mais de perto, descobriremos que elas não são boas, senão, pelo contrário, paixões más e deletérias. Pois é manifesto que podemos sempre tirar maior proveito da razão e do amor da verdade do que da perturbação da consciência e do remorso. Nocivos e maus são estes últimos, na medida em que formam uma espécie particular de tristeza; e já provei as desvantagens da tristeza”, continua ele, “mostrando que devemos forcejar por mantê-la afastada da nossa vida. Por isso havemos de diligenciar, visto que a intranquilidade da consciência e o remorso pertencem a esse gênero de compleição, fugir e evitar esses estados de espírito.” {66} Dentro da corporação cristã, para a qual o arrependimento dos pecados tem sido, desde o princípio, o ato religioso crítico, o equilíbrio mental sempre se apresentou com sua interpretação mais amena. De acordo com esses cristãos equilibrados, o arrependimento significa afastar-se do pecado, e não gemer e retorcer-se pensando no seu arrependimento. A prática católica da confissão e da absolvição, num dos seus aspectos, é pouco mais que um método sistemático de manter o equilíbrio mental em posição superior. Por seu intermédio, as contas de um homem com o mal são periodicamente examinadas e acertadas, para que ele possa começar uma nova página em que não estejam inscritas velhas dívidas. Qualquer católico nos dirá que se sente limpo, fresco e livre depois da operação depurativa. Martinho Lutero não pertencia, de maneira alguma, ao tipo do equilibrado mental no sentido radical em que o discutimos, mas repudiava a absolvição dos pecados concedida pelos padres. No entanto, sobre a questão do arrependimento tinha idéias equilibradas, devidas, de um modo geral, à amplitude da sua concepção de Deus. “Quando eu era monge”, diz ele, “julgava-me inteiramente rejeitado se, em qualquer momento, sentisse em mim a concupiscência da carne: quero dizer, se sentisse alguma comoção má, o desejo da carne, a ira, o ódio, ou a inveja de algum irmão. Experimentei muitas maneiras de aquietar a consciência, mas em vão; porque a concupiscência e a lascívia da minha carne voltavam sempre, de modo que eu não podia descansar, e era sempre atormentado por esses pensamentos: Cometeste este ou aquele pecado: estás infectado de inveja, de impaciência e de outros pecados semelhantes: por conseguinte, entraste nesta santa ordem em vão, e todas as tuas boas obras são inaproveitáveis. Mas se eu, então, tivesse compreendido direito as palavras de Paulo: ‘Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que porventura seja do vosso querer,’ eu não me teria atormentado tão miseravelmente a mim mesmo, mas teria pensado e dito entre mim, como faço agora comumente: ‘Martinho, não estarás completamente sem pecado, pois tens carne; sentirás, portanto, a sua batalha’. Lembro-me de que Staupitz costumava dizer: ‘Prometí solenemente a Deus, mais de mil vezes, que me tomaria um homem melhor; mas nunca realizei o que prometí. Daqui por diante não farei promessas dessa natureza: pois agora fiquei sabendo, por experiência própria, que não sou capaz de cumpri-las. A menos, portanto, que Deus me seja favorável e misericordioso, por amor de Cristo, não serei capaz, em que pese a todas as minhas promessas e a todas as minhas boas ações, de apresentar-me diante dele’. Esse desespero (de Staupitz) era não só verdadeiro mas também piedoso e santo; e é preciso que todos o confessem, com a boca e o coração, para serem salvos. Pois os piedosos não se fiam da própria justiça, e vêem em Cristo o seu reconciliador, que deu a vida pelos pecados dos homens. De mais disso, conhecem que o resto do pecado, que está em sua própria carne, não lhes é debitado, senão livremente perdoado. Não obstante, lutam em espírito contra a carne, temerosos de satisfazer à sua luxúria; e embora a sintam raivar e rebelar-se, e eles mesmos também caiam às vezes em pecado mercê da sua fraqueza, não se desalentam, nem pensam por isso que o seu estado, o seu tipo de vida e as obras que estão levando a efeito de acordo com o seu ofício, desagradem a Deus; mas se levantam pela fé.”{67} Uma das heresias pelas quais os jesuítas conseguiram que aquele gênio espiritual, Molinos, fundador do Quietismo, fosse tão abominavelmente condenado, foi a sua opinião mentalmente equilibrada sobre o arrependimento: “Quando incorres numa falta, seja qual for a sua natureza, não te perturbes nem te aflijas por isso. Pois as faltas são efeitos da nossa frágil Natureza, manchada pelo Pecado Original. O inimigo comum farte-á acreditar, tanto que cometes algum pecado, que caminhas no erro e, portanto, estás fora de Deus e da sua graça, e por este meio te fará desconfiar da divina Graça, falando-te da tua miséria moral e conferindo-lhe proporções gigantescas; e enfiando na tua cabeça a idéia de que, a cada dia que passa, tua alma fica pior em lugar de melhorar, à força de repetir os mesmos erros. Ó, alma bendita, abre os olhos; e fecha a porta a essas diabólicas sugestões, aprendendo a conhecer tua miséria e a confiar na misericórdia divina. Não seria um simples néscio o que, correndo num torneio com outros, e caindo no melhor da carreira, se deixasse ficar no chão, chorando e se afligindo com discursos sobre a sua queda? Homem (dir-lhe-iam eles), não percas tempo, levanta-te e retoma a carreira, pois o que torna a levantar-se depressa e continua a correr é como se nunca tivesse caído. Se te vires caído uma ou mil vezes, deves fazer uso do remédio que te dei, ou seja, uma amorosa confiança na misericórdia divina. Estas são as armas com as quais deves lutar e vencer a covardia e os pensamentos vãos. Este é o meio que deves usar — não perderes tempo, não te perturbares e não colheres nenhum proveito.”{68} Ora, em contraste com opiniões mentalmente equilibradas como estas, se as tratarmos como um modo de subestimar deliberadamente o mal, surgirá uma opinião radicalmente oposta, um modo de sobrestimá-lo, se aos senhores apraz chamar-lhe assim, baseada na persuasão de que os maus aspectos da nossa vida são de sua própria essência, e que o sentido do mundo tanto mais nos impressiona quanto mais nos preocupamos com ele. Temos de examinar agora essa maneira mais mórbida de encarar a situação. Mas assim como concluí a nossa última hora com uma reflexão filosófica geral sobre a forma mentalmente equilibrada de encarar a vida, eu gostaria, neste ponto, de fazer outra reflexão filosófica sobre ela antes de passar à tarefa mais pesada. Os senhores me relevarão a breve demora. Se admitirmos que o mal é uma parte essencial do nosso ser e a chave da interpretação da nossa vida, sobrecarregar-nos-emos com uma dificuldade que sempre se mostrou gravosa nas filosofias da religião. Todas as vezes que se ergueu numa filosofia sistemática do universo, relutou o teísmo em admitir que Deus seja algo menos do que Tudo-em-Tudo. Em outras palavras, o teísmo filosófico sempre revelou tendência para tomar-se panteísta e monista e para considerar o mundo uma unidade de fato absoluto; e isso tem estado em desacordo com o teísmo popular ou prático, que mais recentemente se vem mostrando mais ou menos pluralista, para não dizer politeísta, e perfeitamente satisfeito com um universo composto de muitos princípios originais, bastando que nos seja concedido acreditar que o princípio divino permanece supremo, e os demais, subordinados. Neste último caso, Deus não é necessariamente responsável pela existência do mal; ele só o seria se o mal não fosse afinal superado. Mas do ponto de vista monista ou panteísta, o mal, como tudo o mais, precisa fundar-se em Deus; e a dificuldade consiste em ver como isso pode ser sendo Deus absolutamente bom. A mesma dificuldade se nos depara em toda forma de filosofia em que o mundo aparece como unidade perfeita de fato. Uma unidade dessa natureza é um Indivíduo, e nele as piores partes têm de ser tão essenciais quanto as melhores, precisam ser igualmente necessárias para fazer do indivíduo o que ele é; visto que, se qualquer parte do indivíduo, seja ela qual for, deve desvanecer-se ou alterarse, o indivíduo, já não será aquele. A filosofia do idealismo absoluto, tão vigorosamente representada hoje em dia na Escócia e na América, tem de lutar com essa dificuldade quase tanto quanto o teísmo escolástico lutou no seu tempo; e se bem seja prematuro afirmar que não há nenhuma solução especulativa para o quebra-cabeça, é perfeitamente justo dizer que não existe nenhuma solução clara ou fácil, e que a única maneira óbvia de fugir aqui do paradoxo é abandonar de todo a suposição monista e admitir que o mundo existe desde a sua origem em forma pluralista, como um agregado ou coleção de coisas e princípios superiores e inferiores, mais do que um fato absolutamente unitário. Pois, nesse caso, o mal não precisa ser essencial; pode ser, e pode ter sido sempre, uma porção independente, sem nenhum direito racional ou absoluto de viver com o resto, e do qual podemos concebivelmente esperar libertar-nos afinal. Ora, o evangelho do equilíbrio mental, qual o descrevemos, deposita o seu voto distintamente em favor da visão pluralista. Ao passo que o filósofo monista se julga mais ou menos obrigado a dizer, como Hegel dizia, que tudo o que é real é racional, e que o mal, como elemento dialeticamente necessário, precisa ser pregado, conservado, consagrado e ter uma função no sistema final da verdade, o equilíbrio mental recusa-se a enunciar qualquer coisa desse gênero.{69} O mal, diz ele, é enfaticamente irracional, e não deve ser pregado, nem preservado, nem consagrado em nenhum sistema de verdade. É uma pura abominação ao Senhor, uma irrealidade estranha, um elemento de dissipação, que há de ser abandonado, negado e ter a sua memória, se possível, expurgada e esquecida. O ideal, longe de ser coextensivo com todo o real, é um mero extrato do real, marcado pela sua libertação de todo contacto com essa matéria mórbida, inferior e excrementícia. Aqui temos, diante de nós, nítida e aberta, a interessante noção da existência de elementos no universo que podem não fazer nenhum todo racional em conjunção com os outros elementos, e que, do ponto de vista de qualquer sistema que esses outros elementos são capazes de formar, só podem ser considerados como algo irrelevante e acidental — algo “sujo”, por assim dizer, e fora do lugar. Peço-lhes agora que não se esqueçam desta noção; pois se bem a maioria dos filósofos pareça esquecê-la ou desprezá-la tanto que nem sequer faz menção dela, acredito que teremos de admitir, no fim, que ela contém um elemento de verdade. Desse modo, o evangelho da cura psíquica, mais uma vez se nos depara cheio de dignidade e importância. Vimos que se trata de uma religião genuína, e não de um simples e tolo apelo à imaginação para curar doenças; vimos que o seu método de verificação experimental não difere do método de toda a ciência; e agora encontramos aqui a cura psíquica como paladina de uma concepção perfeitamente definida da estrutura metafísica do mundo. Espero que, em vista de tudo isso, os senhores não deplorem a minha insistência em chamar-lhes a atenção para esta matéria. Digamos agora adeus, por algum tempo, a toda essa maneira de pensar e voltemo-nos para as pessoas que não podem lançar de si, num relance, o fardo da consciência do mal, e estão ingenitamente destinadas a sofrer em razão da sua presença. Assim como vimos que no equilíbrio mental há níveis mais superficiais e mais profundos, felicidade como a do simples animal e tipos mais regenerados de felicidade, assim também há níveis diferentes da mente mórbida, e cada qual mais formidável do que o outro. Existem pessoas para quem o mal significa apenas um desajustamento com coisas, uma correspondência errada entre a vida da pessoa e o ambiente. Um mal dessa ordem é curável, pelo menos em princípio, no plano natural, pois bastará modificar o eu ou as coisas, ou ambos ao mesmo tempo, para que os dois termos sejam levados a ajustar-se e tudo volte a ser alegre como o bimbalhar de um sino de casamento. Para outros, porém, o mal não é apenas uma relação entre o sujeito e determinadas coisas externas, senão algo mais radical e geral, um erro ou vício em sua natureza essencial, que nenhuma alteração do ambiente e nenhum rearranjo do eu interior vingam curar, e que requer um remédio sobrenatural. De um modo geral, as raças latinas se inclinaram mais para a primeira maneira de encarar o mal, como se este fosse feito de males e pecados no plural, removíveis em detalhe; ao passo que as raças germânicas se inclinavam antes a pensar no Pecado no singular, com P maiúsculo, como alguma coisa inarredavelmente arraigada em nossa subjetividade natural, e que nunca poderá ser removida por quaisquer operações parciais e superficiais.{70} Essas comparações de raças estão sempre abertas à exceção, mas sem dúvida o tom setentrional em religião tem-se inclinado para a persuasão mais intimamente pessimista, e veremos que esse modo de sentir, sendo o mais extremado, é o mais instrutivo para o nosso estudo. A psicologia recente descobriu um grande uso para a palavra “limiar” como designação simbólica do ponto em que um estado de espírito passa para outro. Falamos, assim, do limiar da consciência de um homem em geral para indicar o quantum de ruído, pressão ou outro estímulo exterior é necessário para despertar-lhe a atenção. Um homem de limiar elevado cochila durante uma algazarra pela qual outro homem de limiar mais baixo seria imediatamente despertado. De maneira semelhante, quando uma pessoa é sensível a pequenas diferenças em qualquer ordem de sensação, dizemos que ela tem um baixo “limiar de diferença” - sua mente o transpõe facilmente para entrar na consciência das diferenças em tela. E da mesma maneira podemos falar do “limiar da dor”, do “limiar do medo”, do “limiar da angústia”, e vê-los rapidamente transpostos pela consciência de alguns indivíduos, mas pairando tão alto em outros que a consciência deles não pode alcançá-los com frequência. Os sanguíneos e mentalmente equilibrados vivem habitual- mente no lado ensolarado da sua linha de angústia, os deprimidos e melancólicos vivem no lado oposto, nas trevas e na apreensão. Existem homens que parecem ter começado a vida com uma ou duas garrafas de champanha inscritas em seu crédito; ao passo que outros parecem ter nascido à beira do limiar da dor, que os estímulos mais leves os fazem fatalmente transpor. Não se tem a impressão de que o que costuma viver de um lado do limiar da dor pode precisar de uma espécie diferente de religião do que o que costuma viver do outro lado? Neste ponto, surge naturalmente a questão da relatividade de diferentes tipos de religião para diferentes tipos de necessidades, e se tomará um problema sério antes de chegarmos ao fim. Mas para enfrentá-lo em termos gerais, devemos voltar-nos, primeiro, para a tarefa desagradável de ouvir o que as almas doentes, como podemos chamarlhes em contraste com as equilibradas, têm a dizer sobre os segredos do seu cárcere, da sua forma peculiar de consciência. Voltemos, portanto, resolutamente as costas para os nascidos uma vez e o seu evangelho otimista azul-celeste; não gritemos simplesmente, apesar de todas as aparências, “Viva o Universo! - Deus está no Céu, tudo vai bem com o mundo.” Vejamos antes se a piedade, a dor, o medo e o sentido da impotência humana não descerram uma visão mais profunda e não colocam em nossas mãos uma chave mais complicada do significado da situação. Para começar, como podem coisas tão inseguras quanto as experiências bem-sucedidas deste mundo proporcionarem uma ancoragem estável? Uma corrente hão é mais forte do que o seu elo mais fraco, e a vida, afinal de contas, é uma corrente. Na existência mais saudável e mais próspera, quantos elos de enfermidade, perigo e desastre costumam interpor-se? De supetão, do fundo de cada fonte de prazer, como disse o velho poeta, algo amargo se levanta: um toque de náusea, um súbito morrer do deleite, uma bafagem de melancolia, coisas que soam como um dobre de finados, por mais fugazes que sejam, trazem a sensação de chegar de uma região mais profunda e, não raro, têm um tremendo poder de persuasão. O zumbido da vida cessa ao toque deles como deixa de soar a corda de um piano quando cai sobre ela o abafador. Está claro que a música pode começar outra vez - e outra vez, e outra vez - a intervalos. Mas com isto dá à consciência equilibrada um sentido irremediável de precariedade. E um sino rachado; respira com dificuldade e por acidente. Suponhamos um homem tão abarrotado de equilíbrio mental que nunca experimentou na própria pessoa nenhum desses intervalos moderadores; se esse homem for dado a reflexões, terá de generalizar e classificar o próprio quinhão com o de outros; e, ao fazê-lo, verá que o seu escape é apenas um ensejo feliz e não uma diferença essencial. Ele poderia, do mesmo modo, ter nascido com uma sorte inteiramente diversa. E então, adeus, segurança vã! Que tipo de estrutura de coisas é ela da qual o melhor que se pode dizer é: “Graças a Deus, ela me poupou desta vez!” Não é a sua bem-aventurança uma frágil ficção? Não é a nossa alegria um sentimento muito vulgar, pouco diverso da risadinha espremida de qualquer canalha diante do êxito do seu golpe? E se fosse, de fato, um sucesso, mesmo em termos como esses! Tomese, contudo, o homem mais feliz, o homem mais invejado do mundo e, em nove casos em dez, sua consciência íntima é de frustração. Ou os seus ideais na linha das consecuções pairam muito acima das próprias consecuções, ou ele acalenta ideais secretos a cujo respeito o mundo nada sabe, e em relação aos quais, intimamente, ele conhece que não conseguirá alcançá-los. Quando um otimista vitorioso como Goethe se exprime desta guisa, que será dos homens menos bem-sucedidos? “Nada direi”, escreve Goethe em 1824, “contra o curso da minha existência. No fundo, entretanto, nada mais foi do que uma sucessão de sofrimentos e trabalhos, e posso afirmar que em todo o transcorrer dos meus 75 anos, não tive sequer quatro semanas de autêntico bemestar. É sempre o perpétuo rolar de uma rocha que precisa ser erguida de novo, para todo o sempre.” Que homem sozinho foi jamais, no todo, tão bem-sucedido quanto Lutero? E, no entanto, quando ficou velho, reviu a sua vida como se fosse um malogro total. “Estou profundamente cansado da vida. Rezo ao Senhor para que venha logo e me leve daqui. Que venha, sobretudo, com o seu Juízo final: esticarei o pescoço, o trovão estrugirá, e poderei descansar.” E, segurando um colar de ágatas na ocasião, ajuntou: “Ó Deus, concede que isso venha sem delongas. Eu cometia hoje este colar, sem titubear, para que o Juízo viesse amanhã.” - A Eleitora Mãe disse um dia a Lutero, quando este jantava com ela: “Doutor, desejo que vivais os próximos quarenta anos.” “Senhor”, replicou ele, “eu renunciaria de bom grado à minha possibilidade de ir para o Céu só para não precisar viver mais quarenta anos.” Frustração, portanto, frustração! — assim nos estigmatiza o mundo a cada passo. Nós o cobrimos com nossos erros, nossas maldades, nossas oportunidades perdidas, com todas as lembranças da nossa inadaptação ao mister que elegemos. E com que maldita ênfase ele, então, nos apaga! Nenhuma multa fácil, nenhum pedido singelo de desculpas e nenhuma expiação formal satisfarão as exigências do mundo, mas cada libra de carne reclamada se embebe de todo o seu sangue. As formas mais sutis de sofrimento conhecidas dos homens estão ligadas às peçonhentas humilhações a que se acham sujeitos esses resultados. E são experiências humanas decisivas. Um processo tão ubíquo e duradouro é, evidentemente parte integrante da vida. “Existe, com efeito, um elemento no destino humano”, escreve Robert Louis Stevenson, “que nem a própria cegueira contesta. Seja o que for que nos incumbe fazer, não estamos destinados ao sucesso; o malogro é o destino que nos foi atribuído.”{71} E estando a nossa natureza assim enraizada no insucesso, não admira que os teólogos o tenham considerado essencial e julgado que apenas através da experiência pessoal da humilhação, que ele engendra, seja alcançado o sentido mais profundo da significação da vida.{72} Mas este é apenas o primeiro estádio da doença do mundo. Aumente-se um pouco a sensibilidade do ser humano, leve-se o homem um pouco além do limiar do desespero, e a boa qualidade dos próprios momentos de êxito, quando ocorrem, se corrompe e vicia. Todos os bens naturais perecem. As riquezas têm asas; a fama é um sopro; o amor, uma fraude; a mocidade, a saúde e o prazer desaparecem. Podem coisas cujo fim é sempre a poeira e a decepção ser os bens reais por que nossas almas suspiram? Atrás de tudo está o grande espectro da morte universal, a treva que tudo abarca: “Que proveito tira o homem de todo o trabalho que executa debaixo do Sol? Olhei para todas as obras que minhas mãos tinham feito e, vede, era tudo vaidade e aflição do espírito. Pois aquilo que aconteceu aos filhos dos homens aconteceu aos animais; assim como morre um, assim morre o outro; todos são do pó e todos regressam ao pó …. Os mortos nada sabem, nem gozam de alguma recompensa; pois a lembrança deles está esquecida. Como também o seu amor, o seu ódio e a sua inveja agora pereceram; nem têm eles porção alguma do que quer que se faça debaixo do Sol. … É verdade que a luz é suave, e é agradável para os olhos contemplar o Sol: mas ainda que o homem viva muitos anos e se compraza com todos eles, não lhe esqueçam os dias de escuridão; pois eles serão muitos.” Em resumo, a vida e a sua negação estão inextricavelmente juntas. Mas se a vida for boa, a sua negação terá de ser má. No entanto, as duas são fatos igualmente essenciais da existência; e toda felicidade natural parece, destarte, infectada com uma contradição. O hálito do sepulcro a rodeia. Para a mente atenta a esse estado de coisas e justamente sujeita ao calafrio destruidor da alegria que tal contemplação engendra, o único alívio que o equilíbrio mental pode dar é dizer: “Disparates e tolices, saiam para o ar livre!” ou “Anime-se, meu velho, você ficará bom daqui a pouco, se deixar de lado a morbidez!” Mas, falando sério, pode uma conversa boba e animal como essa ser considerada uma resposta racional? Atribuir valor religioso ao mero contentamento despreocupado com a nossa breve oportunidade de bem natural não é mais do que a própria consagração da desatenção e da superficialidade. Nossos problemas jazem, de feito, profundamente demais para essa cura. O fato de podermos morrer, de podermos ficar doentes, deixa-nos perplexos; o fato de estarmos por ora vivendo e de estarmos bem é irrelevante para a nossa perplexidade. Precisamos de uma vida não correlacionada com a morte, uma saúde não sujeita à doença, uma espécie de bem que não pereça, um bem, de fato, que suba acima dos Bens da natureza. Tudo depende da sensibilidade da alma a conflitos. “O que me perturba é acreditar demais na felicidade comum e na bondade”, disse um amigo meu cuja consciência era desse tipo, “e nada me consola do fato de que elas são transitórias. Essa possibilidade me aterra e desconcerta.” O mesmo acontece com a maioria dentre nós: um pequeno esfriamento da excitabilidade e do instinto animais, uma perda insignificante da resistência animal, uma leve fraqueza irritadiça e o abaixamento do limiar da dor levarão o carcoma, que reside no âmago de todas as nossas fontes de deleites, à plena luz, e nos converterão em metafísicos melancólicos. O orgulho da vida e a glória do mundo murcharão. Afinal de contas, isso não é mais que a briga permanente do jovem acalorado com o velho encanecido. A velhice tem a última palavra: o olhar puramente naturalista para a vida, por mais entusiasta que possa começar, acabará de certo na tristeza. Essa tristeza jaz no coração de todo esquema de filosofia positivista, agnóstica ou naturalista. Deixem o sanguíneo equilíbrio mental fazer o melhor que pode com o seu estranho poder de viver o momento que se vai e não dar importância e esquecer; ainda assim o fundo de quadro do mal estará realmente ali para ser meditado, e o crânio sorrirá, arreganhando os dentes no banquete. Na vida prática do indivíduo, sabemos que toda a sua tristeza ou alegria, em razão de qualquer fato presente, depende dos esquemas e esperanças mais remotos com que está relacionado. Sua importância e estrutura dão-lhe a parte principal do seu valor. Basta que se saiba que o fato presente não conduz a parte alguma e, por mais agradável que possa ser em sua imediação, seu brilho e sua douradura desaparecerão. O velho, que padece de insidiosa moléstia interna, a princípio podia rir-se e embarcar o seu vinho tão bem como sempre, mas agora conhece o seu destino, que os médicos lhe terão revelado; e o conhecimento expulsa a satisfação de todas essas funções. Partícipes da morte, tendo o verme por irmão, elas acabam no marasmo total. O brilho da hora presente depende sempre do fundo de possibilidades que ela acompanha. Deixem que nossas experiências comuns sejam envolvidas numa ordem moral eterna; deixem que o nosso sofrimento tenha uma importância imortal; deixem que o Céu sorria para a terra, e as divindades a visitem; deixem que a fé e a esperança sejam a atmosfera que o homem respira - e os seus dias passarão cheios de prazer; estremecerão com as perspectivas, palpitarão com valores mais remotos. Coloquem-se ao redor deles, pelo contrário, o frio, a melancolia e a ausência de toda significação permanente que, mercê do puro naturalismo e do evolucionismo da ciência popular do nosso tempo, são as únicas coisas visíveis finalmente, e a emoção cessará de repente, ou se converterá num frêmito de ansiedade. Para o naturalismo, alimentado por recentes especulações cosmológicas, a humanidade está numa posição semelhante à de um grupo de pessoas que vivem em cima de um lago gelado, cercado de rochedos pelos quais não há escapar, mas sabem que o gelo está-se derretendo pouco a pouco, e que se aproxima o dia inevitável em que a derradeira camada de gelo desaparecerá e a sina da criatura humana será afogar-se ignominiosamente. Quanto mais alegre for a patinação, quanto mais quente e brilhante for o sol durante o dia, e quanto mais rubras forem as fogueiras durante a noite, tanto mais pungente será a tristeza com que teremos de perceber o significado da situação total. Os gregos antigos nos são continuamente apontados, em obras literárias, como modelos da alegria equilibrada que a religião da natureza engendra. Havia, com efeito, muita alegria entre os gregos. O fluxo de entusiasmo de Homero pela maior parte das coisas sobre as quais brilha o sol é constante. Mas até em Homero os trechos reflexivos são lúgubres,{73} e desde o momento em que se tomaram sistematicamente meditativos e deram*de pensar em princípios fundamentais, os gregos se tomaram rematados pessimistas.{74} A inveja dos deuses, a vingança que acompanha a felicidade excessiva, a morte oniabrangente, à escura opacidade do destino, a crueldade final e ininteligível, eram o fundo de quadro fixo da sua imaginação. A formosa alegria do seu politeísmo não passa de uma poética ficção moderna. Eles não conheciam as alegrias comparáveis, na qualidade, às que dentro em pouco veremos que brâmanes, budistas, cristãos, maometanos, pessoas nascidas duas vezes e cuja religião não é naturalista, extraem dos seus diversos credos de misticismo e renúncia. A insensibilidade estóica e a resignação epicurista foram os maiores progressos que fez a mente grega nessa direção. Dizia o epicurista: “Não busqueis ser felizes, senão escapar à infelicidade; a felicidade vigorosa está sempre ligada à dor; abraçai, por conseguinte, a praia segura e não tenteis os raptos mais profundos. Evitai a decepção esperando pouco e olhando para baixo; e, sobretudo, não vos atormenteis”. O estóico dizia: “O único bem genuíno que a vida pode conceder a um homem é a livre posse da própria alma; todos os outros bens são mentirosos”. Cada uma dessas filosofias é, em seu grau, uma filosofia de desespero em relação às dádivas da natureza. A confiante entrega de si mesmo às alegrias que livremente se oferecem não existe para o epicurista nem para o estóico; e o que cada qual propõe é uma forma de libertação do estado de espírito cinzento e poeiroso que dela advêm. O epicurista ainda espera resultados da economia da indulgência e do abafamento do desejo. O estóico não espera resultado algum, e renuncia de todo em todo ao bem natural. Há dignidade em ambas as formas de resignação. Elas representam estádios distintos do processo moderador que a primitiva embriaguez do homem com a felicidade dos sentidos experimentará por certo. Num, o sangue quente esfriou; no outro, quase gelou; e, embora eu me tenha referido a eles no pretérito perfeito, como se fossem meramente históricos, o Estoicismo e o Epicurismo serão provavelmente, em todos os tempos, atitudes típicas, que marcam certa fase definida consumada na evolução da alma enferma do mundo.{75} Eles assinalam a conclusão do que chamamos o período dos nascidos uma vez, e representam os vôos mais altos dos que a religião dos nascidos duas vezes denominaria o homem puramente natural - mostrando o Epicurismo, que só por excesso de cortesia pode ser chamado de religião, o seu refinamento, e o Estoicismo, a sua vontade moral. Eles deixam o mundo na forma de uma contradição irreconciliável e não procuram uma unidade mais elevada. Confrontadas com os êxtases complexos que o cristão sobrenaturalmente regenerado pode desfrutar, ou a que se entrega o panteísta oriental, as suas receitas de equanimidade são expedientes que parecem quase grosseiros em sua simplicidade. Façam os senhores, contudo, o favor de observar que ainda não estou pretendendo julgar de maneira final nenhuma dessas atitudes. Limito-me a descrever-lhes a variedade. A maneira mais segura de chegar aos tipos mais arrebatados de felicidade, dos quais nos dão conta os nascidos duas vezes, passou, como um fato histórico, por um pessimismo mais radical do que qualquer coisa que já consideramos. Vimos que o brilho e o encanto podem ser eliminados dos bens da natureza. Mas há um nível de infelicidade tão grande que acarreta o total esquecimento dos bens da natureza e a total exclusão, do campo mental, de todo o sentimento da sua existência. Para se atingir esse extremo de pessimismo, faz-se mister algo mais do que a observação da vida e a reflexão sobre a morte. O indivíduo precisa, na própria pessoa, tomar-se presa de uma melancolia patológica. Como o entusiasta do equilíbrio mental consegue desconhecer a mesma existência do mal, assim a vítima da melancolia é obrigada, mau grado seu, a desconhecer a existência de todo e qualquer bem: para ela, o bem já pode não ter a menor realidade. Essa sensibilidade e suscetibilidade à dor mental são uma ocorrência rara numa constituição nervosa inteiramente normal; poucas vezes a encontramos num sujeito sadio, mesmo quando vítima das mais atrozes crueldades da fortuna exterior. Por isso vemos aqui a constituição neurótica, sobre a qual tanto falei em minha primeira conferência, subindo ao palco e preparando-se para representar um papel em muita coisa que se segue. Visto que essas experiências de melancolia são, em primeiro lugar, absolutamente particulares e individuais, posso agora lançar mão de documentos pessoais. São, com efeito, dolorosos de se ouvirem, e é quase uma indecência ventilálos em público. Entretanto, eles se erguem, bem no meio do nosso caminho; e se quisermos versar a psicologia da religião com seriedade, precisamos estar dispostos a esquecer convencionalidades e mergulhar abaixo da lisa e mentirosa superfície das conversações oficiais. Distinguem-se muitas espécies de depressão patológica. Às vezes, é uma simples ausência passiva de alegria, acompanhada de melancolia, desalento, abatimento, falta de gosto, de entusiasmo e de vigor. O Professor Ribot propôs a palavra anedonia para designar esse estado. “O estado de anedonia, se me for permitido cunhar uma nova palavra para emparelhar com analgesia”, escreve ele, “foi muito pouco estudado, mas existe. Acometida de uma moléstia do fígado que, por algum tempo, lhe alterou a constituição, uma menina deixou de sentir qualquer afeição pelo pai e pela mãe. Ela teria brincado com a boneca, mas era-lhe impossível encontrar o menor prazer no ato. As mesmas coisas que antigamente lhe provocavam convulsões de riso não vingavam, de maneira alguma, interessá-la agora. Esquirol observou o caso de um magistrado muito inteligente, vítima também de uma afecção hepática. Toda emoção se diria morta dentro dele. Não manifestava perversão nem violência, senão completa ausência de reação emocional. Quando ia ao teatro, o que fazia já por hábito, não encontrava ah prazer nenhum. A idéia de sua casa, do lar, da esposa e dos filhos ausentes comovia-o tão pouco, dizia ele, quanto um teorema de Euclides.”{76} Um enjôo de mar prolongado produzirá, na maioria das pessoas, uma condição temporária de anedonia. Todos os bens, terrestres ou celestes, que acodem à mente de um indivíduo nessas condições, são repelidos com asco. Um estado temporário desse tipo, ligado à evolução religiosa de um caráter singularmente elevado, tanto intelectual quanto moralmente, é bem descrito pelo filósofo católico, Padre Gratry, em suas reminiscências autobiográficas. Em consequência do isolamento mental e do excesso de estudos na Escola Politécnica, o jovem Gratry caiu num estado de exaustão nervosa com sintomas que ele assim descreve: “Eu sentia um terror universal tão grande que acordava durante a noite pensando que o Pantheon estava desmoronando sobre a Escola Politécnica, ou que a escola ardia em chamas, ou que o Sena invadira as Catacumbas e Paris estava sendo inundada. E quando essas impressões se desvaneciam, eu experimentava durante o dia inteiro, sem descanso, uma desolação incurável e intolerável, que beirava o desespero. Julgava-me, com efeito, rejeitado por Deus, perdido, condenado! Sentia qualquer coisa parecida com os padecimentos do inferno. Minha mente nunca se voltara para essa direção. Nem discursos nem reflexões me haviam impressionado dessa maneira. Eu não dava importância ao inferno. Agora, de repente, eu me via sofrendo, até certo ponto, tudo o que ali se sofre. “Mas o mais pavoroso era talvez que toda e qualquer idéia de céu me fora arrebatada: eu já não podia conceber coisa alguma nesse sentido. Ficara-me a impressão de que não valia a pena ir para o céu. Dir-se-ia um vácuo; um eliseu mitológico, uma habitação de sombras menos reais do que a terra. Não me era possível conceber alguma alegria, algum prazer em habitá-lo. Felicidade, alegria, luz, afeição, amor - todas essas palavras me pareciam agora destituídas de sentido. Eu poderia, sem dúvida, haver falado de todas essas coisas, mas me tomara incapaz de sentir nelas o que quer que fosse, de compreender algo a respeito delas, de esperar que elas me dessem qualquer coisa ou de acreditar que existissem. Nisso se resumia o meu grande e inconsolável pesar! Eu já não percebia nem concebia a existência da felicidade ou da perfeição. Um céu abstrato sobre uma rocha nua. Tal era a minha atual morada para a eternidade”.{77} Isso quanto à melancolia no sentido da incapacidade de um sentimento alegre. Forma muito pior dessa melancolia é a angústia positiva e ativa, uma espécie de nevralgia psíquica inteiramente desconhecida da vida sadia, que pode participar de vários caracteres, de modo que nela, às vezes, prepondera a aversão; às vezes, a irritação e a exasperação; ou ainda a desconfiança de si próprio e o desespero; ou a suspeita, a ansiedade, a trepidação, o medo. O paciente pode rebelar-se ou submeter-se; acusar-se ou acusar forças externas; e pode, ou não, ser atormentado pelo mistério teórico da razão por que há de sofrer assim; A maioria é de casos mistos, e não devemos respeitar em demasia as nossas classificações. De mais a mais, somente numa proporção relativamente pequena estão os casos ligados à esfera religiosa da experiência. Casos desesperados, por exemplo, em regra geral, não estão. Transcrevo agora, literalmente, trechos do primeiro caso de melancolia que cai entre as mãos. É a carta de um paciente internado num asilo francês. “Sofro demais neste hospital, tanto física quanto moralmente. Além das queimaduras e da insônia (pois já não durmo desde que me encerraram aqui, e o breve repouso que consigo é interrompido por sonhos maus, e acordo com um salto, torturado por pesadelos, visões medonhas, relâmpagos, trovões, e o resto), o medo, um medo atroz me oprime, retém-me preso sem descanso, nunca me solta. Onde está a justiça em tudo isso! Que fiz eu para merecer tamanha severidade? Debaixo de que forma o medo me esmagará? Quanto não deveria eu a alguém que se encarregasse de libertar-me da minha vida! Comer, beber, ficar acordado a noite inteira, sofrer sem interrupção tal é o belo legado que recebi de minha mãe! O que não consigo compreender é este abuso de poder. Há limites para tudo, existe um caminho médio. Mas Deus não conhece caminhos médios nem limites. Digo Deus, mas por quê? Tudo o que conheci até agora foi o diabo. Afinal de contas, tenho tanto medo de Deus quanto do diabo, por isso deixo- me levar, sem pensar em nada a não ser no suicídio, mas sem a coragem nem os meios para executar o ato. Quando leres isto, verás facilmente provada a minha insanidade. O estilo e as idéias são assaz incoerentes - eu mesmo me dou conta disso. Mas não posso deixar de ser ou louco ou idiota; e, no estado atual das coisas, a quem pedirei piedade? Estou indefeso contra o inimigo invisível que aperta os seus laços à minha volta. Eu não estaria melhor armado contra ele ainda que o visse ou que o tivesse visto. Oh, se ele ao menos me matasse, que o levasse o diabo! Morte, morte, uma vez por todas! Mas aqui me detenho. Já tresvariei o suficiente. Digo tresvariei porque não posso escrever de outro modo, pois não me ficaram nem o cérebro nem os pensamentos. Ó Deus! que desgraça haver nascido! Nascido como um cogumelo, sem dúvida, entre uma noite e uma manhã; e quão verdadeiro e certo eu me achava quando, em nosso ano de filosofia no colégio, ruminei o amargor dos pessimistas. Sim, de fato, há mais sofrimento na vida do que alegria - é uma longa agonia até o túmulo. Imagina o quanto me sinto alegre quando me lembro de que essa horrível miséria minha, associada a este medo in- dizível, pode durar cinquenta, cem, quem sabe quantos anos mais!”{78} Essa carta revela duas coisas. Primeira, os senhores estão vendo a consciência do pobre homem tão sufocada pelo sentimento do mal que o sentido da existência de algum bem no mundo está completamente perdido para ele. Sua atenção o exclui, não pode admiti-lo: o sol ausentou-se do seu firmamento. Em segundo lugar, os senhores percebem que o caráter lamurioso do seu sofrer impede-lhe a mente de tomar uma direção religiosa. A mente lamuriosa, na verdade, tende mais para a irreligião; e ela não representou, pelo que sei, nenhum papel na construção de sistemas religiosos. A melancolia religiosa precisa ser modelada num estado de espírito mais entemecedor. Deixou-nos Tolstoi, em seu livro intitulado Minha Confissão, um relato maravilhoso da crise de melancolia que o levou às suas próprias conclusões religiosas. Em alguns sentidos, estas últimas são peculiares; mas a melancolia apresenta dois caracteres que fazem dela um documento típico para o nosso atual propósito. Primeiro que tudo, é um caso bem marcado de anedonia, de perda passiva do apetite por todos os valores da vida; e, em seguida, mostra como o aspecto alterado e alienado que o mundo assumiu em consequência disso estimulou o intelecto de Tolstoi a um doloroso e opressivo questionar e a um esforçar-se por lograr o alívio filosófico. Pretendo citar Tolstoi extensamente; antes, porém, farei um comentário geral sobre cada um desses dois pontos. Primeiro, sobre os nossos julgamentos espirituais e o sentido do valor em geral. É notório que os fatos são compatíveis com comentários emocionais opostos, desde que o mesmo fato inspire sentimentos totalmente diversos em pessoas diferentes e, em diferentes ocasiões, na mesma pessoa; e não existe nenhuma conexão racionalmente dedutível entre qualquer fato exterior e os sentimentos por ele provocados. Estes se originam de uma esfera da existência totalmente diferente, da região animal e espiritual do sujeito. Imaginem- se os senhores, se possível, despojados, de improviso, de toda emoção que o mundo agora lhes inspira, e procurem figurá-lo tal como ele existe, puramente por si mesmo, sem nenhum comentário favorável ou desfavorável, esperançoso ou apreensivo, que os senhores poderiam fazer. Ser-lhes-á quase impossível compreender um estado assim de negatividade e insensibilidade. Nenhuma porção do universo teria então maior importância do que outra; e toda a coleção de suas coisas e toda a série dos seus acontecimentos perderiam a significação, o caráter, a expressão ou a perspectiva. Sejam quais forem o valor, o interesse ou o significado de que os nossos mundos respectivos possam parecer dotados são, assim, puras dádivas da mente do espectador. A paixão do amor é o exemplo mais familiar e extremo desse fato. Se vem, vem; se não vem, nenhum processo de raciocínio poderá obrigá-lo a vir. Não obstante, transforma o valor da criatura amada tão completamente quanto o nascer do sol transforma o Mont Blanc de um cinzento cadavérico num róseo encantamento; e empresta ao mundo todo uma nova harmonia para o amante e dá uma nova saída à sua vida. O mesmo acontece com o medo, a indignação, a inveja, a ambição, a adoração. Se elas estiverem presentes, a vida se modifica. E o estarem presentes ou não depende, quase sempre, de condições ilógicas, frequentemente orgânicas. E assim como o interesse excitado que essas paixões põem no mundo é a nossa dádiva para o mundo, assim também as próprias paixões são dádivas - dádivas para nós, de fontes às vezes baixas, às vezes altas; mas, quase sempre, ilógicas e acima do nosso domínio. Como pode o velho moribundo recapitular para si mesmo o romance, o mistério, a iminência de grandes coisas com que a nossa velha terra vibrava para ele quando era moço e sadio? Dádivas, quer da carne, quer do espírito; e o espírito sopra onde lhe apraz; e os materiais do mundo emprestam a sua superfície passiva a todas as dádivas por igual, como o cenário do palco recebe, indiferente, quaisquer luzes alternadamente coloridas projetadas nele pelos aparelhos óticos da galeria. Enquanto isso, o mundo praticamente real para cada um de nós, o mundo efetivo do indivíduo, é o mundo composto, os fatos físicos e os valores emocionais em indistinguível combinação. Se retirar ou perverter qualquer fator dessa complexa resultante, ter-se-á o tipo de experiência que denominamos patológica. No caso de Tolstoi, o sentido de que a vida tinha um significado qualquer foi, por algum tempo, inteiramente removido. Disso resultou uma transformação na expressão global da realidade. Quando chegarmos a estudar o fenômeno da conversão ou da regeneração religiosa, veremos que uma consequência não infrequente da mudança operada no sujeito é a transfiguração da face da natureza a seus olhos. Um novo céu parece brilhar sobre uma nova terra. Nos melancólicos verifica-se, de ordinário, uma mudança similar, só que na direção inversa. O mundo se apresenta remoto, estranho, sinistro, fantástico. Foi-se-lhe a cor, o seu hábito é frio, não há especulação nos olhos com que ele fita as coisas. “É como se eu vivesse em outro século”, diz O paciente de um asilo. - “Vejo tudo através de uma nuvem”, diz outro, “as coisas já não são como eram, e eu estou mudado.” “Vejo”, diz um terceiro, “toco, mas as coisas não chegam perto de mim, um véu espesso altera a tonalidade e o aspecto de tudo.” — “As pessoas movem-se quais sombras, e dir-se-ia que os sons vêm de um mundo distante.” - “Já não existe passado para mim; as pessoas parecem tão estranhas; é como se eu não pudesse ver realidade alguma, como se eu estivesse num teatro; como se as pessoas fossem atores, e tudo fosse cenário; já não consigo encontrar-me; caminho, mas, por quê? Tudo flutua diante dos meus olhos, mas não deixa impressão alguma.” - “Derramo lágrimas falsas, tenho mãos irreais: as coisas que vejo não são reais.” - Eis aí as expressões que sobem naturalmente aos lábios de sujeitos melancólicos ao descreverem o seu estado alterado.{79} Ora, existem alguns sujeitos que são presas do mais profundo assombro, por tudo isso. A estranheza é errada. A irrealidade não pode ser. Esconde-se um mistério e cumpre o que existe uma solução metafísica. Se o mundo natural é tão bifronte e tão hostil, que mundo, que coisa é real? Um assombro urgente, um esforço angustiado de indagação, uma atividade teórica insaciável têm início e, no empenho desesperado de estabelecer relações certas com a matéria, o paciente é frequentemente levado para o que se toma para ele uma solução religiosa satisfatória. Por volta dos cinquenta anos de idade, relata Tolstoi que começou a ter momentos de perplexidade, momentos do que ele denomina suspensão, como se não soubesse “como viver” ou o que fazer. É manifesto que estes foram momentos em que a excitação e o interesse que nossas funções provocam naturalmente, haviam cessado. A vida outrora encantadora, era agora vazia, mais do que vazia, morta. Coisas cujo sentido sempre fora evidente por si mesmo já não tinham nenhum sentido. As perguntas “Por quê?” e “E depois?” principiaram a acossá-lo cada vez mais amiúde. De início, tivera a impressão de que essas perguntas eram respondíveis e que lhe seria fácil encontrar as respostas, contanto que se desse ao trabalho de buscá-las; à medida, porém, que se tomavam mais e mais urgentes, percebeu que elas eram como os pequenos achaques de um homem doente, a que este presta pouca atenção até o momento em que se transformam num sofrimento contínuo, e ele percebe que o que se lhe afigurava um distúrbio passageiro significa a coisa mais momentosa do mundo, significa a morte. As perguntas “Por quê?” “Por que razão?” “Para quê?” não encontraram resposta. “Senti”, diz Tolstoi, “que se quebrara dentro de mim alguma coisa sobre a qual minha vida sempre descansara, que eu não tinha mais nada a que pudesse agarrar-me e que moralmente minha vida parara. Uma força invencível me impelia a livrar-me da existência, de um modo ou de outro. Não se pode dizer exatamente que eu desejava matar-me, pois a força que me arrastava para longe da vida era mais plena, mais poderosa, mais geral do que qualquer desejo. Era uma força como a antiga aspiração minha para viver, só que me empurrava na direção contrária. Era uma aspiração de todo o meu ser de Sair da vida. “Vede-me, pois, um homem feliz e de boa saúde, escondendo a corda para não me enforcar nos caibros do quarto todas as noites em que ia dormir sozinho; vede-me renunciando às caçadas com receio de ceder à tentação demasiado fácil de pôr termo à vida com a minha espingarda. “Eu não sabia o que queria. Tinha medo da vida; era impelido a deixá-la; e, a despeito disso, ainda esperava dela alguma coisa. “Tudo isso ocorreu numa ocasião em que, no que dizia respeito às minhas circunstâncias externas, eu devera ter sido completamente feliz. Tinha uma boa esposa, que me amava e que eu amava; bons filhos e uma grande propriedade que estava aumentando^ sem nenhum esforço de minha parte. Era mais respeitado pelos meus parentes e conhecidos do que jamais o fora; os estranhos me enchiam de elogios; e, sem exagero, eu podia acreditar que o meu nome já se tomara famoso. Além disso, eu não estava louco nem doente. Pelo contrário, possuía uma força física e mental que raro tenho encontrado em pessoas da minha idade. Eu segava tão bem quanto os camponeses e era capaz de trabalhar com o cérebro oito horas ininterruptas sem sentir qualquer efeito nocivo. “E, no entanto, eu não conseguia dar um sentido razoado aos atos de minha vida. E me surpreendia por pão o ter compreendido desde o princípio. Meu estado de espírito era o de alguém que estivesse sendo vítima de uma brincadeira perversa e estúpida. Só podemos viver enquanto embriagados de vida; quando ficamos sóbrios, não podemos deixar de ver que tudo não passa de uma estúpida impostura. E o mais verdadeiro a esse respeito é que ela não tem nada de engraçado ou tolo; a impostura é pura e simplesmente cruel e estúpida. , “A fábula oriental do viajor surpreendido no deserto por um animal selvagem é muito antiga. “Procurando salvar-se do feroz animal, o viajante salta para dentro de um poço sem água; no fundo do poço, todavia, vê um dragão esperando com a boca aberta para devorá-lo. E o infeliz viajante, não se atrevendo a sair do poço com medo de ser devorado pelo animal, e não se abalançando a saltar para o fundo com medo de se transformar em pasto do dragão, empolga os ramos de um arbusto selvagem que cresce numa das frinchas do poço. Suas mãos perdem a força e ele sente que logo será obrigado a entregar-se ao destino fatal; mas ainda assim, agarrado ao arbusto, vê dois camundongos, um branco e outro preto, movimentando-se tranquilamente ao redor do galho a que ele se segura, roendo-lhe as raízes. “Ao ver isso, o viandante conhece que terá de perecer inevitavelmente; mas enquanto está ali pendurado, olha à sua volta e divisa, nas folhas do arbusto, algumas gotas de mel. Alcança-as com a língua e lambe-as, extasiado. “Assim estou eu, pendente dos galhos da vida, sabendo que o inevitável dragão da morte está esperando, pronto para estraçalharme, e não compreendo por quê sou assim convertido em mártir. Tento chupar o mel que outrora me consolava; mas o mel, já não me agrada, e dia e noite o camundongo branco e o camundongo preto roem o galho de que estou suspenso. Só posso ver uma coisa; o dragão inevitável e os camundongos - não consigo desviar a vista deles. “Isto não é uma fábula, senão a verdade literal incontestável, que todos podem compreender. Qual será o resultado do que faço hoje? Do que farei amanhã? Qual será o resultado de toda a minha vida? Por que hei de viver? Por que hei de fazer alguma coisa? Existe na vida algum propósito que a morte inevitável que me espera não desfaz e destrói? “Essas perguntas, as mais simples do mundo, estão na alma de todo ser humano, desde a criança estúpida até o mais sábio dos velhos. Sem uma resposta para elas é impossível, como averiguei por experiência própria, que a vida prossiga. “‘Mas talvez’, dizia eu frequentemente a mim mesmo, ‘haja alguma coisa que tenha fugido à minha observação ou compreensão. Não é possível que esse estado de desespero seja natural ao gênero humano.’ E procurei uma explicação em todos os ramos do conhecimento adquirido pelos homens. Interroguei-os penosa e prolongadamente e sem nenhuma curiosidade ociosa. Busquei, não com indolência, senão laboriosa e obstinadamente, por dias e noites a fio. Busquei como um homem perdido busca salvar-se - e nada encontrei. Convenci-me, além disso, de que todos os que, antes de mim, haviam procurado uma resposta nas ciências tampouco encontraram alguma coisa. E não só isso, mas reconheceram que a própria coisa que me estava conduzindo ao desespero - a absurdidade sem sentido da vida – é o único conhecimento incontestável acessível ao homem.” Para provar esse ponto, Tolstoi cita Buda, Salomão e Schopenhauer. E acha apenas quatro modos com que os homens de sua classe e sociedade estão acostumados a enfrentar a situação. Ou a mera cegueira animal, chupando o mel sem ver o dragão nem os camundogos — “e desse modo”, diz ele, “nada posso aprender, depois do que sei agora”; ou o epicurismo reflexivo, tentando agarrar o que pode antes de findar-se o dia -, o que é apenas uma espécie mais deliberada de estupefação do que a primeira; ou o suicídio viril; ou ver os camundongos e o dragão e, apesar disso, continuar fraca e la- muriosamente agarrado ao arbusto da vida. O suicídio era, naturalmente, o curso congruente ditado pelo intelecto lógico. “Entretanto”, diz Tolstoi, “enquanto meu intelecto trabalhava, alguma outra coisa em mim trabalhava também, e me impedia de executar o ato - uma consciência da vida, como posso chamar-lhe, que era como uma força que me obrigava a mente a fixar-se em outra direção e arrancar-me da minha situação de desespero. … Durante todo o correr desse ano, quando eu continuava a perguntar-me, quase sem cessar, como acabar com tudo aquilo, se pela corda ou à bala, durante todo esse tempo, a par com todos os movimentos de minhas idéias e observações, meu coração consumia-se em outra emoção pungente, à qual não posso dar outro nome que o de sede de Deus. Esse desejo de Deus não tinha nada que ver com o movimento das minhas idéias -, na verdade, era exatamente o contrário dele —, mas vinha do meu coração. Dir-se-ia um sentimento de medo que me fazia parecer órfão e isolado no meio de todas essas coisas tão estranhas. E esse sentimento de medo era mitigado pela esperança de encontrar a assistência de alguém.”{80} Sobre esse processo, tão intelectual quão emocional, que, partindo da idéia de Deus, propiciou a recuperação de Tolstoi, nada direi nesta conferência, reservando-o para outra hora. A única coisa que deve interessarnos agora é o fenômeno do seu absoluto desencantamento com a vida ordinária, e o fato de que toda a série de valores habituais pudesse, para um homem tão poderoso e genial quanto ele, apresentar-se qual sinistra irrisão. Quando a desilusão chega tão longe assim, raro ocorre uma restitutio ad integrum. Provamos do fruto da árvore, e a felicidade do Éden nunca mais volta. A felicidade que volta, quando volta alguma — e muitas vezes deixa de voltar de forma aguda, embora a sua forma seja, às vezes, muito aguda -, não é a simples ignorância do mal, senão algo vastamente mais complexo, que inclui o mal natural como um dos seus elementos, mas que não acha o mal natural um obstáculo e um terror tamanhos, porque agora o vê engolido pelo bem sobrenatural. Trata-se de um processo de redenção e não apenas de reversão à saúde natural, e o paciente, quando se salva, salva- se pelo que lhe parece um segundo nascimento, uma espécie de vida consciente mais profunda do que a que ele usufruía antes. Na autobiografia de John Bunyan encontramos um tipo algo diferente de melancolia religiosa consagrada na literatura. As preocupações de Tolstoi revelavam-se principalmente objetivas, pois o que tanto o conturbava era o propósito e o sentido da vida em geral; mas os problemas do pobre Bunyan diziam respeito ao estado do seu próprio eu pessoal. Caso típico de temperamento psicopático, de doentia sensibilidade de consciência, assediado por dúvidas, temores e idéias insistentes, ele era uma vítima de automatismos verbais, assim motores como sensoriais. Estes consistiam, de ordinário, em textos da Escritura, às vezes condenatórios e às vezes favoráveis, que surgiam em forma semi-alucinatória, como se fossem vozes, e, atados à sua mente, jogavam-na de um lado para outro, como uma peteca. Acrescentem-se a isso uma melancolia, um desprezo de si mesmo e um desespero pavorosos. “Não, pensei eu, agora estou ficando cada vez pior; agora estou mais distante do que nunca da conversão. Se agora eu devesse ser queimado numa fogueira, não acreditaria que Cristo me tivesse amor; ai de mim, não poderia ouvi-lo, nem vê-lo, nem senti-lo, nem saborear nenhuma das suas coisas. Às vezes eu pensava em descrever o meu estado ao povo do Deus, o qual, ao me ouvir, se apiedaria de mim e me falaria nas Promessas. Mas o mesmo seria ele me dizer que eu devia alcançar o Sol com o dedo e me ordenar que recebesse a Promessa ou dela me fiasse. Entretanto, durante todo esse tempo, no que concerne ao ato de pecar, nunca fui mais frágil do que então; eu não me atrevia a pegar um alfinete nem um pedaço de pau, ainda que fosse menor que uma palhinha, pois minha consciência, dolorida, doeria a qualquer contacto; eu não sabia como pronunciar minhas palavras, com medo de usá-las mal. Oh, com que extremo cuidado andava eu então, em tudo o que fazia ou dizia! Via-me num pântano imundo, que estremecia ao menor movimento meu; e estava como se lá tivesse sido deixado, ao mesmo tempo, por Deus e pelo Cristo, e pelo espírito, e por todas as coisas boas. “Mas o meu tormento e a minha aflição eram a minha poluição original e interior. Em razão disso, eu me sentia mais execrável aos meus próprios olhos do que um sapo; e cuidava ser assim também aos olhos de Deus. O pecado e a corrupção, dizia eu, romperiam tão naturalmente do meu coração quanto rompe a água de uma fonte. Eu teria trocado de coração com qualquer um. Supunha que ninguém, se não o próprio Demo, poderia igualar-me em iniquidade interior e poluição da mente. É evidente, pensei, que fui desamparado por Deus; e assim continuei por muito tempo, até mesmo por alguns anos. “E agora eu deplorava que Deus me tivesse feito homem. Eu bendizia a condição dos animais, dos pássaros, dos peixes, etc., pois eles não tinham a natureza pecadora; não eram odiosos à ira de Deus; não arderiam no fogo do inferno depois da morte. Eu me teria, portanto, rejubilado se minha condição fosse igual à de qualquer um deles. Eu então abençoava a condição do cão e do sapo, aceitaria alegremente a condição do cachorro ou do cavalo, pois sabia que eles não tinham alma capaz de perecer sob o peso eterno do Inferno ou do Pecado, como o faria provavelmente a minha. E conquanto visse tudo isso, e o sentisse, e me despedaçasse por isso, o que aumentava a minha tristeza era não poder descobrir, se bem o procurasse com toda a minha alma, que eu desejava a libertação. Meu coração mostrava-se, às vezes, excessivamente duro. Se me dessem mil libras por uma lágrima, eu não teria podido derramar nenhuma; e tampouco sentia o desejo de derramá-la. “Eu era, ao mesmo tempo, carga e terror para mim; nem sabia, como o sei agora, o que é estar cansado da vida e, no entanto, ter medo de morrer. Com quanta alegria eu teria sido qualquer coisa, menos eu! Qualquer coisa, menos um homem! e em qualquer estado, menos no meu.”{81} O pobre e paciente Bunyan, como Tolstoi, tomou a ver a luz, mas precisamos também transferir essa parte da sua história para outra ocasião. Numa conferência subsequente relatarei igualmente o fim da experiência de Henry Alline, dedicado evangelista que trabalhou na Nova Escócia cem anos atrás, e que assim descreve, vividamente, o nível mais alto da melancolia religiosa que constituiu o seu começo. O tipo não era muito diferente do de Bunyan. “Tudo o que eu via parecia ser um fardo para mim; tudo me dizia que a terra fora amaldiçoada por minha causa; todas as árvores, plantas, rochas, morros se diriam vestidos de luto e de gemidos, debaixo do peso da maldição, e tudo ao meu redor dava a impressão de estar conspirando a minha mina. Os meus pecados era como se estivessem escancarados; e eu pensava que todas as pessoas com que topava estavam familiarizadas com eles, e, não raro, me dispunha a admitir muitas coisas, crente de que elas já as conheciam: sim, às vezes eu tinha a impressão de que todo o mundo me apontava como se eu fosse o mais criminoso dos desgraçados que andavam sobre a terra. Eu tinha então um sentido tão grande da vaidade e da vacuidade de todas as coisas aqui embaixo, que sabia que nem o mundo inteiro poderia fazer-me feliz, nem mesmo todo o sistema da criação. Ao acordar de manhã, o primeiro pensamento que me acudia era, Oh, desgraçada alma, que farei, aonde irei? E, quando me deitava, dizia, Eu talvez esteja no inferno antes do amanhecer. Olhava muita vez para os animais com inveja, desejando de todo o coração estar no lugar deles, para não ter uma alma que pudesse perder; e quando via pássaros voando acima da minha cabeça, dizia frequentemente entre mim, Oh, se eu pudesse voar para longe do meu perigo e da minha angústia! Como eu seria feliz se estivesse no lugar deles!”{82} A inveja dos plácidos animais parece ser uma afeição muito difundida nesse tipo de tristeza. A pior espécie de melancolia é a que assume a forma do pânico. Aqui está um exemplo excelente, e devo agradecer ao próprio paciente a permissão para estampá-lo. O original é em francês e, muito embora o sujeito estivesse, evidentemente, em péssimo estado de nervos no momento em que escreveu, o seu caso tem, aliás, o mérito da extrema simplicidade. Traduzo livremente. “Enquanto me achava neste estado de pessimismo filosófico e depressão geral de espírito acerca das minhas perspectivas, entrei uma noite num quarto de vestir, ao crepúsculo, a fim de pegar um artigo que ali estava; eis senão quando, de repente, caiu sobre mim, sem nenhum aviso, como saído das trevas, um medo horrível de minha própria existência. Simultaneamente surgiu em minha mente a imagem de um paciente epiléptico, que eu vira no asilo, um moço de cabelos pretos e tez verdinhenta, inteiramente idiota, que costumava ficar sentado o dia inteiro num dos bancos, ou melhor, numa das prateleiras encostadas no muro, com os joelhos puxados para o queixo, e a grosseira camiseta cinzenta, sua única vestimenta, estendida sobre eles e envolvendo-lhe toda a figura. Ele se quedava ali sentado como uma espécie de gato egípcio esculpido ou múmia peruana, sem nada mover exceto os olhos negros, e parecendo absolutamente nãohumano. Essa imagem e o meu medo entraram numa espécie de combinação um com o outro. Essa forma sou eu, senti, potencialmente. Nada que eu possua pode defender-me contra esse destino, na hora em que ele me golpear, como golpeou o rapaz. Era tamanho o horror que ele me inspirava, e tamanha a percepção da minha própria discrepância dele, meramente momentânea, que se diria que alguma coisa até então sólida dentro em meu peito dera de si inteiramente, e eu me tomara uma massa de medo palpitante. Depois disso, o universo modificou-se de todo para mim. Eu despertava todas as manhãs com um horrível pavor na boca do estômago, e um sentido da incerteza da vida que nunca conhecera antes e nunca senti depois disso.{83} Era como uma revelação; e conquanto os sentimentos imediatos se extinguissem, a experiência me levou a simpatizar com os sentimentos mórbidos dos outros a partir de então. Isso foi-se desvanecendo aos poucos mas, durante meses, eu me senti incapaz de andar sozinho no escuro. “De um modo geral, horrorizava-me ficar só. Lembro-me de bestuntar como outras pessoas podiam viver, como eu mesmo pudera viver, tão incônscio daquele poço de insegurança debaixo da superfície da vida. Minha mãe, sobretudo, pessoa muito jovial, me parecia um perfeito paradoxo em sua inconsciência de perigo, que, como o senhor pode acreditar, eu tomava o máximo cuidado para não perturbar com revelações do meu próprio estado de espírito. Sempre pensei que essa experiência de melancolia tinha um sentido religioso.” Quando se pediu ao correspondente que explicasse melhor o que queria dizer com as últimas palavras, a resposta que escreveu foi a seguinte: “Quero dizer que o medo era tão invasivo e poderoso que, se eu não me tivesse agarrado a textos escriturais como ‘O Deus eterno é meu refúgio’, etc., ‘Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados’, etc., ‘Eu sou a ressurreição e a vida’, etc., creio que teria ficado realmente louco.{84} Não há necessidade de outros exemplos. Os casos que examinamos são suficientes. Um deles nos dá a vaidade das coisas mortais; outro, o sentido do pecado; e o que sobrou descreve o medo do universo; — e num ou noutro desses três caminhos acontece sempre que o otimismo original e a satisfação do homem consigo mesmo se acabam nivelando com a poeira. Em nenhum desses casos havia qualquer insanidade intelectual ou ilusão a respeito de fatos; mas se estivéssemos dispostos a abrir o capítulo da melancolia realmente insana, com suas alucinações e ilusões, a história seria ainda pior - desespero completo e absoluto, todo o universo se coagulando em tomo do paciente num material de horror avassalante, cercando-o sem começo nem fim. Nem o conceito nem a percepção intelectual do mal, senão a sensação pavorosa, enregelante, paralisante, de estar ali em contato com ele, sem que nenhuma outra idéia ou sensação possa resistir à própria presença. Como nos parecem irrelevantemente remotos todos os nossos otimismos requintados e todas as nossas consolações intelectuais e morais diante de uma precisão de ajuda como esta! Eis aqui o verdadeiro âmago do problema religioso: Socorro! socorro! Nenhum profeta pode afirmar trazer uma mensagem final a menos que diga coisas que terão som de realidade aos ouvidos de vítimas como essas. Mas a libertação deve expressar-se de forma tão forte quanto a lamentação, para fazer algum efeito e essa parece ser uma razão por quê as religiões mais grosseiras, revivalísticas, orgiásticas, com operações sobrenaturais, sangue e milagres, talvez nunca venham a ser substituídas. Algumas constituições precisam muitíssimo delas. Chegados a este ponto, vemos como pode ser grande o antagonismo que se ergue naturalmente entre o modo equilibrado de encarar a vida e o modo que considera a experiência do mal algo essencial. A esse último modo, o modo da mente mórbida, como podemos chamar-lhe, o equilíbrio mental puro e simples afigura-se indizivelmente cego e superficial. Ao modo do equilíbrio mental, por outro lado, o modo da alma enferma se apresenta desvirilizada e doentia. Com o seu cavoucar em buracos de ratos em vez de viver à luz do sol; com a sua manufatura de medos e a sua preocupação com todos os tipos deletérios de miséria, há alguma coisa de quase obsceno nesses filhos da ira e almejadores de um segundo nascimento. Se a intolerância religiosa e as forças e fogueiras voltassem a figurar na ordem do dia, são poucas as dúvidas de que, independentemente do que tenha acontecido no passado, os equilibrados se mostrariam no presente o grupo menos indulgente dos dois. Em nossa própria atitude, ainda não abandonada, de espectadores imparciais, que podemos dizer a propósito dessa briga? A mim me parece que nos veremos obrigados a dizer que a morbidez mental se estende sobre a escala mais ampla da experiência, e que o seu estudo é o que se sobrepõe, ainda que parcialmente. O método de desviar nossa atenção do mal e viver simplesmente em plena luz do bem é esplêndido enquanto funciona. Funcionará com muitas pessoas; funcionará de modo muito mais geral do que a maioria dentre nós está preparada para supor; e, dentro da esfera da sua operação bem-sucedida não há nada para se dizer contra ele como solução religiosa. Mas ele se desarranja tanto, que chega a melancolia; e ainda que estejamos inteiramente livres da melancolia, não há dúvida de que o equilíbrio mental é inadequado como doutrina filosófica, porque os fatos maus, que ele se recusa positivamente a tomar em consideração, constituem uma porção genuína da realidade; e eles talvez sejam, afinal de contas, a melhor chave para o significado da vida e, possivelmente, os únicos abridores dos nossos olhos para os níveis mais profundos da verdade. O processo normal da vida contém momentos tão maus quanto qualquer um daqueles de que está cheia a melancolia dos insanos, momentos em que o mal radical tem a sua vez de jogar. As visões de horror do louco são todas tiradas do material dos fatos diários. A nossa civilização funda-se na desordem, e cada existência individual se exala num espasmo solitário de agonia impotente. Se você protesta, meu amigo, espere até chegar lá! Acreditar nos répteis carnívoros dos tempos geológicos é difícil para a nossa imaginação - eles se parecem tanto com meros espécimes de museu! Entretanto, em nenhum daqueles crânios de museu haverá um dente sequer que não se cravasse antanho, diariamente, por longos anos, no corpo fremente de desespero de alguma presa viva. Formas de horror igualmente medonhas para as suas vítimas, ainda que em escala espacial menor, enchem hoje o mundo que nos rodeia. Aqui, em nossos próprios lares e em nossos jardins, o gato infernal brinca com o camundongo arquejante, ou segura o pássaro, trêmulo e quente, entre os dentes. Crocodilos, cascavéis e sucuris são, neste momento, vasos de vida tão reais quanto nós; sua existência abominável enche cada minuto de cada dia em que ela se arrasta; e quando quer que eles, ou quaisquer outros animais selvagens, se apoderam da presa viva, o horror mortal que um melancólico agitado experimenta, literalmente, é a reação apropriada à situação.{85} Talvez não seja possível, com efeito, nenhuma conciliação religiosa com a totalidade absoluta das coisas. Alguns males, sem sombra de dúvida, servem a formas mais elevadas do bem; mas pode ser que haja formas de mal tão extremadas que não entram em nenhum sistema do bem, seja ele qual for, e que, no que lhes diz respeito, a submissão silenciosa ou a negligência em notá-las é o único recurso prático. Teremos, porém, de voltar à matéria outro dia. Por ora, no entanto, e como simples questão de programa e método, visto que os fatos maus são partes tão genuínas da natureza quanto os bons, a presunção filosófica há de ser a de que eles têm algum significado racional, e que o equilíbrio mental sistemático, não concedendo à tristeza, ao sofrimento e à morte nenhuma atenção positiva e ativa, é formalmente menos completo do que os sistemas que tentam, pelo menos, incluir tais elementos em sua esfera de ação. As religiões mais completas do mundo, portanto, parecem ser aquelas em que os elementos pessimistas estão mais bem desenvolvidos. Delas, o Budismo, naturalmente, e o Cristianismo representam, nesse sentido, as que melhor conhecemos. São, essencialmente, religiões de libertação: o homem precisa morrer para uma vida irreal a fim de nascer para a vida real. Na conferência seguinte, procurarei discutir algumas condições psicológicas de segundo nascimento. Felizmente, daqui por diante, lidaremos com assuntos mais alegres do que os que acabamos de tratar. VIII Conferência O EU DIVIDIDO E O PROCESSO DA SUA UNIFICAÇÃO A última conferência foi dolorosa, pois lidou com o mal como elemento que invade todo o mundo em que vivemos. Chegados à sua conclusão, vimonos diante do contraste entre as duas maneiras de encarar a vida, características, respectivamente, dos que chamamos mentalmente equilibrados, que precisam nascer apenas uma vez, e das almas enfermas, que precisam nascer duas vezes para serem felizes. O resultado são as duas concepções diferentes do universo da nossa experiência. Na religião dos nascidos uma vez o mundo é uma espécie de negócio retilíneo, ou de um único andar, cujas contas se fazem sob uma só denominação, cujas partes têm exatamente os valores que parecem ter, e cujo valor total será fornecido por uma simples soma algébrica dos “mais” e dos “menos”. A felicidade e a paz religiosa consistem em viver do lado “mais” da conta. Na religião dos nascidos duas vezes, por outro lado, o mundo é um mistério de dois andares. A paz não pode ser alcançada pela simples adição dos “mais” e pela eliminação dos “menos” da vida. O bem natural não é apenas quantitativamente insuficiente e transitório; em seu próprio ser jaz, emboscada, uma falsidade. Cancelado como tudo o mais pela morte, quando não por inimigos mais precoces, não proporciona o equilíbrio final e nunca pode ser o objeto pretendido do nosso culto definitivo. Antes, nos mantém afastados do verdadeiro bem; e a renúncia e o desespero são o primeiro passo na direção da verdade. Há duas vidas, a natural e a espiritual, e precisamos perder uma delas para participar da outra. Em suas formas extremas, de puro naturalismo e puro salvacionismo, os dois tipos contrastam violentamente; se bem aqui, como na maioria das classificações atuais, os extremos radicais sejam abstrações um tanto ou quanto ideais, e os seres humanos concretos, com os quais topamos mais amiúde, sejam variedades e misturas intermediárias. Praticamente, no entanto, todos reconhecemos a diferença: compreendemos, por exemplo, o desdém do metodista convertido pelo mero moralista equilibrado, e entendemos igualmente a aversão deste último ao que se lhe afigura o subjetivismo enfermiço do metodista, que morre para viver, como ele mesmo diz, e faz do paradoxo e da inversão das aparências naturais a essência da verdade de Deus.{86} A base psicológica do caráter nascido duas vezes parece ser uma certa discordância ou heterogeneidade do temperamento congênito do sujeito, uma constituição moral e intelectual incompletamente unificada. “Homo duplex, homo duplex!” escreve Alphonse Daudet. “A primeira vez que percebi que eu era dois foi por ocasião da morte de meu irmão Henri, quando meu pai gritou tão dramaticamente, ‘Ele está morto, ele está morto!’ E ao passo que o meu primeiro eu chorava, o segundo pensava: ‘Como foi natural e espontâneo esse grito, como ele ficaria bem no teatro!” Eu tinha, então, catorze anos. “Essa horrível dualidade forneceu-me, reiteradas vezes, matéria para reflexão. Oh, esse terrível segundo eu, sempre sentado enquanto o outro está de pé, agindo, vivendo, sofrendo, atarefando-se. Esse segundo eu que nunca fui capaz de embebedar, de fazer chorar, ou de adormecer. E como ele enxerga o fundo das coisas, como zomba!”{87} Obras recentes sobre a psicologia do caráter têm tido muita coisa para dizer sobre esse ponto.{88} Algumas pessoas nascem com uma constituição interior harmoniosa e bem equilibrada desde o princípio. Os impulsos são compatíveis uns com os outros, a vontade segue sem dificuldade a orientação do intelecto, as paixões não são excessivas, e suas vidas são pouco assediadas pelos pesares. Outros são constituídos de maneira oposta; e assim o são em graus que podem variar desde alguma coisa tão leve, que resulta numa inconsequência apenas estranha ou caprichosa, até uma discordância cujas consequências podem ser inconvenientes ao extremo. Dos tipos mais inocentes de heterogeneidade encontro bom exemplo na autobiografia da Sra. Annie Besant, “Sempre fui a mais estranha mistura de fraqueza e força, e tenho pago um preço alto pela fraqueza. Criança, eu costumava sofrer as torturas da vergonha, e, se o atilho do meu sapato estivesse solto sentia, acanhadíssima, todos os olhares fitos no desastrado cordão; moça, fugia de estranhos e me julgava não desejada e desamada, de modo que me enchia de gratidão por quem quer que se mostrasse bondoso comigo; jovem dona de casa, eu tinha medo dos criados, e preferia deixar passar serviços descuidados ao sofrimento de recriminar o desleixado; depois de haver pronunciado uma palestra ou participado de um debate sem que me faltasse o ânimo no tablado, eu preferia voltar para o hotel sem ter obtido o que desejava a tocar a campainha e mandar o garçom trazer-mo. Combativa no palanque em defesa de qualquer causa que me interesse, fujo de discussões ou desaprovações em casa, e sou essencialmente covarde em particular, embora me mostre boa lutadora em público. Quantas vezes passei infelizes quartos de hora cobrando coragem para admoestar algum subordinado que o dever me obrigava a escarmentar, e quantas vezes escarneci de mim mesma como a falsa heroína de palanque, quando fugia de censurar algum rapaz Ou rapariga por haverem feito mal o seu serviço. Um olhar desamorável ou uma palavra desamável me obrigam a encolher-me dentro em mim, como a lesma se recolhe ao caracol, ao passo que, no palanque, a oposição sempre me faz defender com ardor minhas idéias.”{89} Essa dose de incoerência só será considerada uma amável fraqueza; mas um grau mais forte de heterogeneidade pode estragar a vida do sujeito. Há pessoas cuja existência é pouco mais que uma série de ziguezagues, quando ora uma tendência, ora outra, levar a melhor: O espírito entra em choque com a carne, os desejos são incompatíveis entre si, impulsos caprichosos lhes interrompem os planos mais deliberados, e suas vidas são um longo drama de arrependimento e esforço para reparar inconveniências e erros. A personalidade heterogênea tem sido explicada como resultado da hereditariedade - supõem-se preservados os traços de caráter de antepassados incompatíveis e antagônicos, ao lado uns dos outros.{90} Essa explicação pode passar pelo que vale - necessita, sem dúvida, de corroboração. Mas seja qual for a causa da personalidade heterogênea, encontramos os seus exemplos extremos no temperamento psicopático, ao qual aludi em minha primeira conferência. Todos os que escrevem a respeito desse temperamento destacam em suas descrições a heterogeneidade interior. Frequentemente, na verdade, apenas esse traço nos leva a imputar a um homem tal temperamento. Um “dégénéré supérieur” é simplesmente um homem de sensibilidade em muitas direções, que encontra maior dificuldade do que é comum em manter sua casa espiritual em ordem e em traçar direito o seu sulco, porque seus sentimentos e impulsos são demasiado intensos e discrepantes em relação uns aos outros. Nas idéias obsedantes e insistentes, nos impulsos irracionais, nos escrúpulos, terrores e inibições mórbidas, que sitiam o temperamento psicopático quando é muito pronunciado, temos magníficos exemplos da personalidade heterogênea, Bunyan tinha uma obsessão pelas palavras “Vende Cristo por isto, vende-o por aquilo, vende-o, vende-o!’, que lhe percorriam a mente cem vezes por minuto, até que, um belo dia, sem fôlego de tanto responder, “Não venderei, não venderei”; disse impulsivamente, “Deixa-o ir, se quiser”, e essa derrota o deixou desesperado por mais de um ano. As vidas dos santos estão cheias dessas obsessões blasfemas, atribuídas invariavelmente à intervenção direta de Satanás. O fenômeno está ligado à vida do chamado eu subconsciente, do qual teremos de falar, daqui a pouco, mais diretamente. Ora, em todos nós, seja qual for a nossa constituição, num grau tanto maior quanto mais intensos, sensíveis e sujeitos a tentações diversificadas formos, e no maior grau possível se formos decididamente psicopatas, a evolução normal do caráter consiste principalmente no endireitamento e na unificação do eu interior. Os sentimentos mais altos e os mais baixos, os impulsos úteis e os desviados, começam criando um caos relativo dentro de nós - precisam acabar formando um sistema estável de funções em correta subordinação. A infelicidade tende a caracterizar o período da ordenação e da luta. Se o indivíduo tiver a consciência tema e a religião viva, a infelicidade tomará a forma do remorso e da compunção moral, de se sentir a pessoa interiormente vil e errada, e de manter relações falsas com o autor do seu ser e com o indicador do seu destino espiritual. Essa é a melancolia religiosa e a “convicção do pecado” que representaram tão grande papel na história do Cristianismo protestante. O interior do homem é um campo de batalha para dois eus, que ele sente mortalmente hostis um ao outro, um real e outro ideal. Como Vitor Hugo faz dizer ao seu Maomé: Je suis le champ vil des sublimes combats: Tantôt I homme d en haut, et tantôt l homme den bas; Et le mal dans ma bouche avec le bien alterne, Comme dans le désert le sable e la citerne. Vida equívoca, aspirações impotentes: “O que eu queria fazer, não faço; mas faço o que odeio”, como diz São Paulo; nojo de si, desespero de si; fardo ininteligível e intolerável, de que somos misteriosamente herdeiros. Deixem-me fazer citações de alguns casos típicos de personalidade discordante, com melancolia que assume a forma da condenação de si mesmo e do sentido do pecado. O caso de Santo Agostinho é um exemplo clássico. Os senhores hão de estar lembrados da sua educação semipagã, semicristã, em Cartago, sua migração para Roma e Milão, sua adoção do Maniqueísmo e o subsequente pessimismo, e sua busca incansável da verdade e da pureza da vida; e, finalmente, o modo com que, perturbado pela luta entre as duas almas em seu peito, e envergonhado da fraqueza da própria vontade, quando tantos outros que ele conhecia e de quem ouvira falar haviam lançado de si as peias da sensualidade e se tinham consagrado à castidade e à vida superior, ele ouviu dizer uma voz no jardim, “Sume, lege” (pega e lê), e, abrindo a Bíblia ao acaso, deu com o texto, “não em fornicação nem em libertinagem”, etc., que se lhe afigurou diretamente endereçado a ele, e fez a tormenta interior amainar para sempre.{91} O gênio psicológico de Agostinho deu- nos um relato insuperável do problema do eu dividido. “A nova vontade que comecei a ter ainda não era suficientemente forte para vencer a outra vontade, fortalecida por longa desídia. Destarte, duas vontades, uma velha, uma nova, uma carnal, outra espiritual, lutavam entre si e conturbavam-me a alma. Compreendi, por experiência própria, o que lera: a carne tem desejos contra o espírito, e o espírito contra a carne. Era eu mesmo, de feito, em ambas as vontades, porém mais eu mesmo na que aprovava em mim do que na que desaprovava em mim. No entanto, fora por meu intermédio que o hábito lograra o domínio sobre mim, porque eu chegara voluntariamente aonde não queria. Ainda preso à terra, recusei-me, ó Deus, a lutar do teu lado, tão temeroso de ser libertado de todos os laços, quanto devera temer ser entravado por eles. “Assim os pensamentos com os quais eu meditava sobre ti eram como os esforços de alguém que quisesse despertar mas que, vencido pelo sono, logo adormece outra vez. Muitas vezes o homem, quando a pesada sonolência lhe avassala os membros, adia o momento de sacudi-la e, conquanto não a aprove, dá-lhe forças; mesmo assim eu estava certo de que fora melhor entregar-me ao teu amor do que ceder aos meus apetites sensuais; entretanto, embora o primeiro curso me convencesse, o último me agradava e mantinha prisioneiro. Nada havia em mim para responder ao teu chamado, ‘Acorda, dorminhoco’, senão palavras arrastadas, sonolentas, ‘Já vou; sim, já vou; espera um pouquinho’. Mas o ‘já vou’ não tinha ‘presente’, e o ‘pouquinho’ prolongou-se. … Pois eu receava que me ouvisses demasiado cedo e me curasses desde logo da minha doença da concupiscência, que eu mais desejava saciar do que ver extinta. Com que açoites de palavras não vergastei minha alma! Apesar disso, ela se encolheu; recusou-se, se bem não tivesse desculpas para oferecer. … Eu disse entre mim: ‘Vamos, que isso se faça agora’, e, ao dizê-lo, estive a ponto de resolver. Quase o fiz e, todavia, não o fiz. Envidei outro esforço, e quase tive êxito, mas não o alcancei, e tampouco o agarrei, hesitando entre morrer para a morte e viver para a vida; e o mal, a que estava tão avezado, segurou-me mais do que a vida melhor, que eu não experimentara.”{92} Não poderia haver descrição mais perfeita da vontade dividida, quando os desejos mais elevados carecem da agudeza derradeira, daquele toque de explosiva intensidade, da qualidade dinamogênica (para usar o jargão dos psicólogos), que lhes permite rebentar a própria casca, o irromper eficazmente na vida e sufocar para sempre as tendências inferiores. Numa próxima conferência teremos muita coisa para dizer a respeito dessa excitabilidade mais elevada. Encontro outra boa descrição da vontade dividida na autobiografia de Henry Alline, o evangelista da Nova Escócia, de cuja melancolia li uma pequena descrição em minha última conferência. Os pecados do pobre moço, como os senhores verão, eram do gênero mais inofensivo e, contudo, interferiam no que se revelou ser a sua vocação mais verdadeira, razão pela qual lhe acarretaram grande aflição. “Eu era agora muito moral em minha vida, mas não encontrava repouso de consciência. Comecei a ser estimado na companhia de jovens, que nada sabiam das minhas idéias, e cuja estima começou a revelar-se uma armadilha para minha alma, pois logo principiei a gostar dos prazeres mundanos, se bem eu ainda alimentasse a esperança de que, se não me embebedasse, não blasfemasse, não dissesse palavrões, não haveria pecado em folgar e cultivar a alegria carnal, e cuidava que Deus concedesse aos jovens alguma recreação (a que chamava simples ou civil). Eu ainda conservava um conjunto de deveres, e não me permitiria nenhum vício declarado, e assim passava muito bem em época de saúde e prosperidade; mas quando estava desesperado ou ameaçado por doença, morte ou tempestades violentas, minha religião já não me bastava, e eu achava que me faltava alguma coisa, e começava a arrepender-me de tanta frivolidade; mas quando a aflição passava, o demônio e o meu próprio e perverso coração, com as solicitações dos companheiros e o prazer que me dava a companhia dos jovens, eram atrativos tão fortes que eu voltava a sucumbir, e assim me tomei muito selvagem e rude, embora, ao mesmo tempo, mantivesse meus hábitos de oração e leitura secretas; mas, não querendo que eu me destruísse, Deus ainda me seguia com os seus chamados, e me pressionava com tanta força a consciência, que minhas diversões não conseguiam satisfazer-me e, no meio do meu júbilo, salteava-me, às vezes, um tal sentido do meu estado perdido e desfeito, que eu desejava ficar só e, terminada a função, quando voltava para casa, fazia inúmeras promessas de nunca mais participar dessas pândegas, e pedia perdão por horas a fio; mas quando, de novo, sobrevinha a tentação, eu tomava a ceder: assim que ouvia música ou tomava um copo de vinho, perdia o juízo e me entregava a qualquer espécie de diversão ou passatempo, que não me parecesse debochado nem declaradamente vicioso; quando, porém, regressava dos meus prazeres mundanos, sentia-me tão culpado como sempre e, algumas vezes, só conseguia fechar os olhos horas depois de ter ido para a cama. Eu era uma das criaturas mais infelizes da terra. “Por vezes, deixava os companheiros (não raro pedindo ao rabequista que parasse de tocar, porque eu estava cansado), saía e punha-me a andar, chorando e rezando, como se o meu coração fosse partir-se, e suplicando a Deus que não me desamparasse nem me deixasse com o coração duro. Oh, que horas e noites infelizes passei assim! Quando me encontrava, às vezes, com alegres companheiros, e meu coração estava prestes a soçobrar, eu diligenciava dar ao semblante o aspecto mais alegre possível, para que eles não desconfiassem de nada e, não raro, me punha a conversar com os moços ou com as moças de propósito, ou propunha cantarmos uma canção, para que a angústia da minha alma não fosse descoberta, nem ninguém suspeitasse dela, quando, na verdade, eu quisera antes estar num deserto, no exílio, do que com eles ou com qualquer um dos seus prazeres e divertimentos. Assim, por muitos meses, estando em companhia de outros, eu procedia como hipócrita e afetava alegria; ao mesmo tempo, porém, fazia o possível para evitar-lhes a companhia, oh, desgraçado e infeliz mortal que eu era! Fosse o que fosse que eu fizesse e onde quer que estivesse, eu me debatia sempre numa tormenta, embora continuasse a ser o principal inventor e cabeça das pândegas por meses a fio, conquanto fosse um trabalho e um suplício participar deles; mas o diabo e o meu perverso coração conduziamme como a um escravo, dizendo-me que fizesse isso e aquilo, que suportasse isto e aquilo, que virasse para cá e para lá, que mantivesse o meu crédito e retivesse a estima dos companheiros: e tudo isso enquanto continuava, tão rigorosamente quanto possível, a cumprir meus deveres e não deixava pedra sobre pedra para pacificar minha consciência, vigiando até os pensamentos e orando continuamente onde quer que me encontrasse: pois não pensava que houvesse algum pecado em minha conduta, quando me achava entre companhias mundanas, já que não encontrava nenhuma satisfação nelas, e apenas as seguia, supunha eu, por razões suficientes. “Mas mesmo assim, apesar de tudo o que eu fizesse ou pudesse fazer, minha consciência não cessava de rugir, noite e dia.” Santo Agostinho e Alline imergiram ambos nas águas tranquilas da unidade e da paz interiores, e agora quero pedir aos senhores que examinem com mais atenção algumas peculiaridades do processo de unificação, quando ocorre. O processo pode vir aos poucos ou ocorrer de repente; pode vir através de uma alteração dos sentimentos ou dos poderes de ação; ou pode chegar mediante novas visões intelectuais ou experiências que mais tarde designaremos como “místicas”. Mas venha como vier, traz uma espécie característica de alívio; e nunca um alívio tão extremo como quando impresso no molde religioso. Felicidade! felicidade! a religião é apenas um dos modos com que os homens alcançam esse dom. Fácil, permanente e bemsucedida- mente, ela amiúde transforma a angústia mais desgraçada na mais profunda e duradoura felicidade. Mas encontrar a religião é apenas um dos muitos modos de atingir a unidade; e o processo de remediar a deficiência interna e reduzir a discórdia interior é um processo psicológico geral, que pode verificar-se com qualquer espécie de material mental, e não precisa assumir necessariamente a forma religiosa. Ao julgar os tipos religiosos de regeneração que estamos prestes a estudar, é importante reconhecer que eles são apenas uma espécie de um gênero que contém outros tipos também. Por exemplo, o novo nascimento pode ser produzido pela passagem da religião para a incredulidade; ou da escrupulosidade moral para a liberdade e para a licenciosidade; ou pode ser produzido pela irrupção na vida do indivíduo de algum novo estímulo ou paixão, como o amor, a ambição, a cupidez, a vingança ou a devoção patriótica. Em todos esses casos, temos precisamente a mesma forma psicológica de evento - a firmeza, a estabilidade e o equilíbrio que se seguem a um período de tempestade, tensão e incoerência. Nos casos nãoreligiosos, o homem novo pode também nascer gradativa ou subitamente. O filósofo francês Jouffroy deixou um lembrete eloquente da sua própria “contra-conversão”, termo tão bem cunhado pelo Sr. Starbuck para indicar a transição da ortodoxia para a infidelidade. As dúvidas de Jouffroy o vinham mortificando havia muito tempo; mas ele data sua crise final de certa noite, quando a descrença se tomou fixa e estável, e o resultado imediato foi a tristeza diante das ilusões que ele perdera. “Nunca esquecerei aquela noite de dezembro”, escreve Joffroy, “em que se rasgou o véu que escondia de mim minha própria incredulidade. Ouço de novo meus passos no estreito quarto nu onde, muito depois de haver soado a hora de dormir, eu tinha o hábito de andar de um lado para outro. Vejo de novo a lua, seminivelada pelas nuvens, que, de vez em quando, iluminava as frígidas vidraças da janela. As horas da noite fluíam e eu não lhes notava a passagem. Seguia, ansioso, meus pensamentos, à proporção que, de camada em camada, eles desciam para os alicerces da minha consciência e, dispersando, uma a uma, todas as ilusões que, até então, haviam ocultado suas voltas de minha vista, as tomavam a cada momento mais claramente visíveis. “Debalde me agarrei às minhas últimas crenças como o marinheiro náufrago se agarra aos fragmentos da sua embarcação; debalde, assustado pelo vazio desconhecido em que estava a pique de flutuar, me virei com elas para a minha infância, minha família, minha terra, tudo o que me era caro e sagrado: a corrente inflexível do meu pensamento, forte demais, obrigou-me a deixar tudo para trás - pais, família, lembrança, crenças. A investigação prosseguiu, tanto mais obstinada e severa quanto mais se aproximava do fim, e não se interrompeu enquanto não alcançou o seu término. Conheci então que, nas profundezas da minha mente, nada ficara de pé. “Esse momento foi pavoroso; e quando, ao romper da manhã, me atirei, exausto, sobre a cama, tive a impressão de sentir minha vida anterior, tão risonha e tão cheia, partir como um fogo, ao passo que, diante de mim, outra vida se abria, sombria e despovoada, onde, no futuro, eu teria de viver sozinho, sozinho com o meu pensamento fatal que me exilara para ali, e que eu me sentia tentado a amaldiçoar. Os dias que se seguiram a esse descobrimento foram os mais tristes de minha vida.”{93} No Ensaio de John Foster sobre a Decisão de Caráter, vem relatado um caso de súbita conversão à avareza, tão ilustrativo que merece ser mencionado: Parece que um moço “dilapidou, no prazo de dois ou três anos, vasto patrimônio, em pândegas crapulosas com certo número de companheiros indignos, que se diziam seus amigos, e que, quando se lhe esgotaram os últimos recursos, o trataram, é claro, com descaso e desprezo. Reduzido à miséria absoluta, ele, um dia, saiu de casa com a tenção feita de pôr fim à própria vida; mas, andando de um lado para outro quase inconscientemente, chegou ao alto de uma eminência, a cavaleiro do que antes haviam sido suas propriedades. Ali se sentou e deixou-se ficar, imerso em pensamentos, por algumas horas, ao cabo das quais levantou-se do chão com uma emoção veemente e exultante. Tomara a resolução de fazer que todas as antigas propriedades lhe voltassem às mãos; elaborara também o plano, que principiou a executar instantaneamente. Saiu à pressa dali, determinado a agarrar a primeira oportunidade, por humilde que fosse, de ganhar algum dinheiro, ainda que desprezível e insignificante, e absolutamente resolvido a não gastar, se possível, um centavo do que conseguisse obter. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi um monte de carvões jogados no chão pelos carroceiros diante de uma casa. Ofereceu- se para colocá-los, com uma pá ou um carrinho, no lugar que lhes fora reservado, e foi contratado. Recebeu algumas moedas pelo trabalho; e, logo, prosseguindo na parte econômica do plano, solicitou que lhe dessem de graça um pouco de comer e de beber, o que lhe foi concedido. Em seguida, pôs-se a procurar o que quer que o acaso lhe deparasse; e continuou, com infatigável indústria, fazendo uma série de serviços humildes em diferentes lugares, de maior ou menor duração, mas sempre com muito escrúpulo para evitar, quanto possível, o gasto de um centavo que fosse. Agarrava prontamente todas as oportunidades que se lhe ensejavam de avançar em seu propósito, sem olhar para a mesquinhez da ocupação ou da aparência. Por esse método ganhou, após um espaço considerável de tempo, dinheiro suficiente para comprar, e depois vender, algumas cabeças de gado, em cujo valor se dera ao trabalho de enfronhar-se. Rápida mais cautamente, converteu os primeiros ganhos em novos lucros; conservou, sem o menor desvio, a extrema parcimônia; e, assim, aos poucos, foi dilatando o vulto das transações e amealhou uma riqueza incipiente. Não fiquei sabendo, ou talvez me tenha esquecido, do curso continuado de sua vida; só sei que, no fim de contas, ele mais do que recuperou as propriedades perdidas e morreu, como avaro inveterado, dono de £60.000.”{94} Permitam-me voltar agora ao tipo de caso, ou seja, ao caso religioso, que nos diz respeito mais de perto. Aqui está uma espécie simplíssima, a narrativa da conversão à religião sistemática do equilíbrio mental de um homem que já devia pertencer naturalmente ao gênero equilibrado. Mostra que, quando o fruto está maduro, basta um toque para fazê-lo cair. Em seu livrinho intitulado Menticulture, o Sr. Horace Fletcher conta que um amigo com quem estivera conversando sobre o autodomínio alcançado pelos japoneses, através da prática da disciplina budista, disse: “ ‘Você precisa, primeiro, livrar-se da raiva e das preocupações.’ ‘Mas’, tomei eu, ‘isso é possível?’ ‘Sim’, replicou ele; ‘e se é possível para os japoneses, deve ser possível para nós também.’ “Ao voltar para casa, não pude pensar em outra coisa que não fossem as palavras ‘livrar-se, livrar-se’; e a idéia deve ter continuado a possuir-me durante as minhas horas de sono, pois a primeira consciência na manhã seguinte trouxe de volta o mesmo pensamento, com a revelação de uma descoberta, que se encaixou no seguinte raciocínio: ‘Se é possível à gente livrar-se da raiva e das preocupações, por que será necessário, em primeiro lugar, experimentá-la?’ Senti a força do argumento e aceitei, de pronto, o raciocínio. O nenê descobrira que podia andar. Doravante, desdenharia engatinhar. “Desde o instante em que compreendi que esses focos cancerosos das preocupações e da raiva eram removíveis, eles me deixaram. Com o descobrimento da sua fraqueza, foram exorcizados. A partir desse momento, a vida, para mim, assumiu um aspecto inteiramente diverso. “Conquanto, desde então, a possibilidade e a desejabilidade de libertação das paixões deprimentes tenham sido uma realidade para mim, levei alguns meses até me sentir absolutamente seguro em minha nova posição; mas como as ocasiões habituais de preocupações e de raiva se tenham apresentado repetidas vezes e eu tenha sido incapaz de senti-las no mais leve grau, já não as temo nem me guardo delas, e estou assombrado com o aumento da minha energia e vigor mental; com a minha força para enfrentar situações de todos os gêneros, e com a minha disposição para amar e apreciar tudo. “Tendo tido ocasião de viajar mais do que dezesseis mil quilômetros de trem desde aquela manhã, voltei a encontrar-me com o guarda, do Pullman, o condutor, o garçom do hotel, o vendedor ambulante, o vendedor de livros, o chofer, e outros que sempre tinham sido para mim fonte de aborrecimentos e irritação, embora eu não tivesse consciência de uma única incivilidade sequer da parte deles. De repente, o mundo inteiro passou a tratar-me com bondade. Torneime, por assim dizer, sensível apenas aos raios do bem. “Eu poderia referir muitas experiências que provam uma condição mental nova em folha, mas uma bastará. Sem o mais leve sentimento de contrariedade ou impaciência, vi um trem que eu planejara tomar com boa dose de interesse e prazer antecipados, sair da estação sem mim, porque minha bagagem não chegara. O porteiro do hotel entrou correndo e esbaforido na estação no exato momento em que o trem se perdia de vista. Quando me viu, deu-me a impressão de que estava com medo de levar uma descompostura, e começou a explicar que se vira bloqueado na rua apinhada de gente e incapaz de sair de lá. Quando ele terminou,. eu disse-lhe: ‘Isso não tem a menor importância, a culpa não foi sua, tentaremos outra vez amanhã. Aqui está a sua gorjeta e só lamento que você tenha tido todo esse trabalho para ganhá-la.’ O olhar de surpresa que lhe tomou conta do rosto estava tão cheio de prazer que me senti repago, na mesma hora, do atraso em minha partida. No dia seguinte ele não quis aceitar um centavo sequer pelo serviço, e ele e eu somos agora amigos para sempre. “Durante as primeiras semanas de minha experiência pus-me em guarda apenas contras as preocupações e a raiva; nesse meio tempo porém, tendo notado a ausência das outras paixões deprimentes e desmedrantes, comecei a traçar uma relação entre elas, e cheguei à conclusão de que são todas formações mórbidas das duas raízes que especifiquei. Venho sentindo a libertação há tanto tempo que tenho certeza, agora, da minha relação com ela; e eu não poderia alimentar nenhuma dessas influências nocivas e deprimentes, que acalentava outrora como herança da humanidade, tanto quanto um salta-pocinhas não se espojaria voluntariamente numa sarjeta imunda. “Não há dúvida em minha mente de que o Cristianismo puro e o Budismo puro e as Ciências Mentais e todas as Religiões ensinam, fundamentalmente, o que tem sido um descobrimento para mim; mas nenhum deles o apresentou à luz de um simples e fácil processo de eliminação. Tempo houve em que entrei a imaginar se a eliminação não capitularia diante da indiferença e da preguiça. Em minha experiência, o resultado é o contrário. Sinto um desejo tão aumentado de fazer alguma coisa útil que é como se eu fosse menino outra vez e me tivesse voltado a energia para brincar. Eu poderia lutar tão prestesmente. como antes (e melhor do que antes), se houvesse necessidade de fazê-lo. Isso não me faz covarde. Não pode fazê-lo, eis que O medo é uma das coisas eliminadas. Noto a ausência de timidez em presença de qualquer público. Quando menino, eu me achava debaixo de uma árvore, que foi golpeada por um raio, e recebi um choque de cujos efeitos só me livrei após dissolver a sociedade com as preocupações. Depois disso, relâmpagos e trovões têm sido arrostados em condições que, antigamente, me teriam causado grande depressão e desconforto, sem experimentar um traço sequer de qualquer um deles. A surpresa também foi muito modificada, e fiquei menos sujeito a assustar-me com cenas ou ruídos inesperados. “No que me diz respeito individualmente, não estou preocupado agora com os possíveis resultados dessa condição emancipada. Não tenho dúvida de que a saúde perfeita almejada pela Ciência Cristã talvez seja uma das possibilidades, pois noto acentuada melhoria no modo com que meu estômago cumpre sua obrigação, assimilando o alimento que lhe forneço, e estou certo de que ele trabalha melhor ao som de uma música do que sob o atrito de uma carantonha. Tampouco estou gastando o meu precioso tempo formulando a idéia de uma existência futura ou de um futuro Céu. O Céu que tenho dentro de mim é tão atraente quanto qualquer outro que me haja sido prometido ou que eu possa imaginar; e estou disposto a deixar o novo sentimento crescer como quiser, contanto que a raiva e seus filhotes não se metam a desviá-lo do bom caminho.”{95} A medicina mais antiga costumava falar em dois modos, lysis e crisis, um gradativo, outro abrupto, com que alguém podia recuperar-se de uma enfermidade do corpo. No reino espiritual também há dois modos, um gradativo, outro súbito, com que pode ocorrer a unificação interior. Tolstoi e Bunyan novamente nos servem de exemplos, exemplos, por sinal, do modo gradativo, se bem seja mister confessar de início que é difícil seguir as voltas dos corações dos outros, e sentimos que as suas palavras não lhes revelam todo o segredo. Seja como for, prosseguindo em sua intérmina indagação, Tolstoi parecia chegar a uma visão intuitiva depois da outra. Primeiro percebeu que a sua convicção de que a vida não tinha sentido só levava em consideração a vida finita. Ele estava procurando o valor de um termo finito no de outro, e o resultado total só poderia ser uma daquelas equações indeterminadas em matemática que terminam com 0 = 0. Entretanto, isto é o mais longe a que pode chegar sozinho o intelecto raciocinante, a menos que o sentimento ou a fé irracionais tragam o infinito para o campo. Acreditem no infinito como o faz o povo comum e a vida se toma possível outra vez. “Visto que o gênero humano existe, onde quer que a vida tenha existido, sempre existiu também a fé que deu origem à possibilidade de viver. A fé é o sentido da vida, o sentido em virtude do qual o homem não se destrói, mas continua a viver. É a força pela qual vivemos. Se o Homem não acreditasse que precisa viver por alguma coisa, não viveria de maneira alguma. A idéia de um Deus infinito, da divindade da alma, da união das ações dos homens com Deus - são idéias elaboradas nas infinitas profundezas secretas do pensamento humano. São idéias sem as quais não haveria vida, sem as quais eu mesmo”, disse Tolstoi, “não existiria. Comecei a ver que eu não tinha o direito de me fiar do meu raciocínio individual e fazer pouco das respostas dadas pela fé, pois elas são as únicas respostas à pergunta.” Entretanto, de que modo acreditar como o povo comum acredita, se ele está afundado na mais grosseira superstição? É impossível - mas, no entanto, é a vida deles! a vida deles! Normal. Feliz! É uma resposta à pergunta! Pouco a pouco, Tolstoi chega à convicção firmada - ele diz que levou dois anos para chegar lá — de que o seu problema não dizia respeito à vida em geral, nem à vida comum dos homens comuns, senão à vida das classes superiores, intelectuais, artísticas, a vida que ele pessoalmente sempre levara, a vida cerebral, a vida do convencionalismo, da artificialidade e da ambição pessoal. Ele andara vivendo no erro e precisava mudar. Trabalhar para satisfazer às necessidades animais, abjurar mentiras e vaidades, acudir a necessidades comuns, ser simples, acreditar em Deus, nisso reside a felicidade. “Lembro-me”, diz ele, “de um dia, no princípio da primavera, em que eu estava sozinho na floresta, prestando atenção aos seus ruídos misteriosos. Fiquei ouvindo, e meu pensamento voltou àquilo de que eu sempre me ocupara nos últimos três anos - a busca de Deus. Mas, disse eu comigo, como foi que cheguei à idéia dele? “E novamente surgiram em mim, com esse pensamento, alegres aspirações à vida. Tudo despertou em meu íntimo e recebeu um significado …. Por que olhar para mais longe? perguntou-me uma voz interior. Ele está aqui: ele, sem o qual não se pode viver. O mesmo é reconhecer à Deus e viver. Deus é a vida. Pois, então, muito bem! vive, busca a Deus, e não haverá vida sem ele …. “Depois disso, as coisas se aclararam melhor do que nunca dentro e ao redor de mim, e a luz nunca mais se apagou de todo. Eu me salvara do suicídio. Não posso dizer com exatidão como nem quando se operou a mudança. Mas quão insensível e gradativamente a força da vida fora anulada dentro de mim, e eu atingira o meu leito de morte moral, tão gradativa e imperceptivelmente voltou a energia da vida. E o mais estranho é que a energia que voltou nada tinha de novo. Era minha antiga força de fé juvenil, a crença em que o único propósito de minha vida era ser melhor. Desisti da vida do mundo convencional, reconhecendo que aquilo não era vida, senão paródia de vida, que as suas superfluidades simplesmente nos impediam de compreender” - e Tolstoi, em consequência disso, abraçou a vida dos camponeses, e desde então se sentiu honesto e feliz, pelo menos relativamente.{96} Tal como a interpreto, sua melancolia, portanto, não era apenas uma viciação acidental dos seus humores, se bem fosse, sem dúvida, isso também. Foi logicamente suscitada pelo choque entre o caráter interno e as atividades e metas externas. Conquanto fosse um artista literário, Tolstoi era um daqueles carvalhos humanos primitivos para os quais as superfluidades e insinceridades, a cupidez, complicações e crueldades da nossa civilização polida são profundamente insatisfatórias, e para os quais as eternas veracidades da vida estão nas coisas mais naturais e animais. Sua crise foi a arrumação da sua alma, o descobrimento de seu habitat e vocação genuínos, a fuga das falsidades na direção do que, para ele, representava os caminhos da verdade. Era um caso de personalidade heterogênea que encontrou, tardia e lentamente, sua unidade e seu nível. E, posto que poucos dentre nós possamos imitar Tolstoi, por não termos, talvez, em quantidade bastante o tutano humano aborígene em nossos ossos, quase todos, pelo menos, achamos que melhor seria se, de fato, pudéssemos imitá-lo. A recuperação de Bunyan parece ter sido mais lenta ainda. Por anos a fio ele foi alternadamente obsidiado por textos da Escritura, que ora o levantavam, ora o deprimiam, mas que, afinal, lhe realçaram o sentido crescente da sua salvação pelo sangue de Cristo. “A paz me procurava e me deixava vinte vezes por dia; conforto agora e desconforto logo depois; agora em paz, mas, antes que pudesse percorrer meia milha, cheio de toda a culpa e todo o medo que o meu coração podia carregar.” Quando se lembra de um bom texto, “Este”, escreve, “me proporcionou refrigério pelo espaço de duas ou três horas”; ou “Este foi um bom dia para mim, espero não o esquecer”; ou “A glória dessas palavras revelou-se, naquele momento, tão pesada sobre mim que, quando me sentei, estava prestes a desmaiar; mas não de mortificação e pesar, senão de sólida alegria e paz”; ou “Isso produziu grande impressão em meu espírito; trouxe luz e silenciou em meu coração todos os pensamentos tumultuosos que antes costumavam, quais sabujos sem dono do inferno, rugir, bramir e fazer um estardalhaço medonho dentro de mim. Isso me mostrou que Jesus Cristo não desamparara minha Alma nem a lançara de si.” Tais períodos foram-se acumulando até que ele pôde escrever: “E agora sobrava apenas a parte atrasada da tempestade, pois os raios e trovões já me haviam ultrapassado e apenas algumas gotas, de longe em longe, caíam sobre mim”; e, por fim: “Agora as correntes se desprenderam das minhas pernas; libertei-me das aflições e dos ferros; minhas tentações também fugiram; de sorte que, a partir desse momento, as pavorosas Escrituras de Deus cessaram de perturbar-me; também voltei para casa, jubiloso, pela graça e amor de Deus. … Eu podia verme no Céu e na Terra ao mesmo tempo; no Céu, pelo meu Cristo, por minha Cabeça, pela minha Retidão e Vida e, na Terra, pelo meu corpo ou pessoa …. Cristo foi um Cristo precioso para a minha alma naquela noite; eu mal podia ficar deitado na cama de tanta alegria, paz e triunfo através de Cristo.” Bunyan tomou-se ministro do evangelho e, à despeito da sua constituição neurótica e dos doze anos em que ficou na cadeia por nãoconformismo, sua vida passou a ser ativa e útil. Era um pacificador e um benfeitor, e a Alegoria imortal que escreveu reconduziu aos corações ingleses o próprio espírito da paciência religiosa. Mas nem Bunyan nem Tolstoi poderiam transformar-se no que nós denominamos equilibrados mentais. Haviam bebido tão profundamente na taça da amargura que nunca poderiam esquecer-lhe o sabor, e a sua redenção está num universo de dois andares. Cada qual concebeu um bem que embotou o fio eficaz da sua tristeza; sem embargo disso, preservou-se a tristeza como ingrediente menor no coração da fé pela qual ela foi vencida. O que nos interessa é que, na realidade, eles puderam encontrar, e encontraram, alguma coisa brotando nos recessos mais íntimos da consciência, por cujo intermédio uma tristeza tão grande poderia ser vencida. Tolstoi refere-se a isso chamando-lhe aquilo de que os homens vivem, pois é exatamente o que é, um estímulo, uma excitação, uma fé, uma força que reinfunde a vontade positiva de viver, até em presença das más percepções que, pouco antes, lhe davam à um semblante insuportável. Pois as percepções do mal de Tolstoi parecem, dentro da sua esfera, ter permanecido inalteradas. Suas obras subsequentes mostram-no implacável com todo o sistema de valores oficiais: o ignóbil da vida segundo os ditames da moda; o infame do império; o espúrio da igreja, o vão presunçoso das profissões chamadas liberais; as mesquinharias e crueldades que acompanham o grande triunfo; e todos os mais crimes pomposos e instituições mentirosas deste mundo. Em relação à paciência com essas coisas, sua experiência foi para ele um permanente ministério de morte. Bunyan também deixa este mundo ao inimigo. “Preciso primeiro pronunciar uma sentença de morte”, diz ele, “contra tudo o que pode apropriadamente chamar-se uma coisa desta vida, até para considerar-me a mim, a minha esposa, a meus filhos, a minha saúde, aos meus divertimentos, e a todos, mortos para mim, e eu mesmo morto para eles; confiar em Deus através do Cristo, no que tange ao mundo por vir; e, no que toca, ao mundo, considerar o túmulo minha casa, fazer minha cama na treva e dizer à corrupção, Tu és meu pai, e ao Verme, Tu és minha mãe e minha irmã. … Quando eu me despedia de minha esposa e dos meus pobres filhos tinha a impressão, frequentemente, de estar arrancando a carne dos meus ossos, sobretudo quando se tratava do meu pobre filho cego, que está mais perto do meu coração do que qualquer outra coisa na terra. Pobre criança, pensei, quanta tristeza estará à tua espera como teu quinhão neste mundo! Serás açoitado, pedirás esmola, sofrerás fome, frio, nudez e mil calamidades, ainda que, agora, eu não suporte sequer que o vento sopre sobre ti. Apesar de tudo isso, preciso entregar-vos todos a Deus, embora me doa profundamente deixar-vos.”{97} O “sinal da resolução” aí está, mas a maré plena da libertação extática parece que nunca se derramou sobre a alma do pobre John Bunyan. Esses exemplos talvez bastem para familiarizar-nos, de um modo geral, com o fenômeno tecnicamente chamado de “Conversão”. Na próxima conferência convidá-los-ei a estudar-lhe as peculiaridades e concomitâncias mais circunstanciadamente. IX Conferência CONVERSÃO Converter-se, regenerar-se, receber a graça, sentir a religião, obter uma certeza, são outras tantas expressões que denotam o processo, gradual ou repentino, por cujo intermédio um eu até então dividido, e conscientemente errado, inferior e infeliz, se toma unificado e conscientemente certo, superior e feliz, em consequência do seu domínio mais firme das realidades religiosas. Isso, pelo menos, é o que significa a conversão em termos gerais, quer acreditemos, quer não, que se faz mister uma operação divina direta para produzir uma mudança natural dessa ordem. Antes de encetar um estudo mais minucioso do processo, permitam-me avivar o nosso entendimento da definição por meio de um exemplo concreto. Escolhi o caso curioso de um homem iletrado, Stephen H. Bradley, cuja experiência vem relatada num folheto americano bastante raro.{98} Escolhi este caso porque ele mostra que, nas alterações interiores, podemos encontrar uma profundidade insuspeitada debaixo da outra, como se as possibilidades de caráter se encontrem dispostas numa série de camadas ou conchas, de cuja existência não temos nenhum conhecimento premonitório. Bradley cuidava já se haver plenamente convertido aos catorze anos de idade. “Imaginei ter visto o Salvador, pela fé, em forma humana, por cerca de um segundo no quarto, com os braços estendidos, parecendo dizer-me, Vem. No dia seguinte, eu tremia de alegria; pouco depois, minha felicidade era tão grande que declarei querer morrer; este mundo não tinha lugar em minhas afeições, que eu conhecia, e cada dia me parecia tão solene quanto o Sábado. Eu desejava com ardor que todo o gênero humano se sentisse como eu me sentia; queria que todo o mundo amasse a Deus supremamente. Antes disso, eu fora muito egoísta e hipócrita; mas agora desejava o bem-estar de toda a humanidade, sentia-me capaz de perdoar, com um coração sensível, meus piores inimigos, e me acreditava disposto a suportar os motejos e zombarias de qualquer pessoa, e a sofrer o que quer que fosse por amor d’Ele, se pudesse ser o instrumento, nas mãos de Deus, da conversão de uma alma.” Nove anos depois, em 1829, o Sr. Bradley teve notícias de uma campanha de renovação do fervor religioso, iniciada nas vizinhanças. “Muitos jovens convertidos”, diz ele, “se aproximavam de mim nas reuniões e perguntavam-me se eu tinha religião; minha resposta geralmente era, Espero que sim. Isso não parecia satisfazê-los; diziam saber que a tinham. Eu lhes pedia que rezassem por mim, pensando com os meus botões que, se não tinha religião agora, depois de declarar por tanto tempo ser cristão, já era tempo de tê-la, e esperava que as orações deles por mim fossem atendidas. “Num Sábado, fui ouvir o metodista na Academia. Ele falou do dia do juízo universal; e falou de maneira solene e terrível, como eu nunca ouvira antes. A cena daquele dia parecia estar acontecendo, e tão despertados se achavam todos os poderes da minha mente que, como Felix, tremi involuntariamente no banco em que estava sentado, se bem nada sentisse no coração. Na noite do dia seguinte fui ouvi-lo outra vez. Ele tirou o texto do Apocalipse: ‘E vi os mortos, pequenos e grandes, de pé diante de Deus’. E representou os terrores daquele dia de tal maneira que se tinha a impressão de que derreteria um coração de pedra! Quando ele concluiu o discurso, um velho senhor virou-se para mim e disse, ‘A isso é que chamo pregar’. Eu pensava o mesmo; mas os meus sentimentos continuavam imperturbados pelo que ele dissera, e não apreciei a religião, embora acredite que ele o fizesse. “Relatarei agora minha experiência do poder do Espírito Santo ocorrida naquela mesma noite. Se alguma pessoa me tivesse dito antes disso que eu poderia ter experimentado o poder do Espírito Santo do jeito que o experimentei, eu não teria acreditado e teria julgado iludida a pessoa que mo tivesse dito. Fui diretamente para casa após a reunião e, quando cheguei, pus-me a imaginar o que me deixara tão estúpido. Recolhi-me para descansar; sentia-me indiferente às coisas da religião até que principiei a ser posto à prova pelo Espírito Santo, o que começou cinco minutos depois, da seguinte maneira: “A princípio, de repente, senti o coração bater muito depressa, o que me fez pensar que talvez alguma coisa fosse acontecer-me, embora eu não estivesse alarmado, pois não sentia dor. Aumentaram as batidas do coração, o que logo me convenceu de que se tratava do Espírito Santo pelo efeito que produzia em mim. Entrei a sentir-me excessivamente feliz e humilde e a experimentar um sentido de indignidade que nunca experimentara antes. Não pude deixar de expressar-me em voz alta, o que fiz, dizendo, Senhor, não mereço esta felicidade, ou outras palavras no mesmo sentido, ao mesmo tempo que uma corrente, que se diria de ar, pela sensação produzida, me entrou pela boca e pelo coração de maneira mais sensível do que se eu estivesse bebendo alguma coisa, e continuou, segundo posso julgar, por cinco minutos ou mais, parecendo ser a causa das palpitações do meu coração. Apoderou-se completamente da minha alma, e estou certo de haver desejado que o Senhor, enquanto eu me achava neste estado, não me desse nenhuma outra felicidade, pois me parecia não poder conter a que já recebera. Meu coração dava a impressão de que ia estourar, mas só parou quando senti indizivelmente cheio de amor e da graça de Deus. Nesse ínterim, enquanto eu era assim posto à prova, um pensamento acudiu-me à mente: Que poderá significar isso? e incontinenti, como que em resposta à minha pergunta, minha memória tornou-se excessivamente clara e foi como se o Novo Testamento tivesse sido colocado à minha frente, aberto no capítulo oitavo de Romanos e tão claro como se alguém segurasse uma lâmpada acesa para eu poder ler os versos 26 e 27 daquele capítulo; e li estas palavras: ‘O espírito intercede por nós sobremaneira com gemidos inexprimíveis.’ E durante todo o tempo em que meu coração batia, eu gemia como uma pessoa angustiada, sem poder parar, embora não sentisse dor alguma, e meu irmão, deitado em outro quarto, veio abrir a porta e perguntar-me se estava com dor de dentes. Respondi-lhe que não, e que ele poderia voltar à cama. Tentei parar. Eu mesmo não sentia vontade de dormir, pois estava tão feliz que tinha medo de perder aquela felicidade - pensando dentro em mim. ‘Minha alma ficaria de bom grado Numa disposição igual a esta.’ “E enquanto eu jazia refletindo, depois que meu coração parou de bater, tendo a sensação de que tinha a alma cheia do Espírito Santo, imaginei que talvez pairassem anjos em torno da minha cama. Senti como que um desejo de conversar com eles e, finalmente, falei, dizendo: ‘Ó anjos afetuosos! como podeis ter tanto interesse pelo nosso bem-estar, se nós mesmos temos tão pouco?’ Depois disso, adormeci com dificuldades; e ao despertar, na manhã seguinte, meus primeiros pensamentos foram: Que foi feito da minha felicidade? e, sentindo um pouquinho dela no coração, pedi mais, o que me foi dado com a rapidez do pensamento. Então me levantei para vestir-me, e descobri, para minha surpresa, que mal podia ficar de pé. Tive a impressão de que um pequeno céu baixara sobre a terra. Minha alma sentia-se tão completamente erguida acima dos temores da morte como estaria acima dos temores do adormecer; e, como o pássaro na gaiola, eu sentia o desejo, se tal fosse a vontade de Deus, de ser libertado do corpo e habitar em Cristo, embora estivesse disposto a viver para fazer o bem aos outros e instigar os pecadores a se arrependerem. Desci a escada sentindo-me tão solene quanto se houvesse perdido todos os meus amigos, e pensando comigo que não deixaria meus pais saberem de nada enquanto não tivesse, primeiro, lido o Testamento. Fui diretamente para a estante e procurei o capítulo oito de Romanos, e cada verso parecia quase falar e confirmar que se tratava realmente da Palavra de Deus, como se os meus sentimentos correspondessem ao sentido da palavra. Então contei a meus pais e disse-lhes que, no meu entender, eles deviam ver, quando eu falava, que não falava com minha própria voz, pois assim se me afigurava. Minha fala parecia inteiramente sob o controle do Espírito dentro de mim; não quero dizer que as palavras que eu proferia não fossem minhas, pois eram-no. Mas eu supunha estar sendo influenciado do mesmo modo que os Apóstolos o haviam sido no dia de Pentecoste (com a exceção de não ter o poder de comunicá-lo aos outros nem de fazer o que eles faziam). Após o desjejum, saí para conversar com os vizinhos sobre religião, o que eu não teria feito antes nem que me pagassem, e, a seu pedido, rezei com eles, embora nunca tivesse rezado em público até então. “Sinto-me agora como se tivesse cumprido minha obrigação falando verdade e espero, com a ajuda de Deus, que isso redunde em algum bem a quantos me lerem. Ele cumpriu sua promessa mandando o Espírito Santo aos nossos corações, pelo menos ao meu, e agora desafio todos os deístas e ateus do mundo a tentar abalar minha fé em Cristo.” Isso é tudo quanto ao que se refere ao Sr. Bradley e à sua conversão, de cujo efeito sobre a sua existência subsequente não temos informação alguma. Passemos agora a um exame mais pormenorizado dos elementos constituintes do processo de conversão. Se os senhores abrirem qualquer tratado de Psicologia, no capítulo sobre Associação, lerão que as idéias, metas e objetivos de um homem formam diversos grupos e sistemas internos, relativamente independentes uns dos outros. Cada “meta” colimada desperta certo tipo específico de excitação interessada, e junta certo grupo de idéias a ela subordinadas como suas associadas; e se as metas e excitações forem de espécies distintas, seus grupos de idéias terão pouca coisa em comum. Quando um grupo está presente e monopoliza o interesse, todas as idéias ligadas a outros grupos podem ser excluídas do campo mental. Quando o Presidente dos Estados Unidos, apetrechado de remo, espingarda e vara de pescar, vai acampar no mato em gozo de férias, modifica de cabo a rabo seu sistema de idéias. As preocupações presidenciais são inteiramente relegadas a um segundo plano; os hábitos oficiais são substituídos pelos hábitos de um filho da natureza, e os que conheciam o homem apenas como o estrênuo magistrado não “o conheceriam como a mesma pessoa” se o vissem no acampamento. Ora, se ele nunca voltasse atrás e nunca mais permitisse que interesses políticos viessem a dominá-lo, seria, para todos os propósitos e em todos os sentidos, um ser permanentemente transformado. Nossas alterações comuns de caráter, quando passamos de uma de nossas metas para outra, não se costumam chamar transformações, porque cada uma delas é rapidamente seguida de outra na direção contrária; mas toda vez que uma das metas toma tão estável que expulsa definitivamente suas rivais anteriores da vida do indivíduo, nossa tendência é mencionar o fenômeno e talvez matutar sobre ele, como sendo uma “transformação”. Essas alternativas são o mais completo dos modos com que um eu pode ser dividido. Um modo menos completo é a coexistência simultânea de dois ou mais grupos diferentes de metas, uma das quais, praticamente, detém o direito de passagem, enquanto que as outras são meros desejos piedosos e, praticamente, nunca chegam a coisa alguma. As aspirações de Santo Agostinho a uma vida mais pura, em nossa última conferência, foram por algum tempo um exemplo. Outro seria o Presidente, em todo o orgulho do seu cargo, imaginando se tudo não seria vaidade, e se a vida de um lenhador não representaria um destino mais saudável. Tais aspirações fugazes são meras velleitates, veleidades. Existem nas mais remotas periferias da mente, e o verdadeiro eu do homem, centro das suas energias, é ocupado por um sistema inteira- mente diverso. À proporção que a vida passa, há uma mudança constante dos nossos interesses e uma consequente mudança de lugar em nossos sistemas de idéias, de partes mais centrais para partes mais periféricas, e de partes mais periféricas para partes mais centrais da consciência. Lembro-me, por exemplo, de que uma noite, quando eu era moço, meu pai leu em voz alta, num jornal de Boston, o trecho do testamento de Lorde Gifford que fundou estes quatro cargos de conferencistas. Naquele tempo eu não pensava em ser professor de filosofia, e aquilo a que eu estava prestando atenção se achava tão distante de minha própria vida como se relacionasse com o planeta Marte. No entanto, aqui estou eu, com o sistema Gifford formando parte integrante do meu próprio eu, e todas as minhas energias, devotadas, por ora, ao bom êxito da minha identificação com ele. Minha alma encontra-se,-agora, plantada no que foi outrora, para ela, um objetivo praticamente irreal e fala dele como de seu habitat e centro apropriados. Quando falo em “Alma”, os senhores não precisam tomar o que digo no sentido ontológico, a não ser que prefiram fazê-lo; pois conquanto a linguagem ontológica seja instintiva nesses assuntos, os budistas ou humianos descrevem perfeitamente bem os fatos com os termos fenomenais que são os seus favoritos. Para eles a alma é tão-só uma sucessão de campos de consciência: encontra-se, todavia, em cada campo uma parte, ou subcampo, que figura como foco e contém a excitação, desde a qual, como desde um centro, a meta parece ser visada. Falando dessa parte, aplicamos involuntariamente palavras de perspectiva para distingui-la do resto, palavras como “aqui”, “este”, “agora”, “meu” ou “eu”; e atribuímos às outras partes as posições “ali”, “então”, “aquilo”, “seu”, ou “teu”, “ele”, “não-eu”. Mas um “aqui” pode ser trocado por um “ali”, e um “ali” transforma-se em “aqui”, e o que era “meu” e o que era “não-meu” mudam de lugar. O que provoca tais mudanças é o modo com que se altera a excitação emocional. As coisas que hoje são quentes e vitais para nós serão frias amanhã. Enquanto são vistas das partes quentes do campo é que as outras partes aparecem para nós, e desde essas partes quentes o desejo e a volição pessoais fazem suas excursões. Elas são, em resumo, os centros da nossa energia dinâmica, ao passo que as partes frias nos deixam indiferentes e passivos em proporção com a sua frieza. O fato de ser ou não essa linguagem rigorosamente exata, por enquanto, não tem importância. Será suficientemente exata se os senhores reconhecerem, por experiência própria, os fatos que procuro designar por meio dela. Ora, pode haver grande oscilação no interesse emocional, e os lugares quentes podem mudar de posição diante de nós quase tão depressa quanto as fagulhas que correm através do papel queimado. Temos então o eu oscilante e dividido, de que já falamos tanto na conferência anterior. Ou o foco de excitação e de calor, ou seja, o ponto de vista do qual se visa a meta, pode vir a estabelecer-se permanentemente num dado sistema; e, nesse caso, se a mudança for religiosa, nós lhe chamamos conversão, sobretudo se operar por meio de uma crise, isto é, subitamente. Seja-nos permitido, daqui por diante, ao falar no lugar quente da consciência de um homem, no grupo de idéias a que ele se consagra, e pelo qual trabalha, chamar-lhe o centro habitual da sua energia pessoal. Representa uma grande diferença para o homem o ser um ou outro conjunto de idéias o centro de sua energia; e representa uma grande diferença, no que concerne a qualquer conjunto de idéias que ele possa possuir, que este se tome central ou permaneça periférico. Dizer que um homem está “convertido” significa, nesses termos, que as idéias religiosas, anteriormente periféricas em sua consciência, assumem agora um lugar central, e que metas religiosas formam o centro habitual da sua energia. Ora, se os senhores perguntarem à psicologia exatamente como a excitação muda de lugar no sistema mental do homem, e por quê metas periféricas passam a ser centrais em determinado momento, a psicologia replicará que, embora possa dar uma descrição geral do que acontece, é incapaz de explicar com exatidão, em cada caso, todas as forças singulares que estão operando. Nem o observador de fora nem o sujeito que sofre o processo pode explicar a contento como experiências particulares mudam o centro de energia da pessoa de maneira tão decisiva, ou por que são tantas vezes obrigadas a aguardar a sua oportunidade para fazê-lo. Temos um pensamento ou executamos um ato repetidamente, mas, certo dia, o verdadeiro significado do pensamento ressoa através de nós pela primeira vez, ou o ato se converte, de súbito, numa impossibilidade moral. Só sabemos que existem sentimentos mortos, idéias mortas e crenças frias, e que as há quentes e vivas; e quando uma delas se toma quente e viva dentro de nós, tudo tem de ser recristaliza- do em seu derredor. Podemos dizer que o calor e a vida significam apenas a “eficácia motora” da idéia, adiada por muito tempo mas agora operativa; mas até essa maneira de falar é um circunlóquio, pois de onde vem a súbita eficácia motora? E nossas explicações se tomam tão vagas e gerais que compreendemos ainda mais a intensa individualidade de todo o fenômeno. No fim, voltamos a cair no simbolismo trivializado de um equilíbrio mecânico. A mente é um sistema de idéias, cada qual com o estímulo que desperta, e com tendências impulsivas e inibidoras, que mutuamente contrastam ou se reforçam. A coleção de idéias se altera por subtração ou adição no curso da experiência, e as tendências se alteram à medida que o organismo envelhece. Um sistema mental pode ser minado ou enfraquecido por essa alteração intersticial exatamente como acontece com um edifício e, no entanto, mantém-se de pé por força do hábito. Mas uma nova percepção, um repentino choque emocional ou uma ocasião que desnuda a alteração orgânica fará cair, de uma vez só, toda a fábrica; e aí o centro de gravidade afunda numa atitude mais estável, pois as novas idéias que alcançam o centro da rearrumação parecem agora trancadas ali, e a nova estrutura continua permanente. Associações formadas de idéias e hábitos costumam ser fatores de retardamento em tais mudanças de equilíbrio. Uma nova informação, adquirida seja como for, tem um papel acelerador nas mudanças; e a lenta mutação de nossos instintos e propensões, sob o “toque inimaginável do tempo” exerce enorme influência. De mais a mais, todas essas influências podem operar subconsciente ou semi-inconscientemente.{99} E quando temos um Sujeito cuja vida subconsciente - da qual logo falarei com maiores minúcias - está largamente desenvolvida, e cujos motivos, de ordinário, maduram em silêncio, temos um caso do qual nunca poderemos dar uma explicação completa, e no qual, tanto para o Sujeito como para os espectadores, pode aparecer um elemento milagroso. As ocasiões emocionais, sobretudo as violentas, são extremamente eficazes em precipitar rearrumações mentais. As maneiras súbitas e explosivas com que o amor, o ciúme, a culpa, o medo, o remorso ou a raiva podem apoderar-se de alguém são conhecidas de todos.{100} A esperança, a felicidade, a segurança, a determinação, emoções características da conversão, podem ser igualmente explosivas. E as emoções que chegam dessa maneira explosiva muito raramente deixam as coisas quais as encontram. Em sua obra recente sobre a Psicologia da Religião, o Professor Starbuck, da Califórnia, mostrou, numa investigação estatística, como são intimamente paralelas em suas manifestações a “conversão” comum, que ocorre em jovens educados em círculos evangélicos, e o crescimento numa vida espiritual mais ampla, que é a fase normal da adolescência em todas as classes de seres humanos. A idade é a mesma, entre os catorze e os dezessete anos. Os sintomas são os mesmos - sentido de inacabamento e imperfeição; taciturnidade, depressão, introspecção mórbida e senso do pecado; ansiedade a respeito da vida futura; angústia tocante a dúvidas, e quejandos. E o resultado é o mesmo - alívio feliz e objetividade à medida que aumenta a confiança própria através do ajustamento das faculdades à visão mais vasta. No despertar religioso espontâneo, pondo de parte os exemplos revivalísticos, e na tempestade, na tensão e na mudança de penas, comuns à adolescência, podemos também topar com experiências místicas, que assombram os sujeitos pela subitaneidade, justamente como na conversão revivalista. A analogia, de feito, é completa; e a conclusão de Starbuck a respeito dessas conversões adolescentes comuns parece ser a única bem fundada: em sua essência, a conversão é um fenômeno adolescente normal, incidental à passagem do pequeno universo da criança para a vida intelectual e espiritual mais ampla da maturidade. “A teologia”, diz o Dr. Starbuck, “toma as tendências adolescentes e edifica sobre elas: diligencia fazer que a coisa essencial no crescimento adolescente seja trazer a pessoa para fora da infância e conduzi-la à nova vida de maturidade e introvisão pessoal. Conseguintemente, põe em ação esses meios, intensificando as tendências normais. Encurta a duração da tempestade e da tensão.” Os fenômenos de “convicção do pecado” da conversão duram, de acordo com as estatísticas desse investigador, cerca de uma quinta parte dos períodos dos fenômenos de tempestade e tensão adolescentes, cujas estatísticas ele também obteve, mas se manifestam com muito maior intensidade. Concomitantes físicos, perda de sono e apetite, por exemplo, são nele muito mais frequentes. “A distinção essencial parece ser que a conversão intensifica mas abrevia o período, levando a pessoa a uma crise definida.”{101} As conversões que o Dr. Starbuck aqui tem em mente, é claro, são sobretudo as de pessoas muito comuns, que se mantiveram fiéis a um tipo pré- ordenado pela instrução, pelo comando e pelo exemplo. A forma particular que elas afetam resulta da sugestão e da imitação.{102} Se passassem pela crise de crescimento em outras fés e outros países, embora a essência da mudança fosse a mesma (visto ser fundamentalmente inevitável), seus acidentes seriam diferentes. Em terras católicas, por exemplo, e em nossas próprias seitas episcopais já não são tão usuais essa ansiedade e convicção de pecado quanto nas seitas que estimulam a revivescência. Havendo maior confiança nos sacramentos nesses corpos mais estritamente eclesiásticos, a aceitação pessoal da salvação por parte do indivíduo não precisa ser tão acentuada e orientada. Mas todo fenômeno imitativo deve ter tido o seu original, e proponho que, daqui por diante, nos atenhamos o mais possível às formas de experiência de primeira mão, de maior originalidade. É mais provável que estas sejam encontradas nos casos adultos esporádicos. Em valioso artigo sobre a psicologia da conversão,{103} o Professor Leuba subordina o aspecto teológico da vida religiosa quase que inteiramente ao aspecto moral. Ele define o sentido religioso como “o sentimento de inacabamento, de imperfeição moral, de pecado, para usar o termo técnico, acompanhado do anseio da paz na unidade”. “A palavra ‘religião’”, diz ele, “significa cada vez mais o conglomerado de desejos e emoções que nascem do sentido do pecado e da sua remissão”; e cita grande número de exemplos, em que o pecado vai desde a ebriedade até o orgulho espiritual, a fim de mostrar que o seu sentido pode forçar a pessoa a ansiar por alívio tão urgentemente quanto o sofrimento da carne enferma ou qualquer outra forma de tormento físico. Não há dúvida de que essa concepção abrange um número imenso de casos. Um bom caso para ser usado como exemplo, é o do Sr. S. H. Hadley, que, depois da sua conversão, tomou-se ativo e útil na assistência dos bêbados em Nova York. Sua experiência é narrada da seguinte maneira: “Numa noite de terça-feira, dei comigo sentado num bar em Harlem, um pinguço sem casa, sem amigos, moribundo. Eu penhorara ou vendera tudo o que pudesse proporcionar-me um trago. Só conseguia dormir completamente bêbado. Fazia dias que não comia e, quatro noites antes daquela, sofrerá uma crise de delirium tremens, ou de horrores, da meia-noite até a manhã seguinte. Eu dissera muitas vezes: ‘Nunca serei um vagabundo. Nunca serei acuado pois, quando chegar esse dia, se chegar alguma vez, encontrarei um lar no fundo do rio’. Mas o Senhor ordenou as coisas de modo diferente e, quando chegou esse momento, eu me vi incapaz de percorrer uma quarta parte do caminho até o rio. Enquanto estava ali sentado, banzando, pareceume sentir uma grande e poderosa presença. Naquele momento não soube quem era. Mas fiquei sabendo depois que era Jesus, o amigo do pecador. Enderecei-me ao balcão e esmurrei-o com tanta força que os copos se puseram a tilintar. Os que estavam bebendo por ali olharam para mim com desdenhosa curiosidade. Declarei que nunca mais tomaria outro gole, ainda que tivesse de morrer no meio da rua, e realmente me pareceu que isso ia acontecer antes da manhã. Alguma coisa me disse: ‘Se você quiser cumprir a promessa, saia daqui e vá trancar-se em algum lugar’. Dirigi-me ao posto policial mais próximo e fiz que me prendessem. “Colocado numa cela estreita, tive a impressão de que todos os demônios que puderam encontrar espaço ali partilhavam comigo daquele lugar. Mas tampouco foi essa a única companhia que tive. Não, o Senhor seja louvado; o querido Espírito que fora ter comigo no bar estava presente e disse, Reze. Rezei e, conquanto a oração não me fosse de grande ajuda, continuei rezando. Assim que pude sair da cela, fui conduzido ao tribunal de polícia e mandado de volta para a cela. Finalmente me libertaram e dirigi-me à casa de meu irmão, onde todos os cuidados me foram dispensados. Enquanto estive deitado na cama, o Espírito admonitor nunca me deixou e, quando me levantei na manhã do Sábado seguinte, senti que naquele dia se decidiria o meu destino. Por volta do entardecer ocorreu-me a idéia de ir à Missão de Jerry M’Auley. Fui. A casa estava abarrotada de gente e, com muita dificuldade, abri caminho até o espaço perto da plataforma. Lá vi o apóstolo dos bêbados e dos párias — aquele homem de Deus, Jerry M’Auley. Ele levantou-se e, no meio de profundo silêncio, contou sua experiência. Havia no homem uma sinceridade que convencia a gente, e surpreendi-me a perguntar a mim mesmo: ‘Será que Deus pode salvar-me, a mim?’ Ouvi o depoimento de umas vinte e cinco ou trinta pessoas, todas salvas do rum, e tomei a resolução de-salvar-me também ou morrer ali mesmo. Ao convite, ajoelhei-me com uma multidão de bêbados. Jerry pronunciou a primeira oração. Depois a Sra. M’Auley orou fervorosamente por nós. Oh, que conflito se travou em minha pobre alma! Um murmúrio abençoado disse, ‘Venha’; o diabo disse, ‘Cuidado’. Hesitei apenas por um momento e, logo, com o coração aos pedaços, perguntei: ‘Querido Jesus, pode ajudar-me?’. Jamais com língua mortal saberei descrever esse momento. Embora até aquele instante minha alma fosse presa de um abatimento indescritível, o glorioso resplendor do sol do meio-dia brilhava agora em meu coração. Senti-me um homem livre. Que deliciosa sensação de segurança, de liberdade, de repouso em Jesus! Cristo, com todo o seu brilho e poder, entrara em minha vida; com efeito, as coisas velhas tinham passado e todas as outras tinham ficado novas. “Desde então até agora eu nunca mais quis provar um gole de uísque, e nunca vi dinheiro suficiente para fazer-me prová-lo. Prometí a Deus naquela noite que, se ele me tirasse o apetite por bebidas fortes, eu trabalharia a seu serviço o resto da vida. Ele fez a sua parte, e tenho tentado fazer a minha.”{104} O Dr. Leuba observa com justeza que existe pouca teologia doutrinária numa experiência dessa natureza, que começa com a necessidade absoluta de uma ajuda do alto, e termina com a sensação de que ele nos ajudou. E apresenta outros casos de conversões de bêbados puramente éticas, que não contêm, conforme se registrou, nenhuma crença teológica. O caso de John B. Gough, por exemplo, diz o Dr. Leuba, é praticamente a conversão de um ateu - em que não se mencionam Deus nem Jesus.{105} Em que pese, porém, a importância desse tipo de regeneração, com escasso ou nenhum reajustamento intelectual, este autor a faz, de certo, demasiado exclusiva. Corresponde à forma subjetivamente centrada da melancolia mórbida, da qual Bunyan e Alline eram exemplos. Vimos, porém, na sétima conferência, que existem formas objetivas de melancolia, nas quais a falta de significado racional do universo, e da própria vida, é o fardo que oprime o homem - os senhores hão de estar lembrados do caso de Tolstoi.{106} Assim sendo, existem elementos distintos na conversão, e suas relações com as vidas individuais merecem que as discriminemos.{107} Algumas pessoas, por exemplo, nunca são, e possivelmente nunca serão, convertidas, sejam quais forem as circunstâncias. As idéias religiosas não podem tomar-se o centro da sua energia espiritual. Trata-se, talvez, de pessoas excelentes, servos de Deus de formas práticas, mas que não são filhos do seu reino. Ou são incapazes de imaginar o invisível; ou então, na linguagem da devoção, são sujeitos de “aridez:” e “secura” perpétuas. Em alguns casos, a inaptidão para a fé religiosa é de origem intelectual. Suas faculdades religiosas são contrariadas, na tendência natural para expandir-se, por crenças inibidoras acerca do mundo, crenças pessimistas e materialistas, por exemplo, dentro das quais tantas boas almas, que em outros tempos teriam dado largas às propensões religiosas, se encontram hoje em dia enregelados; os vetos agnósticos à fé como algo fraco e vergonhoso, sob os quais tantos dentre nós permanecemos hoje acaçapados, com medo de usar nossos instintos. Muitas pessoas nunca superam tais inibições. Até o fim dos seus dias recusam-se a acreditar, sua energia pessoal nunca chega ao centro religioso, e este último se queda inativo para sempre. Em outras, o problema é mais profundo. Existem homens insensíveis do lado religioso, deficientes nessa categoria de sensibilidade. Assim como um organismo exangue nunca poderá, a despeito de toda a boa vontade, alcançar os “espíritos animais” arrojados, desfrutados pelos de temperamento sanguíneo; assim a natureza espiritualmente árida admira e inveja a fé em outros, mas jamais conquistará o entusiasmo e a paz de que gozam os temperamentalmente qualificados para a fé. É possível, porém, que tudo isso se revele, finalmente, uma questão de inibição temporária. Até num estádio subsequente da vida pode ocorrer algum degelo, alguma libertação, algum raio pode ser despedido de volta contra o peito mais árido, e o coração duro do homem se suaviza e rompe num sentimento religioso. Tais casos, mais do que quaisquer outros, dão a idéia de que a súbita conversão se operou por milagre. Enquanto eles existirem, não devemos imaginar-nos tratando com classes irrecuperavelmente fixas. Ora, essas são duas formas de ocorrência mental em seres humanos, que conduzem a uma notável diferença no processo da conversão, diferença para a qual o Professor Starbuck nos chama a atenção. Os senhores sabem o que acontece quando tentamos relembrar um nome esquecido. Normalmente ajudamos a relembrança trabalhando por ela, percorrendo mentalmente os lugares, as pessoas e as coisas a que a palavra estava ligada. Às vezes, contudo, esse esforço dá em nada: parece-nos, então, que quanto mais tentarmos menos esperança teremos de consegui-lo, como se o nome estivesse bloqueado, e toda pressão feita em sua direção só servisse de escondê-lo ainda mais. E, então, o expediente contrário muitas vezes dá certo. Desistamos totalmente do esforço; pensemos em algo diferente e, dali a meia hora, o nome perdido aparece saltarilhando em nossa mente, como diz Emerson, tão descuidado e indiferente quanto se nunca tivesse sido convidado. Algum processo oculto, iniciado em nós pelo esforço, prosseguiu depois que o esforço cessou, e fez que o resultado aparecesse como se tivesse ocorrido espontaneamente. Certa professora de música, relata o Dr. Starbuck, diz aos seus alunos depois que a coisa a ser feita foi claramente indicada e tentada sem êxito: “Parem de tentar fazê-la que ela se fará sozinha!”{108} Há, portanto, uma maneira consciente e voluntária e uma maneira involuntária e inconsciente com que se podem obter resultados mentais; e encontramos as duas exemplificadas na história da conversão, dando-nos dois tipos, que Starbuck denomina tipo volitivo e tipo da renúncia de si, respectivamente. No tipo volitivo a mudança regenerativa, geralmente gradual, consiste na edificação, peça por peça, de um novo conjunto de hábitos morais e espirituais. Mas há sempre pontos críticos, em que o movimento progressivo parece muito mais rápido. Esse fato psicológico é abundantemente ilustrado pelo Dr. Starbuck. Nossa educação em qualquer campo prático faz-se, aparentemente, por safanões e sobressaltos como acontece com nossos corpos físicos. “O atleta … chega, às vezes, de repente, à compreensão dos belos momentos do jogo e passa a apreciá-lo de verdade, precisamente como o catecúmeno desperta para a apreciação da religião. Se o primeiro continuar empenhado em praticar o esporte, talvez surja um dia em que, de repente, o jogo se desenvolve naturalmente através dele - enquanto ele se perde em algum grande desafio. Da mesma forma, o músico pode chegar de inopino, a um ponto em que o prazer da técnica da arte desaparece de todo e, num momento de inspiração, ele se transforma no instrumento através do qual flui a música. O autor teve ocasião de ouvir duas pessoas casadas diferentes, cuja vida matrimonial havia sido bela desde o princípio, e de ambas ouviu que só um ano ou mais depois do casamento despertaram para a plena bemaventurança da vida conjugal. O mesmo acontece com a experiência religiosa das pessoas que estamos estudando.{109} Daqui por diante ouviremos exemplos ainda mais notáveis de processos que maturam subconscientemente e de cujos resultados, num súbito, nos tornamos conscientes. Sir William Hamilton e o Professor Laycock de Edimburgo figuravam entre os primeiros a chamar a atenção para essa classe de efeitos; mas foi o Dr. Carpenter, se não me falha a memória, o primeiro a introduzir a expressão “cerebração inconsciente”, que passou a ser uma frase popular de explicação. Os fatos nos são agora muito mais extensamente conhecidos do que no tempo dele, e o adjetivo “inconsciente”, para muitos uma denominação imprópria, é substituído, com vantagens, pelo termo mais vago “subconsciente” ou “subliminal”. Seria fácil dar exemplos do tipo de conversão volitiva,{110} mas eles são, em regra geral, menos interessantes do que os do tipo de renúncia, em que os efeitos subconscientes, mais abundantes, não raro surpreendem. Darme-ei pressa, portanto, de passar a estes últimos, mesmo porque a diferença entre os dois, afinal de contas, não é radical. Até na espécie mais voluntariamente edificada de regeneração há passagens intercaladas de renúncia parcial; e na grande maioria dos casos, depois a vontade fez o máximo possível para aproximar a pessoa da completa unificação a que ela aspira, parece que o último passo tem de ser cometido a outras forças e executado sem a ajuda de sua atividade. Ou melhor, a renúncia toma-se indispensável. “É forçoso que a vontade pessoal”, diz o Dr. Starbuck, “seja abandonada. Em muitos casos, o alívio se recusa persistentemente a vir enquanto a pessoa não deixa de resistir ou de fazer um esforço na direção que deseja seguir.” “Eu havia prometido não resistir; mas quando minha vontade se quebrou, tudo se acabou”, escreve um dos correspondentes de Starbuck. Outro declara: “Eu simplesmente disse: ‘Senhor, fiz quanto pude; deixo tudo o mais em Tuas mãos.’ e imediatamente desceu sobre mim uma grande paz.” Outro: - “Imediatamente me ocorreu que eu também poderia ser salvo se deixasse de tentar fazer tudo sozinho, e seguisse Jesus: seja como for, fui aliviado do meu fardo.” - Outro: “Finalmente deixei de resistir e me entreguei, embora fosse uma luta dura. A pouco e pouco, invadiu-me a sensação de que eu fizera a minha parte e Deus estava disposto a fazer a sua.”{111} - “Senhor, faça-se a tua vontade; condena-me ou salva-me!” grita John Nelson,{112} exausto da luta angustiada para escapar à da- nação; e, naquele momento, sua alma encheu-se de paz. O Dr. Starbuck faz um relato interessante, que a mim me parece verdadeiro - na medida em que concepções tão esquemáticas podem aspirar à verdade - das razões por que a sujeição do último momento deve ser tão indispensável. Para começar, há duas coisas na mente do candidato à conversão: a primeira, o inacabamento ou erro presente, o “pecado”, de que ele tanto anseia por escapar; e, segunda, o ideal positivo que ele ambiciona levar a cabo. Ora, em quase todos nós o sentido do erro presente é uma peça muito mais distinta de nossa consciência do que o é a imaginação de qualquer ideal positivo que podemos colimar. Na maioria dos casos, com efeito, o “pecado” monopoliza quase exclusivamente a atenção, de modo que a conversão é “antes um processo de lutar para livrar-se do pecado do que de forcejar por alcançar a retidão.”{113} O espírito e a vontade conscientes de um homem, na medida em que se esforçam por atingir o ideal, visam alguma coisa apenas vaga e imprecisamente imaginada. Não obstante, durante todo esse tempo, as forças do mero amadurecimento orgânico dentro dele se encaminham para o resultado prefigurado, e os seus esforços conscientes vão largando aliados subconscientes nos bastidores, os quais, à sua maneira, trabalham pela rearrumação; e a rearrumação para a qual tendem todas essas forças mais profundas é, sem dúvida, definida e diversa da que ele conscientemente concebe e determina. Pode, por conseguinte, sofrer a interferência real (isto é, pode ser bloqueado, por assim dizer, como a palavra perdida que buscamos recordar com excessiva energia), dos esforços voluntários, que se desviam da verdadeira direção. Starbuck parece por o dedo no ponto nevrálgico da questão ao dizer que exercitar a vontade pessoal é ainda viver na região em que o eu imperfeito é a coisa mais enfatizada. Onde, ao contrário, as forças subconscientes assumem o comando, é mais provavelmente o eu melhor in posse que dirige a operação. Em vez de ser desajeitada e vagamente alvejado de fora, é ele mesmo o centro organizador. Que deve, então, fazer a pessoa? “Deve relaxar”, diz o Dr. Starbuck - “isto é, deve recorrer ao Poder maior que favorece a retidão, que vem crescendo no seu próprio ser, e deixá-lo terminar à sua maneira a obra que começou. … O ato de ceder, visto desse ângulo, equivale a entregar-se a pessoa à nova vida, fazendo dela o centro de uma nova personalidade, e viver, interiormente, a verdade dela, antes visada objetivamente” {114} “A extremidade do homem é a oportunidade de Deus” é o modo teológico de apresentar o fato da necessidade da renúncia; ao passo que o modo fisiológico de expô-lo seria, “Façamos tudo o que estiver ao nosso alcance, que o nosso sistema nervoso fará o resto”. As duas proposições reconhecem o mesmo fato. {115} Para expressá-lo em função do nosso próprio simbolismo: Quando o novo centro da energia pessoal fica incubado subconscientemente por tanto tempo que está pronto para florir, “tire as mãos” é a única palavra para nós; ele precisa desabrochar sozinho! Utilizamos a linguagem vaga e abstrata da psicologia. Mas visto que, em quaisquer termos, a crise descrita significa deixar nossos eus conscientes à mercê de poderes que, sejam eles o que forem, são mais ideais do que o somos realmente e favorecem a nossa redenção, os senhores vêem por que a renúncia tem sido e será sempre considerada o ponto crítico vital da vida religiosa, na medida em que esta seja espiritual e não tenha nada com obras externas, rituais e sacramentos. Pode-se dizer que todo o desenvolvimento do Cristianismo em interioridade tem consistido em pouco mais do que na ênfase cada vez maior dada à crise da renúncia. Do Catolicismo ao Luteranismo, e depois ao Calvinismo; do Calvinismo ao Wesleyanismo; e deste, totalmente fora do Cristianismo técnico, ao puro “liberalismo” ou idealismo transcendental, seja ou não do tipo da cura psíquica, abrangendo os místicos medievais, os quietistas, os pietistas e os quacres, de passagem, podemos traçar as fases do progresso para a idéia de uma ajuda espiritual imediata, experimentada pelo indivíduo em seu desamparo e sem nenhuma necessidade essencial de um aparelho doutrinário nem de um mecanismo propiciatório. A psicologia e a religião estão, assim, em perfeita harmonia até este ponto, pois ambas admitem a existência de forças aparentemente fora do indivíduo consciente, que lhe redimem a vida. Sem embargo disso, a psicologia, definindo-se como “subconscientes” e afirmando que os seus efeitos se devem à “incubação” ou “celebração”, supõe que elas não transcendem a personalidade do indivíduo; e nisso diverge da teologia cristã, que insiste em que elas são operações sobrenaturais diretas da Divindade. Proponho aos senhores que não consideremos ainda final a divergência, mas deixemos a questão por enquanto pendente - a indagação continuada talvez nos permita desfazer-nos de parte da discórdia aparente. Voltemos, pois, por mais um momento, à psicologia da renúncia. Quando deparamos com um homem que vive na borda escabrosa da própria consciência, preso na contemplação de seu pecado, da sua indigência e do seu inacabamento e, portanto, inconsolável, e lhe dizemos simplesmente que tudo está bem com ele, que precisa deixar de afligir-se, romper com o descontentamento e renunciar à ansiedade, pareceremos a ele estar dizendo puras absurdezas. A única consciência positiva que ele tem diz-lhe que tudo não está bem, e a melhor maneira que lhe oferecemos soa simplesmente como se lhe propuséssemos afirmar falsidades a sangue-frio. “A vontade de acreditar” não pode ser esticada tanto assim. Podemos ser mais fiéis a uma crença cujos rudimentos possuímos, mas não podemos criar uma crença desde os primórdios quando a nossa percepção nos assegura ativamente o contrário. A melhor mentalidade que nos é proposta apresenta-se, neste caso, em forma de pura negação da única mentalidade que temos, e não podemos querer ativamente uma pura negação. De duas maneiras apenas podemos desfazer-nos da raiva, da preocupação, do medo, do desespero ou de outras afeições indesejáveis. A primeira é uma afeição oposta saltear-nos avassaladoramente, e a outra é ficarmos tão exaustos da luta que temos de parar - e, destarte, cair, desistir e não nos incomodarmos mais. Nossos centros cerebrais emocionais entram em greve e nós deslizamos para uma apatia temporária. Ora, existem provas documentais de que esse estado de exaustão temporária faz parte, não infrequente- mente, da crise de conversão. Enquanto a preocupação egoísta da alma enferma fica de guarda à porta, a confiança expansiva da alma cheia de fé não pode entrar. Basta, porém, que a primeira desmaie, nem que seja por um momento, para que a segunda aproveite a oportunidade e, tendo tomado posse, conserve-a. O Teufelsdröckh de Carlyle passa do eterno Não ao eterno Sim através de um “Centro de Indiferença”. Permitam que eu lhes dê uma boa ilustração dessa característica no processo de conversão. Aquele autêntico santo que foi David Brainerd, descreve a própria crise com as seguintes palavras: “Certa manhã, quando eu caminhava por um lugar solitário como de costume, vi, de repente, que todos os meus planos e projetos no sentido de efetuar ou conseguir minha libertação e salvação eram totalmente baldados; fui obrigado a parar, pois me senti perdido. Vi que me seria para sempre impossível fazer o que quer que fosse no intuito de me ajudar ou libertar, que eu já fizera todas as súplicas que poderia ter feito por toda a eternidade; e que todos os meus rogos tinham sido vãos, pois fora levado a rezar pelo interesse pessoal e nunca movido por algum respeito à glória de Deus. Vi que não havia nenhuma conexão necessária entre minhas preces e a concessão da misericórdia divina: que elas não impunham a Deus a menor obrigação de conceder-me a sua graça; e que não havia mais virtude nem excelência nelas do que haveria se eu ficasse chapinhando na água. Vi que eu andara amontoando minhas devoções diante de Deus, jejuando, orando, etc., fingindo e, com efeito, pensando realmente, às vezes, que estava pondo a mira na glória de Deus; quando, na verdade, eu nunca visara realmente a ela, se não apenas à minha própria felicidade. Vi que nunca fizera nada por Deus, que não me assistia o direito de reclamar dele coisa alguma, a não ser a perdição, mercê da minha hipocrisia e do meu escárnio. Quando vi evidentemente que não tivera consideração por coisa alguma que não fosse o meu próprio interesse, minhas obrigações me pareceram uma vil zombaria e um curso contínuo de mentiras, pois o conjunto não passava de um culto a mim mesmo e um horroroso insulto a Deus. “Lembro-me de que continuei nesse estado de espírito desde a manhã de sexta-feira até a noite do Sábado seguinte (12 de julho de 1789), quando voltei a caminhar no mesmo local solitário. Ali, num estado de lutuosa melancolia, tentei rezar; mas não encontrei ânimo para entregar-me a essa ou a qualquer outra obrigação; meus interesses, exercícios e afeições religiosas anteriores haviam desaparecido. Cuidei que o Espírito de Deus me deixara de todo; apesar disso, ainda não estava angustiado; estava, porém, desconsolado, como se não houvesse nada no céu nem na tetra que pudesse fazer-me feliz. Tendo assim tentado rezar - embora, como eu supunha, de modo muito estúpido e sem sentido - por quase meia hora; nisso, enquanto eu caminhava pelo meio de denso bosquete de árvores, uma glória indizível pareceu abrir-se à apreensão da minha alma. Não me refiro a nenhum brilho externo, nem a percepção alguma de um corpo de luz, mas a uma nova apreensão interior, ou visão, que eu tivera de Deus, qual nunca a tivera até então, nem de coisa alguma que tivesse a menor semelhança com ela. Eu não tinha nenhuma apreensão particular de determinada pessoa da Trindade, nem do Pai, nem do Filho, nem do Espírito Santo; mas parecia ser a glória Divina. Minha alma regozijou-se com uma alegria indizível ao ver um tal Deus, um tal glorioso Ser Divino; e eu estava interiormente agradado e satisfeito de que ele fosse Deus acima de todos e para todo o sempre. Minha alma estava tão cativada e deliciada pela excelência de Deus que sempre me senti absorvido nele; tanto que nem sequer pensei na minha própria salvação, e escassamente refleti que existia uma criatura como eu. Continuei nesse estado de alegria, paz e assombro interiores até quase o escurecer, sem nenhum abatimento sensível; e, então, principiei a ponderar a examinar o que vira; e sentime suavemente composto em minha mente durante toda a noite que se seguiu. Senti-me num mundo novo, e tudo ao meu redor se apresentava com um aspecto diferente daquele com que costumava apresentar-se. Nessa ocasião, o caminho da salvação abriu-se para mim com tão infinita sabedoria, propriedade e excelência que pasmei de haver podido, alguma vez, pensar em qualquer outro caminho de salvação; maravilhei-me de não haver largado meus próprios planos e enveredado antes por esse lindo, bendito e excelente caminho. Se eu pudesse salvar-me por minhas próprias orações ou por qualquer outro modo que engenhara anteriormente, toda a minha alma o teria recusado agora. Admirava-me de que o mundo inteiro não visse e adotasse este caminho de salvação, por meio exclusivo da justiça do Cristo.” {116} Grifei o trecho que registra a exaustão da emoção ansiosa, até então habitual. Numa grande proporção de relatos, talvez na maioria deles, os autores falam como se a exaustão da emoção inferior e a entrada da emoção superior fossem simultâneas, {117} mas com a mesma frequência falam como se a superior expelisse ativamente a inferior. Isso é indubitavelmente verdadeiro em muitíssimos casos, como logo veremos. Não raro, porém, parece haver poucas dúvidas de que ambas as condições — o amadurecimento subconsciente de uma afeição e a exautação da outra conspiram simultaneamente, em ordem a produzir o resultado. T. W. B., um convertido de Nettleton, levado a um, paroxismo agudo de convicção do pecado, não comeu nada o dia inteiro, fechou-se no quarto à noite, presa de completo desespero, perguntando em voz alta: “Até quando, ó Senhor, até quando?” “Depois de repetir esta e outras frases semelhantes”, diz ele, “várias vezes, tive a impressão de que me deixava cair num estado de insensibilidade. Ao tomar em mim, surpreendi-me de joelhos, rezando não por mim, senão por outros. Senti-me submisso à vontade de Deus, desejando que ele fizesse comigo o que parecesse bom à sua vista. O meu interesse se diria inteiramente perdido no interesse dos outros.”{118} O nosso grande revivalista americano, Finney, escreve: “Perguntei a mim mesmo: ‘Que é isto? Devo ter esgotado tanto o Espírito Santo que o afastei inteiramente de mim. Perdi toda a minha convicção. Não tenho a menor parcela de preocupação com respeito à minha alma; e isso deve ser porque o Espírito me deixou.’ ‘Por quê?’ perguntei entre mim, ‘nunca estive tão longe, em minha vida, de preocupar-me com a minha própria salvação.’ … Tentei rememorar minhas convicções, recuperar a carga de pecado debaixo da qual eu estivera laborando. Debalde procurei tomar-me ansioso outra vez. Sentia-me tão calmo e tranquilo que tentei sentir-me preocupado com isso, receoso de que esse fosse o resultado de haver eu desgostado o Espírito, por essa maneira afastando-o de mim.”{119} Mas não há dúvida alguma de que existem pessoas nas quais, independentemente de qualquer exaustão de capacidade sentimental do Sujeito, ou até na ausência de qualquer sentimento anterior agudo, a condição superior, tendo alcançado o devido grau de energia, rompe através de todas as barreiras e precipita-se, impetuosa, como torrente súbita. Estes são os casos mais notados e memoráveis, os casos de conversão instantânea a que a concepção da divina graça está mais peculiarmente ligada. Apresentei um deles na íntegra - o caso do Sr. Bradley. Mas acho melhor deixar os outros, com os meus comentários sobre o resto do assunto, para a próxima conferência. X Conferência CONVERSÃO (CONCLUSÃO) Nesta conferência, temos de rematar o assunto da Conversão, considerando primeiro aqueles notáveis casos instantâneos, dos quais o de São Paulo é o mais eminente, e nos quais, não raro no meio de tremenda excitação emocional ou perturbação dos sentidos, se estabelece uma completa divisão, num piscar de olhos, entre a vida antiga e a nova. A conversão desse tipo é uma fase importante da experiência religiosa, em razão do papel que ela representou na teologia protestante, e cumpre-nos estudá-la conscienciosamente por esse motivo. Creio que devo citar dois ou três casos antes de passar a uma exposição mais generalizada. Precisamos conhecer primeiro casos concretos; pois, como costumava dizer o Professor Agassiz, não podemos ver mais longe numa generalização do que no-lo permite o prévio conhecimento dos particulares. Reportar-me-ei, portanto, ao caso do nosso amigo Henry Alline, e citarei sua narrativa do dia 26 de março de 1775, em que sua pobre mente dividida se unificou de uma vez por todas. “Estando eu vagueando, mais ou menos à hora do pôr-do-sol, nos campos, lamentando minha miserável condição perdida e arruinada, e quase pronto para afundar debaixo do meu fardo, refleti que eu me achava num estado tão miserável como nenhum homem estivera antes. Voltei para casa e, chegado à porta, no momento em que transpunha o limiar, as seguintes impressões me invadiram a mente como uma vozinha baixa, mas poderosa. Você tem andado procurando, orando, reformando, laborando, lendo, ouvindo e meditando, e o que foi que fez com tudo isso pela sua salvação? Está mais próximo agora da conversão do que estava quando começou? Está mais preparado para o céu, ou mais aparelhado para apresentar-se à barra imparcial do tribunal de Deus, do que no dia em que principiou a procurar? “Isso gerou em mim tamanha convicção que me vi obrigado a dizer que não supunha estar um passo sequer mais perto do que no princípio, mas tão condenado, tão exposto e tão miserável quanto antes. Gritei dentro de mim, Ó Senhor Deus, estou perdido, e se tu, ó Senhor, não encontrares algum caminho novo, que desconheço, nunca serei salvo, porque os caminhos e métodos que me tenho prescrito falharam todos e eu mesmo quis que eles falhassem. Ó Senhor, tem misericórdia! Ó Senhor, tem misericórdia! “Esses descobrimentos continuaram até que entrei na casa e me sentei. Sentado, cheio de confusão, como um homem a pique de afogar-se, que justamente se dava por perdido e numa quase agonia, virei-me subitamente na cadeira e, vendo parte de uma velha Bíblia numa das mesas, peguei-a à pressa; abrindo-a sem nenhuma premeditação, meus olhos deram com o Salmo 38, e foi a primeira vez que vi a palavra de Deus: apoderou-se de mim com tamanha força que parecia atravessar-me toda a alma, de modo que se diria que Deus estava rezando em mim, comigo e por mim. Mais ou menos a essa hora meu pai chamou a família para as orações; fui ter com ele, mas não atentei para o que ele dizia na oração, e continuei a rezar com as palavras do Salmo. Oh, ajudame, ajuda-me! gritei, tu, Redentor de almas, salva-me, ou estarei perdido para sempre; podes esta noite, se o quiseres, com uma gota do teu sangue, expiar meus pecados e aplacar a cólera de um Deus irado. Naquele exato momento, quando entreguei tudo a ele para que fizesse comigo o que lhe aprouvesse, e estava querendo que Deus me governasse a seu talante, o amor redentor irrompeu em minha alma com repetidas escrituras, com tanta força que toda a minha alma parecia derreter-se de amor; o fardo da culpa e da condenação desaparecera, a treva fora expulsa, meu coração transbordava de humildade e gratidão, e toda a minha alma, que, minutos antes, gemia debaixo de montanhas de morte e gritava por socorro a um Deus desconhecido, estava agora cheia de amor imortal, librando-se nas asas da fé, libertada das cadeias da morte e da treva, e gritando, Meu Senhor e meu Deus: és minha rocha e minha fortaleza, meu escudo e minha torre, minha vida, minha alegria, o meu presente e minha parte na eternidade. Erguendo os olhos, julguei ver a mesma luz [ele vira, em mais de uma ocasião anterior, subjetivamente, uma luz muito intensa], embora parecesse diferente; e, tanto que a vi, compreendi-lhe o intento, de acordo com a sua promessa, e fui obrigado a gritar: Basta, basta, ó Deus bendito! O trabalho da conversão, a mudança e as suas manifestações não são mais contestáveis do que a luz que vejo, ou do que qualquer coisa que já vi. “No meio de todas as minhas alegrias, menos de meia hora depois que minha alma foi posta em liberdade, o Senhor me desvelou o meu trabalho no sacerdócio e chamou-me para pregar o evangelho. Gritei, Assim seja, Senhor, irei; manda-me, mandame. Passei a maior parte da noite em êxtases de alegria, louvando e adorando o Eterno por sua graça livre e sem limites. Após ter estado por tanto tempo absorto nesses transportes, minha natureza pareceu exigir o repouso, e pensei em cerrar os olhos por alguns momentos; nisso, entrou o demônio e me disse que, se eu adormecesse, perderia tudo aquilo e, quando acordasse na manhã seguinte, descobriria que tudo não fora mais que fantasia e ilusão. Imediatamente gritei, Ó Senhor Deus, se eu estiver iludido, desilude-me. “Fechei-me então os olhos por alguns minutos, e creio que o sono me restaurou; quando acordei, minha primeira pergunta foi, Onde está o meu Deus? E, numa fração de segundo, minha alma pareceu despertar em Deus e com ele, cercada pelos braços do amor sempiterno. Ao nascer do sol, ergui-me com alegria a fim de contar a meus pais o que Deus fizera por minha alma, e declareilhes o milagre da graça ilimitada de Deus. Peguei a Bíblia para mostrar-lhes as palavras impressas por Deus em minha alma na véspera; mas, quando a abri, a Bíblia me pareceu inteiramente nova. “Eu ambicionava tanto ser útil à causa de Cristo, pregar o evangelho, que parecia já não poder ficar inativo por mais tempo; precisava sair para contar a todos as maravilhas do amor redentor. Perdi o gosto dos prazeres carnais e da companhia carnal, e foime permitido abrir mão deles.”{120} O jovem Sr. Alline, depois da mais breve das delongas, e sem nenhum outro aprendizado livresco além do fornecido pela Bíblia, e nenhuma instrução a não ser a da própria experiência, tomou-se ministro cristão e, dali por diante, pela austeridade e sinceridade sua vida pôde ombrear com a dos santos mais devotos. Mas conquanto fosse feliz à sua maneira corajosa, nunca mais recuperou o gosto nem mesmo pelo mais inocente dos prazeres carnais. Temos de classificá-lo, juntamente com Bunyan e Tolstoi, entre aqueles em cuja alma O ferro da melancolia deixou impressão permanente. Sua redenção operou-se em outro universo que não o deste mero mundo natural, e a vida continuou a ser para ele triste e paciente provação. Anos depois vamos encontrá-lo deixando registrado o seguinte reparo em seu diário: “Na quartafeira, dia 12, preguei num casamento e tive a felicidade, por esse modo, de enxotar a folgança sexual”. Em seguida, apresentarei o caso de um correspondente do Professor Leuba, estampado no artigo deste último, já citado, no volume VI do American Journal of Psychology. O sujeito, graduado de Oxford, era filho de clérigo, e a história semelha, em muitos pontos, o caso clássico do Coronel Gardiner, que se pode imaginar que toda a gente conheça. Aqui está ele, um tanto resumido: “Entre o período em que deixei Oxford e o da minha conversão, nunca visitei a igreja de meu pai, embora vivesse com ele oito anos, ganhando quanto dinheiro queria com o jornalismo, e gastando-o em grandes bambochatas com quem quisesse sentar-se comigo para beber. Assim vivia eu, às vezes bêbedo por uma semana inteira, mas salteado depois por terrível arrependimento, que me impedia de provar uma gota sequer de bebida durante um mês. “Em todo esse período, isto é, até os trinta e três anos de idade, nunca senti o desejo de reformar-me por motivos religiosos. Mas todas as minhas dores se deviam ao terrível remorso que eu costumava sentir depois de uma pesada borracheira, remorso que assumia a forma de pesar pela minha loucura por esperdiçar a vida daquele jeito - um homem de talento e educação superiores. Esse remorso terrível deixou-me grisalho numa noite e, toda vez que ele me acometia, eu me via perceptivelmente mais encanecido na manhã seguinte. O que sofri dessa maneira não o expressam as palavras. Era o fogo do inferno em todas as suas torturas mais pavorosas. Muitas vezes jurei que, se me safasse “daquela vez”, reformar-me-ia. Ai de mim! Três dias depois, plenamente recuperado, sentia-me feliz como sempre. Isso se prolongou por anos a fio mas, com um físico de rinoceronte, eu sempre me recobrava e, toda vez que deixava a bebida em paz, nenhum homem era capaz de apreciar a vida como eu. “Fui convertido em meu próprio quarto, na casa paroquial de meu pai, precisamente às três horas da tarde de um dia quente de julho (13 de julho de 1886). Eu estava em perfeito estado de saúde, pois fazia quase um mês que me afastara da bebida. Não tinha a menor preocupação com a minha alma. De fato, Deus não estava nos meus pensamentos naquele dia. Uma jovem amiga me mandara um exemplar de Natural Law in the Spiritual World, do Professor Drummond, pedindo minha opinião apenas sobre o valor literário da obra. Orgulhoso dos meus talentos críticos e desejoso de subir na estima da minha nova amiga, levei-a para o quarto à procura de tranquilidade, pretendendo submetê-la a um estudo minucioso e, a seguir, escrever o que pensava do livro. Foi aí que Deus se encontrou comigo cara a cara, e nunca me esquecerei do encontro. ‘Aquele que tem o Filho tem a vida eterna, aquele que não tem o filho não tem vida.’ Eu lera essa frase dezenas de vezes antes, mas nesta se resumia toda a diferença. Achava-me agora em presença de Deus e com a atenção absolutamente ‘soldada’ àquele verso, e não me foi permitido prosseguir na leitura do livro enquanto não tivesse considerado direito o que aquelas palavras realmente envolviam. Só então me foi possível continuar, enquanto percebia, o tempo todo, a presença de outro ser em meu quarto, se bem não o visse. A quietude era maravilhosa e eu me sentia supremamente feliz. Dessa maneira se me revelava, indiscutivelmente, num segundo, que eu nunca tocara o Eterno: e que, se morresse então, me perderia de forma inevitável. Eu estava acabado. Sabia-o tão bem quanto sei agora que estou salvo. O Espírito de Deus mostrou-mo com inefável amor; não havia terror nisso; eu sentia o amor de Deus tão forte sobre mim que somente uma tristeza muito grande me invadiu por haver perdido tudo por minha própria loucura; e que havia de fazer? Que poderia fazer? Nem sequer me arrependi; Deus nunca me pediu que me arrependesse. E tudo o que eu sentia era ‘Estou acabado’, e Deus não pode fazer nada, posto que me ame. O Todo-Poderoso não tinha culpa. Durante todo o tempo eu me sentia supremamente feliz: como criancinha diante do pai. Eu errara, mas meu Pai não me repreendera e me amava maravilhosamente. Ainda assim, selara-se-me o destino. Eu estava perdido, sem sombra de dúvida, e, sendo naturalmente de uma disposição corajosa, não me senti desacorçoado, mas uma profunda tristeza pelo passado, misturada com sofrimento pelo que perdera, me avassalou, e minha alma estremeceu dentro de mim ao pensar que tudo se acabara. Nisso, principiou a luzir para mim, delicada, amorosa, indisfarçavelmente, um modo de escapar, e qual era ele afinal? A velha e revelha história outra vez, contada da maneira mais singela: ‘Não há nome algum debaixo do céu pelo qual você possa ser salvo senão o do Senhor Jesus Cristo’. Nenhuma palavra me foi dita; minha alma parecia ver o meu Salvador no espírito e, desde aquela hora até hoje, faz agora quase nove anos, nunca surgiu em minha vida uma dúvida sequer de que o Senhor Jesus Cristo e Deus, o Pai, agiram ambos sobre mim naquela tarde de julho, ambos de modo diferente, e ambos no mais perfeito amor concebível, e eu me regozijei tanto de uma conversão tão surpreendente que toda a aldeia tomou conhecimento dela em menos de vinte e quatro horas. “Mas um tempo de perturbações ainda estava por vir. No dia seguinte ao da minha conversão, fui para o campo de feno a fim de ajudar os aldeões na colheita e, não tendo feito nenhuma promessa a Deus de abster-me de beber ou de beber apenas moderadamente, voltei bêbedo para casa. Minha pobre irmã ficou consternadíssima; e eu, com vergonha de mim mesmo, fui diretamente para o quarto, aonde ela me seguiu, chorando copiosamente. Ela disse que eu me convertera e renegara instantaneamente a conversão. Mas conquanto eu estivesse muito cheio de bebida (mas não embriagado), sabia que a obra de Deus iniciada em mim não seria desbaratada. Por volta do meio-dia fiz, de joelhos, a primeira oração diante de Deus depois de vinte anos. Não pedi que me perdoasse; senti que isso não adiantaria, pois eu tomaria seguramente a cair. Que foi o que fiz? Entreguei-me a ele na mais profunda crença de que a minha individualidade seria destruída, de que ele tiraria tudo de mim, e eu estava disposto a aceitá-lo. Numa entrega dessa natureza reside o segredo de uma vida santa. A partir daquela hora a bebida não tem tido terrores para mim: nunca a toco, nunca a desejo. A mesma coisa aconteceu com o cachimbo: depois de ter sido fumante inveterado desde os doze anos de idade, o desejo dele desfez-se de pronto, e nunca mais voltou. O mesmo aconteceu com todos os pecados conhecidos, e a libertação de cada um foi permanente e completa. Não tenho tido tentação desde a conversão, e parece que Deus excluiu Satanás desse tipo de contato comigo. Ele goza de liberdade em outros sentidos, mas nunca em pecados da carne. Desde que depus nas mãos de Deus toda a propriedade de minha vida, ele me tem guiado de mil maneiras, e abriu-me o caminho de modo quase incrível para os que não desfrutam a bênção de uma vida verdadeiramente entregue a Deus.” Isso quanto ao nosso graduado de Oxford, em quem os senhores notarão a completa abolição de antigo apetite como um dos frutos da conversão. O relato mais curioso de súbita conversão para o Catolicismo, chegado ao meu conhecimento, é o do Sr. Alphonse Ratisbonne, judeu francês livrepensador,. em Roma, em 1842. Em carta dirigida a um amigo clérigo, escrita meses depois, o convertido faz uma narrativa palpitante das circunstâncias. {121} As condições predisponentes parecem ter sido pouco acentuadas. Ele tinha um irmão mais velho, que se convertera e era padre católico. Ele mesmo, irreligioso, nutria antipatia pelo irmão apóstata e, de um modo geral, pela sua “batina”. Achando-se em Roma aos vinte e nove anos de idade, conheceu um cavalheiro francês que tentou fazer dele um prosélito, mas que só conseguiu, depois de duas ou três conversações, que ele concordasse em pendurar (meio por brincadeira) uma medalha religiosa em tomo do pescoço, e aceitar e ler a cópia de uma curta oração à Virgem. O Sr. Ratisbonne descreve sua própria parte nas conversações como de ordem leviana-e brincalhona; mas registra o fato de que, por alguns dias, foi incapaz de banir da mente as palavras da oração e que, na noite anterior à crise, teve uma espécie de pesadelo, entre cujas imagens figurava uma cruz preta sem nenhum Cristo pregado nela. Nada obstante, até o meio-dia do dia seguinte a sua mente continuava livre e ele gastou o tempo em conversações triviais. Apresentou agora suas próprias palavras. “Se naquela ocasião alguém me tivesse abordado, dizendo: ‘Alphonse, daqui a um quarto de hora você estará adorando Jesus Cristo como seu Deus e Salvador; prostrar-se-á com o rosto no pavimento de uma humilde igreja; baterá no peito aos pés de um padre; passará o carnaval num colégio de jesuítas, preparando-se para receber o batismo, pronto para dar a vida pela fé católica; abdicará do mundo e das suas pompas e prazeres; renunciará à sua fortuna, às suas experiências e, se preciso for, à sua noiva; às afeições de sua família, à estima dos seus amigos e ao seu apego ao povo judeu; não terá outra aspiração que a de seguir a Cristo e usar-lhe a cruz até a morte’ - se, repito, um profeta me tivesse procurado com semelhante predição, eu julgaria que só uma pessoa poderia ser mais louca do que ele - a que fosse capaz de acreditar na possibilidade de tal loucura sem sentido transformar-se em realidade. É, no entanto, essa loucura é, presentemente, minha única sabedoria, minha única felicidade. “Saindo do café, deparei com o carro do Sr. B. [o amigo proselitista], Ele se deteve e convidou-me a entrar para darmos um passeio, mas primeiro me pediu que esperasse alguns minutos enquanto cumpria algumas obrigações na igreja de San Andréa delle Fratte. Em vez de ficar esperando no carro, entrei também na igreja para examiná-la. A igreja de San Andréa, pequena e pobre, estava vazia; acredito que ali me encontrei quase a sós. Nenhuma obra de arte me atraiu a atenção; e relanceei a vista mecanicamente pelo seu interior sem me sentir preso por nenhum pensamento particular. Só consigo lembrar-me de um cachorro inteiramente preto que chegou trotando e passou por mim enquanto eu cismava. Num instante, o cachorro desaparecera, a igreja se desfizera, eu já não via coisa alguma, … ou melhor, vi, ó meu Deus, uma coisa apenas. “Céus, como posso falar sobre isso? Oh não! palavras humanas jamais lograrão expressar o inexprimível. Qualquer descrição, por sublime que fosse, seria apenas uma profanação da verdade indizível. “Eu estava lá, prostrado no chão, banhado em minhas próprias lágrimas, com o coração que já não me pertencia, quando o Sr. B. me chamou de volta à vida. Não pude responder às suas perguntas, que se atropelavam umas às outras. Finalmente, peguei a medalha que trazia no peito e, com toda a efusão de minha alma, beijei a imagem da Virgem, radiante de graça, que nela se estampava. Com efeito, era Ela! Era Ela, com efeito! [O que ele vira havia sido uma visão da Virgem.] “Eu não sabia onde estava: não sabia se eu era Alphonse ou outra pessoa. Só me sentia mudado e acreditava ser outro eu; procurei por mim em mim mesmo e não me encontrei. No fundo de minha alma senti uma explosão da mais ardente alegria; não podia falar; não tinha vontade alguma de revelar o que acontecera. Senti, porém, algo solene e sagrado dentro de mim que me fez pedir um padre. Fui conduzido a um sacerdote; e ali, sozinho, depois que ele me deu a ordem positiva, falei o melhor que pude, com o joelho em terra e o coração ainda trêmulo. Eu não conseguia explicar a mim mesmo a verdade da qual adquirira conhecimento e fé. Tudo o que posso dizer é que, num instante, a venda me caíra dos olhos; e não apenas uma venda, senão as muitas vendas em que fora educado. Uma depois da outra, desapareceram rapidamente, assim como desaparecem, sob os raios do sol abrasador, a lama e o gelo. “Saí como quem sai de um sepulcro, de um abismo de trevas; e estava vivo, perfeitamente vivo. Mas chorei porque, no fundo daquela voragem, vi o extremo de miséria de que eu fora salvo por uma infinita misericórdia; e estremeci à vista das minhas iniquidades, estupefato, enternecido, aniquilado de pasmo e gratidão. Você poderá perguntar-me como cheguei a essa nova visão intuitiva pois, na verdade, eu nunca abrira um livro de religião nem lera uma única página da Bíblia, e o dogma do pecado original ou é inteiramente negado ou é esquecido pelos hebreus de hoje, de modo que eu havia pensado tão pouco a esse respeito que duvido até de que algum dia lhe tivesse sabido o nome. Mas como cheguei, então, a essa percepção? Não posso responder coisa alguma, a não ser que, ao entrar na igreja, eu me achava na escuridão total e, ao sair dela, vi a luz em todo o seu esplendor. A melhor maneira de explicar a mudança, no meu entender, é através do símile de um sono profundo ou da analogia de um cego de nascença que abre, de repente, os olhos para a luz do dia. Vê, mas não pode definir a luz que o banha e por cujo intermédio enxerga os objetos que lhe excitam a admiração. Se não podemos explicar a luz física, como explicaremos a luz que é a própria verdade? E creio não estar ultrapassando os limites da veracidade quando digo que, sem ter nenhum conhecimento da letra da doutrina religiosa, naquele instante, lhe percebi intuitivamente o sentido e o espírito. Melhor do que se as visse, senti aquelas coisas ocultas; senti-as pelos efeitos inexplicáveis que produziram em mim. Tudo aconteceu em minha mente interior; e tais impressões, mais rápidas que o pensamento, abalaram, revolveram e viraram minha alma, por assim dizer, em outra direção, para outras metas, por outros caminhos. Não me expresso bem. Mas acaso queres, Senhor, que eu encerre em palavras pobres e ocas sentimentos que só o coração pode compreender?” Eu poderia multiplicar quase indefinidamente os casos, mas estes bastarão para mostrar-lhes que uma conversão subitânea pode ser, para quem a experimenta, um evento real, definido e memorável. No auge do acontecimento, ele parece indubitavelmente a si mesmo um espectador ou um paciente passivo de um processo assombroso executado nele desde o alto. As provas disso são tantas que não é possível dúvida alguma nesse sentido. Combinando esse fato com a doutrina da eleição e da graça, a teologia concluiu que o espírito de Deus está conosco nesses momentos dramáticos de um modo especialmente milagroso, à diferença do que ocorre em qualquer outra conjuntura de nossa vida. Nesse momento, acredita a teologia, uma natureza absolutamente nova é insuflada em nós, fazendo-nos partícipes da própria substância da Divindade. Que a conversão seja instantânea parece indispensável a essa maneira de ver as coisas, e dir-se-á que os protestantes morávios foram os primeiros a perceber essa consequência lógica. Os metodistas não se demoraram a seguir-lhes o exemplo, praticamente se não dogmaticamente, e pouco tempo antes de sua morte John Wesley escreveu: “Só em Londres encontrei 652 membros da nossa Sociedade que foram excessivamente claros em sua experiência, e de cujo testemunho não vejo razões para duvidar. E cada um deles (sem uma única exceção) declarou que a sua libertação do pecado foi instantânea; que a mudança se operou num momento. Se a metade deles, ou um terço, ou um vinte avos, houvesse declarado que ela fora gradualmente operada neles, eu teria acreditado nisso em relação a eles, e pensaria que alguns tinham sido santificados gradativamente e outros instantaneamente. Mas como não encontrei, em tão longo espaço de tempo, uma única pessoa que falasse assim, não posso menos de acreditar que a santificação é comumente, se não sempre, uma obra instantânea.” Vida de Wesley, de Tyerman, I. 463. Durante todo esse tempo, as seitas mais comuns do Protestantismo não fizeram grande caso da conversão instantânea. Para elas, como para a Igreja Católica, o sangue de Cristo, os sacramentos e as obrigações religiosas ordinárias do indivíduo bastam, praticamente, à sua salvação, mesmo que ele não experimente nenhuma crise aguda de desespero e de renúncia seguida de alívio. Para o Metodismo, ao contrário, se não tiver havido uma crise desse gênero, a salvação é apenas oferecida e não efetivamente recebida, e o sacrifício de Cristo, portanto, é incompleto. O Metodismo segue aqui, sem dúvida, se não o equilibrado mental, pelo menos, de um modo geral, o instinto espiritual mais profundo. Os modelos individuais que ele estabeleceu como típicos e dignos de imitação não são apenas os mais interessantes dramaticamente, mas psicologicamente têm sido os mais completos. No Revivalismo plenamente evoluído da Grã-Bretanha e da América temos, por assim dizer, o procedimento codificado e estereotipado a que esta maneira de pensar conduziu. Em que pese ao fato indiscutível de existirem santos do tipo nascido-uma-vez, e de poder haver um crescimento gradativo da santidade sem um cataclismo; apesar do manifesto vazamento (se assim nos pudermos expressar) de muita bondade natural para o esquema da salvação; o revivalismo sempre afirmou que apenas o seu tipo de experiência religiosa pode ser perfeito; precisamos primeiro ser pregados na cruz do desespero e da agonia naturais, para depois, num piscar de olhos, ser milagrosamente libertados. É natural que os que passaram pessoalmente por uma experiência dessa natureza tragam consigo o sentimento de que isso foi mais um milagre do que um processo natural. Ouvem-se a miúdo vozes, vêem-se luzes, presenciam-se visões; ocorrem fenômenos motores automáticos; e tem-se sempre a impressão, após a renúncia da vontade pessoal, de que um poder estranho, mais elevado, inundou o íntimo do indivíduo e tomou posse dele. Além disso, o sentido de renovação, segurança, limpeza, retidão, pode ser tão maravilhoso e exultante que justifica a nossa crença numa natureza substancial radicalmente nova. “A conversão”, escreve o Puritano da Nova Inglaterra, Joseph Alleine, “não é a colocação de um remendo de santidade; mas no caso do verdadeiro convertido, a santidade se entrelaça com todos os seus poderes, princípios e práticas. O cristão sincero é uma fábrica inteiramente nova, desde os alicerces até a última pedra. É um homem novo, uma nova criatura.” E Jonathan Edwards diz, no mesmo sentido: “As graciosas influências, efeitos do Espírito de Deus, são de todo sobrenaturais diferentes de qualquer coisa que experimentam os homens impenitentes. São o que nenhum melhoramento, nem composição de qualificações ou princípios naturais jamais produzirão; porque não somente diferem do que é natural, e de tudo o que os homens naturais experimentam em grau e circunstâncias, senão também em espécie, como são de uma natureza muito mais excelente. Disso se segue que nas afeições graciosas há [também] novas percepções e sensações inteiramente diferentes, em sua natureza e espécie, de qualquer coisa experimentada pelos [mesmos] santos antes de terem sido santificados. … As concepções que os santos têm da beleza de Deus, e o tipo de deleite que experimentam nela, são peculiaríssimos e inteiramente distintos de tudo o que o homem natural pode possuir, ou de que possa formar alguma noção apropriada.” E Edwards mostra, em outro passo, que uma transformação gloriosa como essa deve, por força, ser precedida do desespero. “Por certo não pode ser desarrazoado”, diz ele, “que, antes de libertar-nos de um estado de pecado e de risco de condenação eterna, Deus nos dê algum sentido considerável do mal de que nos livra, a fim de podermos conhecer e sentir a importância da salvação e sermos capazes de apreciar o valor do que lhe compraz fazer por nós. Como os que são salvos estão sucessivamente em dois estados muito desiguais - primeiro um estado de condenação e, em seguida, um estado de justificação e bem-aventurança - e como Deus, na salvação dos homens, trata-os como criaturas racionais e inteligentes, parece agradável à sua sabedoria que os salvos se tomem conscientes do seu próprio Ser, nos dois estados diferentes. Em primeiro lugar, que se tomem conscientes do seu estado de condenação; e, em segundo lugar, que sejam conscientes do seu estado de libertação e de felicidade.” Tais citações exprimem suficientemente bem para o nosso intento a interpretação doutrinária dessas mudanças. Seja qual for o papel que a sugestão e a imitação possam ter representado no produzi-las em homens e mulheres em assembléias superexcitadas, elas têm sido, de qualquer modo, num sem-número de casos individuais, uma experiência original e não emprestada. Se estivéssemos escrevendo a história da mente de um ponto de vista de história puramente natural, sem nenhum interesse religioso, ainda teríamos de registrar o fato de estar o homem sujeito à súbita e completa conversão como uma de suas mais curiosas peculiaridades. Que devemos pensar agora a respeito dessa questão? A conversão instantânea é um milagre a que Deus está presente, como não está presente a nenhum movimento menos notavelmente abrupto de ânimo? Existem duas classes de seres humanos, até entre os aparentemente regenerados, uma das quais realmente participa da natureza de Cristo, ao passo que a outra apenas parece fazê-lo? Ou, pelo contrário, todo fenômeno da regeneração, até nesses impressionantes exemplos instantâneos, pode ser um processo rigorosamente natural, divino em seus frutos, é claro, mas não mais num do que no outro caso, e nem mais nem menos divino em sua causalidade e em seu mecanismo do que qualquer outro processo, elevado ou inferior, da vida interior do homem? Antes de passar a responder a essa pergunta, preciso pedir-lhes que atentem para mais alguns reparos psicológicos. Em nossa última conferência, expliquei a mudança de lugar dos centros de energia pessoal no interior dos homens e o surgimento de novas crises de emoção. Expliquei os fenômenos não só como se devessem, em parte, a processos de pensamento e vontade explicitamente conscientes, mas também como se devessem, em grande parte, à incubação e maturação subconsciente de motivos depositados pelas experiências da vida. Maduros, os resultados saem da casca ou desabrocham. Tenho agora de falar, de maneira um pouco menos vaga; da região subconsciente em que tais processos de florescência podem ocorrer. Só lamento que os limites do meu tempo me obriguem a ser tão sucinto. A expressão “campo da consciência” só recentemente entrou em voga nos livros de psicologia. Até há muito pouco tempo, a unidade da vida mental que figurava com maior frequência era a singular “idéia”, que se supunha ser uma coisa definidamente delineada. Hoje em dia, porém, os psicólogos tendem, primeiro, a admitir que a unidade real mais provável é o estado mental total, toda a onda da consciência ou campo de objetos presente ao pensamento a qualquer momento; e, segundo, a ver que não se pode delinear essa onda, esse campo, de maneira definida. Como os nossos campos mentais se sucedem uns aos outros, cada qual tem o seu centro de interesse, em tomo do qual os objetos de que somos menos, ou menos atentamente, conscientes se perdem numa margem tão indistinta que não se lhes podem fixar os limites. Alguns campos são estreitos e alguns são amplos. De ordinário nos regozijamos quando temos um campo largo, pois vemos então, juntas, massas de verdade e, não raro, obtemos vislumbres de relações que mais adivinhamos do que vemos, pois elas se projetam além do campo, em regiões de objetividade ainda mais remota, regiões que antes parecemos em vias de perceber do que percebemos realmente. Em outras ocasiões, de letargia, doença ou fadiga, nossos campos parecem estreitar-se até reduzir-se quase a um ponto, e nós nos vemos correspondentemente oprimidos e encolhidos. Diferentes indivíduos apresentam diferenças constitucionais na questão da amplitude do campo. Os grandes gênios organizadores que os senhores conhecem são homens que têm, habitualmente, vastos campos de visão mental, em que todo um programa de operações futuras aparecerá desenhado ao mesmo tempo, e cujos raios se projetam muito à frente, em direções definidas de avanço. Nas pessoas comuns nunca existe essa magnífica visão total de um tópico. Elas andam aos tropeções, tateando o caminho, por assim dizer, indo de um ponto a outro e, muitas vezes, parando de todo. Em certos estados enfermiços a consciência é uma simples centelha, sem memória do passado nem pensamento do futuro, e com o presente tão estreitado que se resume numa simples emoção ou sensação física. O fato importante que a fórmula do “campo” comemora é a indeterminação da margem. Embora desatentamente compreendida como é, a matéria que a margem contém está lá e nos ajuda não só a orientar o nosso comportamento mas também a determinar o movimento seguinte da nossa atenção. Circunda-nos como um “campo magnético”, em cujo interior o nosso centro de energia gira como a agulha de uma bússola, quando a fase presente da consciência se altera e transforma na fase seguinte. Todo o nosso depósito passado de lembranças flutua além da margem, pronto para entrar ao menor toque; e toda a massa de poderes, impulsos e conhecimentos residuais, que constitui o nosso eu empírico, se estende continuamente além dele. Tão vagamente esboçada é a linha entre o real e o apenas potencial, a qualquer momento da nossa vida consciente, que é sempre difícil dizer se estamos ou não conscientes de certos elementos mentais. Reconhecendo plenamente a dificuldade de traçar o contorno marginal, a psicologia comum admite como demonstrado, apesar disso, primeiro, que toda a consciência que a pessoa tem agora, seja ela focal ou marginal, desatenta ou atenta, está no “campo” do momento, por mais vago e impossível de determinar que seja o perfil deste último; e, segundo, que o absolutamente extramarginal inexiste absolutamente, e não pode ser nunca um fato de consciência. E tendo chegado a esse ponto, preciso pedir-lhes que rememorem o que eu disse na última conferência a respeito da vida subconsciente. Eu disse, como os senhores devem estar lembrados, que os que primeiro enfatizaram esses fenômenos não poderiam conhecer os fatos como hoje os conhecemos. Meu primeiro dever agora é explicar-lhes o que pretendi dizer com essa afirmação. Não posso deixar de pensar que o passo mais importante dado pela psicologia desde que me pus a estudar essa ciência foi o descobrimento, em 1886, de que, em certos sujeitos pelo menos, não há apenas a consciência do campo ordinário, com o seu centro e a sua margem usuais, senão também algo adicional na forma de um conjunto de lembranças, pensamentos e sentimentos extramarginais e de todo fora da consciência primária, mas que, apesar disso, precisam ser classificados como fatos conscientes de alguma espécie, capazes de revelar sua presença por meio de sinais inequívocos. Chamo a este o passo mais importante porque, à diferença de outros progressos da psicologia, tal descobrimento nos revelou uma peculiaridade inteiramente insuspeitada na constituição da natureza humana. Nenhum outro passo dado pela psicologia pode ter pretensão semelhante. O descobrimento de uma consciência existente além do campo, ou subliminalmente, como lhe chama o Sr. Myers, projeta luz, em particular, sobre muitos fenômenos da biografia religiosa. Eis aí a razão por que tenho de aludir a ela agora, embora me seja naturalmente impossível, a esta altura, dar conta da evidência em que se baseia a admissão dessa consciência. Os senhores a encontrarão exposta em muitos livros recentes, sendo o Alterações da Personalidade de Binet{122} tão recomendável como o que mais o seja. O material humano com o qual se tem feito a demonstração até agora tem sido limitado e, pelo menos em parte, excêntrico, consistindo em sujeitos hipnóticos insolitamente sugestíveis e pacientes histéricos. No entanto, os mecanismos elementares da nossa vida são presumivelmente tão uniformes que o que se revela verdadeiro, em determinado grau, em algumas pessoas é provavelmente verdadeiro, em certo grau, em todas, e pode ser verdadeiro, numas poucas pessoas, em grau extraordinariamente alto. A consequência mais importante de se ter uma vida ultramarginal desse tipo vigorosamente desenvolvida é que os campos ordinários de consciência estão sujeitos a incursões dela, de cuja origem o sujeito não tem a menor idéia e que, portanto, assumem para ele a forma de inexplicáveis impulsos para agir, inibições, idéias obsessivas e até alucinações da vista ou da audição. Os impulsos podem tomar a direção da fala ou escrita automática, cujo significado o próprio sujeito talvez não entenda enquanto a pronuncia; e, generalizando o fenômeno, o Sr. Myers deu o nome de automatismo, sensorial ou motor, emocional ou intelectual, a toda essa esfera de efeitos, devidos a “irrupções”, na consciência ordinária, de energias procedentes das partes subliminais da mente. O caso mais simples de automatismo é o fenômeno da chamada sugestão pré-hipnótica. Damos a um sujeito hipnotizado, adequadamente susceptível, a ordem para executar algum ato determinado - usual ou excêntrico, não importa - depois que acordar do sono hipnótico. Pontualmente, quando chega o sinal ou se escoa o tempo no qual lhe dissemos que o ato deve ocorrer, ele o executa; ao fazê-lo, porém, não tem lembrança da nossa sugestão, e sempre forja um pretexto improvisado para o seu comportamento se o ato for de uma espécie excêntrica. Pode-se até sugerir ao sujeito que tenha uma visão ou ouça uma voz num certo momento após o despertar e, chegado o momento, a visão é vista ou a voz ouvida sem que o sujeito tenha a mínima suspeita da sua origem. Nas maravilhosas experiências levadas a cabo por Binet, Janet, Breuer, Freud, Mason, Prince e outros, da consciência subliminal de pacientes com histeria, revelam-se-nos sistemas inteiros de vida subterrânea, em forma de lembranças de um tipo doloroso, que levam uma existência parasítica, enterrados fora dos campos primários da consciência e que nela fazem irrupções com alucinações, dores, convulsões, paralisias de sentimento e movimento e toda a procissão de sintomas de doença histérica do corpo e da mente. Alterem-se ou suprimam-se, pela sugestão, tais lembranças subconscientes e o paciente ficará imediatamente bom. Seus sintomas eram automatismos, no sentido que o Sr. Myers dá à palavra. Esses registros clínicos nos parecem contos de fadas quando os lemos pela primeira vez e, todavia, é impossível duvidar-lhes da exatidão; e, tendo sido aberto o caminho pelos primeiros observadores, observações similares têm sido feitas alhures, que projetam, como eu disse, uma luz inteiramente nova sobre a nossa constituição natural. E a mim me parece que elas tomam inevitável um passo ulterior. Interpretando o desconhecido pela analogia do conhecido, tenho a impressão de que, daqui por diante, toda vez que toparmos com um fenômeno de automatismo, seja na forma de impulsos motores, seja na de idéia obsessiva, capricho sem explicação, ilusão ou alucinação, ver-nos-emos inclinados, primeiro que tudo, a inquirir se não se trata de uma explosão, nos campos da consciência ordinária, de idéias elaboradas fora desses campos, em regiões subliminais da mente. Devemos, portanto, procurar-lhe a origem na vida subconsciente do Sujeito. Nos casos hipnóticos, nós mesmos criamos a origem com a nossa sugestão, por isso a conhecemos diretamente. Nos casos histéricos, as lembranças perdidas que são a fonte terão de ser extraídas do Subliminal do paciente por certo número de métodos engenhosos, que os senhores encontrarão descritos em livros. Em outros casos patológicos, ilusões insanas, por exemplo, ou obsessões psicopáticas, a fonte ainda precisa ser procurada mas, por analogia, também deve estar em regiões subliminais, de onde os aperfeiçoamentos realizados em nossos métodos ainda nos permitirão desencová-la. Ali está o mecanismo que deve ser logicamente presumido-se bem a presunção envolva um vasto programa de trabalho a ser feito à guisa de verificação, em que as experiências religiosas do homem têm de representar o seu papel.{123} E, assim, volto ao nosso assunto específico das conversões instantâneas. Os senhores hão de lembrar-se dos casos de Alline, Bradley, Brainerd e do graduado de Oxford convertido às três horas da tarde. Abundam as ocorrências similares, algumas com visões luminosas, e algumas sem elas, mas todas com um sentido de felicidade maravilhada e de terem sido operadas por um controle mais alto. Se, abstraindo de todo a questão do seu valor para a vida espiritual futura do indivíduo, as tomarmos exclusivamente pelo lado psicológico, tantas peculiaridades suas nos lembram o que encontramos fora da conversão, que somos tentados a classificá-las ao lado de outros automatismos, e a suspeitar de que o que constitui a diferença entre uma conversão súbita e uma conversão gradual não é necessariamente a presença do milagre divino no caso de uma e de algo menos divino no caso de outra, mas antes uma simples peculiaridade psicológica, a saber, o fato de que no recebedor da graça mais instantânea temos um desses Sujeitos que estão de posse de ampla região em que o trabalho mental prossegue subliminalmente, e do qual podem irromper experiências invasivas, que perturbam de repente o equilíbrio da consciência primária. Não vejo por que os metodistas devam objetar a esse modo de ver. Tenham a bondade de voltar atrás e recordar uma das conclusões a que procurei conduzi-los na primeira conferência. Os senhores devem estar lembrados de que ali aduzi a argumentos contra a idéia de que o valor de uma coisa se decide pela sua origem. Eu disse então que o nosso juízo espiritual, a nossa opinião da importância e do valor de um evento ou condição humana, precisa ser decidido exclusivamente sobre bases empíricas. Se os frutos para a vida do estado de conversão são bons, devemos idealizá-lo e venerálo, ainda que seja uma peça de psicologia natural; em caso contrário, devemos livrar-nos dele o mais depressa possível, seja qual for o ser sobrenatural que possa tê-lo inspirado. Pois bem, que dizer desses frutos? Se excetuarmos a classe dos santos notáveis, cujos nomes iluminam a história, e considerarmos apenas a série costumeira de “santos”, os membros mais prosaicos de igrejas e os recebedores comuns, jovens e de meia idade, da conversão instantânea, quer em revivescências, quer no curso espontâneo do crescimento metodista, os senhores provavelmente concordarão comigo em que não se irradia deles nenhum esplendor digno de uma criatura totalmente sobrenatural, e tampouco os separa dos mortais que nunca lograram esse favor. Se fosse verdade que o homem subitamente convertido pertence, como diz Edwards,{124} a uma espécie inteiramente diferente da do homem natural, compartindo, como comparte, diretamente da substância de Cristo, deveria exibir, por certo, alguma marca especial característica, algum resplendor distintivo capaz de atrair até o espécime mais baixo desse gênero, a que nenhum de nós conseguiria permanecer insensível, e que, por si só, revelaria ser ele o mais excelente, o mais altamente dotado entre os simples homens naturais. Mas não existe, evidentemente, um resplendor dessa casta. Como classe, os homens convertidos não se distinguem dos naturais; alguns naturais até excelem em seus frutos sobre alguns convertidos; e nenhum ignorante da teologia doutrinária adivinharia, pela mera inspeção cotidiana dos “acidentes” dos dois grupos de pessoas à sua frente, que a substância deles difere uma da outra tanto quanto a substância divina difere da humana. Os que acreditam no caráter não-natural da conversão repentina tiveram praticamente de admitir que não existe uma marca distintiva inconfundível dos verdadeiros convertidos. Os incidentes super normais, como vozes, visões e impressões irresistíveis do significado dos textos da escritura subitamente apresentados, as emoções de enternecimento e as afeições tumultuosas ligadas à crise da mudança, podem ser todas produzidas pela natureza ou, o que é pior ainda, simuladas por Satanás. O verdadeiro testemunho da presença do espírito por ocasião do segundo nascimento só se encontra na disposição do autêntico filho de Deus, no coração permanentemente paciente, na erradicação do amor próprio. E cumpre admitir que isso também se descobre em pessoas que não passam por crise nenhuma, e podem estar até completamente fora do Cristianismo. Em toda a descrição, admiravelmente rica e delicada, feita por Jonathan Edwards, da condição inspirada sobrenaturalmente, em seu “Tratado das Afeições Religiosas”, não há um traço decisivo, uma única marca, que o distinga do que pode ser apenas um grau excepcionalmente alto de bondade natural. Com efeito, dificilmente se poderia ler um argumento mais claro do que o que esse livro oferece, sem querer, em favor da tese de que não existe solução de continuidade entre as ordens de excelência humana, senão que, aqui como alhures, a natureza mostra diferenças contínuas, e que a geração e a regeneração são questões de grau. Entretanto, a negação de duas classes objetivas de seres humanos separadas por um brecha não deve deixar-nos cegos à extraordinária importância do fato da própria conversão para o indivíduo convertido. Há limites superiores e inferiores de possibilidade fixados para cada vida pessoal. Se uma enchente mal nos cobre a cabeça, sua elevação absoluta passa a ser uma questão de pequena importância; e quando tocamos nosso próprio limite superior e vivemos em nosso mais alto centro de energia, podemos dizermo-nos salvos, por mais alto que esteja, em relação ao nosso, o centro de outra pessoa. A salvação de um homem pequeno será sempre uma grande salvação e o maior de todos os fatos para ele, e devemos lembrarmonos disso quando os frutos da nossa evangelização nos parecerem desalentadores. Quem sabe o quanto menos ideal ainda poderiam ter sido as vidas dessas larvas e vermes espirituais, esse Crumps e Stigginses, se a pobre graça que receberam nunca os tivesse tocado?{125} Se arrumarmos mais ou menos os seres humanos em classes, cada uma das quais representando um grau de excelência espiritual, acredito que encontraremos homens naturais e convertidos, tanto repentina como gradualmente, em todas as classes. As formas que a mudança regenerativa produz não têm, portanto, nenhuma significação espiritual, mas apenas uma significação psicológica. Vimos que os laboriosos estudos estatísticos de Starbuck tendem a assemelhar a conversão ao crescimento espiritual ordinário. Outro psicólogo americano, o Prof. George A. Coe,{126} analisou os casos de setenta e sete convertidos ou ex-candidatos à conversão, conhecidos dele, e os resultados confirmam de maneira notável a opinião de que a conversão súbita está ligada à posse de um eu subliminal ativo. Examinando os sujeitos com referência à sensibilidade hipnótica e a automatismos, como alucinações hipnagógicas, impulsos estranhos, sonhos religiosos a respeito do momento da conversão, etc., ele descobriu que tais manifestações são relativamente muito mais frequentes no grupo de convertidos cuja transformação havia sido “impressionante”, sendo a transformação “impressionante” definida como mudança que, embora não necessariamente instantânea, parece ao sujeito dela ser distintamente diferente de um processo de crescimento, por mais rápido que seja.{127} Os candidatos à conversão em reuniões destinadas a despertar o fervor religioso (revivais), como os senhores sabem, amiúde se decepcionam: não experimentam nada que os impressione. O Professor Coe tinha certo número de pessoas dessa classe entre os seus setenta e sete sujeitos, e quase todos, submetidos à prova do hipnotismo, se revelaram membros de uma subclasse que ele denomina “espontânea”, isto é, fértil em auto-sugestões, distinta da subclasse “passiva”, à qual pertencia a maioria dos sujeitos de transformação impressionante. Sua inferência é que a auto-sugestão da impossibilidade impedira a influência, sobre essas pessoas, de um ambiente que, nos sujeitos mais “passivos”, produzira facilmente os efeitos procurados. As distinções nítidas são difíceis nessas regiões, e os números do Professor Coe são pequenos. Mas seus métodos eram cuidadosos e os resultados concordam com o que se poderia esperar; parecem, no todo, justificar-lhe a conclusão prática, segundo a qual, se expusermos a uma influência convertedora um sujeito no qual se unem os três fatores: primeiro, pronunciada sensibilidade emocional; segundo, tendência a automatismos; e, terceiro, sugestibilidade do tipo passivo; poderemos predizer, com segurança, o resultado: haverá uma conversão súbita, uma transformação do tipo impressionante. Essa origem temperamental diminui, porventura, a importância da conversão súbita quando ela ocorre? De maneira nenhuma, com diz muito bem o Professor Coe; pois “o critério final dos valores religiosos não é psicológico, nem definível em função do como isso acontece, senão algo ético, definível apenas em função do quê se consegue.”{128} À proporção que prosseguirmos na nossa indagação veremos que o que se consegue, muitas vezes, é um nível totalmente novo de vitalidade espiritual, um nível relativamente heróico, em que coisas impossíveis se tomam possíveis, e se revelam novas energias e resistências. Modifica-se a personalidade, o homem nasce de novo, sejam ou não as suas idiossincrasias psicológicas que lhe afeiçoam a metamorfose. O nome técnico desse resultado é “santificação”; cujos exemplos, daqui por diante, serão colocados diante dos senhores. Nesta conferência, só me resta acrescentar uns poucos reparos sobre a segurança e a paz que enchem a hora da própria mudança. Mais uma palavra, porém, antes de passar a esse ponto, para que o propósito final da minha explanação da subitaneidade por obra da atividade subliminal não seja mal interpretada. Acredito, de fato, que, se o Sujeito não tem disposição para tal atividade subconsciente, ou se as margens dos seus campos conscientes têm a casca dura, capaz de resistir a incursões vindas de fora, sua conversão, se ocorrer, será gradual, e semelhará qualquer crescimento simples de novos hábitos. A posse de um eu subliminal desenvolvido e de uma margem permeável e acessível é, assim conditio sine qua non para o Sujeito se converter da maneira instantânea. Mas se os senhores, sendo cristãos ortodoxos, me perguntarem, como a um psicólogo, se a remissão de um fenômeno a um eu subliminal não exclui de todo a noção da presença direta da Divindade, terei de responder-lhes francamente, como psicólogo, que não vejo por que as coisas necessariamente devam ser assim. As manifestações inferiores do Subliminal, na verdade, caem entre os recursos do sujeito pessoal: seu material ordinário dos sentidos desatentamente absorvido e subconscientemente lembrado e combinado, explicará todos os seus automatismos usuais. Mas, assim como a nossa consciência primária plenamente desperta nos abre os sentidos para o toque das coisas materiais, assim também é lógico supor que, se houver agentes espirituais superiores capazes de tocar-nos diretamente, a condição psicológica para que o façam pode ser a nossa posse de uma região subconsciente apta a dar-lhes acesso. O alarido da vida desperta pode fechar uma porta que no Subliminal sonhador talvez permaneça semicerrada ou aberta. Destarte, a percepção do controle externo, característica essencial da conversão, pode, em alguns casos pelo menos, ser interpretada como o ortodoxo a interpreta: forças que transcendem o individual finito são capazes de impressioná-lo, contanto que ele seja o que poderíamos chamar um espécime humano subliminal. Mas em qualquer caso o valor dessas forças teria de ser determinado pelos seus efeitos, e o mero fato da sua transcendência não estabeleceria, por si mesmo, nenhuma presunção de que eles fossem mais divinos do que diabólicos. Confesso que é este o modo com que eu gostaria de deixar o tópico exposto na mente dos senhores, até chegar a uma conferência ainda muito distante, quando espero, mais uma vez, reunir esses fios soltos em conclusões mais definitivas. A noção de um eu subconsciente por certo não deve ser considerada, a esta altura da nossa inquisição, excludente de toda e qualquer noção de uma penetração superior. Se houver poderes superiores aptos a impressionar-nos, eles só poderão obter acesso a nós pela porta subliminal. (Veja mais adiante, página 318 e seguintes.) Tomemos agora aos sentimentos que enchem imediatamente a hora da experiência da conversão. O primeiro a ser notado é justamente o sentido do controle superior. Não está sempre, mas está muito a miúdo presente. Vimos exemplos em Alline, Bradley, Brainerd e alhures. A necessidade de um agente superior de controle nessas condições está bem expressa na breve referência que o eminente protestante francês Adolphe Monod faz à crise da própria conversão. Foi em Nápoles, nos primeiros anos de sua virilidade, no verão de 1827. “Minha tristeza”, diz ele, “era sem limites e, tendo-se apoderado inteiramente de mim, encheu-me a vida, desde os atos externos mais indiferentes até os pensamentos mais secretos, e corrompeu-me, em suas origens, os sentimentos, o julgamento e a felicidade. Então percebi que esperar pôr um ponto final nessa desordem pela razão e pela vontade, que também se achavam enfermas, seria agir como o cego que pretendesse corrigir um de seus olhos com a ajuda do outro, igualmente cego. Eu não podia, pois, esperar ajuda senão de alguma influência vinda de fora. Lembrei-me da promessa do Espírito Santo; e o que as declarações positivas do Evangelho nunca tinham conseguido fazer-me sentir, aprendi afinal com a própria necessidade, e acreditei, pela primeira vez na vida, nessa promessa, no único sentido em que ela respondia às necessidades da minha alma, ou seja, no de uma ação sobrenatural externa real, capaz de dar-me pensamentos e tirá-los de mim, e exercida em mim por um Deus tão verdadeiramente senhor do meu coração quanto o é do resto da natureza. Renunciando, então, a todo mérito, a toda força, abandonando todos os meus recursos pessoais e não reconhecendo outro título a essa misericórdia além da minha própria e total miséria, voltei para casa, pus-me de joelhos e rezei como nunca rezara em minha vida. A partir desse dia, uma nova vida interior começou para mim: não que a melancolia tivesse desaparecido, mas perdera o ferrão. A esperança me entrara no coração e, depois de tomar aquele caminho, o Deus de Jesus Cristo, a quem eu então aprendera a entregar-me, a pouco e pouco fez o resto.”{129} Fora ocioso recordar-lhes mais uma vez a admirável congruência da teologia protestante com a estrutura da mente revelada por essas experiências. No extremo da melancolia, o eu que conscientemente é não pode fazer absolutamente nada. Está completamente falido e baldo de recursos, e nenhuma obra que seja capaz de realizar lhe aproveitará. A redenção dessas condições subjetivas terá de ser uma dádiva graciosa ou nada, e essa dádiva é a graça através do sacrifício levado a efeito por Cristo. “Deus”, diz Lutero, “é o Deus dos humildes, dos miseráveis, dos oprimidos, dos desesperados e dos reduzidos a nada; e a sua natureza é dar luz aos cegos, confortar os que têm o coração partido, justificar os pecadores, salvar os muito desesperados e danados. Ora, a perniciosa e pestilenta opinião da própria retidão do homem, que não quer ser pecador, imundo, miserável e danável, mas reto e santo, não permite a Deus que faça o trabalho que lhe é natural e próprio. Por conseguinte, Deus precisa tomar nas mãos a marreta (refiro-me à lei) para despedaçar e esmigalhar esse animal e sua confiança vã, para que ele aprenda, por sua própria miséria, que está totalmente desamparado e danado. Mas aqui reside a dificuldade, pois, aterrado e abatido, o homem é muito pouco capaz de erguer-se de novo e dizer, ‘Agora estou suficientemente machucado e aflito; agora é o momento da graça; agora é o momento de ouvir a Cristo’. Tão grande é a insensatez do coração do homem que ele prefere buscar para si mais leis a fim de satisfazer a consciência. ‘Se eu viver’, diz, ‘emendarei minha vida: farei isto, farei aquilo.’ Mas se não fizeres exatamente o contrário, se não dispensares Moisés e a sua lei, e se no meio dos teus terrores e da tua angústia não te agarrares a Cristo, que morreu por teus pecados, não esperes salvação alguma. Teu hábito, teu cocoruto raspado, tua castidade, tua obediência, tua pobreza, tuas obras, teus méritos, de que servirá tudo isso? que te aproveitará a lei de Moisés? Se eu, miserável e danável pecador, por intermédio de obras ou méritos, pudesse ter amado o Filho de Deus e, assim, chegado a ele, por que precisava ele sacrificar-se por mim? Se eu, pecador condenado e infeliz, pudesse ser redimido por qualquer outro preço, por que precisava o Filho de Deus sacrificar-se? Mas porque não havia outro preço, ele não sacrificou nem carneiros, nem bois, nem ouro, nem prata, senão o próprio Deus, inteira e completamente ‘por mim’, até ‘por mim’, miserável e desgraçado pecador. Agora, portanto, eu me conforto e aplico tudo isso a mim mesmo. E essa maneira de aplicar é a verdadeira força e o verdadeiro poder da fé. Pois ele não morreu para justificar os honestos, senão os desonestos, para fazer deles filhos de Deus.{130} Isto é, quanto mais literalmente estamos perdidos, tanto mais literalmente somos o verdadeiro ser a quem o sacrifício de Cristo já salvou. Imagino que nada na teologia católica tenha falado a almas doentes de maneira tão direta quanto esta mensagem da experiência pessoal de Lutero. Como nem todos os protestantes são almas doentes, claro está que a confiança no que Lutero exulta em chamar o estrume dos nossos méritos, o imundo lamaçal da nossa própria honestidade, voltou à linha de frente da sua religião; mas a adequação desse ponto de vista do Cristianismo às partes mais profundas de nossa estrutura mental humana é mostrada pelo seu contágio incendiário quando era uma coisa nova e estimulante. A fé em que Cristo realizara autenticamente a sua obra era parte do que Lutero entendia por fé, que está longe de ser fé num fato intelectualmente concebido. Mas esta é apenas parte da fé de Lutero, sendo a outra parte muito mais vital. Essa outra parte é algo não intelectual, mas imediato e intuitivo, a saber, a certeza de que eu, este eu individual, exatamente como me encontro, sem necessidade de nenhuma súplica, etc., estou salvo agora e para sempre. {131} O Professor Leuba está indubitavelmente certo ao sustentar que a crença conceptual na obra de Cristo, conquanto tão frequentemente eficaz e antecedentes, é realmente acessória e não-essencial, e que a “jubilosa convicção” também pode vir por outros canais que não esta concepção. É à própria jubilosa convicção, à certeza de que tudo está bem com a gente, que ele daria o nome de fé par excellence. “Quando se rompe o sentido da alienação”, escreve ele, “que cerca o homem num ego estreitamente limitado, o indivíduo se acha ‘uma coisa só com toda a criação’. Vive na vida universal; ele e o homem, ele e a natureza, ele e Deus são um. Esse estado de confiança, de fé, de união com todas as coisas, que se segue à consecução da unidade moral, é o Estado de fé. Várias crenças dogmáticas, no advento do estado de fé, adquirem improvisamente o caráter de certeza, assumem nova realidade, tomam-se um objeto de fé. Não sendo aqui racional a base da convicção, a argumentação é irrelevante. Mas sendo a convicção mera derivação do estado de fé, constitui erro grosseiro imaginar que o principal valor prático do estado de fé é o seu poder de gravar com o selo da realidade certas concepções teológicas particulares.{132} Seu valor, pelo contrário, reside unicamente no fato de ser o correlativo psíquico de um crescimento biológico que encaminha os desejos conflitantes numa só direção; um crescimento que se expressa em novos estados afetivos e novas reações; em atividades mais amplas, mais nobres, mais semelhantes a Cristo. A base de uma convicção específica acerca de dogmas religiosos é, portanto, uma experiência afetiva. Os objetos de fé podem até ser absurdos; a corrente afetiva os fará flutuar e lhes emprestará uma certeza inquebrantável. Quanto mais surpreendente for a experiência afetiva, quanto menos explicável parecer, tanto mais fácil será fazê-la portadora de noções não substanciadas.”{133} As características da experiência afetiva, que, para evitar a ambiguidade, deveriam, no meu modo de ver, chamar-se estado de convicção em vez de estado de fé, podem ser facilmente enumeradas, se bem seja provavelmente difícil perceber-lhes a intensidade, a menos que nós mesmos tenhamos passado pela experiência. A característica central é a perda de todas as preocupações, o sentido de que tudo está finalmente bem conosco, a paz, a harmonia, a disposição de ser, ainda que as condições exteriores permaneçam as mesmas. A certeza da “graça” de Deus, da “justificação”, da “salvação”, é uma crença objetiva que costuma acompanhar a mudança nos cristãos; mas esta pode estar de todo ausente e, apesar disso, a paz afetiva continua a ser a mesma - os senhores se lembram, com certeza, do caso do graduado de Oxford: e muitos mais poderão ser apresentados em que a convicção da salvação pessoal era apenas um resultado posterior. Uma paixão de disposição, de aquiescência, de admiração, é o centro luminoso desse estado de espírito. A segunda característica é o sentido de perceber verdades dantes não conhecidas. Os mistérios da vida tomam-se lúcidos, como diz o Professor Leuba; e, não raro, ou melhor, habitualmente, a solução é mais ou menos inexprimível por meio de palavras. Mas esses fenômenos mais intelectuais podem ser adiados até tratarmos do misticismo. Uma terceira peculiaridade do estado de convicção é a mudança objetiva que o mundo, a cada passo, parece sofrer. “Uma aparência de novidade embeleza cada objeto”, precisamente o oposto desse outro tipo de novidade, a terrível irrealidade e singularidade da aparência do mundo, experimentada por pacientes de melancolia e da qual, como os senhores devem estar lembrados, relatei alguns exemplos.{134} Esse sentido de novidade, limpa e bonita por dentro e por fora, é um dos itens mais comuns nos registros de conversão. O próprio Jonathan Edwards assim o descreve: “Depois disso o meu sentido das coisas divinas foi aumentando aos poucos, e se tomou mais e mais vivo, com mais e mais dessa doçura interior. A aparência de tudo se alterou; dir-se-ia que houvesse, em quase tudo, por assim dizer, uma forma calma, suave, ou aparência de glória divina. A excelência de Deus, sua sabedoria, sua pureza e amor, pareciam manifestar-se em tudo; no sol, na lua e nas estrelas; nas nuvens e no céu azul; na grama, nas flores e nas árvores; na água e em toda a natureza; em tudo o que mais costumava reter minha mente. E pouca coisa, entre todas as obras da natureza, me era tão doce quanto o trovão e o relâmpago; antigamente nada me fora tão terrível. Em outro tempo, eu ficava insolitamente aterrorizado pelo trovão e quando via armar-se uma tempestade; agora, ao contrário, isso me alegra”.{135} Billy Bray, excelente evangelista inglês, quase analfabeto, registra o seu sentido da novidade da seguinte maneira: “Eu disse ao Senhor: ‘Disseste que os que pedirem receberão, que os que procurarem acharão e que àqueles que baterem à porta esta lhes será aberta, e tenho fé para acreditar nisso’. Num instante o Senhor me fez tão feliz que não posso exprimir o que senti. Gritei de alegria. Louvei a Deus de todo o coração. … Creio que isso foi em novembro de 1823, mas não sei qual era o dia do mês. Lembro-me de que tudo me parecia novo, as pessoas, os campos, o gado, as árvores. Eu era como um novo homem num mundo novo. Passei a maior parte do tempo louvando o Senhor.”{136} Starbuck e Leuba ilustram ambos este sentido de novidade por meio de citações. Tiro as duas que se seguem da coleção manuscrita de Starbuck. Uma delas, uma mulher, diz: “Fui levada a uma reunião no campo, pois minha mãe e amigos religiosos queriam que eu me convertesse e rezavam por isso. Minha natureza emocional comoveu-se até as entranhas; confissões de depravação e súplicas a Deus pela libertação do pecado fizeram-me esquecer tudo o que me rodeava. Roguei misericórdia e tive uma vivida compreensão do perdão e da renovação da minha natureza. Quando me ergui em pé, exclamei, ‘As coisas velhas passaram, todas as coisas se tomaram novas’. O mesmo foi entrar em outro mundo, um novo estado de existência. Objetos naturais eram glorificados, minha visão espiritual se tomou tão clara que vi beleza em cada objeto material do universo; os bosques emitiam uma música celeste; minha alma exultou no amor de Deus, e desejei que toda gente compartilhasse da minha alegria”. O caso seguinte é de um homem: “Não sei como voltei ao acampamento, mas vi-me tropegando na direção da tenda do Rev. … mas como ela estivesse cheia de povo e do seu interior se erguesse um barulho terrível, de gente que gemia, gente que se ria e gente que berrava, acabei caindo a uns dez pés de distância da tenda, à sombra de um grande carvalho, com o rosto em terra perto de um banco, e tentei rezar mas, cada vez que me dirigia a Deus, alguma coisa como a mão de um homem parecia querer estrangular-me apertando-me o pescoço. Não sei se havia alguém por perto ou junto de mim. Pensei morrer se não conseguisse ajuda, mas todas as vezes que fazia tenção de rezar, sentia na garganta a mão invisível e quase não podia respirar. Finalmente, alguma coisa disse: ‘Tente a expiação, pois você morrerá se o não fazer’. Por isso fiz um esforço final para implorar a misericórdia de Deus, com a mesma sensação de sufocação e estrangulamento, resolvido a rematar a sentença da oração pela Misericórdia, ainda que me enforcasse e morresse, e a última coisa de que me lembro foi cair de novo ao chão com a mesma mão invisível na garganta. Não sei por quanto tempo fiquei ali deitado, nem o que estava acontecendo. Nenhum dos meus familiares se achava presente. Quando tomei em mim, uma multidão à minha volta louvava a Deus. Os próprios céus pareceram descerrar-se e derramar raios de luz e de glória. Durante o dia todo e toda a noite, torrentes de luz e glória pareciam jorrar através da minha alma. Oh, como eu estava mudado, e como tudo ficou novo! Meus cavalos e porcos e até as pessoas pareciam mudados.” O caso desse homem apresenta a característica dos automatismos, a qual, em sujeitos sugestionáveis, tem sido um traço notável em revivais, desde que, nos tempos de Edward, Wesley e Whitfield, elas se tomaram um meio regular de propagação do evangelho. Supôs-se, a princípio, que fossem provas semimilagrosas de “poder” da parte do Espírito Santo; mas grande divergência de opiniões logo se ergueu a respeito delas. Em Thoughts on the Reviva1 of Religion in New England, Edwards é obrigado a defendê-las contra os seus críticos; e o seu valor vem sendo, há muito, tema de debate dentro das denominações revivalistas.{137} É indubitável que elas não têm importância espiritual essencial e, posto que a sua presença tome a conversão mais memorável para o convertido, nunca ficou provado que os convertidos que as exibem são mais perseverantes ou férteis em bons frutos do que aqueles cuja mudança de coração tem acompanhamentos menos violentos. De um modo geral, a inconsciência, as convulsões, as visões, os pronunciamentos vocais involuntários e a sufocação hão de ser simplesmente atribuídos ao fato de possuir o sujeito uma grande região subliminal, que envolve a instabilidade nervosa. Esta é, amiúde, a maneira de encarar o assunto do próprio sujeito mais tarde. Um dos correspondentes de Starbuck, por exemplo, escreve o seguinte: “Passei pela experiência conhecida pelo nome de conversão. Eis a minha explicação dela: o sujeito trabalha suas emoções até chegar ao ponto de ruptura, resistindo, ao mesmo tempo, às suas manifestações físicas, como pulso acelerado, etc., e, então, de chofre, deixa-as dominar-lhe completamente o corpo. O alívio, às vezes, é maravilhoso, e os efeitos agradáveis das emoções são experimentados no mais alto grau”. Há uma forma de automatismo sensorial que possivelmente mereça uma nota especial em razão da sua frequência. Refiro-me aos fenômenos luminosos alucinatórios ou pseudo-alucinatórios, fotismos, para usar o termo dos psicólogos. A visão celestial cegante de São Paulo parece ter sido um fenômeno dessa espécie; o mesmo se diga à cruz de Constantino no céu. O penúltimo caso que mencionei refere-se a torrentes de luz e glória. Henry Alline alude a uma luz de cuja exterioridade não parece seguro. O Coronel Gardiner vê uma luz ofuscante. O Presidente Finnéy escreve: “Repentinamente a glória de Deus resplandeceu sobre mim e em torno de mim de modo quase maravilhoso. … Brilhou em minha alma uma luz perfeita- mente inefável, que quase me derrubou ao chão …. Essa luz parecia o resplendor do sol em todas as direções. Era intensa demais para os olhos. … Creio que conheci então, por experiência própria, alguma coisa da luz que prostrou Paulo a caminho de Damasco. Foi seguramente uma luz assim, a que eu não poderia ter resistido por muito tempo”. {138} Tais relatos de fotismos, na verdade, estão longe de ser incomuns. Aqui está outro da coleção de Starbuck, onde a luz apareceu evidentemente externa: “Eu comparecera a uma série de reuniões que visavam a redespertar o fervor religioso por cerca de duas semanas. Fora convidado a subir ao altar várias vezes, e fui ficando cada vez mais impressionado, quando, afinal, decidi que devia fazê-lo, pois, do contrário, estaria perdido. A percepção da conversão foi muito vivida, como se o peso de uma tonelada me tivesse sido tirado do coração; uma luz estranha, que parecia alumiar todo o aposento (pois estava escuro); uma bem-aventurança consciente e suprema, que me fazia repetir ‘Glória a Deus’ por muito tempo. Determinei-me a ser filho de Deus a vida inteira e a desistir da minha ambição favorita, das riquezas e da posição social. Meus hábitos anteriores de vida me estorvavam um pouco o crescimento, mas pus a mira em superá-los sistematicamente e, num ano apenas, toda a minha natureza se modificara, isto é, minhas ambições eram de ordem diferente”. Aqui está outro caso de Starbuck, que também envolve um elemento luminoso: “Eu havia sido claramente convertido vinte e três anos antes, ou melhor, regenerado. Minha experiência de regeneração era então clara e espiritual, e eu não reincidirá no erro. Mas experimentei a santificação total no dia 15 de março de 1893, cerca das onze horas da manhã. Os acompanhamentos particulares da experiência foram de todo inesperados. Eu estava tranquilamente sentado em minha casa, cantando seleções de hinos pentecostais. A súbitas, tive a impressão de que alguma coisa se movia em mim e dilatava todo meu ser sensação que nunca tivera antes. Quando essa experiência veio, eu parecia estar sendo guiado por uma sala grande, espaçosa, bem iluminada. Enquanto eu caminhava com o meu guia invisível e olhava à minha volta, um claro pensamento formou-se em minha mente, ‘Eles não estão aqui, eles se foram’. Assim que o pensamento se formou de modo definitivo em minha mente, embora nenhuma palavra fosse pronunciada, o Espírito Santo infundiu-me a idéia de que eu estava vigiando minha própria alma. Então, pela primeira vez em toda a minha vida, conheci que eu estava limpo de todo pecado e cheio da plenitude de Deus”. Leuba cita o caso de um Sr. Peek, em que a afeição luminosa nos recorda as alucinações cromáticas produzidas pelos brotos de um cacto intoxicante a que os mexicanos dão o nome de mescal: Quando fui de manhã aos campos para trabalhar, a glória de Deus manifestou-se em toda a sua criação visível. Lembro-me de que nós ceifamos aveia e cada haste e cada cabeça da aveia pareciam, por assim dizer, adornadas de uma espécie de glória de arco-íris, ou brilhavam, se me for permitido expressar-me assim, na glória de Deus”.{139} O mais característico de todos os elementos da crise de conversão, e o último dos quais pretendo falar, é o êxtase da felicidade produzida. Já ouvimos vários relatos dele, mas acrescentarei mais dois. O do Presidente Finney é tão vivido que o reproduzo na íntegra: “Todos os meus sentimentos pareciam elevar-se e transbordar; e o meu coração dizia, ‘Quero derramar toda a minha alma aos pés de Deus’. A elevação da minha alma era tão grande que me precipitei para a sala dos fundos do escritório, a fim de rezar. Não havia lume nem luz na sala; não obstante, ela se me apresentou como se estivesse perfeitamente iluminada. Quando entrei e fechei a porta atrás de mim, tive a impressão de topar com o Senhor Jesus Cristo frente a frente. Não me ocorreu, então, nem me ocorreu por algum tempo depois disso, que aquilo era um estado inteiramente mental. Pelo contrario, pareceu-me vê-lo como eu veria qualquer outro homem. Ele não disse nada, mas olhou-me de tal maneira que me pôs de joelhos a seus pés. Desde então, sempre considerei isto um notabilíssimo estado de espírito; pois me parecia uma realidade que ele estivesse diante de mim, e caí a seus pés, entornando nele a minha alma. Chorei alto como criança e fiz as confissões que me permitiu a voz embargada. Acreditei, então, banhar-lhe os pés com minhas lágrimas; e, contudo, tive a distinta impressão de havê-lo tocado, disso me lembro. Devo ter continuado nesse estado por um bom espaço de tempo; minha mente, porém, estava tão absorta na entrevista que não consigo lembrar-me de nada do que eu disse. Mas sei que, tanto que a minha mente se acalmou e me permitiu interromper a entrevista, voltei ao escritório e descobri que o fogo que eu fizera de toras de madeira estava quase todo apagado. Mas quando me voltei e fiz menção de sentar-me ao pé do lume, recebi um vigoroso batismo do Espírito Santo. Sem que eu o esperasse, sem me ter sequer passado pela cabeça a idéia de que houvesse algo assim para mim, sem nenhuma lembrança de ter ouvido de alguém a menor menção disso, o Espírito Santo desceu sobre mim de modo que se diria que me atravessava o corpo e a alma. Pude sentir a impressão, qual onda de eletricidade, que me inundava. Com efeito, ela parecia vir em vagas e vagas de amor líquido; pois eu não poderia expressá-lo de outra maneira. Dirse-ia a própria respiração de Deus. Lembro-me distintamente de que ele dava a impressão de estar me abanando, com asas imensas. “Não há palavras que expressem o maravilhoso amor que me foi vertido no coração. Chorei alto de alegria e amor; e não sei, mas devo dizer que literalmente berrei as golfadas indizíveis do meu coração. As vagas passaram sobre mim, e passaram, e passaram, uma depois da outra, até que me lembro de haver gritado, ‘Morrerei se essas ondas continuarem a passar sobre mim’. E disse, ‘Senhor, não aguento mais’; e, no entanto, eu não tinha medo de morrer. “Por quanto tempo continuei nesse estado, com esse batismo a rolar sobre mim e a atravessar-me, não sei. Mas sei que era tarde da noite quando um membro do meu coro - pois eu era chefe do coro entrou no escritório para ver-me. Era um membro da igreja. Viu-me nesse estado, chorando alto, e perguntou-me, ‘Sr. Finney, o que é que o senhor tem?’ Durante algum tempo não me foi possível responderlhe. Ele, então, perguntou, ‘Está sentindo alguma dor?’ Recompus-me da melhor maneira que pude e repliquei, ‘Não, mas estou tão feliz que não posso viver’ Ainda há pouco citei Billy Bray; não poderia fazer coisa melhor do que transcrever-lhe o próprio relato dos sentimentos que experimentou depois da conversão: “Não posso deixar de louvar o Senhor. Quando ando na rua, ergo um pé e ele parece dizer, ‘Glória’; depois ergo o outro e ele parece dizer ‘Amém’; e eles ficam falando assim durante o tempo todo em que ando.”{140} Uma palavra ainda, antes de encerrar a conferência, sobre a questão da transitoriedade ou permanência das conversões repentinas. Tenho a certeza de que alguns dos senhores, sabedores de que ocorrem numerosas reincidências no erro e recaídas, fazem delas a sua massa aperceptiva para interpretar o assunto, e dispensam-no com um sorriso de piedade diante de tanta “histeria”. Entretanto, assim psicológica como religiosamente, isso é superficial. Deixa escapar o ponto do interesse sério, que é menos a duração do que a natureza e a qualidade das mudanças de posição do caráter para níveis mais altos. Os homens decaem de todos os níveis — não precisamos de estatísticas que nos digam isso. Sabe-se muito bem que o amor, por exemplo, não é irrevogável e, todavia, constante ou inconstante, revela novos vôos e arrancadas de idealismo enquanto dura. Essas revelações constituem a sua importância para homens e mulheres, seja qual for a sua direção. O mesmo acontece com a experiência da conversão: o que lhe constitui a importância é o fato de mostrar a um ser humano, nem que seja por um breve lapso de tempo, o ponto culminante da sua capacidade espiritual - uma importância que reincidências no erro não podem diminuir, mas que a persistência pode aumentar. Na realidade, todos os casos mais notáveis de conversão, todos os que eu, por exemplo, acabei de citar, foram permanentes. O caso a cujo respeito poderia haver mais dúvidas, cujo relato sugere tão vigorosamente uma crise epileptóide, foi o do Sr. Ratisbonne. Estou informado, no entanto, de que esses poucos minutos afeiçoaram todo o futuro do Sr. Rabisbonne. Ele desistiu do projeto de casamento, fez-se padre, fundou em Jerusalém, onde foi morar, uma missão de freiras para a conversão dos judeus, não mostrou tendência alguma para usar com finalidades egoístas a notoriedade que lhe adveio das circunstâncias peculiares da conversão — à qual, de resto, raro se referia sem lágrimas - e, em suma, continuou a ser um filho exemplar da Igreja até morrer, se não me falha a memória, no fim da década de 1880. As únicas estatísticas que conheço, referentes à duração das conversões, são as coligidas para o Professor Starbuck pela Srta. Johnston. Elas abrangem apenas cem pessoas, membros de igrejas evangélicas, mais da metade dos quais se compunha de metodistas. De acordo com o pronunciamento dos próprios sujeitos, verificaram-se recidivas de alguma espécie em quase todos os casos, 93% de mulheres e 77% de homens. Discutindo mais circunstancialmente as reincidências, Staibuck chega à conclusão de que apenas 6% são recaídas da fé religiosa confirmada pela conversão, e que as iecidivas de que os sujeitos se queixavam são, na maioria, flutuações do ardor do sentimento. Somente seis dos cem casos relatam uma mudança de fé. A conclusão de Staibuck é a de que o efeito da conversão consiste em trazer consigo “uma atitude mudada para com a vida, assaz constante e permanente, conquanto os sentimentos flutuem. … Em outras palavras, as pessoas que passaram pela experiência de conversão, tendo-se decidido, de uma feita, pela vida religiosa, tendem a sentir-se identificadas com ela, por mais que lhes decline o entusiasmo religioso.”{141} XI, XII e XIII Conferências A SANTIDADE A última conferência deixou-nos num estado de expectativa. Quais podem ter sido os frutos práticos, para a vida, das conversões comoventemente felizes de que falamos? Com essa pergunta inicia-se a parte realmente importante da nossa tarefa, pois os senhores se lembram de que encetamos a presente investigação empírica não só para abrir um capítulo curioso na história natural da consciência humana, mas para chegar a um juízo espiritual sobre o valor total e o significado positivo das perturbações e da felicidade religiosa que vimos. Desejamos, portanto, em primeiro lugar, descrever os frutos da vida religiosa e, em segundo lugar, julgá-los, dividindo, assim a nossa indagação em duas partes distintas. E passemos, sem mais preâmbulos, à tarefa descritiva. Ela deve ser a porção mais amena do nosso trabalho nestas conferências. É verdade que alguns trechos pequenos podem ser penosos, ou mostrar a natureza humana a uma luz patética, mas será principalmente agradável, porque os melhores frutos da experiência religiosa são as melhores coisas que a história tem para mostrar. Eles sempre foram considerados assim; aqui está a vida genuinamente valorosa, se é que ela está em algum lugar; e rememorar uma sucessão de exemplos como os que tive de examinar ultimamente, se bem tenha sido apenas através da sua leitura, é sentir-se a gente estimulada, enaltecida e banhada em melhores ares morais. Os mais altos vôos de caridade, devoção, confiança, paciência, bravura em que se empenharam as asas da natureza humana têm sido desferidos por ideais religiosos. Quanto a isso, o melhor que posso fazer é citar algumas observações de Sainte-Beuve em sua História de Port-Royal sobre os resultados da conversão ou o estado de graça. “Até do ponto de vista puramente humano”, diz Sainte-Beuve, “o fenômeno da graça ainda precisa aparecer suficientemente extraordinário, eminente e raro, tanto na natureza como nos efeitos, para merecer um estudo mais atento. Pois a alma chega, por esse meio, a certo estado fixo e invencível, um estado genuinamente heróico, desde o qual são executados os maiores feitos que ele consegue realizar. Através de todas as formas diferentes de comunhão e de toda a diversidade dos meios que ajudam a produzir esse estado, seja ele alcançado por um jubileu, por uma confissão geral, por uma prece e uma efusão solitária, sejam quais forem, em suma, o lugar e a ocasião, é fácil reconhecer que se trata, fundamentalmente, de um estado no espírito e nos frutos. Penetre-se um pouco debaixo da diversidade das circunstâncias e tomar-se-á evidente que os cristãos de diferentes épocas sofrem sempre a mesma modificação: há verdadeiramente um único espírito fundamental e idêntico de piedade e caridade, comum aos que receberam a graça; um estado interior que, antes de tudo, é um estado de amor e humildade, de infinita confiança em Deus e de severidade para consigo mesmo, acompanhado de ternura pelos outros. Os frutos peculiares a essa condição da alma têm o mesmo sabor em todos, debaixo de sóis distantes e em ambientes distintos, em Santa Tereza de Ávila e em qualquer irmão morávio de Hermhut.”{142} Sainte-Beuve só tem em mente aqui os casos mais notáveis de regeneração, os quais, é claro, são os mais instrutivos para nós também. Esses devotos têm seguido um curso tão diferente do dos outros homens que, a julgá-los pela lei do mundo, podemos ver-nos tentados a capitulá-los de monstruosas aberrações do caminho da natureza. Começo, portanto, formulando uma pergunta psicológica geral: quais são as condições internas que podem fazer um caráter humano diferir tanto de outro? Retruco incontinenti que onde se trata do caráter, como alguma coisa distinta do intelecto, as causas da diversidade humana residem sobretudo em nossas diferentes suscetibilidades para a excitação emocional e nos diferentes impulsos e inibições que elas trazem em seu cortejo. Deixem que eu seja mais claro. Falando de um modo geral, nossa atitude moral e prática, em qualquer momento dado, é sempre uma resultante de dois conjuntos de forças dentro de nós, impulsos que nos empurram numa direção e obstruções e inibições que nos retêm. “Sim! sim!” dizem os impulsos; “Não! não!” dizem as inibições. Poucas pessoas que não refletiram expressamente sobre o assunto compreendem quão constantemente o fator de inibição está sobre nós, como nos contém e modela por sua pressão restritiva, quase como se fôssemos fluidos encerrados no bojo de um jarro. A influência é tão incessante que se torna subconsciente. Todos os senhores, por exemplo, estão aqui sentados com certo constrangimento, neste momento, e sem consciência expressa do fato, por causa da influência da ocasião. Se estivesse sozinho na sala, é provável que cada um se ajeitasse involuntariamente na cadeira e tomasse uma atitude mais “livre e cômoda”. Mas as propriedades e suas inibições romperse-ão como teias de aranha se sobrevier alguma grande excitação emocional. Vi um almofadinha aparecer em público com o rosto coberto de espuma de barbear porque uma casa do outro lado da rua estava em chamas; e uma mulher se precipitará entre estranhos de camisola para salvar a vida do filhinho ou a sua própria. Tomem, de um modo geral, a vida de uma mulher habituada a satisfações dos seus apetites. Ela cederá a toda e qualquer inibição imposta por suas sensações desagradáveis, ficar até tarde na cama, viver de chá e trivialidades, não pôr o nariz fora de casa em tempo frio. Toda dificuldade a encontra obediente ao seu “não”. Façam dela, porém, uma mãe e que terão os senhores? Possuída pela excitação maternal, enfrenta a vigília, o cansaço e o trabalho sem um instante de hesitação nem uma palavra de queixa. O poder inibitivo da dor sobre ela se extingue toda vez que estão em jogo os interesses do nenê. As incoveniências que essa criaturinha ocasiona, como diz James Hinton, tomaram-se O centro brilhante de uma grande alegria e são agora, com efeito, as próprias condições por cujo intermédio se aprofunda a alegria. Este é um exemplo do que os senhores já ouviram a respeito do “poder expulsivo de uma afeição mais alta”. Não faz diferença, contudo, que a afeição seja alta ou baixa, se a excitação por ela produzida for bastante forte. Num dos seus discursos, Henry Drummond fala de uma inundação na índia, onde uma eminência encimada por um bangalô permaneceu insubmersa e passou a ser o refugio de certo número de animais selvagens e reptis em adição aos seres humanos que lá se achavam. Em certo momento, um tigre real de Bengala veio nadando para o bangalô, alcançou-o e deixou-se ficar no chão, no meio das pessoas, ofegando como um cachorro, presa ainda de tamanha agonia de terror que um dos ingleses teve tempo de aproximar-se calmamente com uma carabina e estourar-lhe os miolos. A ferocidade habitual do tigre fora temporariamente sufocada pela emoção do medo, que se tomou soberana e formou um novo centro para o seu caráter. Às vezes, nenhum estado é soberano, mas muitos contrários se misturam uns aos outros. Nesse caso, ouvem-se tantos “sins” quanto “nãos”, e a “vontade” é chamada para debelar o conflito. Tomem um soldado, por exemplo, cujo medo da covardia o empurra para a frente, ao mesmo tempo que os temores o instigam a correr e suas propensões à imitação o incitam a tomar vários cursos de ação oferecidos como exemplos pelos camaradas. Sua pessoa toma-se sede de uma massa de interferências; e ele poderá, por algum tempo, vacilar, porque nenhuma emoção prevalece. Existe, porém, um acme de intensidade que, se o atingir, a emoção se entroniza como a única efetiva e afugenta as antagonistas e todas as inibições. A fúria da carga dos camaradas, uma vez iniciada, dará o acme da coragem ao soldado; o pânico da debandada lhe dará o acme do medo. Nessas excitações soberanas, as coisas de ordinário impossíveis tomam-se naturais porque as inibições são anuladas. O “não! não!” delas não só não é ouvido, como também não existe. Os obstáculos são, então, quais aros de papel de seda para o cavaleiro do circo - nenhum impedimento; a torrente é mais alta que a represa feita para ela. “Lass sie betteln gehn wenn sie hungrig sind!” grita o granadeiro, frenético pela captura do Imperador, quando lhe lembram a esposa e os filhos; e sabe-se de homens presos num teatro em chamas que abriram caminho à faca pelo meio da multidão.{143} Um modo de excitabilidade emocional é importantíssimo na composição do caráter enérgico pelo seu poder particularmente destrutivo sobre as inibições. Refiro-me a que, em sua forma inferior, é mera irascibilidade, suscetibilidade à ira, temperamento combativo; e que, em suas maneiras mais sutis, manifesta-se como impaciência, inflexibilidade, ardor, severidade de caráter. Ardor significa disposição para viver com energia, embora a energia acarrete dor. A dor pode ser dor para outras pessoas ou dor para a pessoa isso faz pouca diferença; pois quando o estado de espírito porfiado se apodera de alguém, a meta é quebrar alguma coisa, seja de quem for ou o que for. Nada aniquila uma inibição de maneira tão irresistível quanto a raiva; pois, como diz Moltke, referindo-se à guerra, a sua essência é a destruição pura e simples. Isto é o que a faz uma aliada tão valiosa de qualquer outra paixão. Os mais doces deleites são espezinhados com feroz prazer a partir do momento em que se oferecem como estorvos de uma causa pela qual nossas indignações mais altas são evocadas. Não lhes custa nada cancelar amizades, abrir mão de antigos privilégios e propriedades, romper laços sociais. Encontramos antes uma alegria severa na austeridade e na desolação; e o que se chama fraqueza de caráter parece consistir, na maior parte das vezes, na inaptidão para esses estados de espírito sacrificiais, cujos alvos e vítimas são, frequentemente, o próprio eu inferior do indivíduo e suas fraquezas favoritas.{144} Até agora falei de alterações temporárias produzidas por excitações cambiantes na mesma pessoa. Mas as diferenças de caráter relativamente fixas de pessoas diferentes se explicam de forma precisamente semelhante. Num homem sujeito a um tipo especial de emoção, costumam devanecer-se séries inteiras de inibições que, em outros homens, permanecem efetivas, e outras espécies delas lhes tomam o lugar. Quando uma pessoa tem um gênio inato para certas emoções, sua vida difere estranhamente da das pessoas comuns, cujos meios dissuasórios costumeiros são incapazes de atalhá-lo. O mero aspirante a um tipo de caráter, pelo contrário — quando aparecem o amador natural, o combatente ou o reformador, em quem a paixão é uma dádiva da natureza - só demonstra a desesperada inferioridade da ação voluntária em relação à ação instintiva. Ele tem, deliberadamente, de superar suas inibições, ao passo que o gênio com a paixão congênita, que parece não as sentir de modo algum, está livre de todo o atrito interior e desperdício nervoso. Para um Fox, um Garibaldi, um General Booth, um John Brown, uma Louise Michel, um Bradlaugh, os obstáculos intransponíveis para os que os cercam são como se não existissem. Se o resto de nós pudesse não fazer caso deles, haveria muitos desses heróis, pois muitos têm o desejo de viver por ideais similares e só lhes falta o grau adequado da fúria supressora de inibições.{145} A diferença entre querer e apenas desejar, entre ter ideais criativos e ideais que não passam de lamentos e pesares, depende, destarte, unicamente do montante da pressão de vapor que impulsiona cronicamente o caráter na direção ideal, ou do montante da excitação ideal transitoriamente adquirida. Dada certa dose de amor, indignação, generosidade, magnanimidade, admiração, lealdade ou entusiasmo pela renúncia de si mesmo, o resultado é sempre o mesmo. Toda a jangada das obstruções covardes, que em pessoas dóceis e nos estados de espírito melancólicos são impedimentos soberanos da ação, soçobra imediatamente. Nosso convencionalismo,{146} nossa timidez, preguiça e mesquinhez, nossas exigências de precedentes e permissões, de garantias e segurança, nossas pequenas desconfianças, acabamentos, desesperos, onde estão agora? Rasgados como teias de aranha, estourados como bolhas ao sol. Wo sind die Sorge nun und Noth Die mich noch gestern wollt erschlaffen? Ich schãrrí mich dess’ im Morgenroth. A torrente que nos transporta carrega-os tão levemente que não lhes sentimos sequer o contato. Livres deles, flutuamos, pairamos nas alturas e cantamos. Essa abertura e elevação aurorai dá a todos os níveis ideais criativos uma qualidade brilhante e gorjeante, que em parte alguma é tão marcante como quando a emoção controladora é religiosa. “O verdadeiro monge”, escreve um místico italiano, “não leva nada consigo além da lira”. Podemos agora passar dessas generosidades psicológicas aos frutos do estado religioso que formam o assunto especial da nossa conferência. O homem que vive em seu centro religioso de energia pessoal, e é movido por entusiasmos espirituais, difere do seu eu carnal anterior de maneiras perfeitamente definidas. O novo ardor que lhe inflama o peito consome em seu brilho os “nãos” que dantes o sitiavam, e mantém-no imune à infecção de toda a porção rastejante da sua natureza. Magnanimidades outrora impossíveis tomam-se fáceis; convencionalismos desprezíveis e incentivos mesquinhos, antigamente tirânicos, perdem o seu domínio. A parede de pedra dentro dele desmoronou, quebrou-se-lhe a dureza do coração. Creio que podemos imaginar tudo isso rememorando nosso estado de espírito naqueles “enternecimentos” em que nos atiram, às vezes, as provações da vida real, o teatro ou um romance. Especialmente se chorarmos! Pois é então como se as nossas lágrimas rompessem uma antiga represa interior, e levassem consigo todos os tipos de velhos pecados e estagnações, deixando-nos de alma lavada e coração abrandado e aberto a todas as influências mais nobres. Em quase todos nós a costumeira dureza volta logo, mas não assim nas pessoas santas. Muitos santos, até os enérgicos como Teresa e Loyola, possuíram o que a igreja reverencia tradicionalmente como uma graça especial, o chamado dom das lágrimas. Nessas pessoas o enternecimento parece ter mantido um controle quase ininterrupto. E assim como acontece com as lágrimas e os enternecimentos, assim acontece com outras afeições exaltadas. O seu império pode vir por meio de um crescimento gradativo ou por meio de uma crise; mas em qualquer caso pode ter “vindo para ficar”. No final da última conferência vimos que essa permanência é verdadeira no que se refere à supremacia geral da introvisão superior, ainda que nos refluxos da excitação emocional motivos inferiores possam prevalecer temporariamente e ocorram recidivas. Mas também está provado por evidência documentária, em certos casos, que as tentações inferiores podem permanecer anuladas, independentemente da emoção transitória e como se por alteração da natureza habitual do homem. Antes de embarcar na história natural geral do caráter regenerado, permitam-me os senhores convencê-los desse fato curioso com um ou dois exemplos. Os mais numerosos são os dos bêbados reformados. Os senhores se lembram do caso do Sr. Hadley na última conferência; as Missões Jerry McAuley de Water Street abundam em casos semelhantes.{147} Os senhores também hão de lembrar-se do graduado de Oxford, convertido às três da tarde, e voltando a embriagar-se no campo de feno no dia seguinte, mas, depois disso, permanentemente curado do seu apetite. “A partir daquela hora a bebida não tem tido terrores para mim; nunca a toco, nunca a desejo. A mesma coisa ocorreu com o meu cachimbo, … o desejo dele se foi incontinenti e nunca mais voltou. O mesmo posso dizer a respeito de todos os pecados conhecidos, cuja libertação, em cada caso, foi permanente e completa. Não tenho tido tentações desde a conversão.” Aqui está um caso análogo da coleção de manuscritos de Starbuck: “Entrei no velho Teatro Adelphi, onde se realizava uma reunião religiosa … e comecei dizendo, ‘Senhor, Senhor, preciso ter esta bênção’. Nisso, o que foi para mim uma voz audível falou: ‘Você está disposto a dar tudo ao Senhor?’ e as perguntas, uma atrás da outra, não deixavam de vir, e a todas eu respondia: ‘Sim, Senhor; sim, ‘Senhor!’ até que veio esta: ‘Por que não o aceita agora?’ e eu disse: ‘Aceito-o, Senhor’. Não senti nenhuma alegria especial, apenas confiança. Nesse momento a reunião terminou e, ao sair para a rua, encontrei um cavalheiro que fumava um bonito charuto; uma nuvem de fumaça me envolveu o rosto, aspirei-a longa e profundamente e, graças ao Senhor, todo o meu apetite dele se foi. Depois, enquanto andava pela rua, passando por bares de onde saíam exalações alcoólicas descobri que todo o meu gosto e desejo daquela maldita droga se dissipara. Glória a Deus! … [Mas] nos dez ou onze anos que se seguiram [a isso] vime no deserto com seus altos e baixos. Meu apetite pela bebida nunca mais voltou”. O caso clássico do Coronel Gardiner é o de um homem curado, numa hora, da tentação sexual. Ao Sr. Spears disse o Coronel: “Eu estava efetivamente curado de toda inclinação por aquele pecado, ao qual era tão vigorosamente afeiçoado que chegava a supor que só mesmo uma bala na cabeça me teria curado disso; e todo o desejo e toda a inclinação por ele foram removidos, tão completamente como se eu fosse uma criancinha de peito; e tampouco a tentação voltou até o dia de hoje”. E eis as palavras do Sr. Webster sobre o mesmo assunto: “Uma coisa ouvi o coronel dizer amiúde, que era muito dado à impureza antes de entrar em contato com a religião; mas, assim que foi iluminado do alto, sentiu o poder do Espírito Santo modificando-lhe a natureza tão maravilhosamente que a sua santificação nesse sentido pareceu mais notável do que a de qualquer outro.”{148} Essa rápida abolição de antigos impulsos e propensões nos lembra tão fortemente o que se observou em consequência da sugestão hipnótica, que é difícil não acreditar que as influências subliminais desempenham o papel decisivo nas mudanças abruptas do coração, como acontece no hipnotismo. {149} A terapêutica de sugestão abunda em registros de cura, depois de algumas sessões, de antigos maus hábitos com os quais o paciente, entregue a influências morais e físicas, lutara em vão. Assim a embriaguez como o vício sexual foram curados dessa maneira, e tudo faz crer que a ação através do subliminal, em muitos indivíduos, tem a prerrogativa de induzir uma mudança relativamente estável. O que quer dizer que, se a graça de Deus opera milagrosamente, é provável que opere através da porta subliminal. Mas ainda não se explicou a maneira com que alguma coisa opera nessa região, e bem andaremos agora dizendo adeus ao processo de transformação em conjunto deixando em suspenso, se assim lhes apraz, boa dose de mistério psicológico ou teológico - e voltando a nossa atenção para os frutos da condição religiosa, sem nos preocuparmos com a maneira com que possam ter sido produzidos.{150} O nome coletivo para os frutos maduros da religião num caráter é Santidade.{151} O caráter santo é aquele em que as emoções espirituais são o centro habitual da energia pessoal; e há uma certa fotografia composta da santidade universal, a mesma em todas as religiões, cujas características podem ser traçadas com facilidade.{152} São as seguintes: “Essa condição”, diz ele, “em que os centros de associação ligados à vida espiritual são separados dos inferiores, reflete-se amiúde no modo com que os correspondentes descrevem suas experiências. … Por exemplo: “ ‘Tentações vindas de fora ainda me salteiam, mas não há nada dentro para responder a elas.’ O ego [aqui] identifica-se totalmente com os centros superiores, cuja qualidade de sentimento é a da interioridade. Outro correspondente diz: ‘Desde então, embora Satanás me tente, ergueu-se, por assim dizer, uma parede de bronze em tomo de mim, de tal modo que os seus dardos não podem tocar-me.’ ” - Indubitavelmente, exclusões funcionais dessa casta têm de ocorrer no órgão cerebral. Mas do lado acessível à introspecção, a sua condição causai nada mais é do que o grau de excitação espiritual, chegando enfim tão alto e ficando tão forte que é soberano; e temos de confessar com franqueza que não sabemos exata- mente por que nem como a soberania se produz numa pessoa e não se produz em outra. Só podemos dar à imaginação uma ajuda ilusória por meio de analogias mecânicas. Se devêssemos conceber, por exemplo, que a mente humana, com suas possibilidades diversas de equilíbrio, se parece com um sólido multifacetado com diferentes superfícies sobre as quais ele pode assentar-se, poderíamos comparar as revoluções mentais às revoluções espaciais de um corpo nessas condições. Quando é erguido, digamos por uma alavanca, de uma posição em que se assenta sobre a superfície A, por exemplo, ele permanece, por algum tempo, instavelmente, no meio do ar e, se a alavanca deixar de sustentá-lo, virá para baixo ou “recairá” sob a continuada ação da gravidade. Mas se ele, afinal, girar o suficiente para que o seu centro de gravidade passe totalmente além da superfície A, o corpo cairá, digamos, sobre a superfície B, e ali ficará. A atração da gravidade na direção de A desapareceu e já agora não precisa ser tomada em consideração. O poliedro imunizou-se contra a continuidade do impulso na sua direção. Nesta figura de retórica, a alavanca pode corresponder às influências emocionais que agem no sentido de uma nova vida e ao efeito inicial da gravidade sobre os antigos obstáculos e inibições. Enquanto a influência emocional não atingir certo grau de eficácia, as mudanças que ela produz serão instáveis, e o homem recairá na atitude original. Mas quando certa intensidade é atingida pela nova emoção, transpõe-se um ponto crítico, e disso se segue uma revolução irreversível, equivalente à produção de uma nova natureza. 1. Uma sensação de achar-se numa vida mais ampla do que a dos interessezinhos egoístas deste mundo; e uma convicção, não meramente intelectual, mas, por assim dizer, sensível, da existência de um Poder Ideal. Na santidade cristã, esse poder é sempre personificado por Deus; mas ideais morais abstratos, utopias cívicas ou patrióticas ou visões internas de santidade ou direito também se podem sentir como os verdadeiros senhores e ampliadores da nossa vida, segundo as maneiras que descrevi na conferência sobre a Realidade do Invisível. {153} 2. Um sentido da continuidade amistosa do poder ideal com a nossa vida, e um abandono solícito ao seu controle. 3. Uma alegria e uma liberdade imensas, à proporção que os contornos da individualidade limitadora se derretem. 4. Uma transferência do centro emocional para afeições amantes e harmoniosas, na direção do “sim, sim”, e para longe do “não”, no que diz respeito às pretensões do não-ego. Essas condições internas fundamentais têm consequências práticas características, como se pode ver: a. Ascetismo. A renúncia de si mesmo pode tomar-se tão apaixonada que se transforma em auto-imolação. Domina, então, de tal maneira as inibições ordinárias da carne que o santo encontra um prazer positivo no sacrifício e no ascetismo, que medem e expressam o grau da sua lealdade ao poder superior. b. Força da Alma. O sentido do alargamento da vida pode elevarnos por tal arte que os motivos e inibições pessoais, comumente onipotentes, tornam-se insignificantes demais para serem notados e novas extensões de paciência e fortaleza se abrem. Vão-se temores e ansiedades, substituídos pela equanimidade bem-aventurada. Que venha o céu, que venha o inferno, isso agora já não faz diferença! c. Pureza. A transferência do centro emocional traz consigo, primeiro, o aumento da pureza. Acentua-se a sensibilidade às discórdias espirituais e toma-se imperativo limpar a existência de elementos brutais e sensuais. Evitam-se as ocasiões de contato com tais elementos: a vida santa precisa aprofundar sua consistência espiritual e manter-se não maculada pelo mundo. Em, alguns temperamentos a necessidade de pureza do espírito assume um feitio ascético, e as fraquezas da carne são tratadas com severidade inflexível. d. Caridade. A transferência do centro emocional traz, em segundo lugar, aumento da caridade, ternura pelos semelhantes. Inibem-se os motivos ordinários da antipatia, que costuma estabelecer limites tão acanhados à ternura entre os seres humanos. O santo ama os inimigos e trata como irmãos mendigos asquerosos. Devo agora apresentar algumas ilustrações concretas desses frutos da árvore espiritual. A única dificuldade consiste na escolha, pois são abundantíssimos. Visto que o sentido da Presença de um Poder superior e amigo parece ser o traço fundamental na vida espiritual, começarei por ele. Em nossas narrativas de conversão vimos que o mundo pode parecer brilhante e transfigurado ao convertido{154} e, fora de qualquer coisa agudamente religiosa todos nós temos momentos em que a vida universal dá a impressão de envolver-nos com afeto. Quando somos jovens e saudáveis, no verão, nos bosques ou nas montanhas, dias em que o tempo parece todo ele estar emitindo murmúrios de paz, horas em que a bondade e a beleza da existência nos cingem como um clima seco e quente, ou soam dentro de nós como se nossos ouvidos internos se pusessem, de chofre, a repicar sutilmente com a segurança do mundo. Escreve Thoreau: “Certa vez, poucas semanas depois de ter ido para os bosques, durante uma hora duvidei de que a próxima vizinhança do homem não fosse essencial a uma vida serena e sadia. Estar só era um tanto ou quanto desagradável. Mas, no meio de uma chuva miúda, enquanto esses pensamentos prevaleciam, vi-me subitamente sensível à doce benéfica sociedade da Natureza, no próprio tamborilar das gotas e em todas as cenas e sons em tomo da minha casa; uma infinita e inexplicável benevolência, quase uma atmosfera, tornou, de repente, insignificantes as vantagens imaginadas da vizinhança humana, e nunca mais pensei nelas depois disso. Cada agulhazinha de pinheiro se expandia e inchava de simpatia e ficava minha amiga. Tomei-me tão distintamente cônscio da presença de alguma coisa familiar na natureza que, dali por diante, pensei, nenhum lugar jamais seria estranho para mim.”{155} Na consciência cristã o sentido de benevolência toma-se mais pessoal e definido. “A compensação”, escreve um autor alemão, “da perda do sentido de independência pessoal a que tanto relutamos em renunciar, é o desaparecimento de todo o medo da nossa vida, o sentimento indescritível e enexplicável de uma segurança interior, que só podemos experimentar mas que, depois de experimentado, nunca mais podemos esquecer.”{156} Encontro excelente descrição desse estado de coisas num sermão pronunciado pelo Sr. Voysey: “Segundo a experiência de miríades de almas confiantes, o sentido da presença incessante de Deus ao lado delas, em suas idas e vindas, assim de noite como de dia, é um manancial de repouso absoluto e confiada tranquilidade. Afasta todo o medo do que lhes possa acontecer. A proximidade de Deus é uma garantia constante contra o terror e a ansiedade. Não é que eles estejam totalmente convictos da segurança física, nem é que se julguem protegidos por amor negado aos outros, senão que se encontram num estado de espírito igualmente pronto para a salvação e para o agravo. Se o agravo os golpeia, suportam-no com agrado porque o Senhor é o seu defensor e nada pode suceder-lhes sem vontade dele. E, se ele quiser, o agravo lhes será bênção e nenhuma calamidade. Assim, e somente assim, está o homem que confia protegido e escudado contra o mal. E, quanto a mim - que não sou insensível nem tenho nervos duros - estou absolutamente satisfeito com esse arranjo e não desejo nenhum outro gênero de imunidade ao perigo e à catástrofe. Tão sensível à dor quanto o organismo mais nervoso, sinto, apesar disso, que o pior já foi vencido, e que já se lhe extraiu todo o ferrão, graças ao pensamento de que Deus é o nosso amoroso e vigilante defensor, e que nada pode ferir-nos sem a sua vontade.”{157} Expressões mais excitadas dessa condição abundam na literatura religiosa. Eu poderia cansá-los facilmente com a monotonia delas. Aqui está o retrato da Sra. Jonathan Edwards: “A noite passada”, escreve a Sra. Edwards, “foi a mais agradável que já tive em minha vida. Jamais gozei tanto, até então, e por um espaço de tempo tão dilatado, a luz, o repouso e a doçura do céu em minha alma, mas sem a menor agitação do corpo durante o tempo todo. Passei parte da noite acordada, às vezes dormindo, às vezes entre o sono e a vigília. Mas a noite inteira experimentei, contínua, clara e vividamente, a amenidade celestial do excelente amor de Cristo, de sua proximidade de mim e do valor que eu tinha para ele; com a calma inexprimivelmente doce da alma que repousa inteiramente nele. Tive a impressão de perceber um brilho de amor divino descendo do coração de Cristo, no céu, para o meu coração, numa corrente constante, como um rio de luz meiga. Ao mesmo tempo, todo o meu coração e toda a minha alma referviam de amor a Cristo, de modo que se diria haver um constante fluir e refluir de amor celestial, e eu parecia a mim mesma estar flutuando ou nadando, naqueles raios brilhantes e doces, como nadam grãos de poeira nos raios do sol, ou nas torrentes de luz que entram pela janela. Creio que o que eu sentia a cada minuto valia mais do que todo conforto e prazer que gozara a vida inteira. Era prazer, sem o menor acúleo ou qualquer interrupção. Era uma doçura, em que minha alma se perdia, o máximo que a minha fraca estrutura parecia poder aguentar. Havia escassa diferença entre o meu dormir e o meu velar, mas se alguma diferença havia era a felicidade maior quando eu estava adormecida.{158} Acordei cedo na manhã seguinte e pareceu-me estar inteiramente satisfeita comigo mesma. Senti que as opiniões do mundo a meu respeito já não tinham a menor importância e que devia preocupar-me tanto com meus interesses externos quanto me preocupava com os de alguma pessoa que nunca tivesse visto. Dir-se-ia que a glória de Deus absorvesse todos os anseios e desejos do meu coração. … Depois de retirar-me para descansar e dormir um pouquinho, acordei, e fui levada a refletir sobre a misericórdia de Deus para comigo, dandome, por muitos anos, disposição para morrer; e, depois disso, fazendo-me desejar a vida, para poder fazer e sofrer o que ele quisesse ver-me fazendo e sofrendo aqui. Pensei também que Deus, clemente, me dera total resignação à sua vontade quanto ao tipo de morte que me estaria reservado; sentindo-me disposta a morrer no cavalete, na fogueira e, se tal fosse a vontade de Deus, até no infortúnio. Mas agora me ocorreu que eu costumava pensar em não viver mais do que só iria viver a média dos homens. Nessa altura, fui levada a perguntar a mim mesma se eu não estava disposta a ficar fora do céu por mais algum tempo; e acreditei perceber que todo o meu coração respondia imediatamente: Sim, mil anos, e mil anos de horror, se for para a honra de Deus, sendo o tormento do meu corpo tão grande, tão medonho, tão acabrunhador que ninguém suportasse viver no país em que se pudesse assistir ao espetáculo, e sendo vastamente maior o tormento da minha mente. E pareceu-me encontrar uma perfeita disposição, tranquilidade e alacridade de alma no consentir que as coisas se passassem assim, se fosse para a maior glória de Deus, de modo que não havia hesitação, dúvida nem trevas em minha mente. A glória de Deus parecia subjugar-me e engolir-me, e todo sofrimento concebível, tudo o que era terrível para a minha natureza, se encolheu e reduziu a nada diante dela. Essa resignação continuou em sua clareza e brilho o resto da noite, todo o dia seguinte, a outra noite, até segunda-feira de manhã, sem interrupção nem abatimento.”{159} Há grande cópia de narrativas extáticas como esta, ou mais extáticas do que ela, nos anais da santidade católica. “Muitas vezes os assaltos do amor divino”, diz-se da Irmã Seráfica de la Martinière, “levavam-na quase à beira da morte. Ela costumava queixar-se ternamente a Deus. ‘Não posso suportálo’, usava dizer. ‘Sê indulgente com a minha fraqueza, para que eu não expire sob a violência do teu amor’ ”.{160} Seja-me permitido passar, em seguida, à Caridade e ao Amor Fraterno, frutos costumeiros da santidade e sempre reputadas virtudes teológicas essenciais, por limitados que fossem os tipos de serviço que a teologia particular prescrevia. O amor fraterno seguia-se logicamente à convicção da presença amiga de Deus, e a noção da nossa fraternidade como homens era uma inferência imediata da paternidade de Deus em relação a todos nós. Quando Cristo enuncia os preceitos: “Amai vossos inimigos, abençoai os que vos maldizem, fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos tratam com rancor e vos perseguem”, apresenta uma razão: “Para poderdes ser filhos de vosso Pai que está no céu: pois ele faz o seu sol erguer-se sobre o mau e o bom, e manda a chuva sobre o justo e o injusto”. Poderíamos, portanto, sentirmo-nos tentados a explicar não só a humildade pessoal como também a caridade para com os outros, que caracterizam a comoção espiritual, como resultados do caráter nivelador da crença teísta. Tais afeições, todavia, não são, por certo, meros derivados do teísmo. Encontramo-las no Estoicismo, no Hinduísmo e no Budismo, no mais alto grau possível. Elas se harmonizam belamente com o teísmo paternal; mas harmonizam-se com toda e qualquer reflexão sobre a dependência do gênero humano de causas gerais; e creio que devemos considerá-las não partes subordinadas senão coordenadas da grande e complexa comoção em cujo estudo estamos empenhados. Rapto religioso, entusiasmo moral, assombro ontológico, emoção cósmica, são todos estados unificadores da mente, em que a areia e o saibro da personalidade se inclinam a desaparecer e a ternura a imperar. A melhor coisa é descrever integralmente a condição como afeição característica a que a nossa natureza está sujeita, uma região em que nos encontramos em casa, um mar em que nadamos; mas não pretender explicar-lhe as partes derivando-as muito espertamente uma da outra. Como o amor ou o medo, o estado de fé é um complexo psíquico natural e carrega consigo a caridade por consequência orgânica. O júbilo é uma afeição expansiva, e todas as afeições expansivas são desinteressadas e bondosas enquanto duram. Vemos ser esse o caso quando a sua origem é patológica. Em sua obra instrutiva, La Tristesse et la Joie,{161} o Sr. Georges Dumas compara uma à outra a melancolia e a fase alegre da insanidade circular, e mostra que, enquanto o egoísmo caracteriza a primeira, a outra é marcada por impulsos altruísticos. Nenhum ser humano era tão mesquinho e inútil quanto Marie em seu período de melancolia! Mas assim que principia o período feliz, “a simpatia e a bondade passam a ser os seus sentimentos característicos. Ela manifesta uma boa vontade universal, não só nas intenções mas também nos atos. … Toma-se solícita pela saúde de outros pacientes, interessada em fazê-los sair, desejosa de arranjar lã a fim de tricotar meias para alguns deles. Nunca, desde que está sob minha observação, lhe ouvi, em seu período alegre, opiniões que não fossem caridosas.”{162} E mais tarde, referindo-se a todas essas condições jubilosas, diz o Dr. Dumas que “sentimentos generosos e temas emoções são os únicos estados afetivos que se encontram nelas. A mente do sujeito fecha-se para a inveja, o ódio e o espírito de vingança, totalmente transformado em benevolência, indulgência e piedade.”{163} Há, destarte, uma afinidade orgânica entre a alegria e a ternura, e sua associação na vida santa não ocasiona surpresa alguma. Juntamente com a felicidade, o aumento de ternura é notado amiúde nas narrativas de conversão. “Comecei a trabalhar para os outros” - “Sinto maior ternura por minha família e meus amigos” - “Falei imediatamente com uma pessoa com a qual eu estivera zangado” - “Simpatizei com todos e gostei ainda mais dos meus amigos” - “Senti que todos eram meus amigos” - estas são algumas das muitas expressões extraídas dos relatos coligidos pelo Professor Starbuck. {164} “Quando”, diz a Sra. Edwards, continuando a narrativa que citei há pouco, “me levantei na manhã de Sábado, senti um amor a toda a humanidade inteiramente peculiar em sua força e suavidade, muito além de tudo o que já sentira antes. O poder desse amor parecia inexprimível. Supus que, se me visse cercada de inimigos, que estivessem descarregando sua maldade e crueldade sobre mim, atormentando-me, ainda assim me seria impossível alimentar por eles sentimentos que não fossem o amor, a piedade e desejos ardentes de vê-los felizes. Nunca, até então, eu me sentira tão longe de uma disposição de julgar e censurar os outros, como naquela manhã. Compreendi também, de maneira inusitada e muito viva, a parte imensa de Cristianismo que reside na execução de nossas obrigações sociais e relativas uns para com os outros. O mesmo sentido de júbilo continuou por todo o dia - um doce amor a Deus e a todo o gênero humano.” Seja qual for a explicação da caridade, ela pode apagar todas as barreiras humanas usuais.{165} Aqui, verbi gratia, está um exemplo da não-resistência cristã, tirada da autobiografia de Richard Weaver. Weaver foi mineiro de carvão, pugilista semiprofissional na mocidade, que se transformou num evangelista muito querido. Depois de beber, o lutar parece ter sido o pecado para o qual, a princípio, sentiu a carne mais perversamente inclinada. Após a primeira conversão teve uma recaída, que consistiu em esmurrar um homem que insultara uma moça. Tendo reincidido uma vez, achou que, perdido por um, perdido por mil: embebedou-se e quebrou a cara de outros homens que, ultimamente, o desafiara e acusara de covardia por se haver recusado a lutar, como cristão. - Menciono estes incidentes para mostrar o quanto uma mudança genuína de coração está implícita na conduta subsequente, que ele descreve nestes termos: “Desci a galeria da mina e encontrei o menino chorando porque um companheiro de trabalho estava tentando tirar-lhe a vagoneta à força. Eu lhe disse: “ ‘Tom, não deves pegar essa vagoneta.’ “Ele me xingou e chamou-me de diabo metodista. Respondi-lhe que Deus não me dissera que o deixasse roubar-me. Ele tornou a xingar e ameaçou empurrar a vagoneta sobre mim. “ ‘Muito bem’, disse eu, ‘vamos ver se o diabo e tu sois mais fortes do que o Senhor e eu.’ “E tendo-nos, o Senhor e eu, revelado mais fortes do que o diabo e ele, Tom precisou sair do caminho pois, do contrário, a vagoneta teria passado por cima dele. Por isso dei a vagoneta ao menino. Depois disse Tom: “ ‘Estou pensando seriamente em quebrar-te a cara.’ “ ‘Muito bem’, disse eu, ‘se isso te fizer algum bem, podes fazêlo.’ E ele me assentou um murro no rosto. “Ofereci-lhe a outra face e disse: ‘Bate outra vez.’ “Ele bateu outra vez e outra vez, até bater-me cinco vezes. Virei o rosto para o sexto golpe; mas ele deu-me as costas, xingando. Gritei-lhe: ‘O Senhor te perdoe, como eu te perdôo, e Deus te salve.’ “Isso aconteceu num sábado; e quando fui da mina para casa minha mulher viu-me o rosto inchado e indagou o que acontecera. Eu disse: ‘Andei brigando, e dei uma boa surra num homem.’ “Ela rompeu a chorar, e perguntou-me: ‘Ó Richard, o que o fez brigar?’ Aí, então, contei-lhe todo o ocorrido e ela agradeceu ao Senhor por eu não haver revidado. “Mas o Senhor golpeara, e os seus golpes surtem mais efeito que os dos homens. Chegou a segunda-feira. O diabo entrou a tentar-me, dizendo: ‘Os outros homens rirão de ti por deixares Tom tratar-te como ele o fez no sábado’. Eu gritei: ‘Vade retro, Satanás’; e segui meu caminho para a mina. Tom foi o primeiro homem que vi. Eu disse-lhe, ‘Bom dia’, mas não obtive resposta. “Ele desceu na minha frente. Quando desci, fiquei surpreso vendo-o sentado nos trilhos, à minha espera. Aproximei-me. Ele desatou a chorar e disse: ‘Richard, tu me perdoas por haver-te batido?’ “‘Eu te perdoei’, respondi; ‘pede a Deus que te perdoe. Deus te abençoe.’ Dei-lhe a minha mão e fomos cada um para o seu serviço.”{166} “Amai vossos inimigos!” Prestai atenção, não simplesmente os que não são vossos amigos, mas também os vossos inimigos, os vossos inimigos positivos e ativos. Ou isto é mera hipérbole oriental, extravagância verbal, significando apenas que devemos, na medida do possível, diminuir nossas animosidades, ou é sincero e literal. À parte alguns casos de relação individual última, raro tem sido tomado literalmente. Entretanto, leva-nos a fazer uma pergunta: Pode haver, de um modo geral, um nível de emoção tão unificador, tão obliterativo das diferenças entre o homem e o homem, que até a inimizade vem a ser uma circunstância irrelevante e deixa de inibir os mais amistosos interesses despertados? Se a benevolência positiva pudesse atingir tão supremo grau de excitação, os que fossem governados por ela poderiam parecer seres sobre-humanos, cuja vida seria moralmente discreta da vida dos outros homens, e não há dizer, na ausência de experiências positivas autênticas - pois há poucos exemplos ativos em nossas escrituras, e os exemplos budistas são lendários{167} — quais poderiam ser os efeitos: é perfeitamente concebível que eles transformassem o mundo. Psicologicamente, e em princípio, o preceito “Amai vossos inimigos” não é uma declaração contraditória. É tão-só o limite extremo de uma espécie de magnanimidade com a qual, na forma de uma tolerância apiedada aos nossos opressores, estamos familiarizados. Entretanto, a ser radicalmente seguida, envolveria tamanha violentação de nossos motivos instintivos de ação, e da ordem atual do mundo, que seria praticamente transposto um ponto crítico, e nós nasceríamos em outra esfera da vida. As emoções religiosas fazem-nos sentir que outro reino está perto de nós, ao nosso alcance. A inibição da repugnância instintiva é provada não só pela demonstração do amor aos inimigos, mas também pela demonstração dele a quem quer que seja pessoalmente odioso. Nos anais da santidade encontramos curiosa mistura de motivos que impelem nessa direção. O ascetismo desempenha a sua parte; e juntamente com a caridade pura e simples, encontramos a humildade ou o desejo de repudiar a distinção e de rojar no nível comum diante de Deus. Os três princípios, sem dúvida alguma, estavam em ação quando Francisco de Assis e Inácio de Loyola trocaram suas roupas com as de mendigos imundos. Os três estão em ação quando pessoas religiosas consagram a vida ao trato da lepra ou de outras doenças peculiarmente desagradáveis. O cuidado dos doentes é uma função para a qual os religiosos parecem fortemente atraídos, independentemente do fato de que as tradições da igreja indicam o mesmo caminho. Mas nos anais dessa espécie de caridade encontramos registrados fantásticos excessos de devoção, só explicáveis pelo delírio da auto-imolação simultaneamente despertado. Francisco de Assis beijava os seus leprosos; afirma-se que Margarida Maria Alacoque, Francisco Xavier, São João de Deus e outros, limpavam as feridas e úlceras de seus pacientes com a língua; e as vidas de santos como Isabel da Hungria e Madame de Chantal estão cheias de uma espécie de comprazimento na purulência dos hospitais, desagradáveis de se lerem, e que nos fazem admirá-los e arrepiarmo-nos ao mesmo tempo. Isso quanto ao amor humano despertado pelo estado de fé. Permitam-me falar-lhes agora da Equanimidade, da Resignação, da Fortaleza e da Paciência que ele traz. “Um paraíso de tranquilidade interior” parece ser o resultado usual da fé; e para nós é fácil compreendê-lo, ainda que não sejamos religiosos. Há pouco, ao tratar do sentido da presença de Deus, falei da inexplicável sensação de segurança que então podemos experimentar. E, de feito, como será possível não se acalmarem os nervos, não se enfriar a febre, não se abrandar a aflição, se estamos sensivelmente cônscios de que, sejam quais forem as nossas dificuldades do momento, nossa vida está toda nas mãos de um poder em que podemos confiar de forma absoluta? Nos homens profundamente religiosos a entrega do próprio eu a esse poder é apaixonada. Quem quer que não só diga, mas também sinta, “Seja feita a vontade de Deus”, estará escudado contra qualquer fraqueza; e toda a plêiade histórica de mártires, missionários e reformadores religiosos aí está para provar a tranquilidade de espírito que, até em circunstâncias naturalmente perturbadoras ou contristadoras, produz a renúncia de si mesmo. O tipo da tranquilidade de espírito difere, naturalmente, de acordo com o feitio da mente da pessoa, que pode ser constitucionalmente sombria ou constitucionalmente jovial. No primeiro caso, partilha mais da resignação e da submissão; no segundo, é um alegre consentimento. Como exemplo do primeiro tipo, cito parte de uma carta do Professor Lagneau, venerado mestre de filosofia recém-falecido, inválido, em Paris: “Minha vida, por cujo êxito você me manda os seus votos, será o que lhe for possível ser. Não peço nada a ela, nada espero dela. Faz anos agora, longos anos, que existo, penso, ajo e valho o que valho, somente através do desespero, que é a minha única força e o meu único fundamento. Possa ela preservar para mim, até nestas últimas provações a que estou chegando, a coragem de prescindir do desejo de libertação. Nada mais peço da Fonte de que provém toda a força e, se isso me for concedido, os seus votos terão sido deferidos”.{168} Há nisso qualquer coisa de patético e fatalístico, mas o poder de um tom dessa natureza como proteção contra choques externos é manifesto. Pascal, outro francês de gênio natural pessimista, expressa ainda mais amplamente o temperamento da submissão e da renúncia: “Livra-me, Senhor”, escreve em suas orações, “da tristeza pelo meu próprio sofrimento que o egoísmo pode dar-me, mas põe em mim uma tristeza como a tua. Que os meus sofrimentos aplaquem a tua cólera. Faze deles uma ocasião para a minha conversão e salvação. Não te peço saúde nem doença, nem vida nem morte; senão que disponhas da minha saúde e da minha doença, da minha vida e da minha morte, para a tua glória, para a minha salvação, e para o uso da tua Igreja e dos teus santos, entre os quais eu quisera, por tua graça, figurar. Só tu sabes o que me é vantajoso; és o soberano senhor; faze comigo segundo a tua vontade. Dá-me, ou tira de mim, conforma apenas minha vontade à tua. Só sei, Senhor, que é bom seguir-te, e mau ofender-te. Tirante isso, não sei o que é bom ou mau em coisa alguma. Não sei sequer o que me é mais proveitoso, se a saúde ou a doença, se a riqueza ou a pobreza, nem nada mais no mundo. Esse discernimento está além do poder dos homens e dos anjos, escondido entre os segredos da tua Providência, que adoro, mas não procuro sondar”.{169} Quando chegamos a temperamentos mais otimistas, a resignação tomase menos passiva. Os exemplos se acham tão espalhados pela história que eu poderia perfeitamente passar sem nenhuma citação. Entretanto, pego o primeiro que me ocorre ao espírito. Madame Guyon, frágil criatura fisicamente, era de um natural feliz. Passou por muitos perigos com admirável serenidade de alma. Depois de ter sido mandada para a prisão por heresia, “Alguns amigos meus”, escreve ela, “choraram amargamente ao receber a notícia, mas tal era o meu estado de aquiescência e resignação que não me arrancou lágrimas. Parecia haver em mim então, como vejo que há em mim agora, tamanha indiferença pelo que me diz respeito, que qualquer um dos meus próprios interesses me dá escassa dor ou prazer; sempre desejando querer ou ambicionar para mim somente o que Deus faz.” Em outro passo escreve: “Todos chegamos quase a perecer num rio que tínhamos de transpor. O carro afundou na areia movediça. Outros que estavam conosco atiraram-se para fora tomados de verdadeiro pavor. Mas eu tinha os pensamentos tão absortos em Deus que não tive um senso distinto do perigo. É verdade que a idéia de afogar-me me passou pela cabeça, mas não gerou nenhuma outra sensação ou reflexão além de fazer-me sentir muito contente e desejosa de que assim fosse, se fosse essa a decisão do meu Pai celeste”. Viajando por mar de Nice a Gênova, uma tempestade mantém-na onze dias a bordo. “Enquanto as ondas irritadas se arremessavam contra nós”, escreve ela, “eu não podia deixar de experimentar certo grau de satisfação em minha mente. Aprazia-me pensar que os vagalhões amotinados, sob o comando daquele que faz todas as coisas com acerto, provavelmente me forneceriam um túmulo líquido. Talvez eu exagerasse o prazer que me dava o ver-me assim golpeada e sacudida pelas ondas cada vez maiores. Os que estavam comigo deram tento da minha intrepidez.”{170} O desprezo do perigo que o entusiasmo religioso produz pode ser até mais alegre ainda. Tomo um exemplo da encantadora e recente autobiografia de Frank Bullen, intitulada “Com Cristo no Mar”. Dois dias depois de se haver ele convertido a bordo de um navio, conversão que narra nesse mesmo livro, “Estava ventando muito”, escreve, “e nós fazíamos força de velas a fim de rumar para o norte e, assim, fugir do mau tempo. Pouco depois dos quatro toques do sino abaixamos giba e coloquei-me a cavalo sobre o botaló para ferrá-la. Eu estava cavalgando o botaló quando, de repente, ele cedeu comigo. A vela me escorregou por entre os dedos, caí para trás e fiquei pendurado, de cabeça para baixo, sobre o férvido tumulto de espuma brilhante junto à proa do barco, suspenso por um pé. Mas eu só sentia uma grande exultação em minha certeza da vida eterna. Conquanto a morte só estivesse separada de mim por um fio de cabelo, e eu me achasse agudamente ciente do fato, este não me deu outra sensação que não fosse de alegria. Não posso ter ficado pendurado ali por mais de cinco segundos mas, durante esse tempo, vivi um século inteiro de delícias. O meu corpo, porém, endireitou-se e, com um esforço ginástico desesperado, voltei ao botaló. Como ferrei a vela não sei, mas entoei a plenos pulmões louvores a Deus, que foram repicando sobre a escura extensão das águas.”{171} O martirológio é, por certo, o campo de triunfo da imperturbabilidade religiosa. Permitam-me citar como exemplo a declaração de uma humilde sofredora, perseguida como huguenote durante o reinado de Luis XIV: “Fecharam todas as portas”, escreve Blanche Gamond, “e Vi seis mulheres, cada qual com um feixe de varas de salgueiro da maior grossura que a mão pode segurar e com um metro de comprimento. Ele deu-me a ordem: ‘Despe-te’ o que fiz. Ele disse, ‘Não tiraste a camisa; precisas tirá-la’. Elas tinham tão pouca paciência que ma tiraram pessoalmente e me deixaram nua da cintura para cima. Depois trouxeram uma corda, com a qual me amarraram num barrote da cozinha. Apertaram a corda com toda a força e me perguntaram, ‘Está doendo?’ e, em seguida, descarregaram sua fúria sobre mim, exclamando enquanto me batiam, ‘Reza agora para o teu Deus’. Era a mulher Roulette que falava assim. Nesse momento, porém, recebi a maior consolação que poderei receber em toda a minha vida, visto que eu tinha a honra de estar sendo vergastada em nome de Cristo, além de ser coroada com a sua misericórdia e as suas consolações. Por que não consigo pôr por escrito as influências, as consolações e a paz que senti interiormente? Para compreendê-las precisamos passar pela mesma provação; eram tão grandes que eu estava extasiada, pois onde abundam as aflições a graça é concedida superabundantemente. Em vão gritavam as mulheres, ‘Precisamos dobrar os golpes; ela não os sente, pois não fala nem chora’. Rias como haveria eu de chorar se estava desmaiando de felicidade por dentro?”{172} A transição da tensão, da responsabilidade pessoal e da preocupação para a equanimidade, a receptividade e a paz é a mais maravilhosa de todas as mudanças do equilíbrio interior, as mudanças do centro pessoal de energia, que tenho analisado com tanta frequência; e a principal razão de assombro que isso proporciona é aparecer tantas vezes, não pelo fazer, senão simplesmente pelo relaxar-se e pelo atirar o fardo ao chão. O abandono da responsabilidade pessoal parece ser o ato fundamental da prática especificamente religiosa, no que ela se distingue da prática moral. Precede as teologias e independe das filosofias. A cura mental, a teosofia, o estoicismo, a higiene neurológica comum, insistem nele tão enfaticamente quanto o Cristianismo, e ele pode associar-se do modo mais íntimo com todo credo especulativo.{173} Os cristãos que o possuem de forma destacada vivem no que se chama “recolhimento”, e nunca ficam ansiosos por causa do futuro nem se preocupam com o resultado do dia. Diz-se de Santa Catarina de Gênova que “ela só tomava conhecimento das coisas à medida que lhe eram apresentadas em sucessão, momento a momento”. Para a sua santa alma, “o momento divino era o momento presente, … e quando o momento presente era avaliado em si mesmo e em suas relações, e quando se cumpria a obrigação nele envolvida, permitia-se-lhe passar como se nunca tivesse existido, dando lugar aos fatos e obrigações do momento seguinte”.{174} O Hinduísmo, a cura mental e a teosofia dão grande ênfase à concentração da consciência sobre o momento que está à mão. O sintoma religioso que examinarei a seguir é o que denominarei Pureza de Vida. A pessoa santa toma-se excessivamente sensível à incoerência ou discórdia interior, e a mistura e confusão ficam intoleráveis. Todos os objetivos e ocupações da mente precisam ser ordenados com referência à excitação espiritual especial que é agora a sua tônica. Tudo o que não é espiritual polui a água pura da alma e repugna. Misturado com essa exaltação das sensibilidades morais há também um ardor de sacrifício, por amor da divindade adorada, de quanto seja indigno dela. Às vezes, o ardor espiritual é tão elevado que se alcança a pureza de chofre - temos visto exemplos disso. De ordinário, a vitória se obtém aos poucos. A narrativa de Billy Bray da sua renúncia ao fumo é um bom exemplo da última forma de consecução. “Eu fora fumante e beberrão, e costumava gostar do fumo tanto quanto gostava da carne, e teria preferido entrar na mina sem almoço a entrar sem o cachimbo. Nos dias de antanho, o Senhor falava pela boca de seus servos, os profetas; agora, ele nos fala pelo espírito de seu Filho. Eu tinha não só a parte íntima da religião, mas também era capaz de ouvir a vozinha tranquila falando comigo dentro de mim. Quando eu pegava no cachimbo para fumar a vozinha interior me dizia, ‘É um ídolo, uma depravação; adora a Deus com os lábios limpos’. Por isso achei que não era direito fumar. O senhor também mandou uma mulher convencer-me. Eu estava, certo dia, numa casa e peguei o cachimbo para acendê-lo no fogão, e Mary Hawke - pois era esse o nome da mulher - interpelou-me, ‘Não acha que é errado fumar?’ Respondi que eu sentia alguma coisa dentro de mim dizendome que aquilo era um ídolo, uma depravação, e ela afirmou que essa alguma coisa era o Senhor. Eu disse então, ‘Preciso deixar de fumar, pois o Senhor está-me dizendo isso dentro de mim, e a mulher diz o mesmo fora de mim; portanto, o fumo precisa ir embora, por mais que eu goste dele’. E ali mesmo, naquele momento, tirei o fumo do bolso e o joguei no fogo, e pisei o cachimbo com os pés, ‘cinzas às cinzas, pó ao pó’. E não voltei a fumar desde então. Foi difícil para mim quebrar velhos hábitos, mas pedi ajuda ao Senhor, e ele me deu forças, pois foi ele quem disse, ‘Recorre a mim no dia da tribulação, que te livrarei’. Um dia depois que parei de fumar tive uma dor de dentes tão forte que já não sabia o que fazer. Cuidei que isso se devesse à renúncia do cachimbo, mas declarei que nunca mais voltaria a fumar, ainda que perdesse todos os dentes da minha boca. Orei, ‘Senhor, tu nos disseste meu jugo é suave e meu fardo é leve’ e, quando eu disse isso, toda a dor me deixou. As vezes, a saudade do cachimbo me voltava, muito forte; mas o Senhor fortaleceu-me contra o hábito e, louvado seja o seu nome, nunca mais fumei depois disso.” Escreve o biógrafo de Bray que, após desistir de fumar, lembrouse de mascar um pouco, mas venceu esse hábito sujo também. “Numa ocasião”, diz Bray, “quando eu me achava numa reunião religiosa em Hicks Mill, ouvi o Senhor dizer-me ‘Adora-me com lábios limpos’. Por isso, quando nos erguemos da posição genuflexa, tirei o bocado de tabaco da boca e o atirei debaixo do banco. Mas quando tomamos a nos levantar, pus outro bocado de tabaco na boca. E o Senhor me disse outra vez, ‘Adora-me com os lábios limpos’. Por isso tirei o bocado de tabaco da boca e joguei-o também debaixo do banco, e disse, ‘Sim, Senhor, eu o farei’. A partir desse momento deixei de mascar, assim como havia deixado de fumar, e tomei-me um homem livre.” As formas ascéticas que o impulso para a veracidade e a pureza de vida pode tomar são, não raro, assaz patéticas. Os primeiros quacres, por exemplo, tinham de travar duras batalhas contra a temporalidade e a hipocrisia da Cristandade eclesiástica do tempo. Entretanto, a batalha que lhes custou maior número de feridas foi provavelmente a que travaram em defesa do próprio direito à veracidade e à sinceridade social, tratando os outros por tu, consoante a sua maneira característica, não tirando o chapéu nem concedendo títulos de respeito. Foi George Fox quem disse que esses costumes convencionais eram uma mentira e uma impostura, e todo o grupo de seguidores renunciou a eles, como um sacrifício à verdade, e para que seus atos e o espírito que professavam fossem mais acordes. “Quando o Senhor me mandou para o mundo”, diz Fox em seu Diário, “proibiu-me de tirar o chapéu diante de quem que fosse, alto ou baixo: e de mim se exigia que tratasse por “ti” e por “tu” todos os homens e mulheres, sem nenhum respeito a ricos ou pobres, grandes ou pequenos. E enquanto eu andava de um lado para outro, não devia dar bom-dia nem boa-noite às pessoas, nem podia fazer rapapés a ninguém. Isso enfureceu as seitas e profissões. Oh! a fúria dos padres, dos magistrados, dos professores e das pessoas de todas as castas: e especialmente dos padres e professores: pois embora o “tu” dado a uma só pessoa estivesse de acordo com os rudimentos e as regras da gramática deles, e concordasse com a Bíblia, não suportavam ouvi-lo: e porque eu não podia tirar o chapéu diante deles ficaram todos loucos da vida …. Oh! o desprezo, a cólera, a fúria que isso ocasionou! Oh! os golpes, os murros, as surras e as prisões que sofremos por não tirar o chapéu diante dele! Alguns tinham o chapéu violentamente arrancado da cabeça e lançado fora, de modo que o perdiam. É difícil reproduzir os xingamentos e abusos que sofremos por causa disso, além do perigo que às vezes corríamos de perder a vida, sobretudo da parte dos grandes professores de Cristianismo, que assim revelaram não ser verdadeiros crentes. E conquanto se tratasse apenas de uma pequena coisa aos olhos do homem, produziu uma confusão maravilhosa entre todos os professores e padres: mas, louvado seja o Senhor, muitos vieram a perceber a vaidade do costume de tirar o chapéu diante de homens e sentiram o peso do testemunho da Verdade contra ele.” Na autobiografia de Thomas Elwood, um dos primeiros quacres, que em certa época foi secretário de John Milton, encontramos um relato primoroso e sincero das provações por que passou, não só em sua tetra como também no estrangeiro, por seguir os cânones de sinceridade de Fox. As anedotas são demasiado extensas para que as citemos; mas Elwood expõe sua maneira de sentir a respeito dessas coisas num passo mais curto, que citarei como pronunciamento característico de sensibilidade espiritual: “Por meio dessa luz divina, portanto”, diz Elwood, “vi que embora eu não tivesse o pecado da impureza, do deboche, da profanidade e das poluições comuns do mundo para lançar de mim, porque, pela grande bondade de Deus e da minha educação, eu fora preservado desses males mais grosseiros, ainda assim tinha muitos outros para deixar e pôr de parte; alguns dos quais não eram considerados pecados pelo mundo, que jaz na maldade (1 João V. 19), mas que a luz de Cristo me mostrou serem males e, como tais, condenados em mim. “Como particularmente os frutos e efeitos do orgulho, que se revelam na vaidade e superfluidade das vestes; nas quais eu me comprazia sobremaneira. Foi-me exigido que pusesse de lado esse pecado dos meus atos e o deixasse; e o julgamento pairou sobre mim enquanto não o fiz. “Tirei das minhas roupas todos os enfeites desnecessários de rendas, fitas e botões inúteis, que não prestavam serviço algum, mas só eram colocados por causa de que, por engano, se denomina ornamento; e deixei de usar anéis. “Outrossim, dar títulos lisonjeiros a homens com os quais eu não mantinha nenhuma relação que os justificasse, mal a que eu fora muito inclinado e no qual era considerado verdadeiro artista; por conseguinte, exigiu-se-me também que o deixasse e o lançasse fora. De então para cá, portanto, não mais me atrevi a dizer, Senhor, Mestre, Meu Senhor; Madama (ou Minha Dama); ou dizer Seu Criado a qualquer pessoa em relação à qual eu não me achasse em posição subalterna, como, de resto, nunca estive em relação a ninguém. “Outrossim, no que tange às pessoas, descobrir a cabeça e encimar o joelho ou o corpo em saudação, prática muito utilizada por mim; e que, sendo um dos vãos costumes do mundo, introduzido pelo espírito mundano, em vez da verdadeira honra, da qual é uma falsa representação, e usado enganosamente como sinal de respeito entre as pessoas, que não se respeitam umas às outras, e, além disso, sendo um tipo e um símbolo apropriado da divina honra que todos devemos prestar ao Altíssimo, e que todos os cristãos de todos os tipos manifestam quando oferecem suas orações a ele, não deveriam ser dados a homens. Verifiquei ser este um dos pecados que eu estivera praticando havia muito tempo; eis por que me foi exigido que o largasse e pusesse de lado. “Outrossim, a forma corrupta e incorreta de falar no plural a uma pessoa só, dizer vós a alguém, em lugar de tu, o que é contrário à linguagem pura, singela e desafetada da verdade, tu para um, vós para mais de um, qual sempre foi usada por Deus quando se dirigia aos homens e pelos homens quando se dirigiam a Deus, assim como pelos homens quando se dirigiam uns aos outros, desde o mais antigo registro dos tempos até que homens corruptos, com propósitos corruptos, nos últimos tempos corruptos, para lisonjear, cortejar e trabalhar a natureza corrupta dos homens, trouxeram a falsa e insensata maneira de dizer vós a um só, o que, desde então, corrompeu as línguas modernas e rebaixou os espíritos e depravou as maneiras dos homens - esse mau costume eu o praticara com o mesmo fervor dos outros, e dele estava sendo agora intimado a abrir mão. “Estes e muitos outros maus costumes, que haviam jorrado na noite das trevas e da apostasia geral da verdade e da verdadeira religião, estavam agora, pelo resplendor desse puro raio de luz divina em minha consciência, mostrando- me que eu devia deixá-los, evitálos e testemunhar contra eles.”{175} Esses primeiros quacres eram puritanos de verdade. A menor contradição entre a profissão e a ação fazia vibrar alguns deles em protestos ativos. John Woolman escreve em seu diário: “Nessas jornadas tenho estado onde se tinge muito pano; e tenho caminhado diversas vezes sobre solo onde se escoam muitos corantes. Isso produziu em minha mente o desejo de que as pessoas possam chegar à limpeza do espírito, à limpeza da pessoa e à limpeza de suas casas e de suas roupas. Tendo sido as tintas inventadas, em parte, para agradar aos olhos e, em parte, para esconder a sujeira, tenho sentido neste estado de fraqueza, caminhando na sujeira, e atacado por cheiros deletérios, um robusto desejo de que a natureza do tingimento da roupa para esconder a sujeira seja mais plenamente examinada. “Lavar nossas roupas para mantê-las bonitas é limpeza. Mas é o oposto do verdadeiro asseio ocultar nelas a sujeira. Quando concordamos em dissimular a sujeira em nossas roupas, estamos fortalecendo um espírito capaz de acobertar tudo o que é desagradável. A verdadeira limpeza quadra a um povo santo; mas encobrir o que não é limpo colorindo as nossas roupas parece contrário ao encanto da sinceridade. Por efeito de certas espécies de tintas o pano se toma menos útil. E se adicionasse o valor dos corantes às despesas do tingimento e aos danos causados ao tecido e se aplicasse esse custo para deixar tudo bonito e asseado, a verdadeira limpeza prevaleceria muito mais. “Pensando com frequência nessas coisas, o uso de chapéus e roupas tingidas com uma tinta que as prejudica e o uso de maior quantidade de roupas do que as necessárias, no verão, tomaram-se mais incômodos para mim; por eu acreditar que se tratava de costumes não fundados na sabedoria pura. O medo de me estranhar dos meus queridos amigos foi-me uma dificuldade; e assim continuei a usar algumas coisas, que contrastavam o meu melhor juízo, por nove meses. Depois pensei em arranjar um chapéu com a cor natural do pêlo, mas o receio de ser visto como alguém que afetasse singularidade me desconvenceu. Em razão disso, eu me empenhava em aturado exercício da mente na época da nossa reunião geral de primavera em 1762, ansiando por ser corretamente dirigido; e, estando prostrado em espírito diante do Senhor, me senti disposto a sujeitar-me ao que reconheci ser o que se exigia de mim; e, quando voltei para casa, arranjei um chapéu com a cor natural do pêlo. “Ao participar das reuniões, a singularidade foi-me uma provação, sobretudo nessa ocasião, quando os que gostavam de seguir as modas cambiantes dos trajos usavam chapéus brancos e alguns amigos, que nada sabiam dos motivos por que eu o usava, se espantavam comigo, senti o meu caminho barrado, por algum tempo, ao exercício do ministério. Alguns amigos ficaram com medo de que, usando um chapéu daqueles, eu pudesse ser acusado de afetação de singularidade; e aos que me procuravam de maneira amistosa, eu geralmente confessava acreditar que não usava o chapéu por minha própria vontade”. Quando o anseio de coerência moral e pureza é desenvolvido a esse ponto, o sujeito pode perfeitamente achar o mundo exterior tão cheio de choques que lhe desagrada morar nele, e só pode dar unidade à sua vida e manter a alma impoluta retirando-se dele. A lei que impele o artista a lograr harmonia em sua composição pela simples eliminação de tudo o que destoa ou sugere discórdia, vige também na vida espiritual. Omitir, diz Stevenson, é a única arte na literatura: “Se eu soubesse omitir, não pediria outro conhecimento”. E quando está cheia de desordem e negligência e vagas superfluidades, a vida não pode ter o que chamamos de caráter, tanto quanto não pode tê-lo a literatura em condições análogas. Nessas circunstâncias, mosteiros e comunidades de devotos compassivos abrem suas portas e em sua ordem inalterável, tão caracterizada por omissões quanto constituída de ações, a pessoa espiritualmente santa encontra aquela suavidade e limpeza interior, que é tortura para ela sentir violada a cada passo pela discordância e brutalidade da existência secular. Cumpre admitir, porém, que o escrúpulo da pureza pode ser levado a um extremo fantástico. Nisso semelha o Ascetismo, cujo sintoma subsequente de santidade versaremos em seguida. O adjetivo “ascético” aplica-se à conduta originária de diversos níveis psicológicos, que passarei a distinguir uns dos outros. 1. O ascetismo pode ser mera expressão de intrepidez orgânica, enojada da excessiva indulgência. 2. A temperança no comer e no beber, a simplicidade no vestirse, a castidade e a não-satisfação do corpo, de um modo geral, podem ser frutos do amor à pureza, escandalizado com tudo o que tenha sabor de sensual. 3. Podem ser também frutos do amor, isto é, podem atrair o sujeito à luz de sacrifícios que ele se sente feliz de fazer para a Divindade que reconhece. 4. As mortificações e tormentos ascéticos, além disso, podem dever-se a sentimentos pessimistas em relação ao eu, combinados com crenças teológicas concernentes à expiação. O devoto talvez sinta que está comprando a sua liberdade ou escapando de piores sofrimentos no futuro se fizer penitência agora. 5. Os psicopatas podem iniciar irracionalmente as mortificações, por uma espécie de obsessão ou idéia fixa que vem como um desafio e precisa ser descarregada, porque só assim a consciência interior do sujeito voltará a sentir-se bem. 6. Finalmente, os exercícios ascéticos, em casos mais raros, podem ser sugeridos por autênticas perversões da sensibilidade corpórea, em consequência das quais estímulos normalmente dolorosos são de fato sentidos como prazeres. Procurarei dar um exemplo de cada um desses grupos; não é fácil, todavia, obtê-los puros, pois em casos tão pronunciados que podem ser imediatamente classificados como ascéticos, vários dentre os motivos especificados costumam operar juntos. De mais a mais, antes de citar quaisquer exemplos, devo convidá-los a fazer algumas considerações psicológicas gerais, que se aplicam indistintamente a todos esses motivos. No decorrer do último século, estranha transformação moral varreu o nosso mundo ocidental. Já não nos julgamos chamados a enfrentar a dor física com equanimidade. Não se espera de um homem que a suporte nem que a inflija em demasia, e a recitação de casos faz que a nossa carne se arrepie assim moral como fisicamente. O modo com que nossos antepassados encaravam a dor como eterno ingrediente da ordem do mundo, e tanto a causavam quanto a sofríam como porção natural do seu trabalho diário, enche-nos de assombro. Pasmamos de que seres humanos possam ter sido tão empedernidos. O resultado dessa alteração histórica é que na própria Madre Igreja, onde a disciplina ascética goza de tamanho prestígio tradicional fixo como fator de mérito, ela tenha em grande parte caído em desuso, se não em descrédito. Um crente que se flagela ou “macera” hoje em dia desperta mais espanto e medo do que emulação. Muitos autores católicos que admitem a mudança dos tempos nesse sentido fazem-no resignadamente; e até acrescentam que talvez seja bom não esperdiçar sentimentos lamentando o assunto, pois voltar à heróica disciplina corporal dos antigos dias poderia ser uma extravagância. Onde a procura do fácil e do ameno parece instintiva — e tudo indica que ela é instintiva no homem; qualquer tendência deliberada para buscar o duro e o penoso como tais e por eles mesmos pode afigurar-se-nos puramente anormal. Não obstante, em graus moderados é natural e até comum à natureza humana cortejar o árduo. São apenas as manifestações extremas da tendência que se podem considerar um paradoxo. As razões psicológicas disso são óbvias. Quando deixamos de lado as abstrações e tomamos o que chamamos nossa vontade no ato concreto, vemos que se trata de uma função muito complexa. Envolve, ao mesmo tempo, estimulações e inibições; segue hábitos generalizados; é escoltada por críticas reflexivas; e deixa para trás um gosto bom ou mau, segundo o modo da execução. O resultado é que, independentemente do prazer imediato que qualquer experiência sensível possa proporcionar-nos, nossa própria atitude moral geral no conseguir ou sofrer a experiência traz consigo uma satisfação ou desprazer secundário. Existem, com efeito, homens e mulheres que podem viver sempre de sorrisos e da palavra “sim”. Para outros (ou melhor, para a maioria), contudo, esse é um clima moral demasiado morno e relaxado. A felicidade passiva, frouxa e insípida, logo se toma enjoativa e intolerável. É mister misturar-lhe um pouco de austeridade e negatividade invernosa, alguma aspereza, perigo, adstringência e esforço, alguns “não! não!”, a fim de produzir o sentido de uma existência com caráter, estrutura e poder. A série de diferenças individuais nesse sentido é enorme; mas seja qual for a mistura de sins e nãos, a pessoa se toma infalivelmente cônscia quando a encontra na proporção certa para ela. Esta, sente o indivíduo, é a minha vocação, este é o optimum, a lei, a vida que devo viver. Aqui encontro o grau de equilíbrio, segurança, calma e lazer de que preciso, ou aqui encontro o desafio, a paixão, a luta e os trabalhos sem os quais expira a energia da minha alma. Toda alma individual, em suma, como toda máquina ou organismo individual, tem suas condições ideais de eficiência. Determinada máquina funcionará melhor sob certa pressão, certa amperagem; um organismo, debaixo de certa dieta, peso ou exercício. Você parece funcionar com mais proveito, ouvi dizer um médico a um paciente, por volta de 140 milímetros de pressão arterial. E o mesmo acontece com diversas almas: algumas são mais felizes quando o tempo está calmo; outras necessitam do sentido de tensão, de vigorosa volição, para sentir-se vivas e bem. No caso destas últimas, tudo o que ganham no dia-a-dia precisa ser pago com sacrifício e inibição, pois, do contrário, parecerá muito barato e perderá o sabor. Ora, quando caracteres desta última espécie se tomam religiosos, podem virar o fio da sua necessidade de esforço e negatividade contra o seu eu natural; e, em consequência disso, a vida ascética evolve. Quando o Professor Tyndall, numa de suas conferências, nos contou que Thomas Carlyle se metia na banheira todas as manhãs de um enregelante inverno berlinense, proclamou um dos mais baixos graus de ascetismo. Mesmo sem Carlyle, a maioria dentre nós acha necessário à saúde da alma começar o dia com uma imersão fria. Um pouco mais adiante na escala deparam-se-nos depoimentos como este, de um dos meus correspondentes, um agnóstico: “Muitas vezes, à noite, em minha cama quente, eu me sentia envergonhado por depender tanto do calor, e sempre que esse pensamento me passava pela cabeça, eu me levantava, fosse qual fosse a hora da noite, e ficava de pé, por um minuto, no frio, para provar a minha virilidade”. Casos como este pertencem simplesmente ao nosso item 1. No caso seguinte temos, provavelmente, uma mistura dos itens 2 e 3 - o ascetismo torna-se muito mais sistemático e pronunciado. O sentido de energia moral do autor, protestante, evidentemente não poderia contentar-se com termos inferiores, e eu lhe extraio o caso da coleção manuscrita de Starbuck. “Pratiquei o jejum e mortificações da carne. Fazia secretamente camisas de serapilheira, punha os carrapichos em contato com a pele e usava pedrinhas nos sapatos. Passava noites inteiras deitado de costas no chão sem nenhuma coberta.” A Igreja romana organizou e codificou todo esse tipo de coisas, e deulhe um valor de mercado na forma de “mérito”. Vemos, porém, a cultivo de privações aflorando debaixo de todos os céus e em todas as crenças, como espontânea necessidade do caráter. Assim, lemos a respeito de Channing, quando se estabeleceu, pela primeira vez, como ministro unitário, que: “Ele era agora mais simples do que nunca, e parecia ter-se tornado incapaz de alguma forma de indulgência consigo mesmo. Escolheu o menor cômodo da casa para seu escritório, embora pudesse facilmente ter escolhido um mais claro, mais arejado e, em todos os sentidos, mais adequado; e elegeu para seu quarto de dormir uma água-furtada, que partilhava com um irmão menor. O mobiliário desta última teria quadrado à cela de um anacoreta, e consistia num colchão duro sobre uma armação de cama, cadeiras e mesa simples de madeira e uma esteira no chão. Não tinha lareira, embora ele sempre fosse, durante toda a vida, extremamente sensível ao frio; mas nunca se queixou nem pareceu ter consciência de alguma inconveniência. ‘Lembro-me’, diz o irmão, ‘de que, depois de uma noite severíssima, ele aludiu, na manhã seguinte, esportivamente, ao seu sofrimento desta maneira: Se minha cama fosse o meu país, eu seria, mais ou menos, como Bonaparte: só tenho controle da parte que ocupo; assim que me mexo, o gelo toma conta da área que deixei. Só quando ficava doente consentia em trocar de quarto e aceitar algum conforto. Os trajos de uso diário eram também da qualidade mais inferior; e vestia constantemente roupas que o mundo chamaria ordinárias, se bem uma limpeza quase feminina as preservasse da menor aparência de negligência.”{176} O ascetismo de Channing, como tal, era evidentemente um composto de intrepidez e amor à pureza. A democracia, decorrência do entusiasmo da humanidade, e da qual falarei mais tarde quando versar o item do culto da pobreza, concorria também, sem dúvida, com a sua parcela. Não havia, de certo, nenhum elemento pessimista em seu caso. No caso seguinte vamos encontrar um elemento robustamente pessimista, que o inclui rio item 4. John Cennick foi o primeiro pregador metodista leigo. Em 1735 teve a idéia do pecado, enquanto passeava em Cheapside: “E deixou imediatamente de cantar canções, jogar cartas e frequentar teatros. Às vezes, desejava entrar para um mosteiro papista a fim de passar a vida em devoto recolhimento. Em outras ocasiões, anelava viver numa caverna, dormindo sobre folhas secas e alimentando-se das frutas da floresta. Jejuava por muito tempo e com muita frequência, e rezava nove vezes por dia …. Imaginando ser o pão seco um privilégio demasiado grande para um grande pecador como ele, começou a alimentar-se de batatas, bolotas, caranguejos e capim; e, não raro, desejava poder viver de raízes e ervas. Finalmente, em 1737, encontrou a paz em Deus e seguiu, jubiloso, o seu caminho”.{177} Nesse pobre homem encontramos melancolia mórbida e medo, e os sacrifícios que fazia destinavam-se a purgar o pecado e comprar segurança. A desesperança da teologia cristã no tocante à carne e ao homem natural, ao sistematizar o medo, geralmente tem feito dele um tremendo incentivo à automortificação. Fora injusto, porém, em que pese ao fato de ter sido esse incentivo trabalhado amiúde de maneira mercenária com finalidades exortativas, chamar-lhe incentivo mercenário. O impulso de expiar e fazer penitência, em sua primeira intenção, é uma expressão tão imediata e espontânea de desespero e ansiedade que não merece nenhuma censura dessa ordem. Na forma do sacrifício amoroso, de gastar tudo o que temos para mostrar a nossa devoção, a disciplina ascética mais severa pode ser fruto de um sentimento religioso altamente otimista. O Sr. Vianney, cura de Ars, era um padre francês provinciano, de santidade exemplar. Lemos em sua vida o seguinte relato da necessidade interior de sacrifício que sentia: “ ‘Neste caminho’, disse o Sr. Vianney, ‘é apenas o primeiro passo que custa. Há na mortificação um bálsamo e um sabor sem os quais não podemos viver depois de travarmos conhecimento com eles. Existe apenas um meio com o qual podemos dar-nos a Deus, isto é, dar-nos inteiramente, e não guardar nada para nós. O pouco que guardamos só serve para perturbar-nos e fazer-nos sofrer’. Conseguintemente, ele impunha a si mesmo o dever de nunca cheirar uma flor, nunca beber quando abrasado de sede, nunca enxotar uma mosca, nunca mostrar nojo diante de um objeto repugnante, nunca se queixar de coisa alguma relacionada com o seu conforto pessoal, nunca sentar-se, nunca se apoiar nos cotovelos quando se ajoelhava. Se bem fosse muito sensível ao frio, o Cura de Ars não tomava medida alguma para proteger-se contra ele. Durante um inverno assaz rigoroso, um dos seus missionários inventou um fundo falso para o confessionário e colocou uma caixa metálica de água quente debaixo do chão. O truque deu certo e o Santo foi enganado. ‘Deus é muito bom’, disse ele com emoção. ‘Este ano, apesar de todo o frio que fez, meus pés sempre estiveram quentes’ ”.{178} Neste caso, o impulso espontâneo para fazer sacrifícios pelo puro amor de Deus foi provavelmente o principal motivo consciente. Podemos classificá-lo, portanto, entre os motivos do item 3. Crêem alguns autores que o impulso para o sacrifício é o principal fenômeno religioso. É um fenômeno universal, notável, por certo, e jaz mais profundamente do que qualquer credo especial. Aqui, por exemplo, está o que parece ser um exemplo espontâneo dele, expressando simplesmente o que, na ocasião, parecia certo entre o indivíduo e seu Criador. Cotton Mather, o sacerdote puritano da Nova Inglaterra, é geralmente considerado um pedante grotesco; o que é, entretanto, mais tocantemente singelo que o seu relato do que aconteceu quando a esposa veio a falecer? “Quando vi a que ponto de resignação eu era chamado pelo Senhor”, diz ele, “resolvi, com a sua ajuda, glorificá-lo. Destarte, duas horas antes de minha adorável consorte expirar, ajoelhei-me ao pé da cama, peguei entre as minhas uma querida mão, a mais querida do mundo. Tendo-a assim comigo, solene e sinceramente confiei-a ao Senhor: e em sinal de minha verdadeira Resignação, coloquei delicadamente sobre as cobertas a mais adorável das mãos, resolvendo nunca mais tocar nela. Essa foi a mais difícil e, talvez, a mais corajosa ação que já pratiquei. Ela … disse-me que assinava e selava o meu ato de resignação. E dado que, antes disso, me chamasse continuamente, depois nunca mais chamou por mim.”{179} O ascetismo do Padre Vianney, tomado em sua totalidade, era simplesmente o resultado de um fluxo permanente de entusiasmo espiritual, que ambicionava dar provas de si. À sua maneira incomparável, a Igreja romana reuniu todos os motivos que levam ao ascetismo e codificou-os de modo que quem deseja buscar a perfeição cristã encontra um sistema prático minuciosamente planejado para ele em qualquer um dos manuais existentes. {180} A noção dominante de perfeição da Igreja é, naturalmente, a noção negativa de evitação do pecado. O pecado provém da concupiscência, e a concupiscência, das nossas paixões e tentações carnais, as mais importantes das quais são o orgulho, a sensualidade em todas as suas formas e o amor da excitação e da possessão mundanas. É preciso resistir a todas essas fontes do pecado; e a disciplina e as austeridades são um modo muito eficaz de contrastá-las. Daí que haja sempre nesses livros capítulos sobre a automortificação. Mas toda vez que se codifica um processo, o seu espírito mais delicado se evapora e, se desejarmos o espírito ascético não diluído, - a paixão do desprezo próprio assanhando-se contra a pobre carne, a divina irracionalidade da devoção fazendo uma dádiva sacrificial de tudo o que possui (principalmente suas sensibilidades) ao objeto da sua adoraçãoprecisamos recorrer a autobiografias ou a outros documentos individuais. São João da Cruz, místico espanhol que floresceu - ou antes, que existiu, pois havia nele muito pouca coisa que sugerisse florescimento — no século XVI, proporcionará uma passagem adequada ao nosso propósito. “Primeiro que tudo, excitai cuidadosamente em vós mesmos uma vontade afetuosa habitual de imitar Jesus Cristo em todas as coisas. Se algo agradável se oferecer aos vossos sentimentos e não tender, ao mesmo tempo, à honra e à glória de Deus, renunciai a ela e separaivos dela por amor de Cristo, o qual, durante toda a sua vida, não teve outro gosto nem desejo que o de fazer a vontade de seu Pai, a quem chamou sua carne e seu alimento. Por exemplo, vós vos comprazeis em ouvir coisas em que a glória de Deus não tem parte alguma. Negaivos essa satisfação, mortificai o vosso desejo de ouvir. Encontrais prazer em ver objetos que não elevam a mente a Deus; recusai-vos esse prazer e desviai os olhos. O mesmo se diga em relação à conversação e a todas as outras coisas. Agi de maneira semelhante, na medida do possível, com todas as operações dos sentidos, forcejando por libertar-vos do seu jugo. “O remédio radical reside na mortificação das quatro grandes paixões naturais, a alegria, a esperança, o medo e a dor. Deveis procurar privá-las de toda e qualquer satisfação e deixá-las, por assim dizer, na escuridão e no vácuo. Permiti que a vossa alma, portanto, se volte sempre: “Não para o que é mais fácil, senão para o que é mais difícil; “Não para o que é mais saboroso, senão para o que é mais desagradável; “Não para o que mais agrada, senão para o que mais enoja; “Não para causas de consolação, senão para ocasiões de desolação; “Não para descansar, senão para trabalhar; “Não para desejar o mais, senão o menos; “Não para aspirar ao que é mais alto e mais precioso, senão ao que é mais baixo e mais desprezível; “Não querer tudo, senão querer nada; “Não buscar o melhor em tudo, senão buscar o pior, de modo que possais entrar, por amor do Cristo, numa completa indigência, numa perfeita pobreza de espírito e numa renúncia absoluta de tudo neste mundo; “Desprezar-vos a vós mesmos e desejar que outros vos desprezem; “Falar em vosso próprio desabono e desejar que os outros também o façam; “Ter de vós uma baixa opinião e achar bom quando os outros também a têm; “Para saborear o gosto de todas as coisas, não ter gosto por nenhuma; “Para conhecer todas as coisas, aprender a não conhecer coisa alguma; “Para possuir todas as coisas, decidir nada possuir; “Para ser todas as coisas, desejar não ser nada; “Para ir aonde não tendes gosto por coisa alguma, sujeitar-vos a experiências de que não gostais; “Para aprender a não conhecer nada, ir para onde sois ignorante; “Para alcançar o que não possuís, ide aonde nada possuís; “Para ser o que não sois, experimentai o que não sois.” Estes últimos versos brincam com a vertigem da contradição, tão cara ao misticismo. Os que vêm em seguida são completamente místicos, pois neles São João passa de Deus para a noção mais metafísica do Todo. “Quando vos detendes diante de uma coisa, deixais de abrir-vos para o Todo. “Pois para chegardes ao Todo deveis renunciar ao Todo. “E para poderdes chegar à posse do Todo, precisais possuí-lo, desejando Nada. “Nessa espoliação, a alma encontra sua tranquilidade e descanso. Profundamente estabelecida no centro do próprio nada, ela não pode ser salteada por coisa alguma vinda de baixo; e visto que já nada deseja, o que vem de cima não pode deprimi-la; pois unicamente os seus desejos são as causas das suas atribulações.” {181} E agora, como exemplo mais concreto dos itens 4 e 5, na verdade de todos os itens juntos, e do extremo irracional a que pode chegar o indivíduo psicopático na linha da austeridade corporal, citarei o relato das próprias autotorturas, feito pelo sincero Suso. Os senhores devem estar lembrados de que Suso foi um místico alemão do século XIV; sua autobiografia, escrita na terceira pessoa, é um documento religioso clássico. “Ele teve na mocidade um temperamento cheio de fogo e vida; e quando isto começou a fazer-se sentir, foi-lhe muito penoso; e ele buscou descobrir, por meio de vários artifícios, o modo com que poderia manter sujeito o próprio corpo. Usou durante muito tempo uma camisa de pêlos e uma corrente de ferro, até que o corpo começou a sangrar e ele se viu obrigado a livrar-se delas. Mandou fazer secretamente uma peça de roupa interior, em que se coseram tiras de couro, nas quais foram metidos cento e cinquenta pregos de latão, pontudos e afiados, e cujas pontas estavam sempre viradas na direção da carne. Mandou que fizessem a peça bem estreita, de maneira que lhe envolvesse o corpo e fosse amarrada na frente, a fim de poder apertá-la à vontade, para os pregos pontudos lhe penetrarem a carne; e era tão alta a dita peça que lhe chegava até acima do umbigo. Com essa roupa costumava dormir. Ora, no verão, quando fazia calor, e ele se sentia muito cansado e doente de tantas jornadas, ou quando exercia o cargo de prelecionador, às vezes, enquanto assim jazia cativo, opresso de trabalho e atormentado também por insetos mefíticos, punha-se a gritar a brados e a dar vazão à rabugice e a girar de um lado para outro numa agonia, como faz um verme traspassado por uma agulha pontiaguda. Tinha muitas vezes a impressão de estar deitado em cima de um formigueiro, em virtude da tortura causada pelos insetos; pois se quisesse dormir, ou quando adormecia, eles porfiavam uns com os outros.{182} Às vezes, gritava para Deus Todopoderoso na plenitude de seu coração: Ai de mim! Deus gentil, que morrer é este! Quando o homem é morto por assassinos ou robustos animais de presa, tudo se acaba logo; mas estou aqui agonizando sob a mira de insetos cruéis e ainda assim não posso morrer. As noites de inverno nunca eram tão longas, nem as de verão tão quentes que o fizessem interromper este exercício. Pelo contrário, engenhou mais alguma coisa - dois laços de couro em que enfiava as mãos e as prendia de cada lado da garganta, deixando-as tão presas que ainda que a sua cela estivesse pegando fogo, não poderia valer-se. E prosseguia no arrocho até que as mãos e os braços ficassem quase trêmulos com a pressão; e depois inventou mais alguma coisa: duas luvas de couro; e, tendo mandado um latoeiro equipá-las inteiramente de tachas agudas, costumava calçá-las à noite a fim de que, se viesse a tentar, durante o sono, lançar de si as ceroulas de pêlos, ou livrar-se das picadas dos vis insetos, as tachas se lhe enterrassem no corpo. E assim acontecia. Se alguma vez buscasse ajudar-se das mãos durante o sono, enfiava as tachas pontudas no peito e o dilacerava, de modo que a carne se inflamava. E quando, muitas semanas após, as feridas cicatrizavam, tomava a raspar as próprias carnes e a fazer novas feridas. “Continuou esse exercício torturante por cerca de dezesseis anos. Ao cabo desse tempo, quando o seu sangue já esfriara e o fogo do seu temperamento fora apagado, apareceu-lhe uma visão no Domingo de Pentecostes, um mensageiro do céu, o qual lhe disse que Deus já não exigia dele o dito exercício. Em vista disso, descontinuou-o, e jogou todas essas coisas num curso de água corrente. Suso passa então a contar que, para emular os sofrimentos de seu Senhor crucificado, construiu para si uma cruz com trinta agulhas e pregos de ferro salientes, que carregava nas costas nuas, entre um ombro e outro, dia e noite. “A primeira vez que colocou a cruz nas costas, sua carne tenra ficou transida de terror, e ele embotou, com uma pedra, as pontas afiadas dos pregos. Logo, porém, arrependido dessa covardia feminil, voltou a afiá-las com uma lima, e colocou mais uma vez a cruz às costas. Os pregos lhe deixaram o dorso, nos lugares onde havia ossos, ensanguentado e caraterizado. Toda vez que se sentava ou se levantava, era como se uma pele de porco-espinho o recobrisse. Se alguém o tocasse, sem querer, ou o empurrasse de modo que as roupas lhe aderissem ao corpo, a cruz o lacerava.” Em seguida, Suso narra suas penitências batendo na cruz e forçando os pregos a se enterrarem mais profundamente na carne e, igualmente, suas autoflagelações - uma história medonha - e continua deste teor: “Nesse mesmo período, o Servidor conseguiu arranjar uma velha porta jogada no lixo, e passou a deitar-se sobre ela à noite, sem nenhuma roupa de cama para dar-lhe algum conforto; limitava-se a tirar os sapatos e a cobrir-se com um manto grosso. Assegurou, assim, para si uma cama miserabilíssima; pois duros talos de ervilha lhe ficavam amontoados debaixo da cabeça, a cruz de pregos aguçados fincava-se-lhe nas costas, os braços estavam bem presos em laços, a peça de roupa de crina de cavalo lhe rodeava os lombos, o manto era pesado e a porta, dura. Assim jazia o mísero, com medo de mexer-se, como se fora um tronco, e desferia inúmeros gemidos para Deus. “No inverno sofria muito com o frio. Se esticasse os pés, estes, ficando nus no chão, gelavam; se os recolhesse, o sangue, inflamandose-lhe nas pernas, causava-lhe grande sofrimento. Andava com os pés em ferida, as pernas hidrópicas, os joelhos sanguinolentos e crestados, os lombos cobertos de cicatrizes provocadas pela crina de cavalo, a boca ressequida de sede e as mãos trêmulas de fraqueza. Entre esses tormentos passava os dias e as noites; e os suportava a todos pela grandeza do amor que trazia no coração à Divina e Eterna Sabedoria, Nosso Senhor Jesus Cristo, cujos padecimentos agônicos procurava imitar. Volvido algum tempo, abriu mão do exercício penitencial da porta e, em vez dele, aboletou-se numa cela minúscula, usando o banco, tão estreito e tão curto que não conseguia esticar-se sobre ele, à guisa de cama. Nesse buraco, ou sobre a porta, passou deitado as noites cerca de oito anos. Foi também seu costume, durante vinte e cinco anos, quando se achava no convento, durante o inverno nunca entrar, depois das Completas, numa sala aquecida, nem se abeirar do fogão do mosteiro para esquentar-se por maior que fosse o frio, a não ser que se visse obrigado a isso por outras razões. Durante todos esses anos, nunca tomou um banho, nem de água nem de calor; o que fazia com o propósito de mortificar o corpo sequioso de conforto. Praticou durante muito tempo uma pobreza tão rígida que não recebia nem tocava um centavo sequer, nem com permissão nem sem ela. Por um espaço considerável de tempo diligenciou atingir tão alto grau de pureza que não cocava nem tocava parte alguma do corpo, excetuando-se apenas as mãos e os pés.” {183} Poupo-lhes a descrição das torturas da sede que o pobre Suso infligia a si próprio. É agradável saber que, depois do seu quadragésimo ano de vida, Deus lhe mostrou, por uma série de visões, que ele quebrara suficientemente o homem natural e poderia desistir desses exercícios. O seu caso é distintamente patológico, mas não parece ter tido o alívio, de que alguns ascetas gozaram, de uma alteração da sensibilidade capaz de transformar realmente o tormento num gênero perverso de prazer. Sobre a fundadora da ordem do Sagrado Coração, por exemplo, lemos que “O seu amor à dor e ao sofrimento era insaciável. … Ela se dizia capaz de viver alegremente até o dia do juízo final, contanto que pudesse ter sempre razão para sofrer por Deus; mas que viver um único dia sem sofrimento lhe seria intolerável. Ela se dizia também devorada por duas febres inaplacáveis, a da sagrada comunhão, e a do sofrimento, da humilhação e do aniquilamento. ‘Nada senão a dor’, escrevia de contínuo em suas cartas, ‘toma minha vida suportável’ ”. {184} Isso quanto aos fenômenos a que dá lugar o impulso ascético em determinadas pessoas. No caráter eclesiasticamente consagrado foram reconhecidos por caminhos indispensáveis à perfeição três ramos menores da auto-mortificação. Refiro-me à castidade, à obediência e à pobreza, que o monge protesta observar; e acerca dos itens da obediência e da pobreza farei alguns reparos. Primeiro, a Obediência. A vida secular do nosso século XX começa com essa virtude gozando de uma estima não muito grande. O dever do indivíduo de determinar seu próprio procedimento e vencer ou sofrer as consequências parece ser, ao contrário, um dos mais arraigados ideais sociais protestantes contemporâneos. E tanto isso é assim que se toma difícil, até imaginativamente, compreender como homens que possuem vida interior própria possam ter chegado a julgar recomendável a submissão da sua vontade à de outras criaturas finitas. Confesso que nisso, para mim mesmo, parece haver algo misterioso. Entretanto, corresponde, evidentemente, a uma profunda necessidade interior de muitas pessoas, e precisamos fazer o possível para compreendê-lo. No plano mais baixo possível, vemos que a utilidade da obediência numa organização eclesiástica firme deve tê-la levado a ser vista como meritória. Além disso, mostra a experiência que existem momentos na vida de todos nós em que podemos ser mais bem aconselhados por outros do que por nós mesmos. A incapacidade de decidir é um dos sintomas mais comuns de nervos fatigados; amigos que vêem nossos problemas da maneira mais genérica, não raro os vêem mais sabiamente do que nós; por isso, muitas vezes, é ato de excelente virtude consultar um médico, um sócio, a esposa, e obedecer a eles. Deixando, porém, essas regiões prudenciais inferiores, encontramos, na natureza de algumas excitações espirituais que andamos estudando, boas razões para idealizar a obediência. A obediência pode provir do fenômeno religioso geral do abrandamento interior, do abandono e do apelo a poderes mais altos. E tão salvadoras se acredita que tais atitudes sejam em si mesmas, independentemente da sua utilidade, que são idealmente consagradas; e ao obedecer a um homem cuja falibilidade nos é manifesta, podemos assim mesmo, sentir-nos como nos sentimos quando renunciamos à nossa vontade para aceitar a da infinita sabedoria. Acrescentem-se a isso o desespero e a paixão da autocrucificação e vemos a obediência transformarse em sacrifício ascético, agradável, fora de quaisquer usos prudenciais que possa ter. É como sacrifício, como modo de “mortificação” que os escritores católicos concebem, antes de tudo, a obediência, “um sacrifício que o homem oferece a Deus e do qual ele mesmo é o sacerdote e a vítima. Pela pobreza, imola suas propriedades exteriores; pela castidade, imola o próprio corpo; pela obediência, completa o sacrifício e dá a Deus tudo o que ainda conserva como seu, seus dois bens mais preciosos, o intelecto e a vontade. O sacrifício é então completo e incondicional, autêntico holocausto, pois a vítima inteira se consome em honra de Deus.”{185} Por conseguinte, na disciplina católica, não obedecemos ao nosso superior como a um simples homem, senão como ao representante de Cristo. Mas quando os teólogos ordenam, coletivamente, todas as suas razões para recomendá-la, a mistura nos soa aos ouvidos um tanto ou quanto esquisita. “Uma das grandes consolações da vida monástica”, diz uma autoridade jesuíta, “é a certeza que temos de que, obedecendo, não podemos cometer falta alguma. O Superior talvez cometa uma falta mandando-se fazer isto ou aquilo, mas nós estamos certos de que não cometemos falta alguma enquanto obedecermos, porque Deus só nos perguntará se executamos devidamente as ordens recebidas e, se pudermos fornecer um relato claro nesse sentido, estaremos inteiramente absolvidos. Se as coisas que fizemos eram oportunas, ou se não eram um pouco melhor do que o que poderia ter sido feito, essas perguntas não serão formuladas a nós, mas ao nosso Superior. A partir do momento em que o que fizemos foi feito obedientemente, Deus o expunge do nosso relatório e transfere-o para o do Superior. De modo que São Jerônimo bem exclamou, ao celebrar as vantagens da obediência: ‘Oh, soberana liberdade! Oh, santa e bendita segurança pela qual nos tornamos quase impecáveis!’ “São João Clímaco é do mesmo parecer quando chama a obediência uma desculpa diante de Deus. De feito, quando Deus nos pergunta por que fizemos isto ou aquilo, e nós replicamos, porque assim nos ordenaram nossos Superiores, Deus não pedirá outra desculpa. Assim como o passageiro num bom navio com um bom piloto já não precisa preocupar-se, mas pode ir dormir em paz, porque o piloto se encarrega de tudo e ‘vela por ele’; assim uma pessoa religiosa que vive debaixo do jugo da obediência vai para o céu como se estivesse dormindo, isto é, como se estivesse inteiramente apoiada no procedimento dos Superiores, que são os pilotos do navio, e velam continuamente por ela. Não é pouca coisa, na verdade, ser capaz de cruzar o mar tempestuoso da vida nos ombros e nos braços de outrem e, todavia, esta é precisamente a graça que Deus concede aos que vivem sob o jugo da obediência. O Superior carrega todos os fardos. … Certo grave doutor confessou que preferiria passar a vida catando pedaços de palha por obediência a empreender, por sua conta e risco, as mais elevadas obras de caridade, porque tinha a certeza de estar seguindo a vontade de Deus no que quer que fizesse por obediência, mas nunca teria o mesmo grau de certeza a respeito do que fizesse por seu próprio movimento.”{186} Deveríamos ler as cartas, em que Inácio de Loyola recomenda a obediência como a espinha dorsal da sua ordem, para ter a plena visão do espírito do seu culto.{187} Mas elas são tão longas que não se podem transcrever; a crença de Inácio, porém, está tão vividamente expressa num par de ditos referidos por companheiros que, embora tenham sido citados com muita frequência, peço permissão aos senhores para citá-los ainda uma vez: “Devo”, dizia ele, como refere um dos seus primeiros biógrafos, “ao entrar para a religião, e a partir desse momento, colocar-me inteiramente nas mãos de Deus e nas daquele que ocupa o Seu lugar por Sua autoridade. Devo desejar que meu Superior me obrigue a abrir mão do meu próprio julgamento, e vença minha própria mente. Não devo estabelecer diferença alguma entre um Superior e outro, … mas reconhecê-los a todos como iguais perante Deus, cujo lugar ocupam. Pois se distinguir pessoas, enfraquecerei o espírito da obediência. Nas mãos do meu Superior devo ser uma cera mole, uma coisa, da qual ele exigirá o que quer que lhe agrade, seja escrever ou receber cartas, seja falar ou não falar com determinada pessoa, e coisas assim; e devo colocar todo o meu fervor na execução zelosa e exata de quanto me for ordenado. É de mister que eu me considere um cadáver sem inteligência e sem vontade; que seja qual massa de matéria que, sem resistência, se deixa colocar onde quer apraza aos outros; como uma vara na mão de um velho, que dela se utiliza de acordo com sua vontade e a coloca onde lhe convém. Assim devo ser debaixo das mãos da Ordem, para servi-la do modo que ela julgar mais útil. “Nunca deverei pedir ao Superior que me mande para determinado lugar, que me cometa certo encargo …. Nada devo considerar como pertencente a mim pessoalmente e, no que respeita às coisas que uso, devo ser como a estátua que se deixa despojar de tudo e nunca opõe resistência”.{188} O outro dito é referido por Rodriguez no capítulo do qual, há pouco, fiz citações. Falando da autoridade do Papa, Rodriguez escreve: “Dizia Santo Inácio, quando geral da companhia, que, se recebesse ordens do Santo Padre para embarcar-se no primeiro navio que encontrasse no porto de Ostia, perto de Roma, e abandonar-se ao mar, sem mastro, sem velas, sem remos nem timão, sem qualquer uma das coisas indispensáveis à navegação ou à subsistência, ele obedecería não só com alacridade, mas também sem ansiedade nem repugnância, e até com grande satisfação interior.”{189} Com um solitário exemplo concreto da extravagância a que a virtude que estamos considerando tem sido conduzida, passarei ao tópico seguinte. “A Irmã Marie Claire [de Port Royal] ficara grandemente imbuída da santidade e da excelência do Sr. de Langres. Pouco depois de vir para Port Royal, esse prelado disse a ela um dia, vendo-a tão ternamente apegada à Madre Angélique, que talvez lhe fosse melhor não voltar a falar com ela. Ávida de obediência, Marie Claire tomou essas palavras irrefletidas por um oráculo de Deus e, a partir desse dia, ficou vários anos sem falar uma vez sequer com a própria irmã.”{190} Nosso próximo tópico será a Pobreza, considerada em todos os tempos e sob todos os credos adorno de uma vida santa. Uma vez que o instinto de propriedade é fundamental na natureza do homem, esse é mais um exemplo do paradoxo ascético. Entretanto, não parece paradoxal, senão perfeitamente razoado, a partir do momento em que nos lembramos da facilidade com que excitações mais elevadas sujeitam cupidezes mais baixas. Embora eu tenha acabado de citar o jesuíta Rodriguez sobre o tópico da obediência, quero dar imediatamente uma feição concreta à nossa discussão sobre a pobreza, e por isso lerei para os senhores uma página do capítulo em que ele trata desta última virtude. Os senhores não devem esquecer que ele está escrevendo instruções para monges da sua própria ordem e baseia todas elas no texto, “Bem-aventurados são os pobres de espírito”. “Se algum de vós”, diz ele, “quer saber se é ou não realmente pobre de espírito, fazei-o considerar se ama as consequências e efeitos ordinários da pobreza, que são a fome, a sede, o frio, a fadiga e a privação de todas as conveniências. Verificai se vos alegra usar um hábito puído, cheio de remendos. Verificai se vos alegra ver que falta alguma coisa à vossa refeição, quando sois preterido no momento de servi-la, quando recebeis o que vos desagrada, quando a vossa cela está em mau estado de conservação. Se essas coisas não Vos alegram, se, em lugar de amá-las, as evitais, tereis aí a prova de que não atingistes a perfeição da pobreza de espírito.” Rodriguez, em seguida, passa a descrever mais circunstanciadamente a prática da pobreza. “O primeiro ponto é o que Santo Inácio propõe em suas constituições, quando diz, ‘Que ninguém use coisa alguma como se fosse sua propriedade particular’. ‘A pessoa religiosa’, diz ele, ‘no que concerne a todas as coisas que usa, deve ser como uma estátua que se pode vestir de roupas, mas não se mortifica, nem opõe resistência quando alguém a despe de novo. Desse jeito deveis sentirvos em relação às vossas vestes, aos vossos livros, à vossa cela e a tudo o mais de que fazeis uso; se vos ordenarem que os deixeis, ou que os troqueis por outros, não fiqueis mais contristados do que se fôsseis uma estátua que está sendo despida. Dessa maneira, evitareis usar essas coisas como se fosse vossa propriedade privada. Mas se, quando abandonais a vossa cela, ou cedeis a posse deste ou daquele objeto ou o trocais por outro, sentis repugnância e não sois como a estátua, isso mostra que encarais essas coisas como se fossem vossa propriedade particular.’ “E esta é a razão por que o nosso santo fundador desejava que os superiores experimentassem os seus monges mais ou menos como Deus experimentou Abraão, e que lhes provasse a pobreza e a obediência, a fim de que, por esse meio, viessem a conhecer o grau da sua virtude, e tivessem a Oportunidade de obter progressos cada vez maiores na perfeição, … fazendo que a pessoa se mude do seu quarto quando o acha confortável e se sente apegada a ele; tirando de outra um livro de que esta gosta muito; ou obrigando uma terceira a trocar sua vestimenta por outra em pior estado. De outro modo acabaríamos adquirindo uma como propriedade de todos esses diversos objetos e, pouco a pouco, o muro de pobreza que nos rodeia e constitui nossa principal defesa seria derrubado. Os antigos pais do deserto soíam frequentemente tratar assim os companheiros. … Sendo enfermeiro, São Dosíteo, desejando certa faca, pediu-a a São Doroteu, não para uso próprio mas para usá-la na enfermaria de que estava encarregado. Ao que São Doroteu lhe respondeu: ‘Ah! Dosíteo, com que, então, essa faca te agrada muito! Queres ser escravo de uma faca ou escravo de Jesus Cristo? Não coras de vergonha ao desejar que uma faca seja o teu senhor? Não permitirei que a toques’. O reproche e a recusa exerceram tamanho efeito sobre o santo discípulo que, desde esse instante, ele nunca mais voltou a tocar na faca.” … “Portanto, em nossos quartos”, continua o Padre Rodriguez, “não deve haver outra mobília além de uma cama, uma mesa, um banco e um castiçal, coisas puramente necessárias, e mais nada. Não se consente, entre nós, que nossas celas sejam ornamentadas com quadros ou que tais, nem poltronas, tapetes, cortinas, nem qualquer espécie de armário ou escrivaninha de alguma elegância. Tampouco nos é permitido guardar algo de comer, nem para nós nem para os que possam vir visitar-nos. Precisamos pedir permissão para ir ao refeitório, nem que pretendamos apenas tomar um copo d’água; e, finalmente, não podemos guardar um livro em que possamos escrever uma linha, ou que possamos levar conosco. Não há negar que, desse modo, estamos em grande pobreza. Mas essa pobreza é, ao mesmo tempo, um grande repouso e uma grande perfeição. Pois seria inevitável, se a uma pessoa religiosa se desse licença de possuir coisas supérfluas, que essas coisas lhe ocupassem grandemente o espírito, quer no adquiri-las, no preservá-las ou no acrescentá-las; de sorte que, não nos permitindo possuí-las de maneira alguma, remedeiam-se todas essas inconveniências. Entre as várias boas razões por que a companhia proíbe pessoas seculares de entrar em nossas celas, a principal é que, dessa forma, se toma mais fácil para nós manter-nos em estado de pobreza. Afinal de contas, somos todos homens e, se devêssemos receber pessoas da sociedade em nossos quartos, não teríamos a força de permanecer dentro dos limites prescritos, mas desejaríamos, pelo menos, enfeitá-los com alguns livros para dar aos visitantes uma idéia melhor da nossa cultura.”{191} Já que os faquires hindus, os monges budistas e os dervixes maometanos se unem aos jesuítas e franciscanos na idealização da pobreza como o estado individual mais alevantado, vale a pena examinar os motivos espirituais de uma opinião aparentemente tão desnatural. E, primeiro, os que se encontram mais próximos da natureza humana comum. A oposição entre os homens que têm e os homens que são é imemorial. Conquanto o gentil-homem, no sentido antiquado do homem bem-nascido, costumasse ser, na verdade, rapinante e se regalasse com terras e bens, nunca identificou sua essência com suas propriedades, mas antes com as superioridades pessoais, a coragem, a generosidade e o orgulho que se supunha fossem o seu patrimônio hereditário. Ele agradecia a Deus o ser para sempre inacessível a certos tipos vis de considerações, e se nas vicissitudes da vida viesse a empobrecer pela ausência delas, alegrava-o pensar que, munido do simples valor, estava ainda mais livre para trabalhar pela própria salvação. “Wer nur selbst was hätte”, diz o Templário em Natã, o Sábio, de Lessing, “mein Gott, mein Gott, ich habe nichts!” Esse ideal do homem bemnascido sem posses encarnava-se nos cavaleiros andantes e nos templários; e, porquanto sempre tenha sido odiosamente corrompido, ainda domina sentimentalmente, se não praticamente, a visão militar e aristocrática da vida. Glorificamos o soldado como o homem absolutamente desabusado. Não possuindo nada de seu além da vida, e disposto a jogá-la para o ar a qualquer momento, quando lho ordenar a causa, é o representante da liberdade sem peias em direções ideais. O trabalhador que pega com sua pessoa dia após dia, e não tem direitos adquiridos sobre o futuro, também oferece muito desse alheamento ideal. Como o selvagem, podem fazer a cama onde quer que o braço direito consiga suportá-lo, e da sua simples e atlética atitude de observação, o proprietário parece enterrado e sufocado em ignóbeis externalidades e atravancamentos, “andando com dificuldade no meio da palha e do lixo que lhe chegam até os joelhos”. As reivindicações feitas pelas coisas são corruptoras da masculinidade, hipotecas da alma e âncora flutuante que nos empece o progresso para o empíreo. “Tudo aquilo que encontro”, escreve Whitefield, “parece trazer consigo esta voz - ‘Vai e prega o Evangelho; sê peregrino na terra; não tenhas grupo nem morada certa’. Meu coração ecoa em resposta, ‘Senhor Jesus, ajuda-me a fazer ou a sofrer a tua vontade. Quando me vires em perigo de nidificar, por piedade, por tema piedade, põe um espinho em meu ninho para impedir-me de ali ficar.’ ”{192} O ódio ao “capital” com que as nossas classes operárias hoje em dia estão ficando cada vez mais infetadas parece largamente composto desse sentimento sadio de antipatia por vidas baseadas no simples fato de possuir. Como escreve um poeta anarquista: “Não acumulando riquezas, mas distribuindo o que possuis, “Serás belo; “ Precisas desfazer os invólucros, e não te envolveres em novos; “ Não será multiplicando as roupas que farás teu corpo forte e sadio, senão descartando-te delas … “Pois o soldado que sai em campanha não procura os novos acessórios que poderá carregar às costas, senão antes o que pode deixar para trás; “Sabendo perfeitamente que toda coisa adicional que não pode usar e manejar livremente é um impedimento.”{193} Em resumo, vidas baseadas no ter são menos livres do que vidas baseadas no fazer ou no ser e, no interesse da ação, as pessoas sujeitas à excitação espiritual jogam fora propriedades como outros tantos trambolhos. Só as que não têm interesses privados podem seguir um ideal ininterruptamente. A indolência e a covardia se insinuam com cada dólar ou guinéu que temos de guardar. Quando um irmão noviço se achegou a São Francisco, dizendo: “Pai, seria uma grande consolação para mim possuir um saltério, mas mesmo supondo que o nosso geral me concedesse essa indulgência, eu gostaria de ter o vosso consentimento”, Francisco desanimouo com os exemplos de Carlos Magno, Roldão e Oliveiros, perseguindo os infiéis com suor e trabalhos e morrendo, afinal, no campo de batalha. “Portanto não cures”, disse ele, “de possuir livros e conhecimentos, mas cura antes de obras de bondade.” E quando, algumas semanas depois, o noviço voltou a falar-lhe do seu desejo de possuir um saltério, Francisco disse: “Depois que tiveres conseguido o saltério ambicionarás ter um breviário; e depois que tiveres conseguido o breviário, sentar-te-ás em teu banco como um grande prelado, e dirás a teu irmão: ‘ Passa-me o meu breviário’. … E a partir desse instante indeferiu todos os pedidos semelhantes, dizendo: o homem só possui o saber que sai dele na ação, e o monge só é bom pregador na medida em que seus feitos o proclamam tal, pois toda árvore é conhecida por seus frutos”.{194} Mas, além dessa atitude mais dignamente atlética envolvida em fazer e em ser, há, no desejo de não ter, algo ainda mais profundo, algo relacionado com o ministério fundamental da experiência religiosa, a satisfação encontrada no abandono absoluto a um poder maior. Enquanto conservamos alguma salvaguarda secular, enquanto nos apegamos a qualquer garantia prudencial residual, enquanto o abandono for incompleto, a crise vital não terá passado, o medo ainda estará de sentinela e a desconfiança do divino predominará: nós nos agarramos a duas âncoras, olhando para Deus, é verdade, mas também nos agarramos às nossas próprias maquinações. Em certas experiências médicas temos de superar o mesmo ponto crítico. Um beberrão, um cocainômano ou um morfinomaníaco se apresenta para ser curado. Suplica ao médico que o desapegue do inimigo, mas não se atreve a enfrentar a abstinência absoluta. A droga tirânica ainda é uma âncora a barlavento: ele esconde suprimentos dela no meio das roupas; arranja secretamente que a contrabandeiem para ele em caso de necessidade. Mesmo assim, um homem incompletamente regenerado ainda confia nos próprios expedientes. Seu dinheiro é como a poção saporífera que o paciente cronicamente vígil conserva ao pé da cama; atira-se a Deus, mas se lhe for necessária a outra ajuda, também a terá. Todos conhecem casos desse desejo incompleto e ineficaz de reforma - bêbedos que, apesar de todas as autocensuras e resoluções, percebemos não terem nenhum desejo sério de imaginar que nunca voltarão a embriagar-se! Com efeito, renunciar a alguma coisa na qual confiávamos, renunciar a ela definitivamente, “para valer e para sempre”, significa uma dessas alterações radicais de caráter que chegaram ao nosso conhecimento nas conferências sobre conversão. Nesses casos o homem interior conquista uma posição de equilíbrio inteiramente diferente, vive num novo centro de energia a partir desse momento, e o ponto crítico e o pivô de todas essas operações parecem envolver, de ordinário, a aceitação sincera de certas nudezes e despojamentos. Nessa conformidade, em todo o correr dos anais da vida santa, a todo momento encontramos esta nota: Arroja-te à providência de Deus sem quaisquer reservas, não penses no amanhã, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, somente quando o sacrifício é cruel e temerário chegará realmente a segurança mais alta. Como exemplo concreto, permitam-me os senhores ler uma página da biografia de Antoinette Bourignon, uma boa mulher, muito perseguida no seu tempo por protestantes e católicos, porque não queria aceitar sua religião de segunda mão. Quando menina, em casa do pai, “Ela passava noites inteiras em oração, repetindo amiúde: Senhor, que queres que eu faça? E estando, certa noite, na mais profunda penitência, disse do fundo do coração: ‘Ó meu Senhor! Que devo fazer para agradar-te? Porque não tenho ninguém para ensinarme. Fala à minha alma, que ela te ouvirá’. Nesse instante ouviu, como se alguém tivesse falado dentro dela: Renuncia a todas as coisas terrenas. Separa-te do amor das criaturas. Nega-te a ti mesma. Ela ficou assombrada, pois não compreendia aquela linguagem, e remoeu durante muito tempo esses três pontos, imaginando como poderia levá-los a cabo. Cuidava não poder viver sem as coisas terrenas, sem amar as criaturas e sem se amar a si. Entretanto, disse: ‘Com a tua Graça eu o farei, Senhor!’. Mas quando quis cumprir a promessa, não soube por onde começar. Tendo-se lembrado das religiosas nos mosteiros, que desistiam de todas as coisas terrenas ao se encerrarem num claustro, e do amor de si mesmas aceitando a vontade alheia, pediu permissão ao pai para entrar no convento das carmelitas descalças, mas ele não consentiu, dizendo que preferia vê-la deitada no túmulo. Isso pareceu a ela uma grande crueldade, pois supunha encontrar na clausura os verdadeiros cristãos que andava procurando, mas descobriu depois que ele conhecia as freiras melhor do que ela; porque depois que ele lho proibiu, dizendo que nunca lhe permitiria ser freira, nem lhe daria dinheiro para ingressar numa ordem religiosa, ela foi procurar o Padre Laurens, o Diretor, e ofereceu-se para servir no mosteiro e pagar o pão que comesse com trabalho afincado, contentando-se com pouco, se ele consentisse em recebê-la. Mas o padre sorriu e disse: Isso não pode ser. Precisamos de dinheiro para construir; não aceitamos moças sem dinheiro; dá um jeito de arranjá-lo pois, de outro modo, não entrarás aqui. “Isso a espantou sobremaneira e, desse modo, ela desiludiu-se dos conventos e resolveu renunciar a toda companhia e viver sozinha até que aprouvesse a Deus mostrar-lhe o que deveria fazer e para onde deveria ir. Perguntava sempre com fervor, ‘Quando serei perfeitamente tua, ó meu Deus?’. E imaginou que ele continuava a responder-lhe, Quando já não possuíres nada, e morreres para ti mesma. ‘E onde farei isso, Senhor?’ Ele respondeu-lhe, No deserto. A resposta causou tamanha impressão em sua alma que ela entrou a anelar por isso; sendo, porém uma jovem de apenas dezoito anos, tinha medo de encontros infelizes, não estava acostumada a viajar e não conhecia o caminho. Pondo de lado, porém, todas essas dúvidas, disse: ‘Senhor, guiar-me-ás como e para aonde te aprouver. É por ti que o faço. Descartar-me-ei das minhas roupas de mulher e vestirei as de um eremita para poder passar incógnita’. Tendo, então, preparado secretamente esse hábito enquanto os pais pensavam em casá-la, pois o pai lhe prometera a mão a um rico negociante francês, ela antecipouse e, na noite de Páscoa, tendo cortado o cabelo, vestido o hábito e dormido um pouco, saiu do quarto cerca das quatro horas da madrugada, levando consigo apenas um soldo para comprar o pão daquele dia. E quando, ao sair, lhe perguntaram, Onde está a tua fé? Num soldo?, atirou-o fora, pedindo perdão a Deus por sua falta dizendo, ‘Não, Senhor, minha fé não está num soldo, mas tão-somente em ti’. Assim partiu ela, inteiramente libertada do fardo pesado dos cuidados e coisas boas deste mundo, e sentiu a alma tão satisfeita que já não desejava nada sobre a terra, repousando inteiramente em Deus e levando apenas um receio, o de ser descoberta e obrigada a voltar para casa; pois já se compraz ia mais nessa pobreza do que se comprouvera em toda a sua vida e com todas a delícias do mundo”. {195} O soldo era uma pequena garantia financeira, mas um obstáculo espiritual efetivo. E só depois de atirá-lo fora pôde o caráter firmar-se completamente no novo equilíbrio. Além e acima do mistério da renúncia de si mesmo, há no culto da pobreza outros mistérios religiosos. Há o mistério da veracidade: “Nu vim eu ao mundo”, etc. — quem quer que primeiro disse isso possuía esse mistério. Minha própria entidade nua precisa travar a batalha - imposturas não me salvarão. Há também o mistério da democracia, ou o sentimento da igualdade de todas as criaturas perante Deus. Esse sentimento (que parece, de um modo geral, ter estado mais difundido em terras maometanas do que em terras cristãs) tende a anular a ganância costumeira do homem. Os que a têm rejeitam com desprezo dignidades e honras, privilégios e vantagens, querendo, antes, como eu disse numa conferência anterior, prostrar-se no nível comum diante do rosto de Deus. Não se trata exatamente do sentimento de humildade, conquanto se avizinhe tanto dele na prática. É, antes, a sua humanidade, que se recusa a gozar de alguma coisa de que os outros não partilham. Escrevendo a respeito do dito de Cristo, ‘Vende tudo o que tens e segue-me’, um profundo moralista prossegue da seguinte maneira: “Cristo pode ter querido dizer: se amas o gênero humano absolutamente, desdenharás, como resultado, toda e qualquer propriedade, seja ela qual for, e esta parece ser uma proposição probabilíssima. Uma coisa, porém, é acreditar na verdade provável de uma proposição; outra coisa é encará-la como um fato. Se amasses o gênero humano com Cristo o amava, verias a sua conclusão como um fato. Seria óbvio. Venderias os teus bens e isso não se constituiria numa perda para ti. Tais verdades, conquanto sejam literais para Cristo e para qualquer mente que tenha o amor de Cristo ao gênero humano, convertem-se em parábolas para naturezas menores. Em todas as gerações há pessoas que, começando de maneira inocente, sem nenhuma intenção predeterminada de se tornarem santas, se vêem arrastadas para o interior do torvelinho pelo seu interesse em ajudar o gênero humano e pela compreensão que advém do fato de fazê-lo efetivamente. O abandono do antigo modo de vida é o mesmo que a poeira numa balança. Processa-se gradativamente, incidentalmente, imperceptivelmente. Nessas circunstâncias, toda a questão do abandono do luxo não é questão nenhuma, senão mero incidente de outra questão, a saber, o grau em que nos entregamos à lógica impiedosa do nosso amor aos outros.” {196} Mas em todos esses assuntos de sentimento é preciso termos “estado lá” pessoalmente em ordem a compreendê-los. Nenhum americano será capaz de chegar jamais a entender a lealdade de um súdito britânico ao seu rei, de um alemão ao seu imperador, e assim por diante; tampouco poderão um membro do Império Britânico ou um súdito do Kaiser compreender jamais a paz de coração de um americano por não ter rei, nem Kaiser, nem qualquer tolice espúria, entre ele e o Deus comum de todos. Se sentimentos tão simples como estes mistérios que os homens devem receber como se fossem presentes de nascimento, quanto mais não o serão os sentimentos religiosos muito mais sutis que temos examinado! Jamais alcançaremos sondar uma emoção ou adivinhar-lhe os preceitos, se permanecermos fora dela. Na hora refulgente da excitação, entretanto, todas as incompreensibilidades estarão solucionadas, e o que parecia tão enigmático visto de fora tomar-se-á transparentemente manifesto. Cada emoção obedece a uma lógica própria e faz deduções que nenhuma outra lógica seria capaz de fazer. A piedade e a caridade vivem num universo diferente do mundo dos apetites sensuais e dos temores, e formam um centro de energia inteiramente diverso. Assim como num sofrimento supremo contrariedades de menor vulto podem transmudarse em consolo; assim como um amor supremo pode transformar em lucro sacrifícios menores; assim uma confiança suprema pode fazer que pareçam odiosas garantias comuns e, em certos resplendores de generosa excitação, pode parecer indizivelmente mesquinho conservar a posse de propriedades pessoais. O único plano válido, se nós mesmos estivermos fora dos limites de emoções dessa natureza, é observar, tanto quanto formos capazes de fazêlo, aqueles que as experimentam e registrar fielmente, com todas as minúcias possíveis, o que tivermos observado; e é precisamente isso, fora ocioso dizêlo, o que venho tentando fazer nestas duas últimas conferências descritivas, as quais, segundo espero, hão de ter coberto suficientemente o terreno para as nossas necessidades presentes. XIV E XV Conferências O VALOR DA SANTIDADE Passamos agora em revista os mais importantes dentre os fenômenos considerados frutos da religião autêntica e das características dos homens devotos. Hoje teremos de modificar nossa atitude e passar da descrição à apreciação; teremos de perguntar se os frutos em apreço podem ajudar-nos a julgar o valor absoluto do que a religião acrescenta à vida humana. Parodiando Kant, eu diria que o nosso tema há de ser uma “Crítica da Santidade Pura”. Se, ao voltarmo-nos para esse assunto, pudéssemos cair do alto sobre o nosso tema, como os teólogos católicos, com definições fixas do homem e da perfeição do homem e dogmas positivos a respeito de Deus, nossa tarefa não seria difícil. A perfeição do homem seria a realização do seu propósito; e esse propósito seria a união com o Criador, a qual, por sua vez, poderia ser perseguida por ele ao longo de três caminhos, o ativo, o purgativo e o contemplativo, respectivamente; e o progresso ao longo de qualquer um desses caminhos seria uma simples questão de medida na aplicação de um número limitado de concepções e definições teológicas e morais. Dessa maneira, teríamos nas mãos, quase matematicamente, o peso e o valor absolutos de qualquer porção de experiência religiosa de que tivéssemos conhecimento. Se a conveniência fosse tudo, deveríamos agora afligir-nos por estar privados de um método tão conveniente como esse. Mas nós nos privamos deliberadamente dele nas observações que fizemos, como os senhores hão de lembrar-se, em nossa primeira conferência, a respeito do método empírico; e força é confessar que, depois desse ato de renúncia, nunca mais poderemos esperar resultados bem definidos e escolásticos. Nós não podemos dividir o homem nitidamente numa parte animal e numa parte racional. Nós não podemos distinguir os efeitos naturais dos sobrenaturais; nem conhecer, entre os últimos, os que são favores de Deus e os que são operações espúrias do demônio. Temos apenas de juntar coisas sem nenhum sistema teológico especial a priori, e, a partir de um agregado de juízos fragmentários sobre o valor desta e daquela experiência - juízos em que nossos preconceitos filosóficos gerais, nossos instintos e nosso bom senso são nossos únicos guias - decidir que, no todo, um tipo de religião é aprovado por seus frutos, e outro tipo condenado. “No todo”, receio que nunca escaparemos à cumplicidade com essa qualificação, tão cara ao homem prático, tão repugnante ao sistematizador! Receio também que, ao fazer essa confissão franca, eu dê a impressão, a alguns dos senhores, de estar atirando a bússola ao mar e adotando o capricho por piloto. Os senhores poderão pensar que o ceticismo ou a escolha extravagante talvez sejam os únicos resultados desse método informe que adotei. É possível, portanto, que sejam oportunos, neste ponto, alguns reparos para combater essa opinião e explicar melhor os princípios empiristas que professo. Abstratamente, pareceria ilógico tentar medir o valor dos frutos de uma religião em termos meramente humanos de valor. Como podemos medir-lhes o valor sem considerar se existe realmente o Deus que os inspira, segundo se supõe? Se ele deveras existe, toda a conduta instituída pelos homens para satisfazer aos seus desejos há de ser, por força, um fruto razoado da sua religião — só seria desarrazoado se ele não existisse. Se, por exemplo, fôssemos condenar uma religião de sacrifícios humanos ou animais em virtude dos nossos sentimentos subjetivos, e se, durante todo esse tempo, uma divindade estivesse realmente ali, a exigir tais sacrifícios, estaríamos cometendo um erro teórico ao supor tacitamente que a divindade devia inexistir; estaríamos fundando uma teologia nossa tanto quanto se fôssemos um filósofo escolástico. Até este ponto, até o ponto em que descremos peremptoriamente de certos tipos de divindade, confesso com franqueza que precisamos ser teólogos. Se pode dizer que as descrenças constituem uma teologia, os preconceitos, os instintos e o bom senso que escolho por nossos guias fazem de nós partidários teológicos todas as vezes que tomam abomináveis certas crenças. Mas esses próprios bom senso, preconceitos e instintos são fruto de uma evolução empírica. Nada é mais surpreendente do que a alteração secular que se verifica no tom moral e religioso dos homens, à proporção que se desenvolvem a sua visão da natureza e os seus ajustamentos sociais. Após um intervalo de umas poucas gerações, o clima mental se revela desfavorável . a noções relativas à divindade que, numa data anterior, eram perfeitamente satisfatórias: os deuses mais antigos caíram abaixo do nível secular comum, e já não é possível acreditar neles. Hoje em dia, uma divindade que exigisse sacrifícios de sangue para ser propiciada seria demasiado sanguinária para ser levada a sério. Ainda que poderosas credenciais históricas fossem exibidas em seu favor, apenas olharíamos para elas. Antigamente, pelo contrário, os seus apetites cruéis eram por si mesmos credenciais que a recomendavam positivamente à imaginação dos homens em épocas em que se respeitavam esses sinais grosseiros de poder e não se compreendiam outros. As divindades, portanto, eram cultuadas porque os frutos eram apreciados. Acidentes históricos, sem dúvida, representavam sempre algum papel ulterior, mas o fator original no fixar a figura dos deuses deve ter sido sempre psicológico. A divindade de que os profetas, videntes e devotos fundadores desse determinado culto davam testemunho havia de valer alguma coisa para eles pessoalmente. Podiam usá-la. Ela lhes guiava a imaginação, garantia-lhes as esperanças e controlava-lhes a vontade - ou eles a queriam como defesa contra o demônio e vingadora dos crimes de outras pessoas. De qualquer maneira, era escolhida pelo valor dos frutos que lhes concedia ou dava a impressão de conceder-lhes. Tanto que os frutos começavam a parecer destituídos de valor; tanto que eles entravam em conflito com ideais humanos indispensáveis, ou frustravam demasiado intensamente outros valores; tanto que pareciam infantis, desprezíveis ou imorais quando analisados, a divindade era desacreditada e, dentro em pouco, descurada e esquecida. Foi dessa maneira que os deuses gregos e romanos deixaram de ser cridos pelos pagãos doutos; é por essa maneira que nós mesmos julgamos as teologias hindus, budistas e maometanas; os protestantes trataram desse modo as noções católicas de divindade, e desse modo trataram os protestantes liberais as noções protestantes mais antigas; assim nos julgam os chineses, e todos nós que hoje vivemos, assim seremos julgados pelos nossos descendentes. Quando deixamos de admirar ou aprovar o que implica a definição de uma divindade, acabamos julgando incrível essa divindade. Poucas mudanças históricas são mais curiosas do que essas mutações da opinião teológica. O tipo monárquico de governo estava, por exemplo, plantado de forma tão arraigada na mente dos nossos antepassados que a sua imaginação parecia positivamente exigir uma dose de crueldade e arbitrariedade na própria divindade. Chamavam à crueldade “justiça retributiva”, e um Deus sem ela lhes teria por certo parecido pouco “soberano”. Hoje em dia, porém, abominamos a própria noção da inflição do sofrimento eterno; e a distribuição arbitrária de salvação e danação a indivíduos escolhidos, a cujo respeito Jonathan Edwards se persuadia de ter não só uma convicção, senão uma “deliciosa convicção”, como de doutrina “sobremodo amena, brilhante e doce”, parece-nos, isso sim, sobremodo irracional e mesquinha. Não somente a crueldade, mas também a vileza de caráter dos deuses acreditados nos primeiros séculos provocaram surpresa nos séculos seguintes. Veremos exemplos disso nos anais da santidade católica, que nos levam a esfregar os nossos olhos protestantes. O culto ritual em geral se afigura ao transcendentalista moderno, bem como ao tipo de mente ultrapuritano, como que dirigido a uma divindade de caráter quase absurdamente infantil, que se deleita com acessórios, velazinhas e ouropéis, trajos, cochichos e pantomimas de lojas de brinquedos, e que acha a sua “glória” incompreensivelmente realçada por eles; como, por outro lado, a extensão informe do panteísmo se afigura vazia às mentes ritualísticas, e o teísmo desolado das seitas evangélicas parece intoleravelmente calvo, seco e desolado. Lutero, diz Emerson, teria querido antes cortar a mão direita do que pregar suas teses na porta de Vitembergue, se as tivesse imaginado destinadas às pálidas negações do Unitarismo bostoniano. Até aqui, portanto, embora nos vejamos compelidos, sejam quais forem nossas pretensões ao empirismo, a empregar alguma espécie de critério próprio de probabilidade teológica sempre que nos propomos avaliar os frutos da religião de outros homens, esse mesmo critério é deduzido do curso da vida comum. É a voz da experiência humana dentro de nós, julgando e condenando todos os deuses que interceptam o caminho ao longo do qual ela sente estar avançando. Tomada em seu sentido mais lato, a experiência é, assim, a mãe das descrenças acusadas de incompatíveis com o método experiencial. A incompatibilidade, como os senhores vêem, é imaterial, de modo que a acusação pode ser posta de lado. Se passarmos das descrenças às crenças positivas, tenho para mim que não há sequer uma incompatibilidade formal a ser aduzida contra o nosso método. Os deuses cujos devotos somos são os de que precisamos e de que podemos nos servir, os deuses que exigem de nós, reforçando-o, o que exigimos de nós mesmos e uns dos outros. O que, então, me proponho fazer é, em poucas palavras, experimentar a santidade à luz do bom senso, usar critérios humanos para ajudar-nos a decidir até onde a vida religiosa se recomenda como tipo ideal de atividade humana. Se ela se recomendar, quaisquer crenças teológicas que possam inspirá-la, na medida em que o fizerem, serão acreditadas. Se não, serão desacreditadas, e tudo isso com referência apenas a princípios humanos de trabalho. Trata-se tão-somente da eliminação dos humanamente inaptos, e da sobrevivência dos humanamente aptos, aplicadas a crenças religiosas; e se olharmos para a história sem reserva e sem preconceitos, teremos de admitir que nenhuma religião jamais se estabeleceu nem revelou, no correr dos tempos, de outra maneira. As religiões se aprovaram, proveram a várias necessidades vitais que encontraram reinando. Quando violaram outras necessidades com demasiado vigor, ou quando sobrevieram outras fés que serviam melhor às mesmas necessidades, as primeiras religiões foram suplantadas. As necessidades eram sempre muitas, e as provas nunca bem definidas. Destarte, a censura de indeterminação, subjetividade e “globalização”, que pode, de forma perfeitamente legítima, ser dirigida ao método empírico que somos obrigados a usar, é, afinal de contas, tuna censura a que está exposta toda a vida do homem no lidar com esses assuntos. Nenhuma religião já deveu sua prevalência à “certeza apodítica”. Numa próxima conferência perguntarei se a certeza objetiva pode ser, alguma vez, acrescentada pelo raciocínio teológico a uma religião que empiricamente já prevalece. Uma palavra, também, acerca da censura que nos fazem de que, ao seguirmos essa espécie de método empírico, estamos nos entregando ao ceticismo sistemático. Visto ser impossível negar alterações seculares em nossos sentimentos e necessidades, fora absurdo afirmar que a nossa própria época do mundo pode passar sem correção à época seguinte. O ceticismo, por conseguinte, não pode ser excluído, por nenhum grupo de pensadores, como uma possibilidade contra a qual suas conclusões estão seguras; e nenhum empirista deve proclamar-se imune a esse risco universal. Mas admitir a possibilidade de sermos corrigidos é uma coisa, e embarcarmo-nos num mar de dúvida gratuita é outra. Não podemos ser acusados de jogar de propósito o jogo do ceticismo. Aquele que reconhece a imperfeição do seu instrumento e a leva em conta ao discutir suas observações, está em muito melhor situação para alcançar a verdade do que se declarasse que o seu instrumento é infalível. Ou duvidamos menos, de fato, da teologia dogmática ou escolástica por se afirmar, como o faz, de direito, indubitável? E vice-versa, que domínio sobre a verdade perderia realmente esse tipo de teologia se, em vez da certeza absoluta, proclamasse apenas uma razoada probabilidade para as suas conclusões? Se nós proclamamos tão-só essa razoada probabilidade, será o máximo que homens amantes da verdade poderão, a qualquer momento, esperar ter em seu poder. Certamente seria mais do que poderíamos ter tido, se não tivéssemos consciência da nossa possibilidade de errar. Não obstante, o dogmatismo continuará a condenar-nos por essa confissão. A mera forma exterior da certeza inalterável é tão preciosa para algumas mentes que a renúncia explícita a ela está, para essas mentes, fora de cogitações. Elas a proclamariam até onde os fatos lhe pronunciassem de modo mais patente a loucura. Mas o mais seguro, sem dúvida, é reconhecer que todas as maneiras de ver de criaturas de um dia, como nós, têm de ser provisórias. O mais sábio dos críticos é um ser variável, sujeito sempre a ver melhor o amanhã, e cônscio de estar na verdade somente enquanto se trata de uma verdade provisória, “atualizada” e “em conjunto”. Quando se abrem horizontes mais amplos da verdade, o melhor para nós é sermos capazes de abrir os olhos para vê-los, desacorrentados de nossas convicções anteriores. “Sabe sinceramente que, quando se vão os semideuses, os deuses chegam.” O fato da diversidade dos juízos sobre fenômenos religiosos é, portanto, de todo inevitável, seja qual for o nosso desejo de atingir o irreversível. Mas, independentemente desse fato, uma pergunta mais fundamental nos aguarda, a pergunta sobre se devemos esperar que as opiniões dos homens sejam uniformes nesse campo. Devem todos os homens ter a mesma religião? Devem aprovar os mesmos frutos e seguir as mesmas orientações? Serão eles tão iguais em suas necessidades interiores que, para os rijos e suaves, para os altivos e humildes, para os esforçados e indolentes, para os de mente sadia e os desesperados, se exigem exatamente os mesmos incentivos religiosos? Ou se conferem funções diferentes do organismo da humanidade a diferentes tipos de homens, de modo que alguns se avêm realmente melhor com uma religião de consolo e segurança, ao passo que outros preferem uma religião de terror e reprovação? E concebível que assim seja; e creio que cuidaremos cada vez mais que assim é à medida que prosseguirmos. E assim sendo, como pode qualquer juiz ou crítico deixar de inclinar-se em favor da religião que melhor satisfaça às suas necessidades? Ele aspira à imparcialidade; mas está tão próximo da luta que não pode menos de ser, até certo ponto, participante dela, e é evidente que aprovará calorosamente, nos outros, os frutos da piedade que lhe parecerem mais saborosos e nutritivos. Estou perfeitamente cônscio de que poderá soar anárquica muita coisa do que digo. Expressando-me assim abstrata e brevemente, posso dar a impressão de ter perdido as esperanças no que concerne à própria noção da verdade. Rogo, porém, aos senhores que suspendam o julgamento até vê-lo aplicado aos pormenores que vemos diante de nós. Não acredito, realmente, que nós ou quaisquer outros homens mortais possam atingir, algum dia, a verdade absolutamente imodificável a respeito de questões de fato iguais às que dizem respeito às religiões. Mas não rejeito esse ideal dogmático porque me comprazo perversamente na instabilidade intelectual. Não amo a desordem e a dúvida por si mesmas. Receio, antes, perder a verdade pela pretensão de já a possuir totalmente. Acredito, como qualquer outro, que poderemos conquistá-la cada vez mais se nos movermos sempre na direção certa, e espero conquistá-los todos para a minha maneira de pensar antes do término destas conferências. Rogo-lhes, pois, que não endureçam irrevogavelmente as suas mentes contra o empirismo que professo. Não direi mais nada, portanto, na abstrata justificação do meu método, mas passarei a aplicá-lo imediatamente aos fatos. Ao julgar de modo crítico o valor dos fenômenos religiosos, é muito importante insistir na distinção entre religião com função pessoal individual e religião como produto institucional, corporativo ou tribal. Como os senhores devem estar lembrados, fiz essa distinção em minha segunda conferência. A palavra “religião”, tal como se usa ordinariamente, é equívoca. Um exame da história mostra-nos que, por via de regra, os gênios religiosos atraem discípulos e produzem grupos de simpatizantes. Quando esses grupos se tornam suficientemente fortes para se “organizarem”, transformam-se em instituições eclesiásticas com ambições corporativas próprias. O espírito da política e o desejo da regra dogmática são, então, capazes de entrar e contaminar a coisa originalmente inocente; de sorte que, hoje em dia, quando ouvimos a palavra “religião”, pensamos inevitavelmente em alguma “igreja” ou coisa que o valha; e, para algumas pessoas, a palavra “igreja” sugere tanta hipocrisia, tirania, mesquinhez e superstições tenazes que, de modo geral e indiscriminado, elas se gloriam de dizer que são “contra” toda e qualquer religião. Nem mesmo nós, que pertencemos a igrejas, isentamos outras, que não sejam a nossa, da condenação geral. No correr destas conferências, contudo, as instituições eclesiásticas apenas nos interessam. A experiência religiosa que estamos estudando é a que vive dentro de nós. A experiência individual desse tipo em primeira mão sempre se afigurou uma espécie herética de inovação aos que lhe presenciaram o nascimento. Nua e só chega ela ao mundo; e, pelo menos por algum tempo, levou para o ermo aquele que a trazia no peito, não raro para o ermo literal, portas a fora, aonde o Buda, Jesus, Maomé, São Francisco, George Fox e tantos outros tiveram de ir. George Fox expressa bem esse isolamento; e, neste ponto, não posso fazer coisa melhor do que ler para os senhores uma página do seu Diário, relativa ao período da sua mocidade em que a religião principiou a fermentar seriamente dentro dele. “Eu jejuava bastante”, diz Fox, “perambulava de um lado para outro em sítios solitários por muitos dias, levando com frequência a minha Bíblia, e sentava-me no oco de árvores em lugares solitários até o escurecer; e, frequentemente, à noite, voltava a perambular, aflito e sozinho; pois eu era um homem angustiado no tempo dos primeiros trabalhos operados em mim pelo Senhor. “Durante todo esse tempo ninguém jamais se juntou a mim em práticas de religião, mas eu me entregava ao Senhor, tendo abandonado todas as más companhias, despedindo-me de pai e mãe e dos outros parentes, e corria para cima e para baixo, como estranho na terra, na direção para a qual o Senhor me inclinava o coração; tomando um quarto para mim na cidade a que chegava e demorandome às vezes mais, às vezes menos, em cada lugar: não me atrevendo a permanecer por muito tempo no mesmo local, pois tinha tanto medo do professante quanto do profano, receoso de ver-me, a mim, jovem de tenra idade, abalado por conversar muito com qualquer um deles. Razão pela qual me mantive como um estranho, buscando a sabedoria celeste e hauriado conhecimentos do Senhor; e fui salvo das coisas exteriores, para confiar somente no Senhor. Assim como renunciara aos padres, assim também deixei os pregadores independentes e as chamadas pessoas mais experimentadas; pois percebi que nenhuma delas podia falar à minha condição. E quando todas as esperanças que eu depositava nelas e em todos os homens se dissiparam, e eu já não tinha nada de fora para ajudar-me, nem dizer-me o que fazer; então, oh! então, ouvi uma voz que me dizia, ‘Há um, o mesmo Jesus Cristo, que pode falar à tua condição.’ Ouvindo essas palavras, meu coração saltou de alegria. Depois, o Senhor me fez ver por que não havia ninguém sobre a terra que pudesse dirigir-se à minha condição. Eu não conhecia ninguém, nem padres, nem professantes, nem qualquer tipo de pessoa isolada. Tinha medo de todas as falas e faladores carnais, nos quais não via senão corrupções. Quando estava no escuro, com tudo fechado à minha volta, não podia acreditar que um dia pudesse superar as preocupações e as penas; minhas tentações eram tão grandes que muitas vezes cheguei a supor que enlouqueceria. Mas quando Cristo me contou que fora tentado pelo mesmo demônio, e o superara, e lhe quebrara a cabeça; e que, através dele, de seu poder, de sua vida, de sua graça e do seu espírito eu também superaria tudo, tive confiança nele. Se eu tivesse então um passadio, um palácio e um séquito de rei, tudo me teria sido nada; pois nada me dava conforto a não ser o Senhor pelo seu poder. Vi professantes, padres e outras pessoas inteiramente à vontade na condição que era a minha desdita, amando aquilo de que eu quisera livrar-me. Mas o Senhor tomou sobre si os meus desejos, e minha aflição voltou-se somente para ele.”{197} Uma autêntica experiência religiosa de primeira mão, como esta, se destina a ser uma heterodoxia para as pessoas que a presenciarem, aparecendo o profeta como simples louco solitário. Se a sua doutrina for tão contagiosa que se estenda a outros, passará a ser uma heresia definida e rotulada. Mas se ela, ainda assim, continuar suficientemente contagiosa para triunfar da perseguição, converter-se-á em ortodoxia; e quando uma religião se converte em ortodoxia, o seu dia de interiorização já se foi: a fonte secou; os fiéis vivem exclusivamente de uma fé de segunda mão e, por seu turno, apedrejam os profetas. A despeito de toda e qualquer bondade humana que venha a favorecer, a nova igreja, daí por diante, poderá figurar entre os aliados constantes em quaisquer tentativas de sufocar o espírito religioso espontâneo, e deter o borbulhar da fonte da qual, em dias mais puros, retirava a própria inspiração. A menos que, de fato, adotando novos movimentos do espírito, possa fazer deles cabedal e usá-lo para os seus egoístas desígnios corporativos! De uma ação política protetiva desse gênero, pronta ou tardiamente empreendida, os procedimentos do eclesiasticismo romano em relação a santos e profetas fornecem exemplos suficientes para a nossa instrução. O fato real é que as mentes dos homens são construídas, como já se tem dito tantas vezes, em compartimentos estanques. Religiosas à sua maneira, elas ainda têm muitas outras coisas em si além da religião, e as confusões e associações ímpias inevitavelmente prevalecem. As baixezas tão comumente assacadas à religião são assim, quase todas, inimputáveis à religião propriamente dita, mas antes ao perverso sócio prático da religião, o espírito de domínio corporativo. E os fanatismos são quase todos, por seu turno, atribuíveis ao perverso sócio intelectual da religião, o espírito de domínio dogmático, a paixão por impor a lei na forma de um sistema teórico absolutamente fechado. O espírito eclesiástico, em geral, é a soma desses dois espíritos de domínio; e eu lhes suplico que jamais confundam os fenômenos da mera psicologia tribal ou corporativa, que ela apresenta, com as manifestações da vida puramente interior que constituem o objeto exclusivo do nosso estudo. As perseguições contra os judeus, a caça aos albigenses e valdenses, o apedrejamento de quacres e o afogamento de metodistas, o assassínio dos mórmons e a chacina dos armênios exprimem muito mais a neofobia humana aboriginal, a pugnacidade de cujos vestígios todos partilhamos e o ódio inato ao estrangeiro e aos homens excêntricos e não-conformistas, do que exprimem a piedade positiva dos vários perpetradores. A piedade é a máscara, a força interior é o instinto tribal. Os senhores acreditam tão pouco quanto eu, apesar da unção cristã com que o imperador alemão se dirigiu às suas tropas a caminho da China, que o procedimento que ele sugeriu, e no qual outros exércitos cristãos as superaram, tivesse tido alguma relação, por insignificante que fosse, com a vida religiosa interior dos participantes da operação. Pois bem, nem pelas atrocidades passadas nem por esta atrocidade devemos reportar a responsabilidade à piedade. Quando muito, podemos censurá-la por não conseguir refrear nossas paixões naturais e, às vezes, por lhes fornecer pretextos hipócritas. Mas a hipocrisia também impõe obrigações e ao pretexto geralmente associa alguma restrição; e quando passa o assomo da paixão, a piedade pode trazer uma reação de arrependimento que o homem natural irreligioso não teria mostrado. A religião como tal, portanto, não merece censura por muitas das aberrações históricas que lhe têm sido creditadas. Entretanto, não podemos absolvê-la de todo da acusação de que o excesso de zelo ou o fanatismo são um dos seus riscos e, por isso, farei em seguida uma observação a respeito. Precedê-la-ei, no entanto, de um reparo preliminar, ligado a muita coisa que se segue. A nossa resenha dos fenômenos da santidade há de ter, por força, produzido na mente dos senhores uma impressão de extravagância. Será necessário, perguntaram alguns, à medida que se nos antolharam os exemplos, um depois do outro, que sejam tão fantasticamente bons assim? Nós, que não temos vocação para as formas mais extremas de santidade, seremos seguramente perdoados no último dia se a nossa santidade, o nosso ascetismo e a nossa devoção se revelarem de uma espécie menos convulsiva. Isso, praticamente, significa dizer que muita coisa que é legítimo admirar nesse campo não precisa, apesar disso, ser imitada, e que os fenômenos religiosos, como todos os outros fenômenos humanos, estão sujeitos à lei do meio áureo. Reformadores políticos realizam suas tarefas sucessivas na história das nações fechando temporariamente os olhos para outras causas. Grandes escolas de arte produzem os efeitos que têm por missão revelar à custa de uma unilateralidade que outras escolas precisam compensar. Aceitamos um John Howard, um Mazzini, um Botticelli, um Miguel Ângelo, com uma espécie de indulgência. Sentimo-nos alegres por eles terem existido para mostrar-nos esse caminho, mas sentimo-nos alegres também por haver outros modos de ver e aceitar a vida. O mesmo se pode dizer dos muitos santos de que temos falado. Orgulhamo-nos de uma natureza humana capaz de ser tão apaixonadamente extremada, mas nos esquivamos de aconselhar os outros a imitar-lhes o exemplo. O procedimento que nos censuramos por não seguir está mais próximo da linha média do esforço humano. Depende menos de crenças e doutrinas particulares. É o que quadra bem a épocas diferentes, o que debaixo de céus diferentes todos os juízes concordam em louvor. Em outras palavras, os frutos da religião, como todos os produtos humanos, estão sujeitos à corrupção pelo excesso. O bom senso há de julgálos. Não é de mister que ele censure o devoto; mas deve poder louvá-lo apenas condicionalmente, enquanto agir de perfeito acordo com as suas luzes. Ele nos mostra o heroísmo de certo modo, mas o modo incondicionalmente bom é aquele para o qual não se precisa pedir indulgência. Verificamos que o erro pelo excesso é exemplificado por todas as virtudes santas. O excesso, nas faculdades humanas, significa, de ordinário, unilateralidade e falta de equilíbrio; pois é difícil imaginar uma faculdade essencial demasiado forte, se outras faculdades igualmente fortes não estiverem presentes para cooperar com ela na ação. Afeições vigorosas necessitam de uma vontade vigorosa; poderes ativos robustos necessitam de um intelecto robusto; necessidades intelectuais possantes necessitam de possantes simpatias para manter a vida bem equilibrada. Para que exista o equilíbrio, nenhuma faculdade pode ser demasiado forte - pois só teríamos, assim, a predominância da característica mais forte. Na vida dos santos, tecnicamente assim chamados, as faculdades espirituais são fortes, mas o que dá a impressão de extravagância costuma revelar-se, ao exame, uma deficiência relativa do intelecto. A excitação espiritual assume formas patológicas sempre que os demais interesses são pouco numerosos e o intelecto demasiado estreito. Encontramos esse fato exemplificado por todos os atributos santos, cada qual por seu turno - devoto amor a Deus, pureza, caridade, ascetismo, todos podem desencaminhar. Estender-me-ei sobre essas virtudes sucessivamente. Primeiro que tudo, tomemos a Devoção. Desequilibrada, um dos seus vícios recebe o nome de Fanatismo. O fanatismo (quando não é mera expressão de ambição eclesiástica) não passa da lealdade levada a um extremo convulsivo. Quando uma mente intensamente leal e estreita se vê presa do sentimento de que certa pessoa sobre-humana é digna da sua devoção exclusiva, uma das primeiras coisas que acontece é que ela idealiza a própria devoção. A adequada compreensão dos méritos do ídolo passa a ser considerada o único grande mérito do adorador; e os sacrifícios e servilismos com que os selvagens membros de tribos, desde tempos imemoriais, têm feito praça da sua fidelidade aos chefes, são agora encarecidos em favor da divindade. Exaurem-se os vocabulários e alteram-se as línguas na tentativa de louvá-la o bastante; a morte é considerada um benefício se conseguir atrair a sua grata atenção; e a atitude pessoal de ser seu devoto se converte no que se pode quase denominar uma espécie nova e exaltada de especialidade profissional dentro da tribo.{198} As lendas que se reúnem à volta das vidas de pessoas santas são frutos desse impulso de celebrar e glorificar. O Buda,{199} Maomé{200} e seus companheiros e muitos santos do Cristianismo estão incrustados de uma pesada joalheria de anedotas que deviam ser honoríficas, mas são simplesmente abgeshmackt e tolas, e formam tocante expressão da propensão mal dirigida do homem para o louvor. Consequência imediata dessa condição da mente é o ciúme da honra da divindade. Como pode o devoto mostrar melhor a sua lealdade do que pela sensibilidade nesse sentido? A menor afronta, o menor descaso devem causar indignação, e os inimigos da divindade hão de ser confundidos. Em mentes excessivamente acanhadas e em vontades ativas, um desvelo dessa natureza pode converter-se em preocupação absorvente; e cruzadas têm sido pregadas e chacinas instigadas pelo simples motivo de uma ligeira desatenção para com o Deus. Teologias que representam os deuses como atentos à sua glória, e igrejas com políticas imperialistas, conspiraram para ventilar esse temperamento até transformá-lo numa incandescência, de modo que a intolerância e a perseguição vieram a ser vícios associados por alguns de nós inseparavelmente à mente santa. Estes são, sem qualquer sombra de dúvida, os seus pecados habituais. O temperamento santo é moral, e o temperamento moral tem de ser, muitas vezes, cruel. É um temperamento de sectário, e isso é cruel. Um Davi não conhece diferença entre seus inimigos e os inimigos de Deus. Uma Catarina de Siena, ansiando por interromper a guerra entre cristãos, que era o escândalo da época, não encontra método melhor de união entre eles do que uma cruzada para chacinar os turcos ; Lutero não atina com uma palavra sequer de protesto ou de pesar diante das torturas atrozes com que os chefes anabatistas foram mortos; e um Cromwell louva a Deus por entregar-lhe os inimigos em suas mãos para a “execução”. Em quase todos esses casos entra a política; mas a piedade parece não se ressentir da parceria. De sorte que, quando “livres-pensadores” nos dizem que religião e fanatismo são gêmeos, não podemos negar incondicionalmente a acusação. O fanatismo, portanto, deverá ser inscrito no lado errado da conta-corrente da religião enquanto o intelecto da pessoa religiosa estiver no palco que satisfaz ao tipo despótico de Deus. Mas tanto que se representa o Deus menos preocupado com sua própria honra e glória, o fanatismo deixa de ser um perigo. Só se encontra o fanatismo onde o caráter é dominador e agressivo. Nos caracteres delicados, em que a devoção é intensa e o intelecto fraco, temos uma absorção imaginativa no amor de Deus com a exclusão de todos os interesses humanos práticos, a qual, embora inocente, é demasiado unilateral para ser admirável. Uma mente excessivamente estreita só tem espaço para uma espécie de afeição. Quando o amor de Deus toma posse de uma mente assim, expulsa dali todos os amores e usos humanos. Não existe nome em nossa língua para um doce excesso de devoção como esse, de modo que lhe chamarei condição teopática. A bem-aventurada Margarida Maria Alacoque pode servir de exemplo. “Ser amada aqui na terra”, exclama o seu biógrafo recente, “ser amada por um ser nobre, elevado, distinto; ser amada com fidelidade, com devoção - que encantamento! Mas ser amada por Deus! e amada por ele até a loucura [aimée jusqu’ à lafolie]! Margarida derretia-se de amor à idéia de uma coisa assim. Como São Filipe de Neri em outros tempos, ou como São Francisco Xavier, ela disse a Deus: ‘Detém, oh! meu Deus, essas torrentes que me avassalam, ou dilata a minha capacidade para recebê-las.’ ”{201} As provas mais notáveis do amor de Deus que Margarida Maria recebeu foram as suas alucinações de visão, tato e audição e, por sua vez, os mais notáveis dentre estes foram as revelações do sagrado coração de Cristo, “cercado de raios mais brilhantes que os do Sol, e transparentes como um cristal. A ferida que lhe fizeram na cruz aparecia visivelmente. Havia uma coroa de espinhos em tomo do seu divino Coração, e uma cruz acima dele.” Ao mesmo tempo, a voz de Cristo lhe disse que, incapaz de conter por mais tempo as chamas do seu amor à humanidade, ele a escolhera por um milagre para espalhar o conhecimento delas. Logo após, tirou-lhe o coração mortal, colocou-o dentro do seu, inflamou-o e, em seguida, recolocou-o no peito dela, ajuntando: “Até aqui tomaste o nome da minha escrava; daqui por diante serás chamada a bem-amada discípula do meu Sagrado Coração.” Numa visão seguinte, o salvador revelou-lhe, com minúcias, o “grande propósito” que desejava estabelecer por intermédio dela. “Peço-te que toda primeira sexta-feira depois da semana do Santíssimo Sacramento se transforme num dia santo especial para honrar meu Coração por uma comunhão geral e por serviços levados a cabo com a intenção de reparar as indignidades de que ele tem sido vítima. E prometo-te que meu Coração se dilatará para derramar com abundância as influências do seu amor sobre quantos prestarem essas honras, ou levarem os outros a prestá-las.” “Essa revelação”, diz Mons. Bougaud, “é, sem dúvida, a mais importante de todas as revelações que iluminaram a Igreja desde a da Encarnação e a da Ceia do Senhor. … Depois da Eucaristia, o supremo esforço do Sagrado Coração”.{202} Bem, quais foram os seus bons frutos para a vida de Margarida Maria? Aparentemente, pouco mais do que sofrimentos, orações, ausências mentais, desmaios e êxtases. Ela se tomou cada vez menos útil ao convento, e sua absorção no amor de Cristo, “crescia nela diariamente, tomando-a cada vez mais incapaz de cumprir as obrigações externas. Experimentaram-na na enfermaria, porém sem muito êxito, embora sua bondade, seu zelo e sua devoção não conhecessem limites, e sua caridade se exprimisse em atos de tamanho heroísmo que os nossos leitores não lhes suportariam a narrativa. Experimentaram-na na cozinha, mas foram obrigados a desistir da prova por inútil - tudo lhe caía das mãos. A admirável humildade com que ela procurava reparar a falta de jeito não impedia que isso fosse prejudicial à ordem e à regularidade que devem sempre reinar numa comunidade. Puseram-na na escola, onde as menininhas a adoravam e lhe cortavam pedaços da roupa [para com eles fazer relíquias] como se já fosse santa, mas ela se deixava absorver tanto, interiormente, que não prestava a necessária atenção. Pobre e querida irmã, depois das suas visões era ainda menos do que antes habitante da terra, e tiveram de deixá-la no seu céu.”{203} Com efeito, pobre e querida irmã! mas tão fraca de perspectiva intelectual que seria demasiado pedir-nos, a nós, com nossa educação protestante e moderna, que sentíssemos algo mais do que uma piedade indulgente por esse tipo de santidade que ela encarna. Um exemplo ainda inferior de santidade teopática é a Santa Gertrudes, monja beneditina do século XIII, cujas “Revelações”, conhecida autoridade mística, consistem principalmente em provas da parcialidade de Cristo pela sua desmerecedora pessoa. Demonstrações do amor dele, intimidades, carícias e cumprimentos do tipo mais absurdo e pueril, dirigidas por Cristo a Gertrudes individualmente, formam o tecido dessa narrativa de uma mente apoucada. {204} Lendo-a, tomamos consciência do abismo existente entre o século XIII e o século XX, e sentimos que a santidade do caráter pode produzir frutos quase que absolutamente sem valor se estiver associada a simpatias intelectuais tão inferiores. Com a ciência, o idealismo e a democracia, nossa própria imaginação passou a necessitar de um Deus de temperamento inteiramente diferente do daquele Ser apenas interessado em dispensar favores pessoais, com o qual nossos antepassados viviam tão contentes. Encantados como estamos com a visão da justiça social, um Deus indiferente a tudo que não seja adulação e cheio de parcialidade pelos seus favoritos, carece para nós de um elemento essencial de amplitude; e até a melhor santidade profissional dos séculos anteriores, encerrada como está numa concepção dessa natureza, afigura-se-nos curiosamente superficial e pouco edificante. Tome-se Santa Teresa, por exemplo, uma das mulheres mais hábeis, em muitos sentidos, dentre aquelas de cuja vida temos notícias. Possuía um robusto intelecto de ordem prática. Escreveu páginas admiráveis de psicologia descritiva, tinha uma vontade à altura de qualquer emergência, grande talento para política e negócios, disposição alegre e um estilo literário de primeira ordem. Cheia de aspirações tenazes, colocou toda a vida a serviço de seus ideais religiosos. Entretanto, tão insignificantes eram estes, julgados pela nossa atual maneira de pensar, que (embora eu saiba que outros se comoveram de maneira diferente) confesso que o único sentimento que me despertou a sua leitura foi o de pena por ver tanta vitalidade de alma encontrar tão pobre ocupação. A despeito dos sofrimentos que a afligiram, o seu gênio tem um curioso sabor de superficialidade. Um antropólogo de Birmingham, o Dr. Jordan, dividiu a raça humana em dois tipos, aos quais chama “megeras” e “não megeras” respectivamente.{205} Define-se o tipo megera como possuidor de um “temperamento ativo não-apaixonado”. Em outras palavras, megeras são antes os “motores” do que os “sensíveis”,{206} e suas expressões, em regra geral, são mais enérgicas do que os sentimentos que parecem inspirá-las. Por mais paradoxal que possa parecer esse julgamento, Santa Teresa era uma megera típica, nesse sentido do termo. Provam-no a animação do seu estilo, bem como a da sua vida. Não somente precisa receber favores pessoais inéditos e graças espirituais do seu Salvador, mas também escrever imediatamente sobre eles, explorá-los profissionalmente e usar a própria habilidade para dar instruções aos menos privilegiados. O volúvel egotismo; seu senso, não de um mal-estar radical, que têm os verdadeiramente contritos, mas das suas “faltas” e “imperfeições” no plural; sua humildade estereotipada e sua volta sobre si mesma, como se estivesse cheia de “confusão” a cada nova manifestação da singular parcialidade de Deus por uma pessoa tão indigna, são megerices típicas: uma natureza soberanamente sensível perder-se-ia objetivamente na gratidão e ficaria em silêncio. É verdade que ela possuía alguns instintos públicos; odiava os luteranos e anelava ao triunfo da igreja sobre eles; mas a sua idéia de religião parece ter sido principalmente a de um intérmino flerte erótico - se assim se pode dizer sem irreverência - entre a devota e a divindade; e, à parte o fato de ajudar monjas mais moças a seguir nessa direção pela inspiração do seu exemplo e das suas instruções, não existe nela absolutamente nenhuma utilidade humana, nem sinal de interesse humano geral. Sem embargo disso, o espírito da sua época, longe de censurá- la, exaltou-a como um ser sobre-humano. Temos de pronunciar um julgamento semelhante sobre toda a noção de santidade baseada em méritos. Qualquer Deus que, de um lado, se preocupe em manter um computo pedantemente minucioso das deficiências individuais e, por outro lado, é capaz de sentir tais parcialidades e sobrecarregar determinadas criaturas de tais marcas insípidas de favor, é um Deus de mente tão pequena que não podemos acreditar nele. Quando Lutero, à sua maneira viril, aboliu com um gesto da mão a própria noção de uma conta-corrente com débito e crédito mantida com indivíduos pelo Todo-Poderoso, liberou a imaginação da alma e salvou a teologia da puerilidade. Isso pelo que toca à devoção divorciada das concepções intelectuais, que poderiam guiá-la no sentido de produzir úteis frutos humanos. A virtude piedosa seguinte em que encontramos excesso é a Pureza. Em personagens teopáticos, como aqueles a que acabamos de referir-nos, é mister que o amor de Deus não se misture com nenhum outro amor. Pai e mãe, irmãs, irmãos e amigos são tidos e havidos por distrações interferentes; pois a sensibilidade e a estreiteza, quando ocorrem juntas, como acontece com frequência, requerem, acima de todas as coisas, um mundo simplificado em que possam morar. A variedade e a confusão são demais para os seus poderes de adaptação confortável. Mas, ao passo que o pietista agressivo atinge objetivamente a sua unidade, erradicando a desordem e a divergência à força, o pietista retraído alcança a sua subjetivamente, deixando a desordem no mundo em geral, mas fazendo um mundozinho menor, que ele habita, e do qual a elimina de todo em todo. Assim, ao lado da igreja militante com suas prisões, perseguições armadas e métodos de inquisição, temos a igreja fugient, como poderíamos chamar-lhe, com seus eremitérios, mosteiros e organizações sectárias, e ambas as igrejas perseguem o mesmo objetivo - unificar a vida,{207} e simplificar o espetáculo apresentado à alma. Uma mente extremamente sensível a discórdias íntimas, lançará de si, uma depois da outra, todas as relações exteriores, por interferirem com a absorção da consciência nas coisas espirituais. Os divertimentos vão primeiro, depois a “sociedade” convencional, depois os negócios, depois as obrigações familiares, até chegar, por fim, à reclusão, com uma subdivisão do dia em horas para determinados atos religiosos, a única coisa que pode ser tolerada. As vidas dos santos constituem uma história de sucessivas renúncias de complicações, em que são postas de lado, uma depois da outra, todas as formas de contacto com a vida externa, para salvar a pureza do tom interior.{208} “Não será melhor”, pergunta uma freirinha à sua Superiora, “que eu deixe inteiramente de falar durante a hora da recreação, a fim de não correr o risco de cometer, falando, algum pecado de que talvez não tenha consciência?’{209} Se a vida continua a ser mais ou menos social, os que dela participam devem seguir uma regra idêntica. Encerrado nessa monotonia, o fanático da pureza sente-se, mais uma vez, limpo e livre. As minúcias de uniformidade, mantidas em certas comunidades sectárias, monásticas ou não, representam algo quase inconcebível para o homem do mundo. A indumentária, a fraseologia, as horas e os hábitos são absolutamente estereotipados, e não há dúvida de que certas pessoas são feitas de tal modo que encontram nessa estabilidade uma espécie incomparável de repouso mental. Não temos tempo para multiplicar os exemplos, por isso deixarei que o caso de São Luís Gonzaga tipifique o excesso na purificação. Tenho para mim que os senhores concordarão em que este moço levou a eliminação do exterior e do discordante a um ponto que não podemos admirar sem reservas. Aos dez anos de idade, diz o seu biógrafo: “Veio-lhe a inspiração de consagrar à Mãe de Deus sua própria virgindade - o que, para ela, é o mais agradável de todos os presentes possíveis. Sem delongas, portanto, e com todo o fervor que havia nele, de coração alegre e abrasado de amor, fez o juramento de castidade perpétua. Maria aceitou-lhe a oferta do coração inocente e obteve de Deus, para ele, à guisa de recompensa, a graça extraordinária de nunca sentir, durante toda a vida, o mais leve toque de tentação contra a virtude da pureza. Este foi um favor excepcional, raro concedido aos próprios Santos, e tanto mais maravilhoso quanto Luís frequentava sempre cortes e grandes personagens, onde o perigo e a oportunidade são inusitadamente frequentes: É verdade que ele, desde a mais tenra infância, exibira natural repugnância por tudo o que fosse impuro ou desvirginal, e até por relações de qualquer espécie com pessoas do sexo oposto. Mas isso tomou ainda mais surpreendente o fato de que ele, sobretudo após o voto, achasse necessário recorrer a tão grande número de expedientes para proteger, contra a própria sombra do perigo, a virgindade assim consagrada. Poder-se-ia supor que, se alguém devesse contentar-se com as precauções ordinárias, prescritas para todos os cristãos, esse alguém, sem dúvida, seria ele. Mas não! No emprego de preservadores e meios de defesa, na fuga das ocasiões mais insignificantes de toda e qualquer possibilidade de perigo, assim como na mortificação da carne, Luís foi mais longe do que a maioria dos santos. Ele, que, por extraordinária proteção da graça de Deus, jamais conheceu a tentação, media todos os passos como se estivesse ameaçado de todos os lados por perigos particulares. Dali por diante, nunca mais ergueu os olhos, nem ao caminhar pela rua, nem quando em sociedade. Não somente evitava todos os tratos com mulheres ainda mais escrupulosamente do que antes, como também renunciou a toda conversação e toda sorte de recreação social com elas, muito embora o pai tentasse fazê-lo participar da vida social; e ele começou muito cedo a entregar o corpo inocente a austeridades de toda casta.”{210} Lemos a respeito desse jovem que, aos doze anos de idade, “se por acaso sua mãe mandava uma dama de honor levar-lhe uma mensagem, ele nunca permitia que ela entrasse no seu quarto, mas ouvia-a através da porta semi-cerrada e despachava-a incontinenti. Não gostava de ficar a sós com a própria mãe, quer à mesa, quer em conversação; e, quando o resto da companhia se retirava, procurava também um pretexto para ausentar-se. … Evitava travar conhecimento, ainda que de vista, com grandes damas, suas parentes; e celebrou uma espécie de tratado com o pai, comprometendo-se pronta e prestesmente a aceder a todos os seus desejos, contanto que ele o dispensasse de quaisquer visitas a senhoras”. (Ibid., p. 71.) Completados os dezessete anos, Luís ingressou na ordem dos jesuítas, {211} a despeito das súplicas apaixonadas do pai, pois era herdeiro de uma casa principesca; e quando, um ano depois, o pai faleceu, interpretou a perda como uma “atenção especial” de Deus para com ele, e escreveu cartas cheias de pomposos conselhos, como se fosse um superior espiritual, à mãe pesarosa. Logo se tomou tão bom monge que, se alguém lhe perguntasse o número de seus irmãos e irmãs, precisava refletir e contá-los antes de responder. Um Padre perguntou-lhe, um dia, se a lembrança da família nunca o perturbava, ao que ele respondeu: “Nunca penso neles a não ser quando rezo por eles”. Nunca foi visto tendo na mão uma flor ou qualquer outra coisa perfumada, em que se pudesse comprazer. Pelo contrário, no hospital costumava procurar o que fosse mais repugnante, e arrancava, impaciente, as bandagens das úlceras, etc., das mãos dos companheiros. Evitava assuntos mundanos e procurava desviar, imediatamente, todas as conversações para temas piedosos, ou permanecia em silêncio. Recusava-se sistematicamente a prestar atenção ao ambiente. Quando lhe ordenaram, um dia, que trouxesse um livro que se achava no assento do reitor no refeitório, precisou perguntar onde se sentava o reitor, pois, nos três meses que ali estivera comendo pão, guardara os olhos com tanto cuidado que não notara o lugar. Um dia, durante o recreio, tendo olhado casualmente para um companheiro, censurou-se por isso como se fosse um grave pecado contra a modéstia. Cultivara o silêncio, como se quisesse preservar-se dos pecados da língua; e a sua maior penitência era o limite que os superiores lhe impunham às penitências corporais. Andava à cata de reprimendas injustas e falsas acusações como outras tantas oportunidades de humildade; e tal era a sua obediência que, quando um companheiro de quarto, cujo papel se acabara, lhe pediu uma folha, não se sentiu com liberdade para dá-la sem primeiro obter a permissão do superior, o qual, em tais circunstâncias, estava no lugar de Deus e transmitia-lhes as ordens. Não consigo encontrar outras castas de frutos da santidade de Luís. Morreu em 1591, aos vinte e nove anos de sua idade, e é conhecido na Igreja como padroeiro de todos os jovens. No dia que lhe é consagrado, o altar da capela a ele devotada em certa igreja de Roma “fica rodeado de flores, arrumadas com admirável bom gosto; e pode ver-se-lhe aos pés uma pilha de cartas, escritas ao Santo por moços e moças e endereçados ao ‘Paradiso’. Supõe-se que sejam queimadas sem ser lidas, exceto por San Luigi, que deve encontrar singulares petições nessas lindas missivazinhas, amarradas ora com uma fita verde, que expressa a esperança, ora com uma fita vermelha, emblema do amor”, etc.{212} Nosso julgamento final acerca do valor de uma vida como essa dependerá, em grande parte, da nossa concepção de Deus e do tipo de procedimento que mais agrada a ele em suas criaturas. O Catolicismo do século XVI dava pouca atenção à justiça social; e deixar o mundo nas mãos do diabo, enquanto se salva a própria alma, não era então reputado um esquema desabonador. Hoje em dia, certa ou erradamente, a solidariedade nos negócios humanos em geral, em consequência de uma dessas mutações seculares do sentimento moral, de que falei, representa elemento essencial do valor do caráter; e o ser de alguma utilidade, pública ou privada, é também havido por uma espécie de serviço divino. Outros dos primeiros jesuítas, mormente missionários, os Xavieres, os Brébeufs, os Jogues, eram mentes objetivas e lutavam, a seu modo, pelo bem-estar do mundo; por isso as suas vidas hoje nos inspiram. Mas quando o intelecto, como no caso desse Luís, não é maior que uma cabeça de alfinete e acalenta idéias de Deus de pequenez semelhante, o resultado, em que pese ao heroísmo exibido, é, no todo, repulsivo. Vemos na lição objetiva que a pureza não é a única coisa necessária; e é melhor que uma vida contraia muitas marcas de sujeira do que se prive da utilidade em seus esforços por conservar-se imaculada. Prosseguindo em nossa busca de extravagância religiosa, chegamos, em seguida, aos excessos da Ternura e da Caridade. Aqui, a santidade tem de enfrentar a acusação de preservar os inaptos e alimentar parasitos e mendigos. “Não resistas ao mal”, “Ama teus inimigos”, são máximas santas de que os homens deste mundo acham difícil falar sem impaciência. Estão certos os homens deste mundo, ou estão os santos de posse de um grau mais profundo da verdade? Nenhuma resposta simples é possível. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, sentimos a complexidade da vida moral e o caráter misterioso do modo com que fatos e ideais se entretecem. A conduta perfeita é uma relação entre três termos: o ator, os objetivos que o movem a agir é os recipientes da ação. Para que a conduta seja abstratamente perfeita, os três termos, intenção, execução e recepção devem ser apropriados um ao outro. A melhor das intenções falhará se trabalhar com meios falsos ou se dirigir a recipiente errado. Em tais circunstâncias, nenhum crítico ou estimador do valor da conduta pode ater-se apenas ao ânimo do ator, independentemente dos outros elementos da execução. Assim como não existe mentira pior do que a verdade mal interpretada pelos que a ouvem, assim os argumentos razoados, os desafios à magnanimidade e os apelos à simpatia ou à justiça, são loucura quando lidamos com crocodilos e sucuris humanas. O santo pode simplesmente pôr o universo nas mãos do inimigo com a sua confiança. E pode, com a não-resistência, pôr a perder à própria sobrevivência. Diz-nos Herbert Spencer que a conduta do homem perfeito só parecerá perfeita se o ambiente for perfeito: ela não se adaptará convenientemente a nenhum ambiente inferior. Podemos parafrasear essa proposição admitindo que a conduta santa seria a mais perfeita conduta concebível num ambiente em que todos já fossem santos; mas acrescentando que, num ambiente em que poucos fossem santos, ela se adaptaria mal. Precisamos confessar com franqueza, portanto, usando o nosso bom-senso empírico e nossos preconceitos práticos ordinários, que, no mundo realmente existente, as virtudes da simpatia, da caridade e da não-resistência podem ser, e amiúde o têm sido, manifestadas em excesso. Os poderes das trevas têm-se aproveitado sistematicamente delas. Toda a organização científica moderna da caridade é uma consequência do malogro da simples esmolaria. Toda a história do governo constitucional é um comentário à excelência da resistência ao mal, e, quando uma face é golpeada, do revide ao golpe e do não oferecimento da outra face também. Os senhores concordarão com isto de um modo geral, pois, apesar do Evangelho, apesar do Quacrismo, apesar de Tolstoi, acreditam em combater o fogo com o fogo, em fuzilar usurpadores, em trancafiar ladrões na cadeia e em não dar confiança a vagabundos e vigaristas. E, no entanto, os senhores estão certos, como eu estou certo, de que se o mundo se restringisse tão-só a esses métodos obstinados, empedernidos e vigorosos, se não houvesse ninguém pronto para ajudar primeiro um irmão e verificar, depois, se ele é digno da ajuda; se não houvesse ninguém disposto a esquecer seus agravos pessoais com pena da pessoa do agravante; se não houvesse ninguém preparado para preferir ser logrado muitas vezes a viver sempre desconfiado; se não houvesse ninguém que se deleitasse em tratar indivíduos apaixonada e impulsivamente, em vez de tratá-los segundo as regras gerais da prudência; o mundo seria um lugar infinitamente pior do que é agora para vivermos nele. A tema graça, não de um dia que está morto, mas de um dia que deverá nascer de um modo ou de outro, em que a regra áurea fosse natural, estaria alijada da perspectiva das nossas imaginações. Existindo dessa maneira, com suas extravagâncias de ternura humana, os santos podem ser proféticos. Ou melhor, eles se têm revelado proféticos inúmeras vezes. Tratando como pessoas dignas as que entraram em contato com eles, apesar do passado, apesar de todas as aparências, estimularam nelas o desejo de ser dignas, transformando-as milagrosamente pelo exemplo radiante e pelo desafio da sua expectativa. Encarando as coisas por esse prisma, podemos admitir que a caridade humana, encontrada em todos os santos, e o grande excesso dela, encontrado em alguns santos, é uma força social genuinamente criativa, tendente a tornar real um grau de virtude que só ela está pronta para assumir como possível. Os santos são autores, autores, ampliadores, da bondade. As possibilidades de desenvolvimento da alma humana são insondáveis. Tantos que se diriam irrecuperavelmente endurecidos foram, de fato, amolecidos, convertidos, regenerados, de modo que deixou boquiabertos os sujeitos mais ainda do que surpreendeu os espectadores, que nunca poderemos estar antecipadamente certos de que a sua salvação pelo amor é irrealizável. Não temos o direito de falar de crocodilos e sucuris humanas como de seres decididamente incuráveis. Não conhecemos as complexidades da personalidade, os enfumaçados fogos emocionais, as outras facetas do poliedro do caráter, os recursos da região subliminal. Há muito tempo, São Paulo familiarizou nossos antepassados com a idéia de que toda alma é virtualmente sagrada. Como Cristo morreu por todos nós, sem exceção, disse São Paulo, não podemos desesperar de ninguém. A crença na sacralidade essencial de cada um expressa-se hoje em todas as espécies de costumes humanos e instituições reformatórias e na crescente aversão à pena de morte e à brutalidade no castigo. Os santos, com sua extravagância de ternura humana, são os grandes portadores de archotes desta crença, a ponta da cunha, os aclaradores da treva. À semelhança das gotas singulares que refulgem ao sol quando arremessadas muito adiante da crista de uma onda ou de uma inundação, eles mostram o caminho e são precursores. O mundo ainda não está com eles, de modo que parecem, não raro, absurdos no meio dos negócios terrenos. Entretanto, são impregnadores do mundo, vivificadores e animadores de possibilidades de bondade que, sem eles, estariam para sempre adormecidas. Não é possível continuarmos tão mesquinhos quanto naturalmente o somos, depois que eles passam adiante de nós. Um lume acende outro; e, sem essa confiança excessiva no valor humano que eles mostram, o resto de nós jazeria imerso em estagnação espiritual. Momentaneamente considerado, portanto, o santo pode desperdiçar a própria ternura e ser vítima da febre caritativa que o consome, mas a função geral da sua caridade na evolução social é vital e essencial. Se as coisas têm de mover-se sempre para cima, alguém deve estar pronto para dar o primeiro passo e assumir-lhe o risco. Quem não estiver disposto a experimentar a caridade, a não-resistência, como o santo está sempre disposto, não poderá dizer se esses métodos serão ou não bem-sucedidos. Quando bem-sucedidos, são muito mais poderosamente bem-sucedidos do que a força ou a prudência mundanas. A força destrói os inimigos; e a melhor coisa que se pode dizer da prudência é que conserva o que já temos em segurança. Mas a não-resistência bem-sucedida transforma inimigos em amigos; e a caridade regenera seus objetivos. Esses métodos santos, como eu já disse, são energias criativas; e os santos genuínos encontram na excitação elevada de que a fé os dota uma autoridade e uma impressionabilidade que os tomam irresistíveis em situações que homens de natureza mais superficial não conseguem resolver sem o emprego da prudência mundana. Essa prova prática de que a sabedoria mundana pode ser transcendida com segurança é o presente mágico do santo para o mundo.{213} A sua visão de um mundo melhor não somente nos consola da prosa e da aridez que prevalecem de um modo geral; mas até quando temos de confessá-lo mal adaptado, ele faz alguns convertidos e o ambiente se toma melhor, mercê do seu ministério. É um fermento efetivo de bondade, um lento transmutador da ordem terrena numa ordem mais celestial. Nesse sentido, os sonhos utópicos de justiça social a que muitos socialistas e anarquistas contemporâneos se entregam são, apesar da sua impraticabilidade e não-adaptação às condições ambientais atuais, análogos à crença do santo na existência de um reino do céu. Eles ajudam a embotar o fio da dureza geral reinante, e são fermentos vagarosos de uma ordem melhor. O tópico seguinte, pela ordem, é o Ascetismo, que os senhores, pelo que imagino, estão prontos para considerar, sem discussão, uma virtude exposta à extravagância e ao excesso. O otimismo e o refinamento da imaginação moderna, como eu já disse alhures, modificaram a atitude da igreja no que diz respeito à mortificação corporal, e um Suso ou um São Pedro de Alcântara{214} nos surgem, hoje em dia, mais como trágicos charlatães do que como homens sadios que nos infundem respeito. Se as disposições interiores estão certas, perguntamos, que necessidade haverá de todo esse tormento, dessa violação da natureza exterior? Isso empresta à natureza exterior demasiada importância. Para quem estiver genuinamente emancipado da carne, os prazeres e as dores, a abundância e a privação serão igualmente irrelevantes e indiferentes. Pode empreender ações e experimentar prazeres sem receio de corrupção nem de escravização. Como diz o Bhagavad-Gítâ, só precisam renunciar às ações mundanas os que ainda estão, interiormente, apegados a elas. Se alguém estiver realmente desapegado dos frutos da ação, pode misturar-se ao mundo com equanimidade. Citei, em conferência anterior, o dito antinomiano de Santo Agostinho: “Se amas a Deus o bastante, podes seguir, com segurança, todas as tuas inclinações”. “Não precisa de práticas devocionais”, é uma das máximas de Ramakrishna, “aquele cujo coração chega às lágrimas à simples menção do nome de Hari.”{215} E o Buda, ao indicar o que chamava “o caminho do meio” a seus discípulos, exortou-os a abster-se de ambos os extremos, pois a mortificação excessiva é tão irreal e indigna quanto o mero desejo e prazer. A única vida perfeita, dizia ele, é a da sabedoria interior, que toma uma coisa tão indiferente a nós quanto qualquer outra, e assim nos conduz ao repouso, à paz e ao Nirvana. {216} Verificamos, por conseguinte, que à medida que os santos ascetas envelhecem e diretores de consciência se tomam mais experientes, costumam manifestar a tendência de dar menor destaque às mortificações especiais do corpo. Os educadores católicos sempre professaram a regra segundo a qual, sendo a saúde necessária à eficiência no serviço de Deus, não pode ser sacrificada à mortificação. O otimismo e o equilíbrio mental gerais dos círculos protestantes liberais nos tomam hoje repulsiva a mortificação por amor à mortificação. Já não podemos simpatizar com divindades cruéis, e a noção de que Deus encontra prazer no espetáculo de sofrimentos autoinfligidos em sua honra é abominável. Em consequência de todos esses motivos os senhores, provavelmente, estão dispostos, a menos que a disciplina em certos indivíduos possa exibir alguma utilidade especial, a tratar a tendência geral para o ascetismo como patológica. Acredito, todavia, que uma análise mais cuidadosa do assunto, distinguindo entre a boa intenção geral do ascetismo e a inutilidade de alguns atos particulares que se lhe podem recriminar, devem reabilitá-lo em nossa estima. Pois em seu significado espiritual o ascetismo representa nada mais e nada menos do que a essência da filosofia nascida duas vezes. Simboliza, pouco convincentemente é verdade, mas com sinceridade, a crença de que existe um elemento de mal verdadeiro neste mundo, mal que não deve ser desprezado nem evitado, senão enfrentado frontalmente e superado por um apelo aos recursos heróicos da alma e neutralizado e purificado pelo sofrimento. Erguendo-se contra essa maneira de pensar, a forma ultraotimista da filosofia entende que podemos tratar o mal pelo método do desprezo. Admitamos que um homem que, pela saúde e pelas circunstâncias afortunadas, escape ao sofrimento de alguma grande dose de mal em sua pessoa, feche os olhos para o mal que existe no universo mais amplo, fora da sua experiência particular, livre-se dele completamente e navegue pela vida, feliz, numa base de equilíbrio mental. Vimos, porém, em nossas conferências sobre melancolia, o quanto é necessariamente precária essa tentativa. De mais disso, ela só vale para o indivíduo; e deixa o mal fora dele, não resgatado e não remediado pela sua filosofia. Nenhuma tentativa dessa natureza pode ser uma solução geral do problema; e para mentes de tintas sombrias, para as quais a vida é naturalmente um mistério trágico, esse otimismo representa um expediente superficial ou uma evasão mesquinha. Aceita, em lugar da verdaderia libertação, o que é apenas um feliz acidente pessoal, uma fenda pela qual se pode escapar. Deixa o mundo em geral desajustado e ainda nas garras de Satanás. As pessoas nascidas duas vezes insistem em que a verdadeira libertação tem de ter aplicação universal. A dor, o erro e a morte hão de ser enfrentados positivamente e superados numa excitação mais elevada, pois, do contrário, o seu acúleo permanecerá intacto. Se alguém já refletiu no fato da prevalência da morte trágica na história deste mundo e o remoeu positivamente - a morte pelo enregelamento, pelo afogamento, pelo sepultamento em vida, por animais ferozes, por homens ainda piores e por doenças pavorosas —, só com dificuldade, segundo me parece, continuará sua própria carreira de prosperidade no mundo sem suspeitar de que durante todo esse tempo, talvez não esteja realmente dentro do jogo, de que lhe falte a grande iniciação. Bem, é isto mesmo o que pensa o ascetismo; e ele toma voluntariamente a iniciação. A vida não é farsa nem comédia elegante, diz ele, mas algo diante do qual devemos nos sentar com roupas de luto, esperando que o seu gosto amargo nos cure da loucura. O selvagem e o heróico são, de fato, partes dela tão enraizadas que o equilíbrio mental puro e simples, com o seu otimismo sentimental, escassamente poderá ser julgado por qualquer homem pensante como solução séria. Frases elegantes, de aconchego e de conforto nunca serão uma resposta para o enigma da esfinge. Nestas observações, fundo-me apenas no instinto comum do gênero humano para a realidade, o qual, de fato, sempre considerou o mundo essencialmente, um palco para o heroísmo. Sentimos que, no heroísmo, está oculto o supremo mistério da vida. Não toleramos ninguém que não tenha alguma capacidade para ele em qualquer direção. Por outro lado, sejam quais forem as fragilidades do homem sob outros aspectos, se estiver disposto a arriscar a vida, e ainda mais se a perder heroicamente no serviço que escolheu, o fato o consagrará para sempre. Inferior a nós mesmos neste ou naquele sentido, se nós nos agarrarmos à vida e ele for capaz de “deitá-la fora qual uma flor”, como se não tivesse o mínimo interesse por ela, nós o teremos, da maneira mais profunda, por nosso superior nato. Cada um de nós sente na própria pessoa que uma indiferença corajosa à vida lhe expiaria todas as deficiências. O mistério metafísico, assim reconhecido pelo bom senso, de que aquele que se alimenta da morte, que se alimenta dos homens, possui a vida do modo mais eminente e excelente, e enfrenta melhor tis exigências secretas do universo, é a verdade cujo fiel campeão tem sido o ascetismo. A loucura da cruz, tão inexplicável pelo intelecto, ainda conserva o seu significado vital indestrutível. Representativa e simbolicamente, portanto, e fora as extravagâncias em que o intelecto não iluminado de tempos passados o deixou deambular, creio que urge reconhecer que o ascetismo acompanha a maneira mais profunda de lidar com a dádiva da existência. Cotejado com ele, o otimismo naturalista não passa de doce de leite, lisonja e pão-de-ló. Parece-me que o curso prático de ação para nós, homens religiosos, seria, portanto, não voltar simplesmente as costas ao impulso ascético, como faz hoje em dia a maioria dos homens, mas antes descobrir uma saída para ele, cujos frutos de privação e trabalhos podem ser objetivamente úteis. O ascetismo monástico mais antigo se ocupava de futilidades patéticas ou terminava no mero egotismo do indivíduo, aumentando-lhe a própria perfeição.{217} Mas não nos será possível descartarmo-nos da maioria dessas formas mais cediças de mortificação, e ainda assim descobrir canais mais sadios para o heroísmo que as inspirou? O culto do luxo e da riqueza materiais, que constitui tão grande porção do “espírito” da nossa época, por exemplo, não explica, até certo ponto a efeminação e a desvirilização? O modo exclusivamente simpático e faceto com que se educa a maioria das crianças nos dias que correm - tão diferente da educação de centena de anos atrás, sobretudo nos centros evangélicos não terá por consequência, em que pese às suas muitas vantagens, certa ausência de fibra? Não haverá por perto alguns pontos de aplicação de uma disciplina ascética renovada e revisada? Muitos dos senhores reconheceriam tais perigos, mas apontariam, como remédios, o atletismo, o militarismo e os empreendimentos e aventuras individuais e nacionais. Esses ideais contemporâneos são tão notáveis pela energia com que elaboram os heróicos padrões de vida quanto a religião contemporânea é notável pelo modo com que os negligencia.{218} Não há duvidar que a guerra e a aventura impedem todos os que nelas se empenham de se tratarem com demasiada delicadeza. Exigem esforços tão incríveis, tamanha profundidade de ações vigorosas, não só em grau mas também em duração, que toda a escala de motivação se altera. O desconforto e o tédio, a fome e a umidade, a dor e o frio, a esqualidez e a sujeira deixam de ter qualquer função dissuasiva, seja ela qual for. A morte se transmuda num assunto banal, e o seu poder habitual de refrear-nos a ação desaparece. Anuladas tais inibições costumeiras, libertam-se séries de nova energia, e a vida parece pousar num plano mais alto de poder. A beleza da guerra, neste sentido, é a de ser congruente com a natureza humana ordinária. A evolução ancestral fez-nos todos guerreiros potenciais; de modo que o indivíduo mais insignificante, atirado num exército no campo, despoja-se de qualquer demasia de ternura para com a sua preciosa pessoa que possa ter trazido consigo e facilmente se metamorfoseia num monstro de insensibilidade. Mas quando comparamos a severidade consigo mesmo do militar com a de um santo ascético, encontramos enorme diferença em todos os seus concomitantes espirituais. “ ‘Vive e deixa viver’ ”, escreve um lúcido oficial austríaco, “hão é mote para um exército. Desprezo pelos próprios camaradas, pelos soldados do inimigo e, acima de tudo, desprezo feroz por si mesmo, são o que a guerra exige de cada um. É muito melhor que um exército seja selvagem demais, cruel demais, bárbaro demais, do que possua sentimentalidade e racionalidade humana em demasia. Se o soldado tiver de ser bom para alguma coisa como soldado, terá de ser exatamente o oposto do homem que raciocina e que pensa. A medida da bondade nele é a sua possível utilidade na guerra. A guerra, e até a paz, requerem do soldado padrões de moral absolutamente peculiares. O recruta traz consigo noções morais comuns, das quais precisa livrar-se imediatamente. Tudo, para ele, se resume na vitória, no sucesso. As tendências mais bárbaras que se podem encontrar nos homens revivem na guerra e, para as finalidades da guerra, são boníssimas”.{219} Está visto que essas palavras são literalmente verdadeiras. A meta imediata da vida do soldado, como disse Moltke, é a destruição, e nada mais que a destruição; e sejam elas quais forem, as construções que resultam da guerra são remotas e não-militares. O soldado, por conseguinte, nunca será demasiado insensível a todas essas simpatias e respeitos usuais, seja por pessoas seja por coisas, que contribuem para a conservação. Não obstante, subsiste o fato de que a guerra é uma escola de vida e heroísmo estrênuos; e, visto que está na linha do instinto aborígene, é a única escola, até agora, universalmente disponível. Mas quando nos perguntamos gravemente se essa organização complexa de irracionalidade e crime é o nosso único baluarte contra a efeminação, ficamos boquiabertos diante da idéia e passamos a pensar com mais indulgência na religião ascética. Ouvimos falar no equivalente mecânico do calor. O que agora precisamos descobrir no terreno social é o equivalente moral da guerra; alguma coisa heróica que fale aos homens tão universalmente quanto a guerra, e que, no entanto, seja tão compatível com o seu eu espiritual quanto a guerra se revelou incompatível. Muitas vezes me acudiu o pensamento de que no velho culto monacal da pobreza talvez houvesse algo semelhante a esse equivalente moral da guerra que estamos procurando. A pobreza voluntariamente aceita não poderia ser “a vida estrênua”, sem necessidade de esmagar povos mais fracos? A pobreza, de feito, é a vida estrênua - sem charangas, nem uniformes, nem aplausos populares histéricos, nem mentiras, nem circunlóquios; e quando vemos o modo com que a acumulação de riquezas entra como ideal nos próprios ossos e tutanos da nossa geração, perguntamos a nós mesmos se uma revivescência da crença de que a pobreza é uma digna vocação religiosa não pode ser “a transformação da coragem militar” e a reforma espiritual de que tanto precisa o nosso tempo. Especialmente entre nós, povos de língua inglesa, devem ser mais uma vez entoados com destemor os elogios da pobreza. Deixamos crescer em nós, literalmente, o medo de ser pobres. Desprezamos os que se propõem ser pobres a fim de simplificar e salvar sua vida interior. Se eles não se juntarem à luta desordenada e ao resfolego da rua em que se faz dinheiro, julgamo-los inaptos e faltos de ambição. Perdemos até o poder de imaginar o que a antiga idealização da pobreza poderia ter significado: a libertação dos apegos materiais, a alma incorruptível, a indiferença viril, o abrir caminho pelo que somos ou fazemos e não pelo que temos, o direito de jogar fora a nossa vida a qualquer momento irresponsavelmente - a atitude mais atlética, em suma, a forma da luta moral. Quando nós, que fazemos parte das classes chamadas superiores nos amendrontamos como os homens nunca se amendrontam na história diante da feiúra material e das privações; quando adiamos o casamento até que a nossa casa possa ser artística, e estremecemos à idéia de ter um filho sem uma conta no banco e ser condenados ao trabalho braçal, já é tempo de homens pensantes protestar contra um estado de opinião tão pouco viril e irreligioso. É verdade que, na medida em que proporciona tempo para finalidades ideais e exercício para energias ideais, a riqueza, melhor do que a pobreza, deve ser escolhida. Mas a riqueza só o faz numa porção dos casos reais. De outra parte, o desejo de angariar recursos e o medo de perdê-los são os nossos principais geradores de covardia e propagadores de corrupção. Existem milhares de conjunturas em que um homem destinado à opulência acaba sendo escravo, ao passo que o homem para o qual a pobreza não tem terrores se toma um homem livre. Pensem na força que a indiferença pessoal aos bens materiais nos daria se nos dedicássemos a causas impopulares. Já não precisamos ficar de boca fechada nem ter medo de votar na chapa revolucionária ou reformista. Nossas ações podem cair, nossas esperanças de promoção desaparecer, nossos salários reduzir-se, as portas do nosso clube fechar-se em nossa cara; no entanto, enquanto vivêssemos, estaríamos imperturbavelmente dando testemunho do espírito e nosso exemplo ajudaria a libertar a nossa geração. Nossa causa ficaria com os fundos de que necessita, mas nós, seus servos, seríamos poderosos na proporção em que nos contentássemos pessoalmente com a pobreza. Recomendo o assunto à séria ponderação dos senhores, pois é certo que o medo prevalente da pobreza entre as classes cultas é a pior doença moral de que sofre a nossa civilização. Tendo dito tudo o que posso dizer utilmente a respeito dos diversos frutos da religião tais e quais se manifestam nas vidas santas, farei agora breve resenha e passarei às conclusões mais gerais. Os senhores devem estar lembrados de que a nossa questão consistia em saber se a religião é aprovada pelos seus frutos, tais como são exibidos no tipo piedoso de caráter. É verdade que atributos singulares de santidade podem ser dotes temperamentais, encontrados em indivíduos não-religiosos. Mas o conjunto deles forma uma combinação que, como tal, é religiosa, pois parece fluir do sentido do divino como do seu centro psicológico. Quem possui vigorosamente esse sentido acaba naturalmente pensando que as menores minúcias deste mundo extraem uma significação infinita da sua relação com uma ordem divina invisível. Esse pensamento lhe confere uma denominação superior de felicidade e uma firmeza de alma com a qual nenhuma outra pode comparar-se. Nas relações sociais sua utilidade é exemplar; ele é fértil em impulsos para ajudar; sua ajuda é tanto interna quanto externa, pois sua simpatia alcança não somente almas mas também corpos, e neles acende faculdades inesperadas. Em vez de colocar a felicidade onde os homens comuns costumam colocá-la, no conforto, ele a coloca num tipo mais alto de excitação interior, que converte os desconfortos em fontes de alegria e anula a infelicidade. Por isso, não vira as costas a nenhuma tarefa, por ingrata que seja; e quando estamos precisados de assistência, podemos ter certeza de que, mais do que qualquer outra pessoa, o santo nos estenderá a mão. Finalmente, sua humildade e suas tendências ascéticas salvam-no das mesquinhas pretensões pessoais que tanto obstruem o nosso intercâmbio social ordinário, e sua pureza nos dá um homem limpo por companheiro. Felicidade, pureza, caridade, paciência, severidade consigo mesmo - todas são esplêndidas excelências, e o santo, entre todos os homens, é o que as manifesta na medida mais completa possível. Mas, como vimos, nem todas essas coisas juntas tomam os santos infalíveis. Quando seu panorama intelectual é estreito, eles caem em todos os tipos de excessos piedosos, fanatismo ou absorção teopática, tormentos autoinfligidos, puritanismo, escrupulosidade, credulidade e incapacidade mórbida de enfrentar o mundo. Pela própria intensidade de sua fidelidade aos pífios ideais que um intelecto inferior é capaz de inspirar-lhe, o santo pode ser até mais censurável e condenável do que o seria um homem carnal superficial na mesma situação. Precisamos julgá-lo não apenas sentimentalmente, nem no isolamento, mas empregando nossos próprios padrões intelectuais, colocando-o no ambiente que lhe é próprio e avaliandolhe a função total. Ora, na questão dos padrões intelectuais, releva ter em mente que é injusto, quando encontramos estreiteza de mente, imputá-la sempre como um vício ao indivíduo pois, em questões religiosas e teológicas, ele a absorve, provavelmente, da sua geração. Além disso, não se devem confundir os elementos essenciais da santidade, que são as paixões gerais de que tenho falado, com os seus acidentes, que são as determinações dessas paixões em qualquer momento histórico. Nessas determinações os santos serão geralmente leais aos ídolos temporários da tribo. Refugiar-se em mosteiros era tanto de um ídolo de tribo na Idade Média quanto o é nos dias de hoje ajudar o trabalho do mundo. Se vivessem hoje, São Francisco ou São Bernardo estariam levando, sem dúvida, vidas consagradas mas, sem dúvida também, não as estariam levando no recolhimento. Nossa animosidade contra manifestações históricas especiais não deve induzir-nos a entregar os impulsos piedosos em sua pureza essencial às relutantes misericórdias de críticos inimigos. O crítico mais inimigo dos impulsos piedosos que conheço é Nietzsche. Ele os contrasta com as paixões mundanas quais as encontramos encarnadas no caráter militar predatório, e sempre com vantagem para este último. Cumpre confessar que o nosso santo de nascença tem em si qualquer coisa que, não raro, repugna ao homem mundano, de sorte que valerá a pena considerar o contraste me apreço de maneira mais completa. O desamor à natureza virtuosa parece ser um resultado negativo do instinto biologicamente útil de acolher com alegria a liderança e glorificar o chefe da tribo. O chefe é o tirano potencial, quando não é o real, o homem de presa que domina e esmaga. Confessamos a nossa inferioridade e rastejamos diante dele. Acovardamos-nos debaixo do seu olhar e nos sentimos, ao mesmo tempo, orgulhosos de possuir um senhor tão perigoso. Esse culto instintivo e submisso do herói deve ter sido indispensável na vida tribal primitiva. Nas guerras intermináveis daquele tempo, os chefes eram absolutamente indispensáveis à sobrevivência da tribo. Se houve tribos sem chefes, elas não podem ter deixado nenhum fruto para contar-lhes o fim. Os chefes tinham sempre boas consciências, pois a consciência neles se aglutinava com a vontade, e os que lhes fitavam o rosto ficavam tão assombrados ante a nenhuma coibição interna quanto aterrados da energia de suas operações externas. Comparados com esses pilhadores do mundo, dotados de bicos e garras, os santos são animais herbívoros, mansas e inofensivas aves de capoeira. Há santos cuja barba, se o quisermos, poderemos puxar com impunidade. Um homem nessas condições não provoca frêmitos de assombro velados de terror; sua consciência está cheia de escrúpulos e retribuições; não nos atordoa a sua liberdade interior nem o seu poder exterior; e a menos que ele encontre, dentro de nós, uma faculdade inteiramente diferente de admiração para a qual possa apelar, passaremos, desdenhosos, por ele. Na realidade, ele apela para uma faculdade diferente. Representa-se de novo na natureza humana a fábula do vento, do sol e do viajante. Os sexos encarnam a discrepância. A mulher ama tanto mais admirativamente o homem quanto mais tempestuoso ele se mostra, e o mundo deifica tanto mais os seus soberanos quanto mais voluntariosos e enigmáticos são eles. Mas a mulher, por seu turno, subjuga o homem pelo mistério da suavidade da beleza, e o santo sempre encantou o mundo por alguma coisa semelhante. O gênero humano é suscetível e sugestionável em direções opostas, e a rivalidade das influências nunca dorme. O ideal sagrado e o profano prosseguem em sua rixa tanto na literatura como na vida real. Para Nietzsche, o santo representa pouco mais do que furtividade e escravidão. É o inválido sofisticado, o degenerado par excellence, o homem da vitalidade insuficiente. Sua preponderância poria em risco o tipo humano. “Os doentes são o maior perigo para os sãos. Os mais fracos, e não os mais fortes, são a ruína dos fortes. Não é o medo do nosso semelhante que deveríamos desejar ver diminuído; pois o medo desperta os fortes e fá-los terríveis por seu turno, preservando o tipo da humanidade logrado com esforço e bem-sucedido. O que deve ser temido por nós, mais do que qualquer outro destino adverso, não é o medo, senão a grande aversão, não o medo, senão a grande piedade aversão e piedade pelos nossos semelhantes …. Os mórbidos são o nosso maior perigo - não os homens ‘maus’, não os seres predatórios. Os que nasceram errados, os malogrados, os alquebrados - são eles, os mais fracos, que estão minando a vitalidade da raça, empeçonhando a nossa confiança na vida e contestando a humanidade. Cada olhar dirigido a eles é um suspiro - ‘Tomara eu fosse alguma outra coisa! Estou enjoado e cansado de ser o que sou’. Neste solo pantanoso do desprezo de si mesmo florescem todas as ervas venenosas, e todas tão pequenas, tão secretas, tão desonestas e tão docemente podres. Aqui pululam os vermes da sensibilidade e do ressentimento; aqui o ar fede a segredo, ao que não deve ser reconhecido; aqui se tece interminavelmente a rede da mais mesquinha das conspirações, a conspiração dos que sofrem contra os que triunfam e são vitoriosos; aqui o próprio aspecto dos vitoriosos é odiado - como se a saúde, o êxito, a força, o orgulho e o sentido do poder fossem, por si mesmos, coisas viciosas, pelas quais deveríamos fazer, afinal, amarga expiação. Oh, como essa gente gostaria de infligir pessoalmente a expiação, como ambiciona ser o algoz! E durante todo esse tempo, sua duplicidade jamais confessa que o seu ódio é um ódio.”{220} A antipatia do pobre Nietzsche é assaz mórbida, mas todos sabemos o que ele quer dizer, e ele expressa muito bem o embate dos dois ideais. O “homem forte” de mente carnívora, o adulto macho e canibal, só pode ver mofo e morbidez na delicadeza do santo, e na sua severidade consigo mesmo, e olha para ele com pura abominação. Toda a rixa resolve essencialmente em tomo de dois eixos; Qual há de ser a nossa principal esfera de adaptação, o mundo visível ou o mundo invisível? e deverão ser os nossos meios de adaptação a este mundo visível a agressividade ou a não-resistência? O debate é sério. Em alguns sentidos e em certo grau, ambos os mundos precisam ser reconhecidos e levados em consideração; e no mundo visível tanto a agressividade quanto a não-resistência são necessárias. É uma questão de ênfase, de mais ou de menos. Qual é o tipo mais ideal, o do santo ou do homem forte? Tem-se julgado amiúde, e creio que ainda agora a maioria das pessoas julga que pode haver um tipo intrinsecamente ideal de caráter humano. Imagina-se que determinado tipo de homem há de ser o melhor de maneira absoluta, à parte a utilidade da sua função, à parte considerações econômicas. O tipo de santo e o tipo do cavaleiro ou do cavalheiro, sempre foram aspirantes rivais a esse idealismo absoluto; e no ideal das ordens religiosas militares os dois tipos se achavam, de algum modo, fundidos um no outro. De acordo com a filosofia empírica, no entanto, todos os ideais são relativos. Seria absurdo, por exemplo, pedir uma definição do “cavalo ideal” enquanto os cavalos de carroça e os cavalos de corrida, os animais que transportam crianças e os que carregam os fardos dos comerciantes de um lado para outro forem todos diferenciações indispensáveis da função eqüina. Os senhores poderão tomar por meio-termo um animal para todo serviço, mas ele será inferior a qualquer outro de um tipo mais especializado, numa direção particular. Não podemos nos esquecer disso agora que discutindo a santidade, perguntamos se existe um tipo ideal de masculinidade. Preciso prová-lo através de suas relações econômicas. Creio que o método utilizado pelo Sr. Spencer em seu Data of Ethics ajudará a fixar nossa opinião. O idealismo na conduta é tão-somente uma questão de adaptação. Uma sociedade em que todos fossem invariavelmente agressivos acabaria se destruindo pelo atrito interno, e numa sociedade em que alguns são agressivos outros precisam ser não-resistentes, para que possa haver alguma espécie de ordem. Esta é a atual constituição da sociedade, e à mistura devemos muitas de nossas bênçãos. Mas os membros agressivos da sociedade estão sempre tendendo a tornar-se valentões, assaltantes e trapaceiros; e ninguém acredita que o estado de coisas em que agora vivemos seja a idade de ouro. Entrementes, é perfeitamente possível conceber uma sociedade imaginária em que não houvesse agressividade, mas apenas simpatia e justiça — qualquer comunidadezinha de amigos de verdade realiza agora esse tipo de sociedade. Considerada abstratamente, uma sociedade nessas condições em larga escala seria a idade de ouro, pois todas as coisas boas poderiam ali ser realizadas sem atrito nenhum. A uma sociedade assim o santo estaria inteiramente adaptado. Seus modos pacíficos de apelo seriam eficazes junto aos companheiros, e não haveria ninguém para tirar proveito da sua não-resistência. Por conseguinte, o santo é, abstratamente, um tipo de homem mais elevado que o “homem forte”, porque se adapta à mais elevada sociedade concebível, seja ou não essa sociedade concretamente possível algum dia. O homem forte, pela sua simples presença, tenderia a fazer que a sociedade se deteriorasse. Tomar-se-ia inferior em tudo, exceto num determinado gênero de excitação belicosa, cara aos homens tais como hoje são. Mas se passarmos da questão abstrata à situação real, verificaremos que o santo pode adaptar-se bem ou mal, dependendo de circunstâncias particulares. Não há, em suma, nada de absoluto na excelência da santidade. Cumpre confessar que, do modo como anda este mundo, quem fizer de si mesmo um santo completo, fá-lo-á por sua conta e risco. Se não for um homem suficientemente grande, poderá parecer mais insignificante e desprezível, com toda a sua santidade, do que se tivesse continuado a ser uma pessoa mundana.{221} Consequentemente, raras vezes tem sido a religião aceita de maneira tão radical em nosso mundo ocidental que o devoto não possa misturá-la com algum temperamento profano. Ela sempre encontrou homens bons, capazes de seguir a maioria dos seus impulsos, mas que estacavam abruptamente quando se tratava de não-resistência. O próprio Cristo foi violento em certas ocasiões. Os Cromwells, os Stonewall Jacksons, os Gordons, mostram que os cristãos também podem ser homens fortes. Como se haverá de medir o sucesso de maneira absoluta quando existem tantos ambientes e tantas maneiras diferentes de encarar a adaptação? Ele não pode ser medido de forma absoluta; o veredito variará de acordo com o ponto de vista adotado. Do ponto de vista biológico, São Paulo revelou-se um fracasso, porque foi decapitado. Entretanto, achava-se magnificamente adaptado ao ambiente mais amplo da história; e, na medida em que o exemplo de qualquer santo é um fermento de justiça no mundo, e o arrasta na direção de hábitos de santidade mais prevalecentes, ele se constitui num sucesso, seja qual for a sua má fortuna imediata. Os maiores santos, os heróis espirituais que todos reconhecem, os Franciscos, os Bernardos, os Luteros, os Loyolas, os Wesleys, os Channings, os Moodys, os Gratrys, os Phillip Brookses, as Agnes Joneses, as Margaret Hallahns e as Dora Pattisons, são sucessos desde o princípio. Mostram-se, e sobre isso não há dúvida de espécie alguma; qualquer um lhes percebe a força e a estatura. O sentido que eles têm do mistério das coisas, a paixão, a bondade, irradiam-se ao redor deles e lhes ampliam os contornos ao mesmo tempo que os suavizam. Eles são como quadros que têm uma atmosfera e um segundo plano; e, colocados lado a lado com eles, os homens fortes deste mundo parecem secos feito varas, duros e crus como blocos de pedra ou cacos de tijolo. De um modo geral, portanto, e examinando as coisas “como um todo”, {222} o nosso abandono dos critérios teológicos e a nossa experimentação da religião utilizando para isso o bom senso e o método empírico, deixam-na de posse do seu lugar elevado na história. Economicamente, o grupo piedoso de qualidades é indispensável ao bem-estar do mundo. Os grandes santos são sucessos imediatos: os menores, na pior das hipóteses são arautos e precursores, e podem ser fermentados também, de uma ordem profana melhor. Sejamos santos, portanto, se o pudermos, quer tenhamos êxito, quer não, visível e temporalmente. Mas na casa de nosso Pai há muitas mansões, e cada um de nós precisa descobrir por si mesmo o tipo de religião e a dose de santidade que melhor se harmoniza com o que acredita serem seus poderes e sente serem sua missão e vocação mais verdadeiras. Não há garantir triunfos e não há dar ordens rígidas a indivíduos enquanto seguirmos os métodos da filosofia empírica. Esta é a minha conclusão por enquanto. Sei que na mente de alguns dos senhores ela deixa um sentimento de assombro por verem um método dessa natureza aplicado a um tema como esse, apesar de todas as considerações sobre empirismo que fiz no início da Conferência XIII.{223} Como pode a religião, indagarão os senhores, que acredita em dois mundos e numa ordem invisível, ser julgada apenas pela adaptação de seus frutos à ordem deste mundo? E, insistirão, é da sua verdade e não da sua utilidade que deve depender o nosso veredito. A ser verdadeira a religião, seus frutos são bons, ainda que neste mundo se revelem uniformente mal-adaptados e cheios apenas de pathos. Voltamos, então, afinal, à questão da verdade da teologia. A trama se adensa inevitavelmente sobre nós; não podemos fugir às considerações teóricas. Proponho, portanto, que enfrentemos, até certo ponto, a responsabilidade. As pessoas religiosas têm professado com frequência, se bem não uniformemente, que vêem a verdade de forma especial. Essa forma é conhecida como misticismo. Em consequência disso, passarei agora a tratar mais extensamente de fenômenos místicos, e depois, embora com maior brevidade, da filosofia religiosa. XVI E XVII Conferências O MISTICISMO Nessas conferências, tenho ventilado reiteradamente alguns pontos deixando-os em aberto e inconclusos até que tivéssemos chegado ao assunto do Misticismo. Receio que alguns dos senhores tenham sorrido ao notar meus repetidos adiamentos. Mas agora soou a hora de enfrentar o misticismo a sério e juntar uns aos outros os fios partidos. Creio podermos dizer verdadeiramente que a experiência religiosa pessoal tem sua raiz e seu centro em estados místicos de consciência; assim, para nós, que nestas conferências estamos versando a experiência pessoal como tema exclusivo do nosso estudo, tais estados de consciência devem formar o capítulo vital do qual recebem sua luz os outros capítulos. Se o meu tratamento dos estados místicos projetará mais luz ou mais sombra, não sei, pois minha própria constituição me exclui quase inteiramente do seu desfrute, e só posso falar deles de segunda mão. Mas, embora forçado a olhar para o tema tão extremamente, serei o mais objetivo e receptivo que puder; e creio que terei êxito, pelo menos, em convencê-los da realidade dos estados em apreço, e da importância soberana da sua função. Primeiro que tudo, portanto, pergunto: Que significa a expressão “estados místicos de consciência?”. Como se separam os estados místicos dos demais estados? Usam-se a miúdo as palavras “misticismo” e “místico” como termos de mera censura, para capitular qualquer opinião que se nos afigure vaga, vasta e sentimental e sem base nos fatos nem na lógica. Para alguns escritores, “mística” é qualquer pessoa que acredite em transferência do pensamento ou na volta dos espíritos. Empregada dessa maneira, a palavra tem escasso valor: há um número muito grande de sinônimos menos ambíguos. Destarte, para manter-lhe a utilidade, tentarei restringi-la, fazendo com ela o que fiz com a palavra “religião”, e simplesmente lhes proponho quatro marcas que, encontradas numa experiência, permitem que lhe chamemos mística para a finalidade das presentes conferências. Desta maneira, eludiremos a disputa verbal e as recriminações que soem acompanhá-la. 1. Inefabilidade - a mais jeitosa das marcas pelas quais classifico de místico um estado de espírito é negativa. Quem a experimenta diz incontinenti que ela desafia a expressão, que não se pode fazer com palavras nenhum relato adequado do seu conteúdo. Disso se segue que a sua qualidade precisa ser experimentada diretamente; não pode ser comunicada nem transferida a outros. Por essa peculiaridade, os estados místicos semelham muito mais estados de sentimento do que estados de intelecto. Ninguém pode explicar a outra pessoa, que nunca conheceu determinado sentimento, o em que consistem a qualidade ou o valor dele. Precisamos ter ouvidos musicais para julgar do valor de uma sinfonia; precisamos termonos apaixonado para compreender o estado de espírito de um apaixonado. Se nos faltar o coração ou o ouvido, não poderemos interpretar com justeza o músico nem o amante, e seremos até capazes de considerá-los donos de espíritos fracos ou absurdos. Para o místico, quase todos conferimos às suas experiências um tratamento igualmente incompetente. 2. Qualidade poética - conquanto muito semelhantes a estados de sentimento, os estados místicos parecem ser também, para os que os experimentam, estados de conhecimento, estados de visão interior dirigida a profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto discursivo. São iluminações, revelações, cheias de significado e importância, por mais inarticuladas que continuem sendo; e, via de regra, carregam consigo um senso curioso de autoridade pelo tempo sucessivo. Esses dois caracteres permitirão a qualquer estado ser chamado místico, no sentido em que emprego a palavra. Duas outras qualidades menos nítidas, mas geralmente encontradas, são as seguintes: 3. Transitoriedade - os estados místicos não podem ser sustentados por muito tempo. A não ser em casos raros, meia-hora ou, quando muito, uma ou duas horas, parecem ser o limite além do qual eles se desfazem gradualmente à luz do dia. Muitas vezes, quando aparecem, a sua qualidade pode ser apenas imperfeitamente reproduzida na memória; mas, quando se repetem, são reconhecidos; e de uma ocorrência a outra, são suscetíveis de contínuo enriquecimento no que se sente como riqueza e importância anteriores. 4. Passividade - se bem a aproximação de estados místicos seja facilitada por operações voluntárias preliminares, como a fixação da atenção, a execução de certos gestos corporais, ou outras maneiras prescritas pelos manuais de misticismo, todavia, depois que a espécie característica de consciência se impôs, o místico tem a impressão de que a sua própria vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e seguro por uma força superior. Esta última particularidade liga os estados místicos a certos fenômenos definidos de personalidade secundários ou alternativos, tais como o discurso profético, a escrita automática ou o transe mediúnico. Entretanto, quando estas últimas condições são bem pronunciadas, pode não haver nenhuma recordação do fenômeno, e pode não haver significação alguma para a vida interior usual do sujeito, para a qual, por assim dizer, ele representa uma simples interrupção. Os estados místicos rigorosamente falando, nunca são meras interrupções. Subsiste sempre alguma lembrança do seu conteúdo e um sentido profundo da sua importância. Eles modificam a vida interior do sujeito entre os momentos de sua ocorrência. Divisões nítidas nessa região, contudo, são difíceis de fazer, e nós encontramos toda sorte de gradações e misturas. Essas quatro características são suficientes para marcar um grupo de estados de consciência tão peculiares que merecem um nome especial e fazem jus a um estudo cuidadoso. Chamemo-lhe, portanto, grupo místico. Em nosso passo seguinte travaremos conhecimento com alguns exemplos típicos. No auge do seu desenvolvimento, os místicos profissionais têm organizado, com frequência, experiências cuidadosas e elaborado uma filosofia baseada nelas. Mas os senhores se lembram do que eu disse em minha primeira conferência: os fenômenos são mais bem compreendidos quando colocados dentro da sua série, estudados em sua origem e em sua decadência por excesso de madurez e comparados com os seus semelhantes exagerados e degenerados. A amplitude da experiência mística é muito grande, tão grande que não poderemos cobri-la no tempo de que dispomos. No entanto, o método de estudo em série é tão essencial à sua interpretação que, se realmente desejarmos chegar a algumas conclusões, teremos de usá- lo. Começarei, portanto, com fenômenos que não proclamam nenhuma significação religiosa especial e concluirei com aqueles cujas pretensões religiosas são extremas. O rudimento mais simples da experiência mística seria aquele sentido aprofundado da significação de uma máxima ou fórmula que, de vez em quando, passa por nós. “Ouvi essa frase pronunciada durante minha vida inteira”, exclamamos, “mas só agora lhe compreendi todo o significado.” “Quando um monge”, disse Lutero, “repetiu um dia as palavras do Credo: ‘Creio no perdão dos pecados’, vi a Escritura a uma luz inteiramente nova. Era como se tivesse encontrado a porta do paraíso escancarada.”{224} Este sentido de significação mais profunda não se restringe a proposições racionais. Palavras singelas,{225} conjunções de palavras, efeitos de luz na terra e no mar, odores e sons musicais, tudo o provoca quando a mente está corretamente afinada. Quase todos podemos lembrar-nos da força estranhamente comovente de passagens de poemas lidos quando éramos moços, portas irracionais, por assim dizer, através das quais o mistério do fato, a turbulência e a dor da vida nos entraram furtivamente no coração e emocionaram-no. As palavras talvez sejam agora meras superfícies polidas para nós; mas a poesia lírica e a música só estão vivas e só são importantes na proporção em que suscitam as vagas visões de uma vida que se continua com a nossa, acenando e convidando, mas sempre eludindo a nossa perseguição. Estamos vivos ou mortos para a eterna mensagem interior das artes segundo conservamos ou perdemos a suscetibilidade mística. Um degrau mais pronunciado na escada mística se encontra num fenômeno extremamente frequente, a súbita sensação, que às vezes nos salteia, de ter “estado antes aqui”, como se em algum passado indefinido, exatamente neste lugar, precisamente com estas pessoas, já estivéssemos dizendo estas mesmíssimas coisas. Como escreve Tennyson: Moreover, something is or seems, That touches me with mystic gleams, Like glimpses of forgotten dreams Of something felt, like something here; Of something done, I know not where; Such as no language may declare.{226} Sir James Crichton-Browne deu o nome técnico de “estados de sonho” a essas repentinas invasões de consciência subitamente reminiscentes.{227} Eles trazem um sentido de mistério e da dualidade metafísica das coisas, um alargamento da percepção que se afigura iminente mas que nunca se completa. Na opinião do Dr. Crichton-Browne, eles se ligam aos distúrbios perplexos e assustados da consciência que às vezes precede ataques epilépticos. Creio que esse douto alienista tem uma visão absurdamente alarmista de um fenômeno intrinsecamente insignificante. Ele o segue, pela escada descendente, até a insanidade; o nosso caminho segue principalmente a escada ascendente. A divergência mostra o quanto é importante não desprezar nenhuma parte das conexões de um fenômeno, pois nós o fazemos parecer admirável ou medonho de acordo com o contexto no qual o estudamos. Alguns mergulhos mais profundos na consciência mística são vistos em outros estados de sonho. Tais sensações, como estas que Charles Kingsley descreve, estão seguramente longe de ser incomuns, sobretudo na juventude: “Quando passeio pelos campos, sinto-me oprimido, de vez em quando, por uma sensação inata de que tudo o que vejo tem um significado e que só me bastaria compreendê-lo. E a sensação de estar cercado de verdades que não consigo captar assume, às vezes, as proporções de um terror indescritível …. Nunca sentistes que a vossa verdadeira alma era imperceptível à vossa visão mental, exceto nuns poucos momentos abençoados?”{228} J. A. Symonds descreve um estado mais extremo de consciência mística; e, provavelmente, mais pessoas do que supomos poderiam fornecer exemplos análogos, tirados da própria experiência. “De repente”, escreve Symonds, “na igreja, ou estando em companhia de outras pessoas, ou enquanto lia, eu sentia a aproximação desse estado de espírito. Irresistivelmente, ele se apoderava da minha mente e da minha vontade, durava o que me parecia uma eternidade e desaparecia numa série de rápidas sensações que se diriam o despertar de uma influência anestésica. Uma razão por que eu não gostava desse tipo de transe era por não poder descrevê-lo para mim mesmo. Não conseguia sequer encontrar palavras que a tornassem inteligível. Consistia numa obliteração gradativa, mas rapidamente progressiva, do espaço, do tempo, da sensação e dos múltiplos fatores de experiência que parecem qualificar o que nos apraz chamar o nosso Eu. Na proporção em que essas condições de consciência comum eram subtraídas, o senso de uma consciência subjacente ou essencial adquiria intensidade. Finalmente, nada mais subsistia senão um Eu puro, absoluto, abstrato. O universo tornava-se informe e vazio de conteúdo. Mas o Eu persistia, formidável em sua vivida profundeza, sentindo a dúvida mais pungente cerca da realidade, pronto, segundo parecia, para ver a existência estourar, como estoura uma bolha de sabão. E então? A apreensão de uma próxima dissolução, a sinistra convicção de que esse estado era o derradeiro estado do Eu consciente, o sentido de que eu seguira o último fio do ser até a borda do abismo e chegara à demonstração da eterna Maya ou ilusão, agitava-me ou parecia agitarme de novo. A volta às condições normais de existência senciente começava com a recuperação da sensibilidade tátil e, a seguir, com o influxo gradual, se bem rápida, de impressões familiares e interesses cotidianos. Finalmente, eu me sentia outra vez um ser humano; e conquanto o enigma da significação da vida permanecesse não resolvido, eu me sentia grato pelo regresso do abismo - a libertação de uma iniciação tão pavorosa nos mistérios do ceticismo. “Esse transe foi-se repetindo com frequência cada vez menor até que cheguei à idade de vinte e oito anos. Serviu para impressionar minha natureza em desenvolvimento com a irrealidade fantasmal de todas as circunstâncias que contribuem para uma consciência meramente fenomênica. Tenho-me perguntado reiteradas vezes, com angústia, ao acordar desse estado de ser informe, desnudado, agudamente senciente: Qual é a irrealidade? - o transe do Eu feroz, vazio, apreensivo e cético do qual estou saindo, ou esses fenômenos e hábitos circunstantes que envolvem aquele Eu interior e constroem um eu de convencionalidade carnal? Por outro lado, são os homens fatores de algum sonho, cuja insubstancialidade semelhante ao sonho compreendem em tais momentos memoráveis? Que aconteceria se atingisse o estádio final do transe?”{229} Num relato como esse há, por certo, alguma coisa que sugere a patologia.{230} O passo seguinte nos estados místicos leva-nos a um reino que a opinião pública e a filosofia ética há muito tempo estigmatizaram como patológico, apesar de certa prática particular e certos lampejos líricos de poesia ainda pareçam dar testemunho da sua idealidade. Refiro-me à consciência produzida por intoxicantes e anestésicos e especialmente pelo álcool. O poder do álcool sobre o gênero humano deve-se, por certo, à sua capacidade de estimular as faculdades místicas da natureza humana, geralmente pregadas ao solo pelos fatos frios e críticas secas da hora sóbria. A sobriedade diminui, discrimina e diz não; a embriaguez expande, une e diz sim. É, com efeito, a grande excitadora da função do Sim no homem. Traz o seu devoto da fria periferia das coisas para o centro radiante. Faz dele, no momento, alguém com a verdade. Não é por simples perversidade que os homens correm atrás dela. Para os pobres e os iletrados ocupa o lugar dos concertos sinfônicos e da literatura; e faz parte do mistério mais profundo, da tragédia da vida pela qual as vagas aparências do que todos reconhecemos por excelente só nos devem ser concedidas nas primeiras e efêmeras fases do que é, em sua totalidade, um veneno tão degradante. A consciência bêbeda é somente uma parte da consciência mística, e nossa opinião total sobre ela precisa encontrar o seu lugar em nossa opinião sobre o conjunto mais amplo. O óxido nitroso e o éter, sobretudo o óxido nitroso, quando suficientemente diluídos no ar, estimulam a consciência mística em grau extraordinário. Profundezas e mais profundezas de verdade se diriam reveladas a quem o inalar. Entretanto, a verdade se dissipa, ou escapa, no momento em que a pessoa toma em si; e se perduram algumas palavras com que ela parecia vestir-se, estas se revelam o mais puro disparate. Não obstante, persiste o sentido de haver estado ali um significado profundo: e conheço mais de uma pessoa persuadida de que no transe do óxido nitroso temos uma autêntica revelação metafísica. Alguns anos atrás, eu mesmo realizei algumas observações sobre esse aspecto da intoxicação pelo óxido nitroso e as relatei em letra de forma. Naquela ocasião, impôs-se-me uma conclusão e minha impressão da sua verdade, desde então, permaneceu inabalada. É que a nossa consciência desperta normal, a consciência racional como lhe chamamos, não passa de um tipo especial de consciência, enquanto que em toda a sua volta, separadas dela pela mais fina das telas, se encontram formas potenciais de consciência inteiramente diferentes. Podemos passar a vida inteira sem suspeitar-lhes da existência; basta, porém, que se aplique o estímulo certo para que, a um simples toque, elas ali se apresentem em sua plenitude, tipos definidos de mentalidade que têm provavelmente em algum lugar o seu campo de aplicação e adaptação. Nenhuma explicação do universo em sua totalidade poderá ser final se deixar de lado essas outras formas de consciência. A questão resume- se em como observá-las - pois não há muita continuidade entre elas e a consciência ordinária. No entanto, podem determinar atitudes se bem não possam fornecer fórmulas, e abrir uma região embora não consigam dar um mapa. De qualquer maneira, impedem um fechamento prematuro de nossas contas com a realidade. Voltando os olhos para as minhas próprias experiências, vejo que todas convergem para uma espécie de visão interior à qual não posso deixar de atribuir certa significação metafísica. Sua tônica, invariavelmente, é uma reconciliação. Como se os opostos do mundo, cujas contradições e conflitos geram todas as nossas dificuldades e problemas, estivessem fundidos numa unidade. Não somente eles, como espécies contrastadas, pertencem ao mesmo gênero, mas também uma das espécies, a mais nobre e a melhor, é ela mesma o gênero e, assim, se encharca do seu oposto e o absorve. Sei que a afirmação é obscura, expressa em termos de lógica comum, mas não posso fugir totalmente à sua autoridade. Tenho a impressão de que ela precisa significar alguma coisa, alguma coisa semelhante ao que significa a filosofia hegeliana, se ao menos pudéssemos compreendê-la com mais clareza. Os que têm ouvidos para ouvir, ouçam: para mim, o sentido vivo da sua realidade só vem no estado místico artificial da mente.{231} Falei, há pouco, de amigos que acreditam na revelação anestésica. Para eles também é uma visão monística, em que o outro em suas várias formas aparece absorvido pelo Um. “Penetrados por este gênio”, escreve um deles, “passamos, esquecendo e esquecidos, e dali por diante cada qual é tudo, em Deus. Não há vida mais alta, nem mais profunda, nem outra, do que a vida em que fomos moldados. ‘O Um fica, os muitos mudam e passam’; e todos e cada um de nós somos o Um que fica. … Este é o ultimato. … Tão seguro quanto o ser - de onde vem todo o nosso cuidado - tão seguro é o contentamento, além da duplicidade, da antítese, ou da preocupação, onde triunfei numa solidão que Deus não pode superar.”{232} Isto tem o genuíno som religioso místico! Ainda há pouco citei J. A. Symonds. Ele também registra uma experiência mística com clorofórmio, da seguinte maneira: “Depois que a sufocação e a asfixia haviam passado, tive a impressão de encontrar-me, a princípio, num estado de vazio total; vieram depois lampejos de luz intensa, que se alternavam com negrumes e com uma visão aguda do que estava acontecendo no quarto à minha volta, mas sem nenhuma sensação de tato. Supus estar perto da morte; quando, a súbitas, minha alma teve consciência de Deus, que manifestamente lidava comigo, manejando-me, por assim dizer, numa intensa realidade pessoal presente. Senti-o jorrando como luz sobre mim …. Não posso descrever o êxtase que experimentei. Depois, à medida que despertei gradativamente da influência do anestésico, o velho sentido da relação com o mundo começou a voltar, o novo sentido da minha relação com Deus principiou a desvanecer-se. De repente, ergui-me em pé da cadeira em que estava sentado, e pus- me a gritar: ‘É horrível demais, é horrível demais, é horrível demais’, querendo dizer com isso que não poderia suportar aquela desilusão. Depois atirei-me ao chão e, afinal, acordei coberto de sangue, interpelando os dois cirurgiões (que estavam assustados): ‘Por que não me mataram? Por que não me deixaram morrer?’ Pensem um pouco nisso. Ter sentido durante aquela indefinida visão extática o próprio Deus, em toda a pureza, ternura, verdade e amor absoluto, e depois descobrir que, afinal de contas, eu não tivera nenhuma revelação, mas havia sido enganado pela excitação anormal do meu cérebro. “Sim, subsiste a pergunta: Será possível que o sentido interior de realidade que se seguiu, quando minha carne estava morta para as impressões do exterior, “Não fornece nenhum pormenor da multiplicidade e variedade das coisas; mas enche a apreciação do histórico e do sagrado com uma iluminação secular e intimamente pessoal da natureza e motivo da existência, que então parece reminiscente - como se devesse ter aparecido, ou devesse ainda aparecer, a cada participante dele. “Conquanto seja, a princípio, surpreendente em sua solenidade, toma-se diretamente uma coisa tão óbvia e natural - tão antiquada e próxima dos provérbios, que inspira exultação em lugar de inspirar medo, e um sentido de segurança, identificado com o aborígene e o universal. Mas não há palavras que expressem a imponente certeza do paciente de estar compreendendo o primordial, a surpresa adâmica da vida. “A repetição da experiência encontra-a sempre a mesma, como se não houvesse possibilidade de ser de outra maneira. O sujeito retoma a consciência normal apenas para lhe recordar parcial e intermitentemente a ocorrência, e tentar formular-lhe a importância desconcertante - tendo apenas esta consolativa reflexão tardia: conheceu a verdade mais antiga e familiarizou-se com as teorias humanas sobre a origem, o significado ou o destino da raça. Ele está além da instrução em ‘coisas espirituais’. “A lição é uma lição de segurança central: o Reino está dentro. Todos os dias são dias de juízo: mas não pode haver nenhum propósito climatérico de eternidade, nem qualquer esquema do conjunto. O astrônomo compendia a fieira de figuras desconcertantes aumentando a sua unidade de mensuração: assim podemos reduzir a espantosa multiplicidade das coisas para a unidade que cada um de nós representa. “Esse tem sido o meu sustento moral desde que o conheci. Na primeira alusão impressa que lhe fiz declarei: ‘O mundo já não é o terror estranho que me foi ensinado. Rejeitado as ameias tisnadas de nuvens e ainda opressivas, de onde tão recentemente ribombaram os trovões de Jeová, minha gaivota cinzenta ergue as asas ao cair da noite e mede as léguas indistintas com olhos intimoratos’. E agora, depois de vinte e sete anos desta experiência, as asas estão mais cinzentas, mas o olhar continua destemido, ao passo que eu renovo e enfatizo duplamente essa declaração. Conheço - como tendo conhecido - o significado da Existência: o mesmo centro do universo - maravilha e segurança, a um tempo, da alma - para o qual a fala da razão ainda não tem outro nome que o de Revelação Anestésica”. Resumi consideravelmente a citação. para o sentido ordinário das relações físicas, não fosse uma ilusão, mas uma experiência real? Será possível que, naquele momento, eu tenha sentido o que alguns santos disseram ter sentido sempre, a indemonstrável mas irrefragável certeza de Deus?”{233} Com isso estabelecemos ligação com o misticismo religioso puro e simples. A pergunta de Symonds leva-nos de volta aos exemplos que os senhores devem lembrar-se de eu haver citado na conferência sobre a Realidade do Invisível, da súbita compreensão da presença imediata de Deus. Numa noutra forma, o fenômeno é incomum. “Um oficial de polícia que conheço”, escreve o Sr. Trine, “contou-me que, muitas vezes, quando não está de serviço, ao voltar para casa à noite, lhe ocorre uma compreensão vivida e vital de sua unidade com esse Poder Infinito, e o Espírito da Paz Infinita se apodera dele e o enche de tal maneira que lhe dá a impressão de que seus pés mal se mantêm em contacto com o pavimento, tão alegre e estimulado fica em razão desse fluxo que o invade.”{234} Certos aspectos da natureza parecem ter o poder especial de despertar tais estados de espírito místicos.{235} A maioria dos casos notáveis que coligi ocorreram ao ar livre. A literatura tem comemorado esse fato e, muitos trechos de grande beleza - este extrato, por exemplo, do Journal Intime de Amiel: “Tomarei a ter, acaso, alguns desses prodigiosos devaneios que por vezes me acudiam antigamente? Um dia, quando moço, ao nascer do sol, sentado nas minas do castelo de Faucigny; e outra vez nas montanhas, debaixo do sol do meio-dia, acima de Lavey, deitado ao pé de uma árvore e visitado por três borboletas; mais uma vez à noite, na praia cheia de cascalhos do Mar do Norte, com as costas na areia e a visão percorrendo a via-láctea: - grandiosos, espaçosos, imortais, cosmogônicos devaneios, quando alcançamos as estrelas, quando possuímos o infinito! Momentos divinos, horas extáticas; em que o nosso pensamento voa de uma mundo a outro, penetra o grande enigma, respira com uma respiração vasta, tranquila e profunda como a respiração do oceano, serena e ilimitada como o firmamento azul; … instantes de irresistível intuição, em que nos sentimos grandes como o universo e calmos como um deus. … Que horas, que lembranças! Os vestígios que elas deixam para trás são suficientes para encher-nos de crença e entusiasmo, como se fossem visitas do Espírito Santo.”{236} Aqui está um registro semelhante tirado das memórias daquela interessante idealista alemã, Malwida von Meysenbug: “Eu estava sozinha na praia quando todos esses pensamentos libertadores e reconciliadores voaram sobre mim; e agora outra vez, como em certa ocasião, há muito tempo, nos Alpes do Delfinado, me senti impelida a cair de joelhos, desta feita diante do oceano imensurável, símbolo do Infinito. Senti que eu rezava como nunca o fizera antes, e conheci o que é realmente a oração: voltar do isolamento da individuação para a consciência da unidade com tudo o que existe, ajoelhar-se como alguém que morre e levantar-se como alguém imperecível. A terra, o céu e o mar como numa vasta harmonia que circundava o mundo. Como se o coro de todos os grandes que já tinham vivido estivesse ao meu lado. Senti-me um deles e tive a impressão de ouvir-lhes a saudação: ‘Tu também pertences à companhia dos que triunfam.’ ”{237} A conhecida passagem de Walt Whitman é uma expressão clássica desse tipo esporádico de experiência mística. “Acredito em ti, minha alma … Vaga comigo na relva, desata o nó da tua garganta; … Só gosto da bonança, do zumbir da tua voz aveludada. Lembro-me de como, de um feita, nós nos deitamos, numa transparente manhã de verão. Rápida se ergueu e espalhou à minha volta a paz e o conhecimento que sobrelevam todos os argumentos da terra, E sei que a mão de Deus me foi prometida, E sei que o espírito de Deus é irmão do meu, E que todos os homens já nascidos são também meus irmãos e as mulheres minhas irmãs e amantes, E que a sobrequilha da criação é o amor.”{238} Eu poderia dar com facilidade novos exemplos, mas um bastará. Tiro-o da autobiografia de J. Trevor.{239} “Numa brilhante manhã de domingo, minha esposa e os meninos foram para a Capela unitária de Macclesfield. Pareceu-me impossível acompanhá-los - como se deixar o sol que resplandecia sobre as colinas e descer à capela fosse, naquele momento, um ato de suicídio espiritual. E eu precisava tanto de uma nova inspiração e expansão em minha vida! Por isso, com muita relutância e tristeza, deixei minha esposa e os meninos descerem à cidade, enquanto eu continuava a subir os morros com minha bengala e meu cão. No encanto da manhã e na beleza dos morros e dos vales, logo perdi a senso de tristeza e pesar. Durante quase um hora caminhei pela estrada na direção de ‘O Gato e o Violino’, e depois regressei. No caminho de volta, de repente, sem mais aviso, senti-me no Céu - um estado interior de paz, alegria e segurança indescritivelmente intenso, acompanhado de um sentido de estar-me banhando num quente resplendor de luz, como se a condição externa houvesse produzido o efeito interno - uma sensação de ter passado além do meu corpo, conquanto a cena ao meu redor se me apresentasse mais claramente e mais próxima de mim do que antes, em virtude da iluminação em cujo centro eu parecia estar colocado. Essa profunda emoção perdurou, embora com força decrescente, até que cheguei a casa e por algum tempo depois, desaparecendo aos poucos.” Acrescenta o autor que, tendo tido outras experiências de uma espécie semelhante agora as conhece bem. “A vida espiritual”, escreve, “justifica-se aos que a vivem; mas que podemos dizer aos que não compreendem? Podemos dizer, pelo menos, que é uma vida cujas experiências se revelam reais ao seu possuidor, porque permanecem com ele quando trazidas a um contacto mais íntimo com as realidades objetivas da vida. Os sonhos não suportam essa prova. Acordamos de um sonho para descobrir que foi apenas um sonho. As divagações de um cérebro esgotado não suportam essa prova. As mais altas experiências que tenho tido da presença de Deus têm sido raras e breves - clarões de consciência que me obrigaram a exclamar com surpresa - Deus está aqui! - ou condições de exaltação e visão interior, menos intensas, e que só gradativamente se desvaneceram. Tenho questionado severamente o valor desses momentos. A nenhuma alma viva os contei, receoso de estar construindo minha vida e meu trabalho sobre meras fantasias do cérebro. Mas chego à conclusão de que, depois de cada questionamento e de cada prova, elas se apresentam hoje como as experiências mais reais da minha vida, e experiências que explicaram, justificaram e unificaram todas as experiências e todo o crescimento passado. Com efeito, sua realidade e sua extensa significação estão se tornando cada vez mais claras e evidentes. Quando elas chegaram, eu estava vivendo a vida mais plena, mais forte, mais sadia e mais profunda. Não as estava procurando. O que eu procurava, com resoluta determinação, era viver mais intensamente minha própria vida, contra o que sabia ser o juízo adverso do mundo. Foi nas temporadas mais reais que chegou a Presença Real, tive consciência de estar mergulhado no infinito oceano de Deus.”{240} Até o menos místico dos senhores, a esta hora, deve estar convencido da existência de momentos místicos como estados de consciência de qualidades inteiramente específica, e da profunda impressão que produzem nos que os têm. Um psiquiatra canadense, Dr. R. M. Bucke, dá aos mais distintamente caracterizados desses fenômenos o nome de consciência cósmica. “A consciência cósmica em seus exemplos mais notáveis”, diz o Dr. Bucke, “não é simplesmente uma expansão ou uma extensão da mente consciente de si mesma, com a qual estamos todos familiarizados, mas a superadição de uma função, tão distinta de qualquer outra possuída pelo homem comum, como a consciência de si mesmo é distinta de qualquer função possuída por um dos animais superiores.” “A principal característica da consciência cósmica é uma consciência do cosmo, isto é, da vida e da ordem do universo. Com a consciência do cosmo ocorre uma iluminação intelectual que, sozinha, colocaria o indivíduo num novo plano de existência - faria dele um quase membro de uma nova espécie. A isto se acrescenta um estado de exaltação, um sentimento indescritível de elevação, júbilo e felicidade, e uma aceleração do senso moral, tão notável e mais importante do que o poder intelectual intensificado. Com eles vêem o que podemos denominar sentido de imortalidade, consciência da vida eterna, não a convicção de que ele a terá, mas a consciência de que já a tem.”{241} Foi a própria experiência de um início típico da consciência cósmica em sua pessoa que levou o Dr. Bucke a investigá-la em outros. Ele deu à estampa suas conclusões num volume interessantíssimo, do qual extraído o seguinte relato do que lhe ocorreu: “Eu passara a noite numa grande cidade, com dois amigos, lendo e discutindo poesia a filosofia. Separamos-nos à meia-noite. Fiz um longo percurso num fiacre até o meu alojamento. Minha mente, ainda sob a profunda influência das idéias, imagens e emoções evocadas pela leitura e pela conversa, estava calma e tranquila. Eu me achava num estado de tranquilo aprazimento, quase passivo, sem realmente pensar, mas deixando que as idéias, imagens e emoções fluíssem por si mesmas, por assim dizer, através da minha mente. Súbito, sem aviso de espécie alguma, vi-me envolto numa nuvem cor de chamas. Por um instante pensei em fogo, numa imensa conflagração em algum lugar, perto dali, na grande cidade; mas em seguida conheci que o fogo estava dentro de mim. Acudiu-me de pronto um sentido de exultação, de imensa alegria, acompanhado ou imediatamente seguido de uma iluminação intelectual, impossível de descrever. Entre outras coisas, não somente vim a acreditar, senão vi que o universo não se compõe de matéria morta mas, pelo contrário, de uma Presença viva; tomei-me cônscio, em mim mesmo, da vida eterna. Não era a convicção de que eu possuiria a vida eterna, mas a consciência de que já a possuía; vi que todos os homens são imortais; que a ordem cósmica é de tal natureza que, sem qualquer dúvida, todas as coisas trabalham juntas pelo bem de cada um e de todos; que o princípio fundamental do mundo, de todos os mundos, é o que chamamos amor, e que a felicidade de cada um e de todos, afinal de contas, é absolutamente certa. A visão durou uns poucos segundos e desapareceu; mas sua lembrança e o sentido da realidade do que ensinou permaneceu durante o quarto de século que transcorreu depois disso. Conheci que era verdadeiro o que a visão mostrava. Eu atingira um ponto de vista do qual via que ela só podia ser verdadeira. Essa vista, essa convicção, posso dizer essa consciência, nunca, nem mesmo durante os períodos da mais profunda depressão, se perdeu.”{242} Vimos agora o bastante da consciência cósmica ou mística, que ocorre esporadicamente. Temos de passar, em seguida, para a sua cultivação metódica como elemento da vida religiosa. Hindus, budistas, maometanos e cristãos, todos a cultivaram metodicamente. Na índia, o treinamento da visão mística tem sido conhecido, desde tempos imemoriais, pelo nome de ioga. Ioga significa a união experimental do indivíduo com o divino. Baseia-se no exercício perseverante; e a dieta, a postura, a respiração, a concentração intelectual e a disciplina moral variam ligeiramente nos diferentes sistemas que a ensinam. O iogue, ou discípulo, que, por esse meio, sobrepujou os obscurecimentos de sua natureza inferior, entra na condição denominada Samadhi, e “se vê face a face com fatos que nenhum instinto ou razão pode jamais conhecer.” Ele aprende: “Que a própria mente tem um estado mais elevado de existência, um estado superconsciente, e quando ela chega a esse estado mais elevado, sobrevêm o conhecimento que está além do raciocínio …. Todos os passos diferentes em ioga destinam-se a trazer-nos cientificamente ao estado superconsciente ou Samadhi. … Assim como o trabalho inconsciente está abaixo da consciência, assim também existe outro trabalho, que está acima da consciência, e que também não se acompanha do sentimento do egoísmo. … Não existe o sentimento do Eu e, contudo, a mente trabalha, sem desejo, livre da inquietação, sem objetivo, sem corpo. É então que a Verdade resplandece em sua plena fulguração e nós nos conhecemos a nós mesmos - pois o Samadhi jaz, potencial, em todos nós - pelo que verdadeiramente somos, livres, imortais, onipotentes, despejados do finito e dos seus contrastes do bem e do mal, e idênticos ao Atman, ou alma Universal.”{243} Dizem os vedantistas que podemos topar esporadicamente com a superconsciência, sem a disciplina prévia, mas ela, então, é impura. A prova da pureza que eles fazem, como a nossa prova do valor da religião, é empírica: seus frutos têm de ser bons para toda a vida. Quando um homem sai do Samadhi, afiançam-nos, permanece “iluminado, profeta, santo, com todo o seu caráter modificado, com sua vida mudada, iluminada.”{244} Os budistas usam a palavra “samadhi” como os hindus; mas “dhyana” é o termo especial com que indicam estados mais altos de contemplação. Parece haver quatro estádios reconhecidos no dhyana. O primeiro ocorre através da concentração da mente num ponto. Exclui o desejo, mas não exclui o discernimento nem o julgamento; ainda é intelectual. No segundo estádio, as funções intelectuais declinam e permanece o sentido satisfeito da unidade. No terceiro estádio a satisfação se vai e começa a indiferença, juntamente com a memória e a consciência de si mesmo. No quarto estádio, a indiferença, a memória e a consciência de si mesmo são aperfeiçoadas. [Não se sabe ao certo o que significam, nesse sentido, a “memória” e a “consciência de si mesmo”. Não podem ser as faculdades que nos são familiares na vida inferior.] Mencionam-se ainda estádios mais altos de contemplação - uma região onde nada existe e onde o meditador diz: “Não existe absolutamente nada”, e pára. A seguir, alcança outra região, onde diz: “Não existem idéias nem ausência de idéias”, e toma a parar. Depois, outra região onde, “tendo atingido o fim, assim da idéia como da percepção, afinal se detém”. Dir-se-ia que isto fosse não ainda o Nirvana, mas o ponto mais próximo dele que a vida nos faculta.{245} No mundo maometano, a seita sufista e vários grupos de dervixes são possuidores da tradição mística. Os sufis existiram na Pérsia desde os primeiros tempos e, como o seu panteísmo discrepa tanto do quente e rígido monoteísmo da mente árabe, houve quem sugerisse que o Sufismo deve ter sido inoculado no Islã por influências hindus. Para dar-lhes à existência certa viveza nas mentes dos senhores, citarei um documento muçulmano, e não tomarei ao assunto. Al-Ghazzali, filósofo e teólogo persa que floresceu no século XI e figura como um dos maiores doutores da igreja muçulmana, deixou-nos uma das poucas biografias que se podem encontrar fora da literatura cristã. É estranho que uma espécie de livro tão abundante entre nós seja tão pouco representado alhures - a ausência de confissões estritamente pessoais é a principal dificuldade que se depara ao estudioso puramente literário desejoso de familiarizar-se com a interioridade das religiões que não sejam a cristã. O Sr. Schomölders verteu para o francês parte da autobiografia de AlGhazzali:{246} “A Ciência dos Sufis”, diz o autor muçulmano, “visa destacar o coração de tudo o que é Deus e dar-lhe, por única ocupação, a meditação do divino ser. Sendo a teoria mais fácil para mim do que a prática, leio [certos livros] até compreender tudo o que pode ser aprendido pelo estudo e pela conversação. Reconheci, então, que o que pertence mais exclusivamente ao seu método é exatamente o que nenhum estudo pode apreender, pois só se chega a ele pelo transporte, pelo êxtase e pela transformação da alma. Quão grande, por exemplo, é a diferença entre conhecer as definições da saúde, da sociedade, com suas causas e condições, e estar realmente sadio ou saciado. Quão diferente é saber no que consiste a embriaguez - enquanto estado ocasionado por um vapor que sobe do estômago - e estar efetivamente bêbado. O bêbado, sem dúvida alguma, não conhece a definição de bebedeira nem o que a toma interessante para a ciência. Estando embriagado, não sabe nada; ao passo que o médico, embora não esteja embriagado, conhece bem o em que consiste a embriaguez, e quais são as suas condições predisponentes. Da mesma forma, há diferença entre conhecer a natureza da abstinência e ser abstinente ou ter a alma desligada do mundo. - Assim aprendi as palavras que podiam ensinar o Sufismo, mas o que sobrou não podia ser aprendido pelo estudo nem pelos ouvidos, mas apenas pela entrega de mim mesmo ao êxtase e por existência piedosa. “Refletindo sobre a minha situação, vi-me amarrado por uma multidão de liames - tentações de todos os lados. Considerando o meu ensino, verifiquei que ele era impuro perante Deus. Vi-me lutando com todas as minhas forças para alcançar a glória e difundir o meu nome. [Segue-se aqui um relato dos seis meses de hesitação em romper as condições de sua vida em Bagdá, ao cabo dos quais caiu doente com uma paralisia da língua.] Depois, sentindo minha própria fraqueza e tendo renunciado inteiramente à minha própria vontade, dirigi-me a Deus como um homem aflito e baldo de recursos. Ele respondeu, como responde ao miserável que o invoca. Meu coração já não sentia a menor dificuldade em renunciar à glória, à riqueza e aos meus filhos. Nessas condições, deixei Bagdá e, tirando da minha fortuna apenas o indispensável à minha subsistência, distribuí o resto. Fui para a Síria, onde fiquei cerca de dois anos, sem nenhuma outra ocupação a não ser viver no recolhimento e na solidão, vencendo os meus desejos, combatendo minhas paixões, adestrando-me na purificação da alma, no aprimoramento do caráter na preparação do coração para meditar em Deus - tudo de acordo com os métodos dos sufis, como eu já lera a respeito deles. “Esse recolhimento só aumentou o meu desejo de viver na solidão, completar a purificação do meu coração e adequá-lo à meditação. Mas as vicissitudes dos tempos, os negócios da família, a necessidade de subsistência, alteraram em certos sentidos minha resolução primitiva e interferiram nos meus planos de uma vida puramente solitária. Eu nunca me encontrava ainda completamente em êxtase, salvo numas poucas horas de uma vez; sem embargo disso, acalentava a esperança de atingir esse estado. Toda vez que os acidentes me desencaminhavam, eu pensava em voltar; e nisso gastei dez anos. Durante esse estado solitário foram-me reveladas coisas que me é impossível não só descrever mas também mencionar. Reconheci por certo que os sufis palmilhavam seguramente o caminho de Deus. Assim nos atos como na inação, quer interna quer externa, ilumina-os a luz que procede da fonte profética. A primeira condição para um sufi é purgar o coração inteiramente de tudo o que não é Deus. A chave seguinte da vida contemplativa consiste nas humildes orações que escapam da alma fervorosa, e nas meditações sobre Deus em que a alma é completamente engolida. Na realidade, porém, este é apenas o início da vida do sufi, visto que o fim do Sufismo é a absorção total em Deus. As intuições e tudo o que precede são, por assim dizer, o limiar para os que entram. Desde o princípio, as revelações se verificam de forma tão flagrante que os sufis vêem à sua frente, enquanto bem acordados, os anjos e as almas dos profetas. Ouvemlhes as vozes e obtêm-lhes os favores. Em seguida, o êxtase sobe da percepção de formas e figuras para um grau que escapa a toda e qualquer expressão e que nenhum homem pode tentar descrever sem que suas palavras envolvam um pecado. “Quem quer que não tenha tido experiência do êxtase, da verdadeira natureza do profetismo só conhece o nome. Entretanto, pode estar seguro da sua existência, tanto por experiência própria quanto pelo que ouve dos sufis. Assim como homens dotados apenas da faculdade sensível rejeitam o que lhes é oferecido na forma de objetos da compreensão pura, assim também homens intelectuais rejeitam e evitam as coisas percebidas pela faculdade profética. O cego nada entende das cores, a não ser o que aprendeu com as narrativas e conversações. Entretanto, Deus aproximou o profetismo dos homens ao dar-lhes um estado análogo a ele em seus caracteres principais. Esse estado é o sono. Se dissésseis a um homem sem nenhuma experiência de um fenômeno dessa natureza que existem pessoas capazes, em dados momentos, de desmaiar de modo que pareçam mortas, e que [nos sonhos] ainda percebem coisas que estão ocultas, ele o negaria [e exporia suas razões para isso]. Não obstante, suas alegações seriam refutadas pela experiência real. Daí que, assim como o entendimento é um estádio da vida humana em que os olhos se abrem para discernir vários objetos intelectuais não compreendidos pela sensação, assim também, no estado profético, a visão é iluminada por uma luz que desvela coisas e objetos ocultos que o intelecto não alcança. As principais propriedades do profetismo só são perceptíveis durante o êxtase pelos que abraçam a vida dos sufis. O profeta é dotado de qualidades com as quais nada possuís parecido e que, por conseguinte, não podeis compreender. Como poderíeis conhecer-lhes a verdadeira natureza, se só conhecemos o que podemos compreender? Mas o êxtase que se obtém pelo método dos sufis é uma como percepção imediata, como se tocássemos os objetos com nossas próprias mãos.’’{247} Essa incomunicabilidade do êxtase é a tônica de todo o misticismo. A verdade mística existe para o indivíduo que tem o êxtase, mas para mais ninguém. Nisso, como eu já disse, semelha antes o conhecimento que nos é dado em sensações do que o conhecimento havido pelo pensamento conceptual. Por sua qualidade remota e abstrata, na história da filosofia, o pensamento foi muitas vezes contrastado desfavoravelmente com a sensação. É um lugar-comum da metafísica o que diz que o conhecimento de Deus não pode ser discursivo mas tem de ser intuitivo, isto é, tem de ser construído mais segundo o padrão do que em nós mesmos se chama sensação imediata, do que segundo o padrão da proposição e do julgamento. Mas as nossas sensações imediatas só têm por conteúdo o que lhes fornecem os cinco sentidos; e vimos, e tomaremos a ver, que os místicos podem negar enfaticamente, que os sentidos desempenham uma parte qualquer no tipo mais elevado de conhecimento que os seus êxtases propiciam. Na igreja cristã sempre houve místicos. Conquanto muitos fossem vistos com desconfiança, alguns lograram favor aos olhos das autoridades. As experiências destes últimos têm sido tratadas como precedentes, e neles se fundou um sistema codificado de teologia mística, em que tudo o que é legítimo encontra o seu lugar.{248} A base do sistema é a “oração” ou meditação, a metódica elevação da alma a Deus. Pela prática da oração podem atingir-se os níveis mais altos da experiência mística. É estranho que o Protestantismo, sobretudo o Protestantismo evangélico, tenha aparentemente abandonado tudo o que havia de metódico nessa linha. À parte aquilo a que a oração pode conduzir, a experiência mística protestante parece ter sido quase exclusivamente esporádica. Aos sequazes da medicina psíquica foi cometida a tarefa de reintroduzir a meditação metódica em nossa vida religiosa. A primeira coisa que se deve colimar na oração é o desapegar-se da mente de sensações externas, pois estas interferem na sua concentração em coisas ideais. Manuais como os Exercícios Espirituais de Santo Inácio recomendam ao discípulo que expulse qualquer tipo de sensação mediante uma série gradativa de esforços para imaginar cenas sagradas. O ponto culminante desse tipo de disciplina seria um monoideísmo semi-alucinatório - uma figura imaginária de Cristo, por exemplo, vindo ocupar inteiramente a mente. Imagens sensoriais dessa espécie, quer literais quer simbólicas, representam um papel enorme no misticismo.{249} Mas em certos casos as imagens podem desaparecer de todo, e nos raptos mais elevados tendem a fazê-lo. O estado de consciência toma-se, então, insuscetível de qualquer descrição verbal. Nesse particular, os mestres de misticismo são unânimes. São João da Cruz, por exemplo, um dos melhores dentre eles, assim descreve a condição denominada “união do amor”, que, diz ele, é alcançada pela “contemplação escura”. Nela, a Divindade compenetra a alma, mas de maneira tão oculta que a alma “não encontra termos, nem meios, nem comparação por cujo intermédio traduza a sublimidade da sabedoria e a delicadeza do sentimento espiritual de que está cheia. … Recebemos esse conhecimento místico de Deus, não vestido de nenhum desses tipos de imagens, de nenhuma das representações sensíveis, que a nossa mente emprega em outras circunstâncias. Nesse conhecimento, por conseguinte, visto não serem utilizados os sentidos nem a imaginação, não obtemos forma nem impressão, e tampouco podemos fazer algum relato ou fornecer alguma semelhança, conquanto a sabedoria misteriosa e doce regresse tão claramente às partes mais íntimas de nossa alma. Imagine-se um homem vendo certa espécie de coisa pela primeira vez na vida. Ele pode compreendê-la, usá-la e recrear-se com ela, mas não pode dar-lhe um nome, nem comunicar nenhuma idéia a seu respeito, ainda que, durante o tempo todo, ela não seja mais que uma simples coisa sensível. Quanto maior será a sua incapacidade quando a coisa estiver além dos sentidos! Essa é a peculiaridade da linguagem divina. Quanto mais infusa, íntima, espiritual e supersensível for, tanto mais excederá os sentidos, internos e externos, e lhes imporá silêncio. … Sente-se, então, a alma como se tivesse sido colocada numa vasta e profunda solidão, a que nenhum ser criado tem acesso, num deserto imenso e sem limites, tanto mais delicioso quanto mais solitário é. Ali, naquele abismo de sabedoria, a alma cresce mercê do que bebe nos mananciais da compreensão do amor, … e reconhece, por mais sublimes e eruditos que sejam os termos por nós empregados, quão totalmente vis, insignificantes e impróprios são, quando tentamos discorrer sobre coisas divinas por intermédio deles.”{250} {251} Não tenciono minuciar-lhes os diversos estádios da vida mística cristã. Em primeiro lugar, porque o nosso tempo não seria suficiente; além disso, confesso que as subdivisões e os nomes que encontramos nos livros católicos não me parecem representar nada de objetivamente distinto. Cada cabeça, cada sentença: imagino que essas experiências possam ser tão infinitamente variadas quanto o são as idiossincrasias dos indivíduos. O que nos interessa diretamente são os aspectos cognitivos deles, o seu valor em relação à revelação, e é fácil mostrar por citações quão forte é a impressão que esses estados deixam de serem revelações de novas profundezas da verdade. Santa Teresa é a perita das peritas na descrição de tais condições, por isso me voltarei imediatamente ao que ela diz acerca de uma das mais altas dentre elas, a “oração da união”. “Na oração da união”, diz Santa Teresa, “a alma está plenamente desperta no que diz respeito a Deus, mas inteiramente adormecida no que concerne a este mundo e a si mesma. No breve espaço de tempo que dura a união, ela está, por assim dizer, privada de todo sentimento e, mesmo que o quisesse, ver-se-ia incapaz de pensar no que quer que fosse. Por isso não precisa empregar nenhum artifício em ordem a embargar o uso do seu entendimento: ele permanece tão impressionado com a inatividade que ela não sabe o que ama, nem como ama, nem o que quer. Em suma, ela está completamente morta para as coisas deste mundo e vive tão-só em Deus. … Nem mesmo sei se nesse estado lhe sobeja vida suficiente para respirar. Parece-me que não; ou, pelo menos, se respira, não tem consciência disso. Seu intelecto gostaria de compreender alguma coisa do que se passa dentro dela, mas tem agora tão pouca força que não pode agir de maneira alguma. Analogamente, uma pessoa que tem um desmaio profundo parece estar morta …. “Assim Deus, quando ergue uma alma para unir-se a ele, suspende a ação natural de todas as suas faculdades. Ela não vê, não ouve, não compreende, enquanto está unida a Deus. Mas esse tempo é sempre curto, e parece até mais curto do que é. Deus se estabelece no interior da alma de tal maneira que, quando ela toma em si, lhe é totalmente impossível duvidar de que esteve em Deus e Deus nela. Essa verdade permanece tão fortemente impressa nela que, ainda que se passem muitos anos sem que o estado se repita, ela nem pode esquecer o favor que recebeu, nem duvidar-lhe da realidade. Se vós, não obstante, perguntardes como é possível que a alma veja e compreenda que esteve em Deus, pois durante a união não teve vista nem entendimento, replico que ela não o vê na ocasião, mas que o vê claramente mais tarde, depois de haver tornado em si, não por alguma visão, senão pela certeza que fica com ela e que só Deus pode darlhe. Conheci uma pessoa que ignorava a verdade segundo a qual o modo de Deus estar em tudo há de ser ou pela presença, ou pelo poder, ou pela essência, mas que, depois de haver recebido a graça de que estou falando, acreditou nessa verdade da maneira mais inabalável. Tanto assim que, tendo consultado um homem semidouto, que ignorava tanto esse ponto quanto ela mesma o ignorara antes de ser iluminada, e ele lhe respondeu que Deus só está em nós pela ‘graça’, ela não acreditou na resposta, tão segura estava da resposta verdadeira; e quando veio a consultar doutores mais sábios, eles a confirmaram em sua crença, o que muito a consolou …. “Mas como, insistireis, podemos ter essa certeza a respeito do que não vemos? Confesso-me incapaz de responder a tal pergunta. Esses são os segredos da onipotência de Deus, que não me cabe penetrar. A única coisa que sei é que estou dizendo a verdade; e jamais acreditei que alguma alma que não possua essa certeza tenha estado realmente unida a Deus.”{252} Os gêneros de verdade comunicáveis de modo místico, sejam elas sensíveis ou supersensíveis, são de várias espécies. Algumas se relacionam com este mundo como visões do futuro, leitura de corações, súbita compreensão de textos, conhecimento de eventos distantes, por exemplo; mas as revelações mais importantes são teológicas ou metafísicas. “Santo Inácio confessou certo dia ao Padre Laynez que uma única hora de meditação em Manresa lhe ensinara mais verdades sobre coisas do céu do que todos os ensinamentos de todos os doutores juntos lhe poderiam ter ensinado. … Um dia, em que se achava em oração nos degraus do coro da igreja dominicana, viu, de maneira distinta o plano da sabedoria divina na criação do mundo. Em outra ocasião, durante uma procissão, seu espírito foi arrebatado em Deus, e foi-lhe dado contemplar, numa forma e com imagens ajustadas ao fraco entendimento de um habitante da terra, o profundo mistério da Santíssima Trindade. Esta última visão lhe inundou o coração de tamanha doçura que a simples lembrança dela em tempos subsequentes o fazia derramar lágrimas copiosas.”{253} O mesmo aconteceu com Santa Teresa. “Um dia, estando em oração”, escreve ela, “foi-me concedido perceber, num instante, como todas as coisas são vistas e contidas em Deus. Eu não as percebia em sua forma apropriada e, apesar disso, a visão que eu tinha delas era de uma clareza soberana, e permaneceu vividamente impressa em minha alma. Foi uma das poucas mais extraordinárias que o Senhor me conferiu. … A visão era tão sutil e delicada que o entendimento não pode captá-la.”{254} Ela continua a contar-nos que era como se a Divindade fosse um diamante enorme e soberanamente límpido, em que todas as nossas ações estavam contidas de tal maneira que todo o pecado que continham parecia evidente como nunca parecera antes. Em outro dia, relata ela, enquanto recitava o Credo de Atanásio, “Nosso Senhor fez-me compreender de que modo um Deus pode estar em três Pessoas. Fez-me vê-lo de forma tão clara que fiquei extremamente surpreendida e confortada, … e agora, quando penso na Santíssima Trindade, ou ouço falar nela, compreendo como as três adoráveis Pessoas formam apenas um Deus e experimento uma felicidade indizível”. Em outra ocasião ainda, foi dado a Santa Teresa ver e compreender a maneira com que a Mãe de Deus havia sido elevada ao seu lugar no Céu.{255} O delicioso de alguns desses estados parece estar além de tudo o que conhece a consciência ordinária. É evidente que envolve sensibilidades orgânicas, pois falam dele como de alguma coisa tão extrema que não pode ser suportada, e beira as raias da dor física.{256} Mas é um deleite de tal maneira sutil e penetrante que palavras comuns não podem descrever. Os contactos de Deus, as feridas do seu dardo, as referências à ebriedade e à união nupcial têm de figurar na fraseologia com a qual é obscurecido. Assim o intelecto como os sentidos desfalecem nesses estados mais altos de êxtase. “Se o nosso intelecto compreende”, diz Santa Teresa, “é de um modo que continua desconhecido para ele, e não lhe é dado compreender nada daquilo que abraça. De minha parte, não acredito que ele compreenda porque, como eu disse, ele não percebe que o faz. Confesso que tudo isso é um mistério no qual me perco.”{257} Na condição chamada raptus, ou arrebatamento, pelos teólogos, a respiração e a circulação ficam tão deprimidas que se discute ainda entre os doutores se a alma está ou não está temporariamente dissociada do corpo. Precisamos ler as descrições de Santa Teresa e as distinções muito precisas que ela faz, para persuadir-nos de que não estamos lidando com experiências imaginárias, mas com fenômenos que, embora raros, seguem perfeitamente tipos psicológicos definidos. Para a mente médica esses êxtases nada significam senão estados hipnóides sugeridos e imitados, numa base intelectual de superstição, e numa base física de degeneração e histeria. Não há dúvida alguma de que essas condições patológicas existiram em muitos casos, e talvez até em todos eles, mas esse fato nada nos diz sobre o seu valor para o conhecimento da consciência que eles induzem. Se quisermos fazer um julgamento espiritual desses estados, não devemos contentar-nos com o linguajar médico superficial, mas indagar-lhes dos frutos para a vida. Os seus frutos parecem ter sido vários. Em primeiro lugar, a estupefação não parece ter estado, de todo em todo, ausente como resultado. Os senhores talvez se lembrem na inépcia da pobre Margarida Maria Alacoque na cozinha e na sala de aulas. Muitos outros extáticos teriam perecido não fossem os cuidados que com eles tiveram seguidores que os admiravam. A tendência do pensamento para refugiar-se no “outro mundo”, estimulada pela consciência mística, toma esta superabstração da vida prática singularmente sujeita a ocorrer em místicos cujo caráter é naturalmente passivo e cujo intelecto é fraco; mas em mentes e caracteres de robustez ingênita encontramos resultados diametralmente opostos. Os grandes místicos espanhóis, que levaram o hábito do êxtase tão longe quanto os que mais longe o levaram, parecem ter mostrado, na maior parte, espírito e energia indômitos, e tanto mais pelos transes a que se entregaram. Santo Inácio era um místico, mas o misticismo fez dele, sem dúvida, uma das máquinas humanas mais poderosamente práticas que já existiram. São João da Cruz, escrevendo sobre as intuições e “toques” por cujo intermédio Deus atinge a substância da alma, conta-nos que “Eles a enriquecem maravilhosamente. Um só dentre eles pode ser suficiente para abolir, de golpe, certas imperfeições de que a alma, durante toda a vida, debalde tentou livrar-se, e deixá-la adornada de virtudes e carregada de dádivas sobrenaturais. Uma única dessas consolações inebriantes pode recompensá-la por todos os trabalhos que ela enfrentou em sua vida - ainda que fossem inumeráveis. Provida de uma coragem invencível, cheia de um desejo apaixonado de sofrer pelo seu Deus, a alma, então, é presa de estranho tormento - o de não lhe ser permitido sofrer o bastante”.{258} Santa Teresa é igualmente enfática e muito mais minuciosa. Os senhores talvez se recordem ainda do trecho de um livro dela que citei em minha primeira conferência.{259} Existem muitas páginas semelhantes em sua autobiografia. Onde existe na literatura um relato mais evidentemente veraz da formação de um novo centro de energia espiritual, do que o apresentado em sua descrição dos efeitos de certos êxtases que, ao partir, deixam a alma num nível mais elevado de excitação emocional? “Muitas vezes, enferma e alquebrada por dores pavorosas antes do êxtase, a alma sai dele cheia de saúde e admiravelmente disposta para a ação … como se Deus tivesse querido que o próprio corpo, já obediente aos desejos da alma, partilhasse da sua felicidade. … Depois de um favor dessa natureza, anima-se a alma com um grau tão grande de coragem que, se naquele momento o seu corpo fosse reduzido a pedaços pela causa de Deus, nada sentiria senão o mais vivo dos confortos. É então que promessas e resoluções heróicas começam a crescer em nós em profusão, excitando desejos, horror do mundo, e a clara percepção do nosso próprio nada …. Que império se compara ao de uma alma que, deste píncaro sublime a que Deus a elevou, vê todas as coisas da terra debaixo dos pés, e não se deixa cativar de nenhuma delas? Quanta vergonha sente ela então dos seus apegos anteriores! Quanto pasmo experimenta diante da sua cegueira! Quanta piedade sente pelos que reconhece ainda amortalhados na escuridão! … Geme por haver sido, constantemente, sensível a pontos de honra, à ilusão que a fazia ver sempre como honra aquilo a que o mundo dá esse nome. Nome em que agora nada mais vê que uma mentira imensa cuja vítima continua sendo o mundo. Descobre, à nova luz projetada de cima, que na honra autêntica não há nada espúrio, que ser fiel a essa honra é dar o nosso respeito ao que merece realmente ser respeitado, e ter por nada, ou menos que nada, o que quer que pereça e não seja agradável a Deus. … Ri-se quando vê pessoas graves, pessoas de oração, dando importância a pontos de honra pelos quais sente agora o mais profundo desprezo. Eles fazem de conta que quadra à dignidade da sua posição proceder assim, e que isso os torna mais úteis aos outros. Mas ela sabe que, se desprezassem a dignidade da sua posição pelo puro amor de Deus, fariam mais bem num dia só do que em dez anos preservando-a. … Ri-se de si mesma ao pensar que houve um tempo em sua vida em que fazia caso do dinheiro, em que chegava até a desejá-lo. … Oh! se os seres humanos pudessem concordar em considerá-lo simples e inútil lodo, quanta harmonia reinaria então no mundo! Com quanta amizade nos trataríamos uns aos outros se o nosso interesse pela honra e pelo dinheiro pudessem desaparecer da terra! De minha parte, estou que esse seria um remédio para todos os nossos males.”{260} As condições místicas, portanto, podem tomar a alma mais enérgica nas direções favorecidas pela sua inspiração. Mas isso só pode ser considerado uma vantagem se a inspiração for verdadeira. Se a inspiração for errônea, a energia será correspondentemente mais equivocada e ilegítima. De modo que nos vemos, mais uma vez, diante do problema da verdade que se nos deparou no fim da conferência sobre a santidade. Os senhores hão de estar lembrados de que abordamos o misticismo precisamente para conseguir alguma luz sobre a verdade. Os estados místicos estabelecem a verdade das emoções teológicas em que a vida dos santos tem a sua raiz? Em que pese ao seu repúdio da autodescrição precisa, os estados místicos em geral manifestam uma tendência teórica assaz distinta. É possível dar o resultado da maior parte deles em termos que apontam para direções filosóficas definidas. Uma dessas direções é o otimismo e a outra, o monismo. Passamos da consciência ordinária para estados místicos como passaríamos de um menos para um mais, de uma pequenez para uma vastidão, de uma agitação para um repouso. Sentimo-los como estados reconciliativos, unificadores. Eles apelam, em nós, mais para a função do sim do que para o do não. Neles o ilimitado absorve os limites e encerra pacificamente a conta. A sua própria negação de todo adjetivo que possamos propor como aplicável à verdade final - Ele, o Eu, o Atman, só deve ser descrito por “Não! não!” dizem os Upanishades{261} -, embora pareça, à superfície, ser uma função do não, é uma negativa feita da parte de um sim mais profundo. Quem quer que chame o Absoluto de qualquer coisa em particular, ou diga que ele é isto, parece implicitamente impedi-lo de ser aquilo - é como se o apoucasse. Portanto, negamos o “isto”, negando a negação que ele nos parece implicar, no interesse da atitude afirmativa mais elevada de que somos possuídos. O manancial do misticismo cristão é Dionísio o Areopagita, que descreve a verdade absoluta exclusivamente por meio de negativas. “A causa de todas as coisas não é a alma nem o intelecto; nem tem imaginação, opinião, ou razão, ou inteligência; nem é razão ou inteligência; não é falado nem pensado. Não é número, nem ordem, nem magnitude, nem pequenez, nem igualdade, nem desigualdade, nem similaridade, nem dissimilaridade. Não está de pé, nem se move, nem descansa. … Não é essência, nem eternidade, nem tempo. Nem o contato intelectual lhe pertence. Não é ciência nem verdade. Não é nem mesmo realeza ou sabedoria; não um; não unidade; não divindade ou bondade; nem sequer espírito qual o conhecemos,” etc., ad libitum.{262} Mas essas qualificações são negadas por Dionísio, não porque a verdade seja menor do que elas, senão porque excele tão infinitamente sobre elas. Está acima delas. É superluzente, superesplendente, superessencial, supersublime, super tudo o que pode ser nomeado. À semelhança de Hegel em sua lógica, os místicos só viajam para o pólo positivo da verdade pela “Methode der Absoluten Negativität”.{263} Surgem assim as expressões paradoxais que tanto abundam nos escritos místicos. Como quando Eckhart fala no sereno deserto da Divindade, “onde nunca se viu diferença, nem Pai, Filho, nem Espírito Santo, onde hão está ninguém em casa, e onde, todavia, a centelha da alma está mais em paz do que em si mesma”.{264} Como quando Boehme escreve sobre o Amor Primevo, que “pode adequadamente comparar-se ao Nada, pois é mais profundo do que qualquer Coisa, e é como nada em relação a todas as coisas, visto que não é compreensível por nenhuma delas. E por ser nada respectivamente, está, portanto, livre de todas as coisas, e é aquele único bem que o homem não pode expressar nem pronunciar o que é, não havendo nada a que se possa comparar, para expressá-lo”.{265} Ou como quando Angelus Silesius canta: Gott ist ein lauter Nichts, ihn rührt kein Nun noch Hier; Je mehr du nach ihm greiffst, je mehr entwind er dir. {266} A este uso dialético, pelo intelecto, da negação como modo de passagem para uma espécie mais elevada de afirmação, corresponde a mais sutil das contrapartes morais na esfera da vontade pessoal. Visto que se verifica na experiência religiosa que a negação do eu finito e de suas necessidades e o ascetismo de alguma espécie são a única porta para a vida mais ampla e mais abençoada, esse mistério moral se entrelaça e combina com o mistério intelectual em todos os escritos místicos. “O amor”, continua Behmen, é Nada, pois “quando tiveres saído inteiramente da Criatura e daquilo que é visível, e te tomares Nada para tudo o que é Natureza e Criatura, estarás naquele eterno Um, que é o próprio Deus, e sentirás dentro de ti a mais alta virtude do Amor …. O tesouro dos tesouros para a alma é quando ela sai do Alguma Coisa para o Nada do qual são feitas todas as coisas. A alma diz aqui, Nada tenho, pois estou inteiramente desvestida e nua; Nada posso fazer, pois não tenho poder algum, mas sou como água derramada; Não sou nada, pois tudo o que sou não passa de uma imagem de Ser, e apenas Deus é para mim EU SOU; e, assim, sentado em meu próprio Nada, dou glória ao Ser eterno, e não quero nada de mim mesmo, para que Deus possa querer tudo em mim, estando em mim meu Deus e todas as coisas.”{267} Na linguagem de Paulo, eu vivo, mas não eu, senão Cristo vive em mim. Só quando me tomo em nada Deus pode entrar, e nenhuma diferença entre sua vida e a minha continua destacada.{268} Essa superação de todas as barreiras usuais entre o indivíduo e o Absoluto é a grande consecução mística. Nos estados místicos nos tomamos um com o Absoluto e nos tomamos conscientes da nossa unicidade. Esta é a perene e triunfante tradição mística, escassamente alterada por diferenças de clima ou credo. No Hinduísmo, no Neoplatonismo, no Sufismo, no misticismo cristão, no Whitmanismo, encontramos sempre a mesma nota, de modo que existo a respeito dos pronunciamentos místicos uma eterna unanimidade que deve fazer o crítico deter-se e pensar, e que faz que os clássicos místicos não tenham, como já se disse, nem dia aniversário nem terra natal. Falando perpetuamente da unidade do homem com Deus, o discurso deles precede as línguas e eles não envelhecem.{269} “Isto és Tu!” dizem os Upanishades, e os Vedantistas ajuntam: “Não uma parte, não um modo de Isto, mas identicamente Isto, o absoluto Espírito do Mundo”. “Assim como a água pura derramada na água pura permanece a mesma, assim, ó Gautama, é o Eu de um pensador que conhece. Água na água, fogo no fogo, éter no éter, ninguém pode distingui-los; igualmente o homem cuja mente entrou no Eu.”{270} “ ‘Todo homem’, diz o sufi Gulshan- Râz, ‘cujo coração já não é sacudido por nenhuma dúvida, conhece com certeza que não há ser exceto apenas Um. … Em sua divina majestade não se encontram o eu, o nós, o tu, pois no Um não pode haver distinção. Todo ser anulado e inteiramente separado de si mesmo ouve ressoar fora dele esta voz e este eco: Eu sou Deus: ele tem um modo eterno de existir e já não está sujeito à morte.’ ”{271} Na visão de Deus, diz Plotino, “o que vê não é a nossa razão, porém alguma coisa anterior e superior à nossa razão. … Aquele que assim vê não vê propriamente, não distingue nem imagina duas coisas. Muda, deixa de ser ele mesmo, nada preserva de si. Absorvido em Deus, é apenas um com ele, como o centro de um círculo que coincide com outro centro”.{272} “Aqui”, escreve Suso, “o espírito morre e, contudo, está todo vivo nas maravilhas da Divindade … e se perde na quietude da ofuscante e gloriosa obscuridade e da nua e simples unidade. É nesse onde sem modo que se encontra a mais alta bem-aventurança.”{273} “Ich bin so gross ais Gott”, canta Angelus Silesius outra vez, “Er ist ais ich so klein; Er kann nicht über mich, ich unter ihm nicht sein.”{274} Na literatura mística se encontram, a cada passo, frases autocontraditórias como “obscuridade ofuscante”, “silêncio murmurante”, “deserto pululante”. Elas provam que o elemento através do qual melhor nos fala a verdade mística não é a fala conceptual, mas antes a música. Muitas escrituras místicas são, com efeito, pouco mais do que composições musicais. “Aquele que quiser ouvir a voz do Nada, ‘o Som sem Som’, e compreendê-la, precisa aprender a natureza da Dhâranâ …. Quando para si mesmo a sua forma parece irreal, como ocorre, ao despertar, com todas as formas que ele vê em sonhos; quando ele deixar de ouvir os muitos, poderá discernir o UM - o som interior que mata o exterior. … Pois então a alma ouvirá, e recordará. E então, para o ouvido interior, falará A VOZ DO SILÊNCIO. … E agora teu Eu perdeu-se no EU, tu mesmo em TU MESMO, fundido naquele EU do qual te irradiaste pela primeira vez. … “Vê! Tu te tomaste a Luz, tu te tomaste o Som, tu és teu Mestre e teu Deus. TU MESMO és o objeto da tua busca: a VOZ não quebrada, que ressoa através das eternidades, isenta da mudança, isenta do pecado, os sete sons em um, a VOZ DO SILÊNCIO. Om tat Sat.”{275} Estas palavras, se não despertarem o riso quando os senhores as lerem, provavelmente lhes tocarão cordas íntimas que a música e a linguagem tangem em comum. A música nos traz mensagens ontológicas que a crítica não-musical é incapaz de contradizer, embora possa rir-se da nossa insensatez por dar-lhes atenção. Há uma orla da mente que essas coisas frequentam; e os sussurros que vêm de lá misturam-se com as operações do nosso entendimento, do mesmo modo que as águas do oceano infinito mandam suas ondas quebrar entre os seixos que jazem sobre nossas praias. “Here begins the sea that ends not till the worlds end. Where we stand, Could we know the next high sea-mark set beyond these waves that gleam, We shouldknow what never man hath known, nor eye of man hath scanned …. Ah, but here maris heart leaps, yearning towards the gloom with venturous glee, From the shore that hath no shore beyond it, set in all the sea.”{276} [“Aqui começa o mar que não acaba enquanto não acaba o mundo. Onde estamos, / Poderíamos conhecer a marca seguinte de alto mar colocada além das ondas que brilham, / Deveríamos saber o que nunca homem soube, nem olhos de homem investigaram. … // Ah, mas aqui o coração do homem salta, ansiando pela sombra com venturoso júbilo, / Da praia que não tem praia além de si, fixada em todo o mar.”] A doutrina, por exemplo, de que a eternidade é infinita, de que a nossa “imortalidade”, se vivemos no eterno, não é tanto futuro quanto já agora e aqui, que encontramos tão amiúde expressa em certos círculos filosóficos, encontra seu apoio num “ouçam, ouçam!” ou num “amém”, que sobe desse nível misteriosamente mais profundo.{277} Reconhecemos as senhas para ingressar na região mística quando as ouvimos, mas nós mesmos não podemos usá-las; só ela tem a guarda da “senha primeva”.{278} Acabei agora de debuxar, com extrema brevidade e insuficiência, mas tão claramente quanto me foi possível no tempo de que dispus, os traços gerais da esfera mística da consciência. Ela é, em conjunto, panteísta e otimista, ou pelo menos o oposto do pessimismo. É anti naturalista e se harmoniza melhor com as almas nascidas duas vezes e com os estados de espírito chamados do outro mundo. Minha tarefa seguinte é indagar se podemos invocá-lo como autoridade. Fornece ele alguma garantia da verdade do renascimento, da sobrenaturalidade e do panteísmo que favorece? Darei minha resposta a essa pergunta da maneira mais concisa que puder. Em suma, minha resposta é esta, e eu a dividirei em três partes: 1. Estados místicos, quando bem desenvolvidos, geralmente são, e têm o direito de sê-lo, autoridades absolutas sobre os indivíduos que os experimentam. 2. Delas não emana autoridade alguma que obrigue os que estão fora a lhes aceitarem as revelações sem nenhuma crítica. 3. Eles quebram a autoridade da consciência não-mística ou racionalista, que se baseia apenas no intelecto e nos sentidos. Mostram que esta não passa de uma espécie de consciência. Abrem a possibilidade de outras ordens de verdade, nas quais, na medida em que alguma coisa em nós responda vitalmente a elas, possamos continuar livremente a ter fé. Examinarei esses pontos um por um. 1 Na verdade, psicologicamente falando, os estados místicos de uma espécie enfática e bem pronunciada são geralmente autoridade para aqueles que os experimentam.{279} Eles estiveram “lá” e sabem. Debalde o naturalismo rosnará contra isso. Se a verdade mística que se revela a um homem se mostra uma força pela qual ele pode viver, que mandato temos nós da maioria para ordenar-lhe que viva de outra maneira? Podemos atirá-lo numa enxovia ou num hospício, mas não podemos alterar-lhe a mente - ria melhor das hipóteses só conseguiremos amarrá-la ainda mais às suas crenças. {280} Na realidade, ela se ri dos nossos maiores esforços e, no terreno da lógica, escapa absolutamente à nossa jurisdição. Nossas crenças mais “racionais” baseiam-se em evidências de natureza exatamente semelhante às que os místicos apresentam como suas. Isto é, nossos sentidos nos deram testemunho de certos estados de fato; mas as experiências místicas são percepções de fato tão diretas para os que as sofrem quanto quaisquer sensações já o foram para nós. Mostram os registros que embora os cinco sentidos estejam latentes nelas, são absolutamente sensacionais em sua qualidade epistemológica, se me perdoarem a expressão bárbara, isto é, são apresentações diretas do que parece existir imediatamente. Em suma, o místico é invulnerável, e precisa ser deixado, quer nos agrade, quer não, no gozo imperturbado do seu credo. A fé, diz Tolstoi, é aquilo por que vivem os homens. E o estado de fé e o estado místico são termos praticamente intercambiáveis. 2 Mas passo agora a acrescentar que os místicos não têm o direito de exigir que aceitemos o veredicto das suas experiências particulares, se nós mesmos formos estranhos e não nos sentirmos chamados a isso. O máximo que podem, algum dia, pedir-nos nesta vida é admitir que eles estabelecem uma presunção. Formam um consenso e têm um resultado inequívoco; e seria estranho, podem dizer os místicos, se um tipo tão unânime de experiência se revelasse de todo em todo falsa. No fundo, todavia, isto seria apenas um apelo aos números, como o apelo do racionalismo em outro sentido; e o apelo aos números não tem força lógica. Se o reconhecermos, reconhecê-loemos por razões “sugestivas”, e não por razões lógicas; seguimos a maioria porque o segui-la convém à nossa vida. Mas até a presunção da unanimidade dos místicos está longe de ser forte. Receio que, ao caracterizar os estados místicos como panteístas, otimistas, etc., supersimplifiquei a verdade. Fi-lo por razões expositivas, e para manter-me mais próximo da tradição mística clássica. Impende agora confessar que o misticismo religioso clássico é apenas um “caso privilegiado”. É um extraio, que se mantém fiel ao tipo pela seleção dos espécimes mais aptos e sua preservação em “escolas”. É tirado de uma massa muito maior; e se levarmos a massa maior tão a sério quanto o misticismo religioso se tem levado a sério historicamente, verificamos que a suposta unanimidade desaparece em grande parte. Para começar, até o misticismo religioso, o tipo que acumula tradições e faz escolas, é muito menos unânime do que afirmei. Tem sido, ao mesmo tempo, ascético e antinomicamente indulgente consigo mesmo dentro da igreja cristã.{281} É dualista no Sankhya e monista na filosofia vedantina. Chamei-lhe panteísta; mas os grandes místicos espanhóis são tudo menos panteístas. São, com poucas exceções, mentes não-metafísicas, para as quais “a categoria da personalidade” é absoluta. A “união” do homem com Deus, para eles, é muito mais um milagre ocasional do que uma identidade original.{282} Quão diferente, abstraindo da felicidade comum a todos, é o misticismo de Walt Whitman, de Edward Carpenter, de Richard Jefferies, e de outros panteístas naturalísticos, da espécie mais distintivamente cristã.{283} O fato é que o sentimento místico de alargamento, união e emancipação não tem nenhum conteúdo intelectual específico próprio. É capaz de formar alianças matrimoniais com material fornecido pelas mais diversas filosofias e teologias, contanto apenas que estas encontrem um lugar na sua estrutura para o estado de espírito emocional particular dele. Não temos, portanto, o direito de invocar-lhe o prestígio tão distintamente em favor de qualquer crença especial, como o idealismo absoluto, ou a identidade monística absoluta, ou a bondade absoluta do mundo. É apenas relativamente em favor de todas essas coisas - transcende a consciência humana comum na direção em que elas se encontram. Isso quanto ao misticismo religioso propriamente dito. Mas há ainda muita coisa para se dizer, pois o misticismo religioso é apenas uma metade do misticismo. A outra metade não tem tradições acumuladas, exceto as fornecidas pelos manuais de psiquiatria. Abram os senhores qualquer um deles e encontrarão casos abundantes em que são citadas “idéias místicas” como sintomas característicos de estados de espírito enfraquecidos ou delirantes. Na paranóia, como às vezes lhe chamam, podemos ter um misticismo diabólico, uma espécie de misticismo religioso virado do avesso. O mesmo sentido de importância inefável nos menores eventos, os mesmos textos e palavras que chegam com novos significados, as mesmas vozes, visões, direções e missões, o mesmo controle exercido por poderes estranhos; só que, desta vez, a emoção é pessimista: em lugar de consolações temos desolações; os significados são medonhos; e os poderes são inimigos da vida. É evidente que, do ponto de vista do mecanismo psicológico deles, o misticismo clássico e esses misticismos inferiores emergem do mesmo nível mental, da grande região subliminal ou transmarginal cuja existência a ciência está começando a admitir, mas sobre a qual, na verdade, tão pouco se sabe. Essa região contém todo o gênero de matéria: “o serafim e a serpente” moram ali lado a lado. Derivar dali não é nenhuma credencial infalível. O que deriva precisa ser peneirado e posto à prova, e sofrer o confronto com o contexto total da experiência, exatamente como o que vem do mundo exterior dos sentidos. Seu valor há de ser determinado por métodos empíricos, enquanto nós mesmos não formos místicos. Mais uma vez, portanto, repito que aos não-místicos não corre nenhuma obrigação de reconhecer nos estados místicos uma autoridade superior conferida a eles por sua natureza intrínseca.{284} 3 Entretanto, volto a repetir, a existência de estados místicos derruba a pretensão de que os estados não-místicos são os únicos e supremos ditadores do que podemos acreditar. Em regra geral, os estados místicos apenas acrescentam um sentido supersensorial aos dados externos ordinários da consciência. São excitações como as emoções do amor e da ambição, dons feitos ao nosso espírito, por cujo intermédio fatos que já estão objetivamente diante de nós encontram nova expressividade e fazem nova conexão com a nossa vida ativa. Eles não contradizem esses fatos como tais, nem negam coisa alguma que os nossos sentidos apreenderam imediatamente.{285} É antes o crítico racionalista que representa o papel do negador na controvérsia, e suas negações não têm força, pois nunca poderá haver um estado de fatos aos quais não se possa acrescentar verdadeiramente um novo significado, com a condição de que a mente suba a um ponto de vista mais envolvente. É preciso que sempre permaneça em aberto a questão de saber se os estados místicos não podem ser esses pontos de vista superiores, janelas através das quais a mente olha para um mundo mais extenso e abrangente. A diferença das vistas percebidas das várias janelas místicas não nos impede de acalentar essa suposição. O mundo mais amplo, nesse caso, provaria que tem uma constituição mista como a deste mundo, mais nada. Teria as suas regiões celestiais e infernais, seus momentos de tentação e salvação, suas experiências válidas e forjadas, precisamente como as tem o nosso mundo; mas seria um mundo mais vasto do mesmo jeito. Teríamos de usar as suas experiências escolhendo, subordinando e substituindo, exatamente como costumamos fazer neste mundo naturalístico comum; estaríamos sujeitos ao erro como estamos agora; entretanto, a inclusão desse mundo mais amplo de significados e o trato sério com ele, apesar de toda a perplexidade, podem ser estádios indispensáveis do nosso enfoque da plenitude final da verdade. Creio que devemos deixar o assunto neste ponto. Os estados místicos, de feito, não exercem nenhuma autoridade pelo simples fato de serem estados místicos. Mas os mais altos dentre eles apontam em direções para as quais se inclinam os sentimentos religiosos até de homens não-místicos. Eles falam de supremacia do ideal, de vastidão, de união, de segurança e de repouso. Oferecem-nos hipóteses, hipóteses que podemos pôr de lado voluntariamente, mas que, como pensadores, não podemos transpor. O supernaturalismo e o otimismo que eles gostariam de incutir-nos, interpretados de um modo ou de outro, podem ser, afinal de contas, a mais verdadeira das visões interiores do significado desta vida. “Oh, um pouco mais, e quão grande é ele; e um pouco menos, e quantos mundos desaparecem!” Pode ser que a possibilidade e a permissão desse tipo sejam tudo o que a consciência religiosa exija para viver. Em minha última conferência tentarei persuadi-los de que este é o caso. Nesse ínterim, contudo, estou certo de que para muitos dos meus leitores essa dieta é demasiado exígua. Se o supernaturalismo e a união interior com o divino são verdadeiros, acreditam os senhores, então se deverá encontrar menos permissão do que compulsão para acreditar. A filosofia sempre professou provar a verdade religiosa com argumentos coercivos; e a construção de filosofias dessa espécie sempre foi uma função favorita da vida religiosa, se usarmos esse termo no amplo sentido histórico. Mas a filosofia religiosa é um assunto enorme e, em minha próxima conferência, só poderei dar-lhe a breve vista de olhos que meus limites me permitirem. XVIII Conferência FILOSOFIA O tema da Santidade deixou-nos frente a frente com a pergunta: O senso da presença divina é o senso de alguma coisa objetivamente verdadeira? Voltamo-nos primeiro para o misticismo à cata de uma resposta e descobrimos que, embora inteiramente disposto a corroborar a religião, o misticismo é tão particular (e também tão variado) em suas manifestações que não pode reivindicar uma autoridade universal. Mas a filosofia publica resultados que afirma serem universalmente válidos, se é que têm algum valor de modo que agora formulamos a nossa pergunta à filosofia. Pode a filosofia garantir a veracidade do senso do divino de um homem religioso? Imagino que muitos dos senhores, neste ponto, começarão a tentar adivinhar a meta para a qual me dirijo. Dizem que solapei a autoridade do misticismo, e que a próxima coisa que farei será, provavelmente, tentar desacreditar a da filosofia. E esperam que eu conclua dizendo que a religião nada mais é que um negócio de fé, baseado ou num vago sentimento ou naquele vivido sentido da realidade das coisas invisíveis, das quais dei tantos exemplos em minha segunda conferência e na conferência sobre o Misticismo. A religião é essencialmente privada e individualista; sempre excede nossos poderes de formulação; e, conquanto as tentativas de verter seu conteúdo hum molde filosófico provavelmente continua sempre, sendo os homens o que são, tais tentativas, no entanto, serão sempre processos secundários que de maneira alguma acrescentam a autoridade, nem garantem a veracidade dos sentimentos dos quais derivam seu próprio estímulo e dos quais tomam emprestado o brilho de convicção, seja ele qual for, que possam possuir. Em resumo, os senhores estão pensando que tenciono defender o sentimento às expensas da razão, reabilitar o primitivo e o irrefletido e desconvencê-los da esperança de alguma Teologia digna desse nome. Devo admitir que os senhores, até certo ponto, adivinharam certo. Acredito que o sentimento é a fonte mais profunda da religião e que as fórmulas filosóficas e teológicas são produtos secundários, como as traduções de um texto para outra língua. Mas todos esses enunciados são enganosos na sua brevidade e precisarei da hora inteira de que disponho para explicar-lhes exatamente o que quero dizer. Quando chamo às fórmulas teológicas produtos secundários, quero dizer que, num mundo em que jamais existisse o sentimento religioso, duvido que pudesse ter sido estruturada alguma vez qualquer teologia filosófica. Duvido que a contemplação intelectual desapaixonada do universo, independentemente da infelicidade interior e da necessidade de libertação, de um lado, e da emoção mística, de outro, pudesse ter resultado em filosofias religiosas tais como as que ora possuímos. Os homens teriam começado com explicações animísticas do fato natural, depois as teriam eliminado à força de críticas, substituindo-as por explicações científicas, conto realmente fizeram. Na ciência, teriam deixado certo montante de “pesquisa psíquica”, exatamente como agora terão, provavelmente, de readmitir alguma quantidade. Mas não teriam motivo para aventurar-se a especulações pretensiosas, como as da teologia dogmática ou idealista, não sentindo necessidade de comerciar com essas divindades! A mim me parece que tais especulações devem ser classificadas como super-crenças, construções levadas a cabo pelo intelecto em direções para as quais, originalmente, o sentimento as empurrava. Mas se até a filosofia religiosa precisou ter o seu primeiro impulso dado pelo sentimento, não poderia ela ter lidado de maneira superior com a questão sugerida pelo sentimento? O sentimento é pessoal e mudo, e incapaz de prestar contas de si mesmo. Permite que seus resultados sejam mistérios e enigmas, nega-se a justificá-los racionalmente e, em certas ocasiões, dispõese até a deixar que eles passem por paradoxais e absurdos. A filosofia assume exatamente a atitude oposta. Aspira a resgatar do mistério e do paradoxo o território, seja ele qual for, que toca! O ideal mais caro ao intelecto sempre foi encontrar uma saída da persuasão pessoal obscura e caprichosa que leve à verdade objetivamente válida para todos os homens que pensam. Redimir a religião do exclusivismo insalubre, e dar status público e direito universal de passagem às suas mensagens tem sido a tarefa da razão. Acredito que a filosofia terá sempre a oportunidade de executar essa tarefa.{286} Somos seres pensantes e não podemos proibir o intelecto de participar de nenhuma de nossas funções. Até soliloquiando construímos intelectualmente nossos sentimentos. Tanto nossos ideais pessoais quanto nossas experiências religiosas e místicas precisam ser interpretados harmoniosamente com o tipo de cenário que a nossa mente pensante habita. O clima filosófico do nosso tempo nos força inevitavelmente a usar os seus trajos. Além disso, precisamos permutar nossos sentimentos uns com os outros e, ao fazê-lo, temos de falar e usar fórmulas verbais gerais e abstratas. Concepções e construções são, assim, parte necessária da nossa religião; e na qualidade de moderadora no meio do choque das hipóteses, e na qualidade de mediadora entre as críticas das construções de um homem feitas por outro, a filosofia terá sempre muito que fazer. Seria estranho que eu o contestasse, quando estas mesmas conferências (como os senhores verão mais claramente daqui por diante) nada mais são que um tentativa laboriosa de extrair das intimidades da experiência religiosa alguns fatos gerais capazes de ser definidos por meio de fórmulas a cujo respeito todos podem concordar. A experiência religiosa, em outras palavras, gera espontânea e inevitavelmente mitos, superstições, dogmas, credos, teologias metafísicas e críticas de um grupo delas pelos adeptos de outro. Há pouco se tomaram possíveis classificações e comparações imparciais, juntamente com as denúncias e anátemas que costumavam dirigir exclusivamente o comércio entre os credos. Temos os primórdios de uma chamada “Ciência das Religiões”; e se estas conferências pudessem ser consideradas uma minúscula contribuição para essa ciência, eu me daria por muito satisfeito. Mas todas essas operações intelectuais, sejam elas construtivas ou comparativas e críticas, pressupõem experiências imediatas como seu tema. São operações interpretativas e indutivas, operações após o fato, consequentes do sentimento religioso, não coordenadas com ele, não independentes do que ele determina. O intelectualismo na religião, que desejo desacreditar, pretende ser algo de todo em todo diferente disso. Presume construir objetos religiosos somente com os recursos da razão lógica, ou da razão lógica que saca inferências rigorosas de fatos não-subjetivos. Chama às suas conclusões teologia dogmática, ou filosofia do absoluto, conforme o caso; não lhes chama ciência das religiões. Alcança-as de maneira apriorística, e asseguralhas a veracidade. Os sistemas garantidos sempre foram os ídolos de almas que têm aspirações. Oniabrangentes, mas simples; nobres; limpos, luminosos, estáveis, rigorosos, verdadeiros; que melhor refugio poderia haver do que o que um sistema desse gênero ofereceria a espíritos irritados pelo turvamento e acidentalidade do mundo das coisas sensíveis? De acordo com isso, encontramos inculcado nas escolas teológicas de hoje, quase tanto quanto nas do passado, um desdém pela verdade meramente possível ou provável, e pelos resultados que apenas a certeza pessoal pode apreender. Assim escolásticos como idealistas exprimem esse desdém. John Caird, por exemplo, escreve o seguinte em sua Introdução à Filosofia da Religião: “A religião precisa ser, com efeito, uma coisa do coração; mas para ele- vá-la da região do capricho e da fantasia subjetivas, e para distinguir entre o que é verdadeiro e falso em religião, precisamos apelar para uma padrão objetivo. Aquilo que entra no coração precisa, primeiro, ser discernido pela inteligência como verdadeiro. Precisa ser visto como se tivesse em sua própria natureza^ direito de dominar o sentimento e de constituir o princípio pelo qual o sentimento tem de ser julgado.{287} Ao avaliar o caráter religioso de indivíduos, nações ou raças, a primeira pergunta que se há de fazer não é o que eles sentem, senão o que pensam e acreditam - não se a sua é uma religião que se manifesta por emoções, mais ou menos veementes e entusiásticas, mas quais são as concepções de Deus e das coisas divinas pelas quais essas emoções são provocadas. O sentimento é necessário na religião, mas é pelo conteúdo, base inteligente de uma religião, e não pelo sentimento, que o seu caráter e o seu valor hão de ser determinados.”{288} Em sua obra, A Idéia de uma Universidade, o Cardeal Newman dá uma expressão ainda mais enfática a esse desdém pelo sentimento.{289} A teologia, diz ele, é uma ciência no sentido mais estrito da palavra. Eu lhes direi, continua ele, o que ela não é - não é “evidências físicas” de Deus, não é “religião natural”, pois estas são vagas interpretações subjetivas: “Se”, prossegue ele, “o Ser Supremo é poderoso ou habilidoso, apenas como o telescópio mostra poder, ou como o microscópio mostra habilidade; se a sua lei moral deve ser determinada simplesmente pelos processos físicos da estrutura animal, ou a sua vontade medida pelos efeitos imediatos dos assuntos humanos; se a sua Essência é apenas tão alta, profunda e vasta quanto o universo, e não mais; a ser assim, confessarei que não existe ciência específica de Deus, que a teologia não passa de um nome, e que um protesto em seu nome é hipocrisia. Nesse caso, por mais piedoso que seja pensar n’Ele, enquanto passa o cortejo das experiências ou do raciocínio abstrato, essa piedade nada mais é que uma poesia do pensamento, um ornamento da linguagem, uma visão da Natureza, assim como falamos na filosofia ou no romance da história, ou na poesia da infância, ou no pitoresco, no sentimental, no humorístico, ou em qualquer outra qualidade abstrata que o gênio ou o capricho do indivíduo, ou a moda do dia, ou o consentimento do mundo, reconhece em qualquer série de objetos sujeitos à sua contemplação. Não vejo muita diferença entre confessar que não há Deus e insinuar que nada definido se pode conhecer com certeza a respeito d’Ele.” O que quero dizer com Teologia, continua Newman, não é nenhuma dessas coisas: “Quero dizer simplesmente a Ciência de Deus, ou as verdades que conhecemos tocantes a Deus, colocadas num sistema, assim como temos uma ciência das estrelas e a denominamos astronomia, ou da crosta da terra e a cognominamos geologia”. Em ambos esses passos temos a questão colocada claramente diante de nós: O sentimento válido apenas para o indivíduo é contrastado com a razão válida universalmente. O critério é um critério de fato assaz claro. A teologia baseada na razão pura, em verdade, deve convencer os homens universalmente. Se o não fizesse, em que consistiria a sua superioridade? Se apenas formasse seitas e escolas, do mesmo modo que as formam o sentimento e o misticismo, como cumpriria ela o seu programa de libertarnos do capricho e da fantasia pessoais? Essa prova prática perfeitamente definida das pretensões da filosofia de escorar a religião numa razão universal simplifica hoje o meu procedimento. Não preciso desacreditar a filosofia com a crítica laboriosa dos seus argumentos. Bastar-me-á mostrar que, do ponto de vista histórico, ela não consegue provar sua pretensão de ser “objetivamente” convincente. De fato, a filosofia falha nesse sentido. Não elimina diferenças: funda escolas e seitas do mesmo modo que o faz o sentimento. Acredito, a bem dizer, que a razão da lógica do homem opera no campo da divindade como sempre operou no do amor, ou do patriotismo, ou da política, ou em qualquer outro dos mais amplos negócios da vida, em que nossas paixões ou nossas intuições místicas fixam nossas crenças de antemão. Encontra argumentos para a nossa convicção, pois, de feito, precisa encontrá-los. Amplia e define a nossa fé, dignifica-a e empresta-lhe palavras e plausibilidade. Escassamente alguma vez a engendra; não pode agora assegurá-la.{290} Concedam-me a sua atenção enquanto leio alguns pontos da teologia sistemática mais antiga. Os senhores os encontrarão tanto nos manuais protestantes quanto nos católicos e, sobretudo, nos inumeráveis compêndios publicados depois que a Encíclica do Papa Leão recomendou o estudo de Santo Tomás. Dou uma espiada primeiro nos argumentos pelos quais a teologia dogmática estabelece a existência de Deus e, depois, naqueles pelos quais ela lhe estabelece a natureza.{291} Os argumentos em favor da existência de Deus resistiram por centenas de anos às ondas da crítica incrédula arremessadas contra eles, sem nunca desacreditá-los totalmente aos ouvidos dos fiéis, mas, de um modo geral, lavando lenta e seguramente a argamassa existente entre as suas juntas. Se os senhores já têm um Deus em quem acreditam, esses argumentos os confirmam na sua fé. Se os senhores são ateus, eles não conseguirão reconduzi-los ao bom caminho. As provas são várias. A chamada “cosmológica” raciocina a partir da contingência do mundo a uma Primeira Causa que precisa conter todas as perfeições que o próprio mundo contém. O “argumento da finalidade” raciocina a partir do fato que as leis da natureza são matemáticas, e que suas partes são benevolentemente adaptadas umas às outras, pára afirmar que essa causa é benevolente e intelectual. O “argumento moral” é que a lei moral pressupõe um legislador. O argumento “ex consensu gentium” é que a crença em Deus está tão difundida que se fundamenta na natureza racional do homem e deveria, portanto, trazer autoridade consigo. Como acabo de dizer, não discutirei esses argumentos tecnicamente. O simples fato de que todos os idealistas, desde Kant, se sentiram autorizados a desdenhá-los ou desprezá-los mostra que eles não são tão sólidos que sirvam de fundação auto-suficiente da religião. Razões absolutamente impessoais teriam por obrigação mostrar maior força de convencimento. A causação, na verdade, é um princípio demasiado obscuro para suportar o peso de toda a estrutura da teologia. Quanto ao argumento da finalidade, vejam como as idéias de Darwin o revolucionaram. Concebidas como agora a concebemos, como outras fugas bem-afortunadas de processos quase ilimitados de destruição, as adaptações benevolentes que encontramos na Natureza sugerem uma divindade muito diferente daquela que figurava nas primeiras versões do argumento.{292} O fato é que esses argumentos apenas seguem as sugestões combinadas dos fatos e do nosso sentimento. A rigor, nada provam. Somente corroboram nossas parcialidades preexistentes. Se a filosofia tão pouco pode fazer para provar a existência de Deus, em que pé está ela em seus esforços para definir-lhe os atributos? Vale a pena olhar para as tentativas da teologia sistemática nesse sentido. Visto que Deus é a Primeira Causa, diz esta ciência das ciências, ele difere de todas as suas criaturas por possuir existência a se. Desta existência a se de Deus, a teologia deduz, só com a ajuda da lógica, a maior parte das suas outras perfeições. Por exemplo, é preciso que ele seja necessário e absoluto, não pode não ser e não pode, de maneira alguma, ser determinado por nada mais. Isto O faz absolutamente ilimitado do exterior e ilimitado também do interior; pois a limitação é o não-ser; e Deus é o próprio ser. A condição de ilimitado faz Deus infinitamente perfeito. Além disso, Deus é Um e Único, pois o infinitamente perfeito não pode admitir um par. É Espiritual, pois se fosse composto de partes físicas, algum outro poder teria precisado combiná-las no total e a sua existência a se estaria assim contraditada. Ele é, portanto, de natureza simples e não-física. É também simples metafisicamente, ou seja, sua natureza e sua existência não podem ser distintas, como o são nas substâncias finitas que compartem das suas naturezas formais umas com as outras, e só são individuais no aspecto material. Já que Deus é um e único, sua essência e seu ser precisam ser dados de um golpe. Isso exclui do seu ser todas essas distinções, tão familiares no mundo das coisas finitas, entre a potencialidade e a realidade, substância e acidentes, ser e atividade, existência e atributos. É verdade que podemos falar dos poderes, dos atos e dos atributos de Deus, mas tais discriminações são apenas “virtuais”, e feitas do ponto de vista humano. Em Deus todos esses pontos de vista caem numa absoluta identidade de ser. A ausência de toda a potencialidade em Deus O obriga a ser imutável. Ele é completamente realidade. Se houvesse n’Ele alguma coisa potencial, Ele perderia ou ganharia com essa realização, e tanto a perda quanto o ganho lhe contradiriam a perfeição. Ele, portanto, não pode mudar. De mais a mais, Ele é imenso, sem limites; pois se pudesse ser desenhado no espaço, seria composto, e isso lhe contradiria a indivisibilidade. Ele é portanto, onipresente, está indivisivelmente em cada ponto do espaço. Da mesma maneira, Ele está inteiramente presente em todos os pontos do tempo - em outras palavras, é eterno. Pois, se Ele tivesse começado no tempo, teria necessitado de uma causa anterior, e isso lhe contradiria a existência a se. Se Ele acabasse, contradiria a sua necessidade. Se Ele passasse por qualquer sucessão, estaria contradizendo a sua imutabilidade. Ele tem inteligência e vontade todas as demais perfeições da criatura, pois nós as temos, e effectus nequit supefare causam. N’Ele, entretanto, elas estão absoluta e eternamente em ato, e o seu objeto, uma vez que Deus não pode ser ligado por nada que seja externo, não pode, em primeiro lugar, ser nada mais do que o próprio Deus. Ele se conhece, portanto, num ato eterno e indivisível, e quer-se a si próprio com infinito autoprazer.{293} Visto que Ele precisa, por necessidade lógica, amar-se e querer-se assim, não pode ser chamado “livre” ad intra, com a liberdade das contrariedades que caracteriza as criaturas finitas. Ad extra, porém, ou com respeito à sua criação, Deus é livre. Ele não pode dever criar, já sendo perfeito em seu ser e em felicidade. Ele quer criar, portanto, com liberdade absoluta. Sendo assim uma substância dotada de intelecto, vontade e liberdade, Deus é uma pessoa; e também uma pessoa viva, pois Ele é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito da própria atividade, e o sê-lo distingue os vivos dos sem-vida. Ele é assim absolutamente autosuficiente o seu conhecimento e o seu amor de si mesmo, ambos infinitos e adequados, não necessitam de condições estranhas que os aprimorem. Ele é onisciente, pois, conhecendo-se como Causa, conhece todas as coisas e eventos da criatura por implicação. Seu conhecimento é previsivo, visto que Ele está presente a todos os tempos. Até os nossos atos são conhecidos de antemão por Ele, pois, de outra maneira, sua sabedoria admitiria momentos sucessivos de enriquecimento, e isso lhe contraria a imutabilidade. Ele é onipotente para tudo aquilo que não envolva contradição lógica. Ele pode fazer o ser - em outras palavras, seu poder inclui a criação. Se o que Ele cria fosse feito da sua própria substância, teria de ser infinito na essência, como o é aquela substância; mas é finito; por isso precisa ser nãodivino em substância. Se o criado fosse feito de uma substância, uma matéria eternamente existente, por exemplo, que Deus tivesse encontrado ali à mão, e à qual Ele houvesse dado forma, isso contradiria a definição de Deus como Primeira Causa e faria d’Ele um simples movedor de algo já causado. As coisas que Ele cria, portanto, cria-as ex nihilo, e dá-lhes ser absoluto como outras tantas substâncias finitas adicionais à sua. As formas que Ele imprime nelas têm os seus protótipos nas suas idéias. Mas como em Deus não existe multiplicidade, e como essas idéias para nós são múltiplas, precisamos distinguir as idéias quais estão em Deus e o modo com que nossas mentes as imitam externamente. Precisamos atribuí-las a Ele somente num sentido terminativo, como aspectos diferentes, do ponto de vista finito, da sua essência única. Está visto que Deus é santo, bom e justo. Não pode fazer o mal, pois Ele é a plenitude positiva do ser, e o mal é a negação. É verdade que Ele criou o mal físico em alguns lugares, mas apenas como meio de um bem amplo, pois bonum totius proeminet bonum partis. Ele não pode querer o mal moral, nem como fim nem como meio, pois isso lhe contradiria a santidade. Criando seres livres, Ele tão-só o permite, uma vez que nem a sua justiça nem a sua bondade o obrigam a impedir que os recebedores da liberdade façam mau uso da dádiva. No que tange ao propósito de Deus no criar, primeiro que tudo, só pode ter sido para exercitar sua liberdade absoluta pela manifestação a outros de sua glória. Disso se segue que os outros precisam ser seres racionais, capazes, em primeiro lugar, de conhecimento, amor e honra e, em segundo lugar, de felicidade, já que o conhecimento e o amor de Deus são a fonte da felicidade. Destarte, podemos dizer que o propósito secundário de Deus ao criar é o amor. Não os cansarei levando mais longe essas determinações metafísicas, até os ministérios da Trindade de Deus, por exemplo. O que dei servirá como espécime da teologia filosófica ortodoxa assim de católicos como de protestantes. Cheio de entusiasmo diante da lista de perfeições de Deus, Newman continua o trecho que comecei a citar-lhes com um par de páginas de tão magnífica retórica que mal posso deixar acrescentar, apesar da invasão que elas fariam no nosso tempo.{294} Ele primeiro enumera, sonoramente, os atributos de Deus, depois celebra-lhe a posse de quanto existe na terra e no Céu, e a dependência de tudo o que acontece da sua vontade permissiva. Dá- nos uma filosofia escolástica “tocada de emoção”, e toda filosofia deveria ser tocada de emoção a fim de ser corretamente compreendida. Emocionalmente, portanto, a teologia dogmática vale alguma coisa para mentes do tipo da de Newman. Ajudar-nos-á a aquilatar-lhe o valor intelectual a breve digressão que farei neste ponto. O que Deus juntou, que o homem não separe. As escolas continentais de filosofia passaram por alto, com excessiva frequência, o fato de estar o pensamento do homem organicamente ligado ao seu comportamento. A mim me parece que a glória maior dos pensadores ingleses e escoceses consiste em não ter perdido de vista essa conexão orgânica. O princípio diretor da filosofia britânica tem sido, de feito, o seguinte: toda diferença precisa fazer uma diferença, toda diferença teórica resulta, em algum lugar, numa diferença prática, e o melhor método de discutir pontos de teoria é começar a averiguar a diferença prática que resultaria de ser verdadeira uma outra alternativa. Como é conhecida a verdadeira particular em tela? Em que fato resulta ela? Qual é o seu valor prático em função da experiência pessoal? Essa é a maneira inglesa característica de abordar uma questão. Dessa forma, como os senhores estão lembrados, Locke examina a questão da identidade pessoal. O que pretendemos significar com isso é apenas a nossa corrente de lembranças pessoais, diz ele. Esta é a única parte concretamente verificável do seu significado. Todas as outras idéias a respeito dela, como a unicidade ou a multiplicidade da substância espiritual em que ela se baseia são, portanto, vazias de sentido inteligível; e as proposições tocantes a tais idéias podem ser indiferentemente afirmadas ou negadas. Assim o faz Berkeley com a sua “matéria”. O valor prático da matéria são as nossas sensações físicas. Isso é tudo o que conhecemos dela, tudo o que concretamente verificamos de sua concepção. Isso, portanto, é todo O significado do termo “matéria” qualquer outro pretenso significado não passa de simples jogo de palavras. Hume faz o mesmo com a causação, conhecida como antecedência habitual e como tendência de nossa parte a esperar que aconteça alguma coisa definida. Tirante esse significado prático, ela não tem significação alguma, e os livros que a versam podem ser lançados às chamas, diz Hume. Dugald Stewart e Thomas Brown, James Mill, John Mill e o professor Bain têm seguido, mais ou menos sistematicamente, o mesmo método; e Shadworth Hodgsen utilizou o princípio com explicitude total. Quando tudo tiver sido dito e feito, ver-seá que foram autores ingleses e escoceses, e não Kant, os introdutores “do método crítico” na filosofia, o único método apropositado para fazer da filosofia um estudo digno de homens sérios. Pois que seriedade poderá sobejar do debate de proposições filosóficas que nunca farão uma diferença apreciável para nós na ação? E que importância teria, se todas as proposições fossem praticamente indiferentes, concordamos em qualificar de falsa ou verdadeira esta ou aquela? Um filósofo americano de muita originalidade, o Sr. Charles Sanders Peirce, prestou um serviço ao pensamento desenredando das particularidades da sua aplicação o princípio pelo qual esses homens eram instintivamente conduzidos, escolhendo-o como fundamental e dando-lhe um nome grego. Ele chama-lhe o princípio do pragmatismo, e defende-o, mais ou menos, desta maneira:{295} O pensamento em movimento tem por único motivo concebível o atingimento da crença, ou o pensamento em repouso. Somente quando encontrar o seu repouso na crença, o nosso pensamento sobre um assunto pode encetar com firmeza e segurança a nossa ação sobre o assunto. As crenças, em suma, são regras de ação; e toda a função do pensamento cifra-se num passo na produção de hábitos ativos. Se alguma parte de um pensamento não fizesse diferença nas suas consequências práticas, não seria um elemento apropriado da sua significação. Para desenvolver um significado do pensamento só precisamos, portanto, determinar a conduta que ele está apto a produzir; essa conduta é para nós a sua única significação; e o fato tangível na raiz de todas as distinções do nosso pensamento é não haver nenhuma delas tão sutil que consista em alguma coisa não seja uma possível diferença de prática. Para atingir perfeita clareza em nossos pensamentos sobre um objeto, basta- nos, pois, considerar as sensações, imediatas ou remotas, que teremos concebivelmente de esperar dele, e a conduta que devemos preparar no caso de ser verdadeiro o objeto. A nossa concepção dessas consequências práticas é para nós a nossa concepção total do objeto, na medida em que tal concepção tem alguma significação positiva. Esse é o princípio de Peirce, o princípio do pragmatismo. Um princípio desse gênero nos ajudará nesta ocasião a decidir, entre os vários atributos registrados no inventário escolástico das perfeições de Deus, se alguns não são muito menos significativos do que outros. Isto é, se aplicarmos o princípio do pragmatismo aos atributos metafísicos de Deus, rigorosamente assim chamados, enquanto distintos dos seus atributos morais, creio que, embora uma lógica coerciva nos forçasse a acreditar neles, ainda teríamos de confessar que eles careciam de toda significação inteligível. Tomemos a existência a se de Deus, por exemplo; ou a sua necessidade; sua imaterialidade; sua “simplicidade” ou superioridade sobre a espécie de variedade e sucessão interiores que encontramos em seres finitos, sua indivisibilidade, e a falta das distinções internas de ser e atividade, substância e acidente, potencialidade e realidade, e o resto; seu repúdio à inclusão num gênero; sua infinidade realizada; sua “personalidade”, independentemente das qualidades morais que ela possa comportar; o serem permissivas e não positivas suas relações com o mal; sua auto-suficiência, seu amor de si próprio e sua absoluta felicidade em si mesmo: falando francamente, de que maneira qualidades como estas podem estabelecer alguma conexão definida com a nossa vida? E se elas separadamente não exigem adaptações distintivas da nossa conduta, que diferença vital poderá fazer para a religião de um homem o serem verdadeiras ou falsas? De minha parte, se bem me desagrade dizer alguma coisa que possa arranhar temas associações, devo confessar com franqueza que, conquanto esses atributos fossem impecavelmente deduzidos, não posso conceber que tenha a menor importância para nós, sob o aspecto religioso, que qualquer um deles seja verdadeiro. Digam-me, por favor, que ato específico posso executar a fim de melhor me adaptar à simplicidade de Deus? Ou como me ajuda a planear o meu comportamento a saber que a sua felicidade, de qualquer maneira, é absolutamente completa? No meio do século que acaba de passar, Mayne Reid era o maior escritor de livros de aventuras ao céu aberto. Estava sempre exaltando os caçadores e observadores de campo dos hábitos de animais vivos, e guardando uma barragem de invectivas contra os “naturalistas de gabinetes”, como lhes chamava, os coletores, classificadores e manuseadores de esqueletos e peles. Quando eu era menino, costumava pensar que um naturalista de gabinete havia de ser o tipo mais vil e abjeto debaixo do sol. Mas os teólogos sistemáticos são, sem dúvida, os naturalistas de gabinete da divindade, no mesmo sentido do Capitão Mayne Reid. Que é a dedução feita por eles dos atributos metafísicos senão um baralhar e arrumar de adjetivos pedantes de dicionário, alheia à moral, alheia à moral, alheia às necessidade humanas, alguma coisa que pudesse ser resolvida a partir da palavra “Deus” por uma das tais máquinas lógicas de madeira e latão que a recente engenhosidade inventou, tão bem como se fosse por um homem de carne e sangue. Eles têm a cauda da serpente sobre si. Sentimos que, nas mãos dos teólogos, não passam de uma sucessão de títulos obtidos pela manipulação mecânica de sinônimos; o verbalismo ocupou o espaço da visão, o profissionalismo o da vida. Em vez de pão temos pedra; em vez de peixe, cobra. Ainda que semelhante conglomerado de termos abstratos desse realmente a essência do nosso conhecimento da divindade, e as escolas de teologia pudessem, de fato, continuar a florescer, a religião, a religião vital, teria alçado vôo deste mundo. O que a mantém viva é alguma coisa diferente das definições abstratas e sistemas de adjetivos concatenados, alguma coisa diferente das faculdades de teologia e seus professores. Todas essas coisas são efeitos subsequentes, acreções secundárias aos fenômenos de coversação vital com o divino invisível, renovando-se in saecula saeculorwn nas vidas de humildes homens particulares. Isso quanto aos atributos metafísicos de Deus! Do ponto de vista da religião prática, o monstro metafísico que eles oferecem ao nosso culto é uma invenção da mente erudita absolutamente sem valor. Que diremos agora dos atributos ditos morais? Pragmaticamente, eles estão numa posição de todo diversa. Determinam de modo positivo o medo, a esperança e a expectativa, e são alicerces da vida santa. Basta um olhar dirigido a eles para perceber-lhes a grandeza da significação. A santidade de Deus, por exemplo: sendo santo, Deus só pode querer o bem. Sendo onipotente, pode assegurar-lhe o triunfo. Sendo onisciente, pode ver-nos no escuro. Sendo justo, pode punir-nos pelo que vê. Sendo amante, também pode perdoar. Sendo inalterável, contamos com ele seguramente. Essas qualidades entram em conexão com a nossa vida e é importantíssimo que sejamos informados a seu respeito. Que o propósito de Deus na criação deva ser a manifestação da sua glória é também um atributo que tem relações definidas com a nossa vida prática. Entre outras coisas, imprimiu um caráter definido ao culto em todos os países cristãos. Se a teologia dogmática realmente prova, sem sombra de dúvida, que existe um Deus com caracteres como esses, ela pode perfeitamente afirmar que fornece uma base sólida ao sentimento religioso. Na verdade, porém, como vai ela com os seus argumentos? Vai com eles tão mal quanto vai com os argumentos em favor da sua existência. Não somente os idealistas pós-kantianos lhes negam raízes e ramos, mas também é um fato histórico puro e simples que eles nunca converteram ninguém que tivesse encontrado, na compleição moral do mundo, tal como a experimentou, razões para duvidar de que um bom Deus pode tê-la elaborado. Provar a bondade de Deus com o argumento escolástico de que não existe nenhum não-ser em sua essência pareceria, a uma testemunha nessas condições, simplesmente tolo. Não! o livro de Jó esminçou toda essa questão de uma vez por todas e definitivamente. O raciocínio é um caminho relativamente superficial e irreal para a divindade: “Porei minha mão na minha boca; eu Te ouvi com os ouvidos das minhas orelhas, mas agora os meus olhos Te vêem.” Um intelecto perplexo e desconcentrado e, não obstante, um sentido confiante de presença — tal é a situação do homem sincero consigo mesmo e com os fatos, mas que ainda se mantém religioso.{296} Creio que precisamos, portanto, dizer um adeus definitivo à teologia dogmática. Com toda a sinceridade, a nossa fé tem de haver-se sem essa garantia. Repito que o idealismo moderno disse adeus a essa teologia para sempre. Pode o idealismo moderno dar à fé uma garantia melhor, ou ela ainda precisa confiar em seu pobre eu para dar testemunho de si? A base do idealismo moderno é a doutrina do Ego Transcendental da Apercepção de Kant. Por esse termo formidável Kant subentendia simplesmente o fato de que a consciência “Eu os penso” deve (potencial ou realmente) acompanhar todos os nossos objetos. Céticos anteriores disseram a mesma coisa, mas o “eu” em apreço permanecera para eles identificado com a pessoa individual. Kant o abstraiu e despersonalizou, transformando-o na mais universal de todas as suas categorias, conquanto para o próprio Kant o Ego Transcendental não tivesse implicações teológicas. Estava reservada aos seus sucessores a conversão da noção de Kant do Bewusstsein überhaupt, ou consciência abstrata, numa infinita autoconsciência concreta que é a alma do mundo, e na qual nossas diversas autoconsciências pessoais têm o seu ser. Eu teria de recorrer a elementos técnicos para mostrar-lhes, ainda que sucintamente, como se efetuou, na verdade, essa transformação. Basta dizer que na escola hegeliana, que hoje em dia exerce tão profunda influência no pensamento britânico e americano, dois princípios sofreram o choque da operação. De acordo com o primeiro desses princípios, a velha lógica da identidade nunca nos dá mais que uma dissecção post-mortem de disjecta membra, e a plenitude da vida só pode ser deduzida do pensamento pelo reconhecimento de que todo objeto que o pensamento propõe a si mesmo envolve a noção de outro objeto que parece, a princípio, negar o primeiro. O segundo princípio estabelece que estar cônscio de uma negação já é estar, virtualmente, além dela. A mera formulação de tuna pergunta ou a expressão de uma insatisfação prova que a resposta ou a satisfação é iminente; 0 infinito, compreendido como tal, já é o infinito in posse. Aplicando esses princípios, parecemos adquirir uma força propulsora em nossa lógica que a lógica comum de uma nua e rígida auto-identidade em cada coisa jamais alcança. Os objetos do nosso pensamento agem agora dentro do nosso pensamento, agem como agem os objetos quando dados em experiência. Mudam e desenvolvem-se. Introduzem juntamente consigo alguma outra coisa diferente deles mesmos; e essa outra coisa, de início, apenas ideal ou potencial, logo se revela real. Substitui a coisa inicialmente suposta, e não só a verifica mas também corrige, ao desenvolver a plenitude do seu significado. O programa é excelente; o universo é um lugar onde as coisas são seguidas por outras, que as corrigem e completam; e uma lógica que nos deu alguma coisa como este movimento de fato expressaria a verdade muito melhor do que a tradicional lógica escolar, que nunca passa espontaneamente de uma coisa para outra e registra apenas predições e subsunções, ou semelhanças e diferenças estáticas. Nada poderia ser mais diferente dos métodos da teologia dogmática do que os dessa nova lógica. Permitam-me citar, à guisa de ilustração, alguns trechos do transcendentalista escocês que há pouco nomeei. “Como haveremos de conceber”, escreve o Diretor Caird, “a realidade em toda a inteligência repousa?” E ele mesmo responde: “Duas coisas podem ser provadas sem dificuldade, isto é, que esta realidade é um Espírito absoluto e in- versamente, que só em comunhão com esse Espírito absoluto ou inteligência o Espírito finito pode realizar-se. É absoluto; pois o mais leve movimento da inteligência humana seria interrompido, se ele não pressupusesse a absoluta realidade da inteligência, do próprio pensamento. A própria dúvida ou a própria negação o pressupõe e indiretamente o afirmam. Quando declaro que alguma coisa é verdadeira declaro, com efeito, que ela é relativa ao pensamento, mas não que é relativa ao meu pensamento, bem ao pensamento de qualquer outra mente individual. Posso fazer abstração de existência de todas as mentes individuais como tais; posso deixar de pensar nelas. Mas o em que não posso deixar de pensar é o próprio pensamento ou consciência de si próprio, em sua independência e na sua qualidade de coisa absoluta ou, em outras palavras, um Pensamento Absoluto ou Consciência de Si Próprio. Aqui, como os senhores estão vendo, o Diretor Caird opera a transição que Kant não operou: converte a onipresença da consciência em geral como condição de “verdade” possível em qualquer lugar, numa consciência onipresente universal, que identifica com Deus em sua qualidade de ser concreto. Em seguida, passa a utilizar o princípio de que, se reconhecemos nossos limites estamos, em essência, além deles; e faz a transição para a experiência religiosa de indivíduos com as seguintes palavras: “Se [o homem] fosse uma criatura de sensações e impulsos transitórios, de uma sucessão sempre alternante de intuições, fantasias, sentimentos, nada poderia ter para ele, em momento algum, o caráter da verdade objetiva ou da realidade. Mas é prerrogativa da natureza espiritual do homem poder entregar-se a um pensamento e a uma vontade infinitamente maiores do que os seus. Pode dizer-se que ele, como ser pensante, consciente de si mesmo, por própria natureza, vive, com efeito, na atmosfera da Vida Universal. Como ser pensante, é-me possível suprimir e subjugar em minha consciência todo e qualquer movimento de auto- afirmação, toda e qualquer noção e opinião meramente minha, todo e qualquer desejo que me pertença como este Eu Particular, e tomar-me o puro meio de um pensamento universal - numa palavra, não mais viver minha própria vida, mas deixar minha consciência ser possuída e banhada pela vida Infinita e Eterna do espírito. E, no entanto, é nessa mesma renúncia do eu que realmente ganhamos a nós mesmos, ou alcançamos as mais altas possibilidades de nossa própria natureza. Pois ao passo que, num sentido, renunciamos ao eu para viver a vida universal e absoluta da razão, aquilo a que assim nos entregamos é, na realidade, o nosso eu mais verdadeiro. A vida da razão absoluta não é, para nós, uma vida estranha.” Não obstante, continua o Diretor Caird, na medida em que somos capazes extremamente de compreender essa doutrina, o bálsamo que ela oferece continua incompleto. Falta muito pouco para que o que podemos ser in posse, o melhor do melhor de nós in actu, seja absolutamente divino. A moral social, o amor e até o sacrifício próprio fundem o nosso Eu apenas em algum outro eu ou eus finitos. Não o identificam de todo com o Infinito. O destino ideal do homem, infinito na lógica abstrata, pode assim parecer, na prática, para sempre irrealizável. “Não haverá, então” continua o nosso autor, “solução para a contradição entre o ideal e o real? Respondemos: existe uma solução mas, para poder atingi-la, devemos passar, além da esfera da moral, para a da religião. Pode-se dizer que uma característica essencial da religião, em contraste com a moral, é transmudar a aspiração em fruição, a antecipação em realização; em lugar de deixar um homem na busca interminável de um ideal que se desvanece, fazê-lo partícipe real de uma vida divina ou infinita. Quer encaremos a religião do lado humano, quer a contemplemos do lado divino - como a entrega da alma a Deus, ou como a vida de Deus na alma - em qualquer um desses aspectos é de sua própria essência que o infinito tenha cessado de ser uma visão distante e se tornado numa realidade presente. A primeira pulsação da vida espiritual, quando lhe apreendemos corretamente o significado, é a indicação de que a divisão entre o Espírito e seu objeto se dissipou, que o ideal se tomou real, que o finito atingiu a sua meta e se viu banhado pela presença e pela vida do Infinito. “A unidade da mente e da vontade com a mente e a vontade divinas não é a esperança e a meta futuras da religião, mas seu próprio começo e nascimento na alma. Ingressar na vida religiosa é terminar a luta. No ato que constitui o início da vida religiosa chamem-lhe fé, ou confiança, ou abandono de si mesmo, ou seja o que for - está implícita a identificação do finito com uma vida eternamente realizada. Na verdade, contudo, a vida religiosa é progressiva; compreendido, porém, à luz da idéia anterior, o progresso religioso não é progresso para, senão progresso dentro da esfera do Infinito. Não é a vã tentativa, por meio de intermináveis e finitas adições ou incrementos, de tornar-se dono de infinita riqueza, mas é o empenho, pelo exercício constante da atividade espiritual, de apropriar-se da herança infinita da qual já estamos de posse. Todo o futuro da vida religiosa é dado no começo, mas é dado implicitamente. A posição do homem que entrou na vida religiosa é a de que o mal, o erro, a imperfeição, realmente não lhe pertencem: são excrescências que não têm nenhuma relação orgânica com a sua verdadeira natureza: já estão virtualmente, e logo estarão realmente, suprimidos e anulados, e no mesmo processo de sua anulação tomam-se meios de progresso espiritual. Conquanto ele não esteja isento da tentação e do conflito, na esfera interior em que se encontra a sua verdadeira vida, a luta acabou, a vitória já foi lograda. O espírito não vive uma vida finita, senão uma vida infinita. Cada pulsação da sua [existência] é a expressão e a compreensão da vida de Deus.{297} Os senhores admitirão prontamente que nenhuma descrição dos fenômenos da consciência religiosa poderia ser melhor do que essas palavras do seu pranteado pregador e filósofo. Elas reproduzem o próprio rapto das crises de conversão de que temos ouvido falar; expressam o que o místico sentia mas era incapaz de comunicar; e o santo, ouvindo-as, reconhece a própria experiência. É, com efeito, agradável encontrar o conteúdo da religião relatado de maneira tão unânime. Mas depois que tudo tiver sido dito e feito, terá o Diretor Caird - e só o cito como exemplo de todo esse modo de pensar - transcendido a esfera do sentimento e da experiência direta do indivíduo, e cavado os alicerces da religião na razão imparcial? Tomou universal a religião pelo raciocínio coercivo, transformando-a de uma fé particular, numa certeza pública? Resgatou suas afirmações da obscuridade e do mistério? Acredito que ele não fez nada disso, mas simplesmente reafirmou as experiências do indivíduo num vocabulário mais generalizado. E assim, posso ser acusado de provar tecnicamente que os raciocínios transcendentalistas não conseguem tomar universal a religião, pois posso apontar para o fato evidente de que a maioria dos estudiosos, até os que estadeiam disposições religiosas, teimam em recusar-se a tratá-los como convincentes. Podemos dizer que toda a Alemanha rejeitou positivamente a argumentação hegeliana. Quanto à Escócia, basta-me mencionar as críticas memoráveis do Professor Fraser e do Professor Pringle-Pattison, com as quais tantos dos senhores já estão familiarizados.{298} E pergunto mais uma vez: se o idealismo transcendental fosse tão objetiva e absolutamente racional quanto pretende ser, poderia tão clamorosamente deixar de ser persuasivo? Os senhores precisam lembrar-se de que o que a religião assevera sempre tem pretenções de ser um fato da experiência: o divino está realmente presente, diz a religião, e entre ele e nós são reais as relações de transigência. Se as percepções definidas de um fato como este não se mantêm de pé, é manifesto que o raciocínio abstrato não lhes dará o apoio de que eles precisam. Os processos conceptuais podem classificar fatos, defini-los, interpretá-los; mas não os produzem, nem podem reproduzir-lhes a individualidade. Existe sempre um mais, um dado preciso, pelo qual só o sentimento é capaz de responsabilizar-se. Em tais condições, a filosofia nesta esfera é uma função secundária, insuficiente para garantir a veracidade da fé, e por isso reverto à tese que anunciei no início desta conferência. Com toda a triste sinceridade, sou da opinião de que a tentativa de demonstrar por processos puramente intelectuais a verdade dos pronunciamentos da experiência religiosa direta é absolutamente inútil. Seria injusto para a filosofia, no entanto, deixá-la sob essa sentença negativa. Permitam que eu termine, portanto, enumerando brevemente o que ela pode fazer pela religião. Se quiser abandonar a metafísica e a dedução pela crítica e pela indução, e transformar-se francamente de teologia em ciência das religiões, poderá vir a ser tremendamente útil. O intelecto espontâneo do homem sempre define o divino que ele sente de maneiras que se harmonizam com seus preconceitos intelectuais temporários. A filosofia pode, por comparação, eliminar o local e o acidental dessas definições. Pode remover incrustações históricas não só dos dogmas mas também do culto. Pondo em paralelo as construções religiosas espontâneas com os resultados da ciência natural, a filosofia também elimina doutrinas que hoje se conhecem como cientificamente absurdas ou incongruentes. Joeirando dessa maneira formulações que não valem nada, ela pode deixar um resíduo de concepções pelo menos possíveis. Com estas últimas, pode lidar como se fossem hipótese, pondo-as à prova de todas as maneiras negativas ou positivas pelas quais as hipóteses sempre têm sido experimentadas. Pode diminuir-lhes o número, na medida em que algumas se apresentarem mais abertas à objeção. Pode, porventura, arvorar-se em paladina de uma delas, que venha a escolher por ser a que mais apertadamente foi verificada ou é verificável. Pode aprimorar a definição dessa hipótese, fazendo distinção entre o que é uma inocente superstição e um simbolismo na sua definição e o que deve ser tomado ao pé da letra. Em resultado disso, a filosofia pode oferecer mediação entre diferentes crentes, e concorrer para que se instaure um consenso de opinião. Pode fazê-lo de maneira tanto mais bem- sucedida quanto melhor souber discriminar os elementos comuns e essenciais dos elementos individuais e locais das crenças religiosas que estiver comparando. Não vejo por que razão uma Ciência das Religiões crítica dessa natureza não possa, no final das contas, comandar uma adesão pública tão geral quanto a comandada por uma ciência física. Até o indivíduo pessoalmente não religioso pode vir a aceitar-lhe as conclusões em confiança, tanto quanto as pessoas cegas aceitam hoje em dia os fatos da ótica - poderia parecer tolo recusá-las. Entretanto, assim como a ciência da ótica necessita de ser primeiro alimentada, e depois continuamente verificada por fatos experimentados pelas pessoas que enxergam, assim também a ciência das religiões dependeria, no tocante ao seu material original, de fatos de experiência pessoal, e te- ria de ajustar-se à experiência pessoal através de todas as suas reconstruções críticas. Jamais poderia afastar-se da vida concreta, nem trabalhar num vácuo conceptual. Teria de confessar para sempre, como toda ciência confessa, que a sutileza da natureza foge diante dela, e que suas fórmulas não passam de aproximações. A filosofia vive de palavras, mas a verdade e o fato jorram para o interior de nossas vidas de maneiras que excedem a formulação verbal. Existe sempre no ato vivo da percepção alguma coisa que bruxuleia e se move rapidamente e recusa-se a ser pega, e para a qual a reflexão chega tarde demais. Ninguém conhece isso tão bem quanto o filósofo. Ele precisa disparar sua saraivada de vocábulos novos por meio da sua espingarda de caça conceptual, pois a própria profissão o condena a esse gênero de indústria, mas ele conhece secretamente o vazio e a irrelevância de tudo isso. Suas fórmulas são como fotografias estereoscópicas ou cinescópicas vistas fora do instrumento; carecem de profundidade, de movimento, de vitalidade. Na esfera religiosa, em particular, a crença de que as fórmulas são verdadeiras nunca poderá tomar totalmente o lugar da experiência pessoal. Na próxima conferência tentarei completar minha grosseira descrição da experiência religiosa; e na conferência que se seguir a ela, que será a última, tentarei formular conceptualmente a verdade de que ela dá testemunho. XIX Conferência OUTRAS CARACTERÍSTICAS Voltamos agora, depois da nossa excursão pelo misticismo e pela filosofia, para onde estávamos antes: as utilidades da religião, suas utilidades para o indivíduo que a tem, e as utilidades do próprio indivíduo para o mundo são os melhores critérios para julgar a verdade que está nela. Voltamos à filosofia empírica: o verdadeiro é o que funciona bem, ainda que a qualificação “em conjunto” talvez sempre tenha de ser acrescentada. Nestas conferências, precisamos reverter novamente à descrição e rematar nosso quadro da consciência religiosa com uma palavra a respeito de seus outros elementos característicos. A seguir, numa conferência final, teremos liberdade para fazer uma recapitulação geral e sacar nossas conclusões independentes. O primeiro ponto de que falarei é a parte que a vida estética desempenha no determinar a nossa escolha de uma religião. Eu disse há pouco que os homens, involuntariamente, intelectualizam sua experiência religiosa. Eles precisam de fórmulas, exatamente como precisam de companheiros no culto. Falei, portanto, com excessivo desdém da inutilidade pragmática da famosa lista escolástica dos atributos da divindade, pois ela tem uma utilidade que deixei de consignar. A eloquente passagem em que Newman as enumera{299} nos coloca em sua pista; Entoando-as como entoaria um serviço de catedral, ele mostra quão elevado é o seu valor estético. Enriquece a nossa piedade nua carregar essas exaltadas e misteriosas adições verbais do mesmo modo que enriquece uma igreja a posse de um órgão, de bronzes antigos, de mármores, afrescos e vitrais. Os epítetos emprestam uma atmosfera e sugestões à nossa devoção. São como um hino de louvor e um serviço de glória, e podem soar tanto mais sublimes quanto menos compreensíveis são. Mentes como a de Newman{300} enchem-se de zelos pelo seu crédito como se enchem de zelos os sacerdotes pagãos pelas jóias e ornamentos que fulguram nos seus ídolos. Entre os elementos construtivos da religião a que se entrega a mente de modo espontâneo nunca deve ser esquecido o motivo estético. Prometí nada dizer sobre os sistemas eclesiásticos nestas conferências. Seja-me concedido, entretanto, uma palavrinha neste ponto sobre o modo com que a satisfação de algumas de suas necessidades estéticas contribui para o domínio que exercem sobre a natureza humana. Se bem que algumas pessoas visem sobretudo a pureza intelectual e a simplificação, para outras o requisito imaginativo supremo{301} é a riqueza. Quando a nossa mente pertence decididamente a esse tipo, de pouco servirá à sua finalidade uma religião individual. A necessidade interior é antes de alguma coisa institucional e complexa, majestosa no inter-relacionamento hierárquico de suas partes, com a autoridade descendo de estádio a estádio e, em cada estádio, encontrando objetos de adjetivos de mistério e esplendor, derivados, em última análise, da Divindade, fonte e fastígio do sistema. Sentimos, então, como se estivéssemos em presença de alguma vasta obra de ourivesaria ou de arquitetura; ouvimos o apelo litúrgico da multidão; recebemos a vibração glorificante que vem de todos os cantos. Comparado com tão nobre complexidade, em que movimentos ascendentes e descendentes não parecem, de modo algum, pôr em risco a estabilidade, em que nenhum item, por humilde que seja, é insignificante, porque tantas augustas instituições o mantêm no lugar, como parece insosso o protestantismo evangélico, como é nua a atmosfera dessas vidas religiosas isoladas cujo motivo de orgulho é que “o homem no mato pode topar com Deus.”{302} Que pulverização e nivelamento de uma estrutura tão gloriosamente amontoada! Para a imaginação afeita às perspectivas de dignidade e glória dir-se-á que o esquema do evangelho nu oferece um asilo de pobres em lugar de um palácio. Isso se parece muito com o sentimento patriótico dos que foram educados em impérios antigos. Quantas emoções se verão fraudadas do seu objetivo, quando abrimos mão dos títulos de dignidade, das luzes carmezim e dos clangores dos bronzes, das bordaduras de ouro, dos soldados emplumados, do medo e dos tremores, e toleramos um presidente de sobrecasaca preta, que nos aperta a mão e talvez venha de uma casa plantada na savana ou pradaria, com uma sala de estar e uma Bíblia sobre a mesa do centro. Isso empobrece a imaginação monárquica! Tenho para mim que a força desses sentimentos estéticos toma rigorosamente impossível que o Protestantismo, embora possa ser espiritualmente mais profundo do que o Catolicismo, consiga, no dia de hoje, trazer mais convertidos do mais venerável eclesiasticismo. Este último oferece um pascigo e uma sombra muito mais ricas para a fantasia, tem tantas celas com tantas castas diferentes de mel, é tão indulgente em seus apelos multiformes à natureza humana, que o Protestantismo sempre mostrará aos olhos católicos a fisionomia da casa de caridade. Para a mente católica, a sua amarga negatividade é incompreensível. Para os católicos intelectuais muitas crenças e práticas antiquadas que a Igreja aprova são, tomadas ao pé da letra, tão infantis quanto o são para os protestantes. Mas são infantis no sentido ameno de “acriançadas” - inocentes e amáveis, e dignas de um sorriso nosso em consideração pela condição subdesenvolvida dos intelectos do querido povo. Para o protestante, ao contrário, são infantis no sentido de serem falsidades idiotas. Ele precisa erradicar-lhes a delicada e amável redundância, deixando o católico trêmulo diante da sua intransingência. A este último, ele dá a impressão de ser tão mal-humorado quanto alguma espécie de réptil de olhos duros, calado e monótono. Os dois nunca se entenderão - seus centros de energia emocional são muito diferentes. A verdade rigorosa e a complexidade da natureza humana estão sempre precisando de um intérprete mútuo.{303} E ponhamos ponto final às diversidades estéticas na consciência religiosa. Na maioria dos livros sobre religião, três coisas são representadas como seus elementos mais essenciais: o Sacrifício, a Confissão e a Oração. Preciso dizer uma palavrinha acerca de cada um desses elementos. Primeiro, o Sacrifício. Os sacrifícios aos deuses estão onipresentes no culto primevo; mas, como os cultos se requintaram, os holocaustos e o sangue de bodes foram suplantados por sacrifícios de natureza mais espiritual. O Islamismo, o Judaísmo e o Budismo vão-se arranjando sem o sacrifício ritual; o mesmo se dá com o Cristianismo, a não ser na medida em que a noção é preservada em forma transfigurada no mistério da expiação de Cristo. Tais religiões substituem todas essas vãs oblações por oferecimentos do coração, renúncias do eu interior. Nas práticas ascéticas que o Islamismo, o Budismo e o Cristianismo mais antigo incentivam vemos, indestrutível, a idéia de que o sacrifício de uma espécie qualquer é um exercício religioso. Ao pronunciar a conferência sobre o ascetismo mencionei-lhe a importância como símbolo dos sacrifícios que a vida exige, todas as vezes que é levada com vigor.{304} Mas como eu já disse o que tinha de dizer sobre isso, e como estas conferências evitam expressamente os costumes das religiões primitivas e questões de derivação, passarei do assunto do Sacrifício, de uma vez por todas, para o da Confissão. No tocante à Confissão também serei breve, e falarei sobre ela do ponto de vista psicológico, mas não histórico. Conquanto não seja tão difundida quanto o sacrifício, a confissão corresponde a uma fase de sentimento mais interior e moral. Faz parte do sistema geral de purgação e limpeza de que nos sentimos necessitados em ordem a manter relações corretas com a nossa divindade. Para o que se confessa, as imposturas se acabam e começam as realidades; ele exteriorizou a própria podridão. Se, na realidade, não se livrou dela, pelo menos já não se besunta com ela numa hipócrita demonstração de virtude - vive, pelo menos, numa base de veracidade. A completa decadência da prática da confissão nas comunidades anglo-saxãs é um pouco difícil de explicar. Está visto que a reação contra o papismo é a explicação histórica, já que, no papismo, a confissão era acompanhada de penitência e absolvição, e outras práticas inadmissíveis. Mas da parte do próprio pecador tudo indica que deve ter sido demasiado grande a necessidade de aceitar uma recusa tão sumária da sua satisfação. Pensar-seia que, num número maior de homens, a casca do sigilo teria de abrir-se, o abscesso encerrado teria de rebentar e conseguir alívio, mesmo que os ouvidos que ouvissem a confissão fossem indignos. A Igreja católica, por óbvias razões utilitárias, substituiu o ato mais radical da confissão pública pela confissão auricular feita a um padre só. Nós, protestantes de fala inglesa, na autoconfiança e na insociabilidade gerais da nossa natureza, parecemos achar suficiente confidenciar apenas a Deus os nossos problemas. {305} O tópico seguinte que devo comentar é a Oração - e, desta feita, terei de fazê-lo com menos brevidade. Temos ouvido muita coisa, ultimamente, contra a oração, sobretudo contra orações pela melhoria do tempo e pelo restabelecimento de pessoas doentes. No que tange às orações pelos enfermos, se algum fato médico pode considerar-se inabalável, este é que, em certos ambientes, a oração contribui para o restabelecimento e deve ser estimulada como medida terapêutica. Sendo um fator normal de saúde moral da pessoa, sua omissão seria deletéria. O caso do tempo é diferente. Sem embargo da recentidade da crença oposta,{306} toda gente sabe agora que secas e tempestades se seguem a antecedentes físicos, e que apelos morais não podem obstar a elas. Mas a oração peticional é apenas um departamento da oração; e se tomarmos a palavra na acepção mais ampla, significando todo tipo de comunhão ou conversação interior com o poder reconhecido por divino, veremos facilmente que a crítica científica a deixou intocada. A oração nessa acepção mais ampla é a própria alma e essência da religião. “A religião”, diz um teólogo liberal francês, “é um intercâmbio, uma relação consciente e voluntária, na qual ingressou uma alma aflita, com o misterioso poder de que ela depende e ao qual o seu destino é contingente. O intercâmbio com Deus realiza-se pela oração. A oração é a religião em ato; ou melhor, a oração é a verdadeira religião. A oração distingue o fenômeno religioso dos fenômenos similares ou vizinhos, como sentimento puramente moral e estético. A religião não será nada se não for o ato vital pelo qual a mente inteira procura salvar-se agarrada ao princípio do qual tira a sua vida. Esse ato é oração, termo pelo qual não entendo o vão exercício de palavras, nem a mera repetição de fórmulas sagradas, senão o próprio movimento da alma, que se coloca numa relação pessoal de contato com o misterioso poder cuja presença sente - pode ser até antes que ele tenha um nome pelo qual possa ser chamado. Onde quer que falte a oração interior, não há religião; por outro lado, onde quer que a oração se eleve e faça fremir a alma, mesmo na ausência de formas ou doutrinas, temos a religião viva. Por aí se vê por que a chamada “religião natural” não é propriamente uma religião. Ela separa o homem da oração. Deixa-os, a ele e a Deus, em mútua distância, sem nenhum comércio íntimo, nenhum diálogo interior, nenhum intercâmbio, nenhuma ação de Deus no homem, nenhuma volta do homem a Deus. No fundo, essa pretensa religião é apenas uma filosofia. Nascida em épocas de racionalismo, de investigações críticas; nunca foi nada mais que uma abstração. Criação artificial e morta, escassamente revela ao examinador um dos caracteres próprios da religião.”{307} Parece-me que toda a série de nossas conferências prova a verdade do ponto de vista sustentado pelo Sr. Sabatier. Estudado como fato interior, e fazendo-se abstração de complicações eclesiásticas ou teológicas, o fenômeno religioso mostrou consistir, em toda parte e em todos os estádios, na consciência que têm os indivíduos de um intercâmbio entre eles e poderes mais altos com os quais se sentem relacionados. Esse intercâmbio é compreendido no momento como ativo e mútuo, ao mesmo tempo. Se ele não for efetivo; se não for uma relação de permuta; se nada é realmente transacionado enquanto ele dura; se o mundo não ficou nem um pouquinho diferente porque ele ocorreu; então a oração, tomada no significado amplo de uma sensação de que alguma transação está acontecendo, é, por certo, um sentimento do ilusório, e a religião precisa, no todo, ser classificada, não simplesmente como contendo elementos de ilusão - estes, sem sombra de dúvida, existem em toda parte — mas como enraizada na ilusão, exatamente como os materialistas e ateus sempre disseram que ela estava. Na melhor das hipóteses, quando as experiências diretas de oração forem excluídas como falsos testemunhos, poderá sobrar uma crença inferencial em que toda a ordem da existência deve deter uma causa divina. Mas essa forma de contemplar a natureza, por mais agradável que fosse, deixaria as pessoas de gosto piedoso apenas a parte dos espectadores de uma peça, quando na religião experimental e na vida devota, nós nos vemos como atores, e não numa peça, mas numa realidade muito séria. A autenticidade da religião está, assim, indissoluvelmente ligada à questão de saber se a consciência devota é ou não é enganosa. A convicção de que alguma coisa está sendo genuinamente transacionada nessa consciência é o verdadeiro âmago da religião viva. Quanto ao que é transacionado, têm prevalecido grandes diferenças de opinião. Supunha-se, e ainda se supõe, que os poderes invisíveis fazem coisas em que nenhum homem esclarecido hoje acredita. Isso pode provar perfeitamente que a esfera de influência na oração é exclusivamente subjetiva, e que o que se altera imediatamente é apenas a mente da pessoa que ora. Mas seja como for que a nossa opinião sobre os efeitos da oração possa ser limitada pela crítica, a religião, no sentido vital em que estas conferências a estudam, há de permanecer em pé ou cair pela persuasão de que efeitos de alguma espécie ocorrem genuinamente. Através da oração, insiste a religião, realizam-se as coisas que não podem ser realizadas de nenhum outro modo: a energia que, não fora a oração, estaria atada, é desatada pela oração e opera em alguma parte, objetiva ou subjetiva, do mundo dos fatos. Esse postulado é notavelmente expresso pelo falecido Frederic W. H. Myers a um amigo, que me permite citá-la. Mostra quão independente é o instinto da oração das complicações doutrinárias habituais. Escreve o Sr. Myers: “Alegra-me que você me tenha perguntado sobre oração, porque tenho idéias fortes a respeito do assunto. Primeiro considere os fatos. Existe à nossa roda um universo espiritual, que está em relação real com o material. Do universo espiritual vem a energia que mantém o material; a energia que faz a vida de cada espírito individual. Nossos espíritos são sustentados por um perpétuo influxo dessa energia, e o vigor do influxo modifica-se perpetuamente, tanto quanto o vigor da nossa absorção de nutrimento material se modifica de hora para hora. “Chamo-lhes ‘fatos’ porque sou da opinião de que algum esquema desse gênero é o único compatível com a nossa evidência real, demasiado complexo para sumariar aqui. Como, então, deveríamos agir em relação a esses fatos? Devemos tentar claramente aspirar quanta vida espiritual nos for possível, e colocar nossa mente em qualquer atitude que a experiência nos mostra ser favorável a tal influxo. Oração é o nome geral para essa atitude de aberta e fervorosa expectativa. Se então perguntarmos a quem orar, a resposta (por estranho que pareça) há de ser que isso não tem muita importância. A oração não é, na verdade, uma coisa puramente subjetiva; significa um aumento real da intensidade de absorção do poder espiritual ou graça; mas ainda não sabemos o suficiente do que se verifica no mundo espiritual para saber como opera a oração - quem a conhece ou através de que espécie de canal a graça é concedida. É melhor deixar as crianças rezarem para Cristo, que é, pelo menos, o mais alto espírito individual de que temos algum conhecimento. Mas seria temerário dizer que o próprio Cristo nos ouve; ao passo que dizer que Deus nos ouve é tão-somente reformular o primeiro princípio - o de que a graça flui proveniente do mundo espiritual infinito”. Deixemos a questão da verdade ou falsidade da crença na absorção do poder para a próxima conferência, quando teremos chegado às nossas conclusões dogmáticas, se tivermos alguma. Deixemos que esta conferência se restrinja à descrição dos fenômenos; e como exemplo concreto de um tipo extremo, do caminho pelo qual a vida devota ainda pode ser conduzida, deixem-me mostrar-lhes um caso com que a maioria dos senhores deve estar familiarizada, o de George Müller, de Bristol, morto em 1898. As orações de Müller eram da ordem peticional mais crassa. No princípio da vida ele resolveu tomar certos passos da Bíblia de forma totalmente literal e deixar- se alimentar, não pela própria previsão mundana, mas pela mão de Senhor. Teve uma carreira extraordinariamente ativa e bem-sucedida, entre cujos frutos se incluía a distribuição de mais de dois milhões de exemplares do texto da Escritura, em diferentes línguas; o equipamento de várias centenas de missionários; a circulação de mais de cento e onze milhões de livros, folhetos e opúsculos; a construção de cinco grandes orfanatos e a manutenção e educação de milhares de órfãos; finalmente, o estabelecimento de escolas em que receberam instrução mais de cento e vinte e um mil alunos, entre jovens e adultos. No correr desse trabalho, o Sr. Müller recebeu e administrou quase um milhão e meio de libras esterlinas e viajou mais de duzentas mil milhas por mar e por terra.{308} Durante os sessenta e oito anos do seu ministério, nunca possuiu nenhuma propriedade exceto suas roupas, mobílias e o dinheiro que tinha na mão; e deixou, aos oitenta e seis anos, um patrimônio no valor de cento e sessenta libras esterlinas apenas. Seu método consistia em deixar que suas necessidades gerais fossem publicamente conhecidas, mas não dar a conhecer a outras pessoas os pormenores das suas necessidades temporárias. Para o alívio destas últimas, rezava diretamente ao Senhor, acreditando que, mais cedo ou mais tarde, as orações são sempre respondidas quando temos confiança bastante. “Quando perco qualquer coisa como uma chave”, escreve ele, “peço ao Senhor que me dirija para ela, e espero uma resposta à minha oração; quando uma pessoa com a qual marquei um encontro não aparece na hora aprazada, e isso começa a atrapalhar-me, peço ao Senhor que haja por bem apressá-la a vir ao meu encontro, e espero uma resposta; quando não entendo uma passagem da palavra de Deus, elevo o coração ao Senhor e peço-lhe que se digne instruir-me pelo seu Espírito Santo, e espero ser ensinado, embora não estabeleça quando nem como isso deva acontecer, quando vou exercer o meu ministério da Palavra, peço ajuda ao Senhor, e … não me deixo deprimir, mas me conforto porque espero a sua assistência.” O costume de Müller era nunca pagar as contas a prazo, nem que fosse de uma semana. “Como o Senhor se-ocupa de nós todos os dias, … o pagamento da semana pode vencer sem que tenhamos o dinheiro para saldá-lo; e, assim, as pessoas com as quais tratamos podem ficar atrapalhadas por nossa causa, e estaríamos agindo contra o mandamento do Senhor: ‘Não devas nada a ninguém.’ Doravante, uma vez que o Senhor nos dá todos os dias o de que precisamos, nós nos propomos pagar no mesmo momento todo artigo comprado, e nunca comprar nada que não possamos pagar na hora, por mais necessário que pareça, e por mais que as pessoas com as quais tratamos desejem ser pagas por semana.” Os artigos necessários a que Müller se refere eram a comida, o combustível, etc., dos seus orfanatos. Fosse como fosse, conquanto parecessem amiúde na iminência de ficar sem uma refeição, tudo indica que nunca passaram por isso. “Nunca senti maior nem mais manifesta a proximidade da presença de Deus do que quando, após o desjejum, não havia recursos para o jantar de mais de cem pessoas; ou quando, depois do jantar, não havia recursos para o chá e, todavia, Deus proporcionava o chá; e tudo isso sem que nenhum ser humano tivesse sido informado das nossas necessidades. … Através da Graça, minha mente está tão plenamente segura da fidelidade do Senhor que, no meio da maior necessidade, me é concedido realizar, em paz, meus outros trabalhos. Com efeito, se o Senhor não me desse isso, que é o resultado da minha confiança nele, dificilmente eu seria capaz de trabalhar; pois é agora uma coisa relativamente rara o dia em que eu não esteja precisando de uma ou outra parte do trabalho.”{309} Ao construir seus orfanatos simplesmente com a oração e a fé, Müller afirma que o seu propósito principal era “ter alguma coisa para apontar como prova visível de que o nosso Deus e Pai é o mesmo Deus fiel que sempre foi - tão disposto como sempre a revelar-se o Deus vivo, hoje como ontem, a quantos depositam sua confiança nele”. 12 Por essa razão se recusou a pedir dinheiro emprestado para qualquer um de seus empreendimentos. “O que acontece quando nos antecipamos a Deus seguindo o nosso próprio caminho? Por certo enfraquecemos a fé em vez de fortalecê-la; e cada vez que operamos assim uma libertação por nossos próprios meios achamos mais e mais difícil confiar em Deus, até que, por fim, cedemos inteiramente à nossa razão natural caída e a descrença prevalece. Como é diferente quando nos é dado esperar o tempo de Deus e esperar só dele a ajuda e a libertação! Quando, afinal, chega o auxílio, ainda que seja depois de muitas sessões de oração, como é doce, e que deleitosa recompensa! Querido leitor cristão, se nunca palmilhaste antes o caminho da obediência, faze-o agora, e conhecerás, por experiência própria, a suavidade da alegria que disso resulta.”{310} Quando os suprimentos chegavam, mas com lentidão, Müller sempre achava que isso acontecia para pôr à prova sua fé e sua paciência. Quando sua fé e sua paciência já tinham sido que-farte experimentadas, o Senhor mandava mais recursos. “E isso ficou provado” - transcrevo do seu diário - “pois hoje me foi dada a soma de 2.050 libras, das quais 2.000 são para o fundo de construção [de determinada casa], e 50 para as necessidades atuais. É impossível descrever minha alegria em Deus quando recebi esse donativo. Não fiquei excitado nem surpreso; pois espero respostas às minhas orações. Acredito que Deus me ouve. Meu coração, no entanto, estava tão cheio de alegria que só me foi possível sentar-me diante de Deus, e admirá-lo, como Davi em 2 Samuel VII. Finalmente, atirei-me com o rosto no chão e prorrompi em agradecimentos a Deus e na entrega outra vez do meu coração a ele por seu bendito serviço.”{311} O caso de George Müller é extremo em todos os sentidos, e em nenhum sentido mais do que no da extraordinária estreiteza do horizonte intelectual do homem. Como ele mesmo disse muitas vezes, seu Deus era seu sócio, o qual parece ter sido para Müller pouco mais que uma espécie de clérigo sobrenatural interessado nas atividades da congregação de negociantes e outros em Bristol, que eram os seus santos, e nos orfanatos e demais empreendimentos, mas sem possuir nenhum dos atributos mais vastos, mais fortes e mais ideais de que a imaginação humana o revestiu. Numa palavra, Müller era absolutamente não-filosófico. Sua concepção intensamente pessoal e prática de suas relações com a Divindade continuou as tradições do pensamento humano mais primitivo.{312} Quando comparamos uma mente como a dele com a mente de um Emerson ou de Phillips Brooks, por exemplo, vemos a extensão abrangida pela consciência religiosa. Há uma literatura imensa relacionada com as respostas à oração peticional. Os jornais evangélicos estão cheios de respostas desse gênero, e livros são dedicados ao assunto{313} mas, para nós, o caso de Müller será suficiente. Um jeito menos forte e menos mendicante de levar uma vida piedosa é seguido por inúmeros outros cristãos. Dizem essas pessoas que a persistência em apoiar-se no Todo-Poderoso em busca de auxílio e de orientação traz consigo provas, palpáveis mas muito mais sutis, de sua presença e influência ativa. A seguinte descrição de uma vida “conduzida”, feita por um escritor alemão que já citei, pareceria sem dúvida a um sem-número de cristãos em todos os países, transcrita da sua própria experiência pessoal. Nós vamos descobrir nessa espécie de vida conduzida, diz o Dr. Hilty, “que livros e palavras (e, às vezes, pessoas) chegam ao nosso conhecimento no exato momento em que necessitamos deles; que deslizamos sobre grandes perigos como se estivéssemos de olhos vendados, permanecendo ignorantes do que nos teria terrificado ou desencaminhado, até que o perigo passa - sendo esse especialmente o caso das tentações da vaidade e da sensualidade; que caminhos pelos quais não deveríamos enveredar surgem, por assim dizer, cercados de espinhos; mas que, por outro lado, grandes obstáculos são repentinamente afastados; que quando chega o tempo de alguma coisa, recebemos de repente uma coragem que antes nos faltava, ou percebemos a raiz de uma questão até então escondida, ou descobrimos pensamentos, talentos e até pedaços de conhecimentos é visão interior, em nós mesmos, cuja origem ignoramos; finalmente, que as pessoas nos ajudam ou se recusam a ajudar-nos, favorecer-nos ou desfavorecer-nos, como se tivessem de fazê-lo contra a própria vontade, de sorte que, não raro, os que se mostravam indiferentes ou até inamistosos para conosco nos prestam os maiores serviços e concorrem para o nosso avanço. (Deus tira os bens terrenos daquele a quem conduz, no momento preciso, quando eles ameaçam atalhar-lhe os esforços para cuidar de interesses mais elevados.) “Além de tudo isso, acontecem outras coisas dignas de nota, que não é fácil explicar. Já não há dúvida nenhuma de que agora caminhamos continuamente através de ‘portas abertas’ e pelas estradas mais fáceis, com tão pouco trabalho e preocupação quanto é possível imaginar. “De mais a mais, vemo-nos resolvendo, nem demasiado cedo nem demasiado tarde, os assuntos que costumavam ser atrapalhados pela intempestividade, ainda que os preparativos tivessem sido bem feitos. A fora isto, fazêmo-lo com perfeita tranquilidade de espírito, quase como se fossem assuntos de nenhuma importância, como serviços feitos por nós para outra pessoa, caso que, normalmente, tratamos com mais calma do que tratamos os nossos próprios negócios. Outrossim, verificamos que somos capazes de esperar por tudo pacientemente, o que é uma das grandes artes da vida. Averiguamos também que cada coisa chega no seu devido momento, uma depois da outra, de sorte que ganhamos tempo quando estudamos com cuidado os passos que vamos dar antes de seguir em frente. E, então, tudo nos acontece no instante azado, fazemos exatamente o que devíamos fazer e, muitas vezes, de maneira extraordinária, como se uma terceira pessoa estivesse prestando atenção às coisas que corremos o risco de esquecer. “Frequentemente também as pessoas nos são enviadas no momento oportuno, para oferecer ou perguntar o de que precisamos, coisa que nunca teríamos tido a coragem nem a resolução de empreender por nossa conta. “Através de todas essas experiências descobrimos que somos benevolentes com outras pessoas, até com as repulsivas, negligentes ou rancorosas, pois elas também são instrumentos do bem nas mãos de Deus e, não raro, dos mais eficientes. Sem esses pensamentos seria difícil até para o melhor dentre nós manter sempre a equanimidade. Mas com a consciência da orientação divina, vemos inúmeras coisas na vida de maneira muito diferente da que de outro modo teria sido possível. “Todas elas são coisas que todo ser humano que as experimentou conhece-, e cujos exemplos mais eloquentes poderiam ser aduzidos. Os mais elevados recursos da sabedoria terrena são incapazes de atingir o que, sob a orientação divina, nos chega espontaneamente.”{314} Relatos como este, com ligeiras variações, são encontrados em outros autores nos quais existe a crença, não que determinados acontecimentos nos sejam mais favoravelmente preparados por tuna providência superintendente, como recompensa pela nossa confiança, senão que pela cultivação do senso contínuo da nossa conexão com o poder que fez as coisas como elas são, estamos mais preparados para recebê-las. A face externa da natureza não precisa alterar-se, mas alteram-se-lhe os significados para nós. Estava morta e está viva outra vez. É como a diferença entre olhar para uma pessoa sem amor e olhar para a mesma pessoa com amor. No último caso, o intercâmbio jorra com nova vitalidade. Assim, quando nossas afeições permanecem em contacto com a divindade da criação do mundo, o medo e o egotismo desertam; e na equanimidade que se segue, encontramos nas horas, à proporção que se sucedem umas às outras, uma série de oportunidades puramente benignas. É como se todas as portas estivessem abertas e todos os caminhos recém-desembaraçados. Encontramos um mundo novo quando encontramos o mundo antigo com o espírito que esse tipo de oração infunde. Espírito semelhante a esse era o de Marco Aurélio e de Epicteto.{315} É o dos adeptos da cura mental, dos transcendentalistas e dos chamados cristãos “liberais”. Como expressão dele, citarei uma página de um dos sermões de Martineau: “O universo aberto hoje para os olhos é tal qual era mil anos atrás: e o hino matutino de Milton não canta apenas a beleza com que o nosso próprio sol familiar vestia os primeiros campos e jardins do mundo. Vemos o que todos os nossos antepassados viram. E se não pudermos encontrar Deus em vossa casa ou na minha, à beira da estrada ou nas praias do mar; na semente que se rompe ou na flor que se abre; no trabalho do dia ou na reflexão da noite; no riso geral ou no pesar secreto; na procissão da vida, sempre entrando de novo, passando solenemente e desaparecendo; não creio que possamos discerni-lo nem mesmo nos relvados do Éden, ou sob os raios da lua em Getessêmane. Fiai-vos disso, não é a falta de milagres maiores, senão a incapacidade da alma de perceber os que ainda nos são concedidos, que nos leva a empurrar todas as santidades para os espaços remotos que não podemos alcançar. O devoto sente que, onde quer que esteja a mão de Deus, ali está o milagre: e é simplesmente uma impiedade imaginar que apenas onde está o milagre pode estar a verdadeira mão de Deus. Os costumes do Céu deveriam, sem dúvida, ser mais sagrados aos nossos olhos do que as suas anomalias; os queridos modos antigos, dos quais o Altíssimo nunca se cansa, mais do que as coisas estranhas que ele não ama o bastante para repetir. E aquele que apenas discernir debaixo do sol, ao levantar-se de manhã, o dedo sustentador do Altíssimo, poderá recobrar a surpresa doce e reverente com que Adão contemplou a primeira aurora no Paraíso. Não’ há mudança exterior, não há transferência no tempo nem no espaço; mas apenas a amorosa meditação dos puros de coração, que pode redespertar o Eterno do sono em nossas almas: que pode tomá-lo em realidade outra vez e reafirmar-lhe, de novo, o antigo nome de ‘o Deus Vivo’.”{316} Quando vemos todas as coisas em Deus, e as referimos todas a ele, encontramos nas matérias mais comuns expressões de um significado superior. A indiferença de que o costume reveste o familiar se desvanece, e a existência como um todo surge transfigurada. O estado da mente que assim desperta do torpor está bem expressa nestas palavras, que extraio da carta de um amigo: “Se nos ocuparmos de sumariar todas as mercês e liberalidades que tivemos o privilégio de receber, ficaremos esmagados pelo seu número (tão grande que podemos imaginar-nos incapazes de achar tempo até para resenhar as coisas que imaginamos não ter). Sumariamo-las e compreendemos que estamos realmente mortos pela bondade de Deus; que estamos rodeados de generosidades sobre generosidades, sem as quais tudo se esbarrondaria. Devêramos, acaso, deixar de amá-lo; devêramos não nos sentir sustentados pelos Braços Eternos?”. Às vezes, essa compreensão de que os fatos são de procedência divina, em vez de serem habituais, é casual, como uma experiência mística. O Padre Gratry nos dá este exemplo do seu juvenil período de melancolia: “Um dia tive um momento de consolação, porque topei com alguma coisa que me pareceu idealmente perfeita. Era um pobre tocador de tambor que batia o toque de recolher nas ruas de Paris. Caminhei atrás dele ao voltar para a escola na noite de um dia feriado. O seu tambor emitia o toque de recolher de tal maneira que naquele momento, pelo menos, por mais mal-humorado que eu estivesse, não poderia encontrar pretexto para censurá-lo. Fora impossível conceber mais energia ou espírito, maior clareza ou riqueza do que as que havia em sua batida. O desejo ideal não podia ir mais longe nessa direção. Eu estava encantado e consolado; a perfeição desse ato me fez bem. O bem, pelo menos, é possível, disse eu, uma vez que o ideal, às vezes, pode concretizar-se.”{317} No romance Obemumn, de Sénancour, registra-se um transitório levantar do véu parecido com este. Nas ruas de Paris, num dia de março, ele esbarra numa planta em plena florescência, um junquilho. “Foi a mais vigorosa expressão de desejo: era o primeiro perfume do ano. Senti toda a felicidade destinada ao homem. Essa indizível harmonia das almas, o fantasma do mundo ideal, surgiu em mim completo. Nunca senti coisa alguma tão grande nem tão instantânea. Não sei que forma, que analogia, que segredo de relação me fez ver nessa flor uma beleza sem limites …. Jamais incluirei numa concepção esse poder, essa força, essa imensidade que nada expressará; essa forma que nada conterá; esse ideal de um mundo melhor que nós sentimos, mas que, segundo parece, a natureza não fez real.”{318} Ouvimos em conferências anteriores referências à face vivificada do mundo tal como pode aparecer a convertidos depois do seu despertar.{319} Em regra geral, as pessoas religiosas costumam presumir que, sejam quais forem os fatos naturais que se ligam de algum modo ao seu destino sejam indícios dos propósitos divinos a respeito delas. Por meio da oração o propósito, amiúde longe de ser óbvio, é compreendido plenamente por elas e, se for “provação”, concedem-se-lhe forças para suportá-la. Destarte, em todos os estádios da vida piedosa encontramos a persuasão de que, no processo da comunhão, a energia do alto flui para satisfazer à demanda e toma-se operativa dentro do mundo fenomenal. Enquanto se admite ser real essa operatividade, não faz uma diferença essencial que os seus efeitos imediatos sejam subjetivos ou objetivos. O ponto religioso fundamental é que na oração a energia espiritual, que de outro modo estaria dormindo, toma-se ativa e um trabalho espiritual de alguma espécie realmente se efetua. Isso no que tange à Oração, tomada no sentido amplo de qualquer espécie de comunhão. Como núcleo da religião, teremos de voltar a ela na próxima conferência. O último aspecto da vida religiosa que me cumpre tocar é o fato de se ligarem as suas manifestações, com tanta frequência, à parte subconsciente da nossa existência. Os senhores talvez estejam lembrados do que eu disse na conferência de abertura{320} a propósito da prevalência do temperamento psicopático na biografia religiosa. Com efeito, os senhores dificilmente encontrarão um líder religioso, seja ele de que espécie for, e cuja vida não haja registro de automatismos. Não me refiro apenas a padres e profetas selvagens, pata cujos seguidores as palavras e ações automáticas, por si mesmas, equivalem à inspiração; refiro-me a líderes do pensamento e sujeitos de experiência intelectualizada. São Paulo teve suas visões, seus êxtases, seu dom de línguas, por menor importância que desse a este último. Toda a série de santos e heresiarcas cristãos, incluindo os maiores, os Bernardos, os Loyolas, os Luteros, os Foxes, os Wesleys, tiveram suas visões, vozes, condições de rapto, a impressão de estar sendo guiados e “aberturas”. Tinham essas coisas porque eram donos de uma sensibilidade exaltada, e as pessoas de sensibilidade exaltada estão sujeitas a essas coisas. Da sujeição, todavia, talvez derivem consequências para a teologia. Os automatismos que as corroboram reforçam as crenças. As incursões vindas de além da região transmarginal têm um poder peculiar de aumentar a convicção. O sentido inicial de presença é infinitamente mais forte do que a concepção mas, por mais forte que seja, raro iguala a evidência da alucinação. Os santos que realmente vêem ou ouvem o seu Salvador atingem o ápice da certeza. Os automatismos motores, se bem mais raros, são, se possível, ainda mais convincentes do que as sensações. Os sujeitos aqui se sentem, realmente, manipulados por poderes superiores à sua vontade. A evidência é dinâmica; o Deus, ou espírito, toca-lhes os próprios órgãos do corpo.{321} O grande campo para o sentido de ser o instrumento de um poder mais alto é, naturalmente, a “inspiração”. É fácil discriminar entre os líderes religiosos habitualmente sujeitos à inspiração e os demais. Nos ensinamentos do Buda, de Jesus, de São Paulo (excetuando-se o seu dom de línguas), de Santo Agostinho, de Huss, de Lutero, de Wesley, a composição automática ou semi-automática parece ter sido apenas ocasional. Nos profetas hebreus, ao contrário, em Maomé, em alguns dos alexandrinistas, em muitos santos católicos menores, em Fox, em Joseph Smith, alguma coisa semelhante parece ter sido frequente, às vezes habitual. Temos diversas declarações de pessoas que afirmam estar sob a direção de um poder estranho, e de servirlhe de megafone. No que concerne aos profetas hebreus, é extraordinário, escreve um autor que fez deles um estudo cuidadoso, ver “Como, uma depois da outra, as mesmas características se reproduzem nos livros proféticos. O processo é sempre extremamente diferente do que seria se o profeta chegasse à sua visão interior das coisas espirituais pelos esforços tentativos do próprio gênio. Há nisso alguma coisa aguda e súbita. Ele pode colocar o dedo, por assim dizer, no momento em que isto se produz. E o momento chega sempre na forma de uma força externa avassaladora, contra a qual ele luta, porém em vão. Atentem, por exemplo, para a abertura do livro de Jeremias. Leiam da mesma maneira os dois primeiros capítulos da profecia de Ezequiel. “Não é, contudo, só no princípio da sua carreira que o profeta passa por uma crise evidentemente não causada por ele mesmo. Disseminadas por todos os escritos proféticos há expressões que falam de um impulso vigoroso e irresistível que cai sobre o profeta, determinando-lhe a atitude para com os eventos do seu tempo, dominando-lhe a expressão, fazendo de suas palavras o veículo de um significado mais alto do que o seu. Por exemplo, este passo de Isaías: ‘O Senhor me falou assim com mão forte’ - frase enfática que denota a natureza dominadora do impulso - ‘e instruiu-me para não caminhar no caminho desse povo’ …. Ou passagens como estas, de Ezequiel: ‘A mão do Senhor Deus caiu sobre mim.’ ‘A mão do Senhor era forte sobre mim.’ Uma característica constante do profeta é que ele fala com a autoridade do próprio Jeová. Daí que todos os profetas iniciem os seus exórdios de modo tão confiante: ‘A Palavra do Senhor’, ou ‘Assim falou o Senhor’. Eles têm até a audácia de falar na primeira pessoa, como sé o próprio Jeová estivesse falando. Como em Isaías: ‘Escuta-me, ó Jacó, e Israel, meu povo dileto; eu sou Ele, eu sou o Primeiro, eu sou também o último’ - e assim por diante. A personalidade do profeta cai inteiramente para o segundo plano; ele se sente, naquela ocasião, o megafone do Altíssimo.”” “Precisamos lembrar-nos de que a profecia era uma profissão, que os profetas formavam uma classe profissional. Havia escolas de profetas, em que o dom era regularmente cultivado. Um grupo de jovens reunia-se em tomo de alguma figura dominadora - um Samuel ou um Elias - e não somente registrava ou espalhava o conhecimento dos seus ditos e feitos, mas também eles mesmos procuravam um pouco da sua inspiração. Tudo leva a crer que a música representava a sua parte nos exercícios deles, … Está perfeitamente claro que nenhum desses Filhos dos profetas conseguiu, alguma vez, adquirir mais do que uma porção minúscula do dom que ambicionava. Era claramente possível ‘contrafazer’ a profecia. Algumas vezes, isso se fazia deliberadamente …. Mas daí não se segue, de maneira alguma, que em todos os casos em que uma mensagem falsa era transmitida, o seu transmissor tinha plena consciência do que estava fazendo.”{322} {323} Aqui, para tomarmos outro caso judeu, está o modo com que Fílon de Alexandria descreve a sua inspiração: “Às vezes, quando chegava ao meu trabalho vazio, eu me tomava repentinamente cheio; sendo as idéias, de maneira invisível, despejadas sobre mim a modo de chuveiro, e implantadas em mim desde o alto; de sorte que, sob o influxo da inspiração divina, me senti grandemente emocionado, não conhecendo nem o lugar em que eu estava, nem as pessoas que se achavam presentes, nem a mim mesmo, nem o que eu estava dizendo, nem o que estava escrevendo; pois então tive” consciência de uma riqueza de interpretação, um gozo de luz, uma visão interior sumamente penetrante, uma energia manifesta em tudo o que estava para ser feito; que me exerciam sobre a mente um efeito como o que a mais clara das demonstrações oculares me exerceria sobre os olhos.”{324} Se nos voltarmos para o Islamismo, verificaremos que as revelações de Maomé vieram todas da esfera subconsciente. À pergunta sobre a maneira com que ele as obteve, “Diz-se que Maomé teria respondido que, às vezes, ouvia um como dobre de sino, que produzia nele o mais vigoroso dos efeitos; e quando o anjo se alongava, ele recebia a revelação. As vezes também mantinha um diálogo com o anjo, como se fosse um homem, de modo que não encontrava dificuldade para compreender-lhe as palavras. As autoridades mais recentes, contudo, … distinguem ainda outras espécies. No Itgân (103) enumeram-se as seguintes: 1, revelações com dobre de sino, 2, por inspiração do espírito santo no coração de Maomé, 3, por Gabriel em forma humana, 4, por Deus imediatamente, quer quando acordado (como em sua jornada para o céu), quer em sonhos …. Em Almawâhib alladuniya as espécies são assim enumeradas: 1, Sonho, 2, inspiração de Gabriel no coração do Profeta, 3, Gabriel assumindo a forma de Dahya, 4, com o som de sinos, etc., 5, Gabriel, em própria persona (somente duas vezes), 6, revelação no céu, 7, Deus aparecendo pessoalmente, porém velado, 8, Deus revelando-se imediatamente sem véu. Outros acrescentam duas outras fases, a saber: 1, Gabriel em forma de outro homem, 2, Deus mostrando-se pessoalmente em sonhos.”{325} Em muitos desses casos a revelação é distintamente motora. No caso de Joseph Smith (que teve um sem-número de revelações proféticas, além da tradução revelada das chapas de ouro que resultaram no Livro de Mormon), embora possa ter existido um elemento motor, tudo indica que a inspiração tenha sido predominantemente sensorial. Ele iniciou a sua tradução com a ajuda das “pedrinhas espreitadoras”, que encontrou, ou julgou ter encontrado, ou disse que encontrara juntamente com as chapas de ouro - aparentemente um caso de “cristalomancia”. No que diz respeito a outras revelações, utilizou as pedrinhas espreitadoras, mas parece que, de um modo geral, ele se dirigia ao Senhor quando precisava de instruções mais diretas.{326} Outras revelações são descritas como “aberturas” - as revelações de Fox, por exemplo, pertenciam, evidentemente, ao gênero conhecido hoje em dia nos círculos espíritas pelo nome de “impressões”. Como todos os iniciadores efetivos de mudança necessitam viver até certo ponto nesse nível psicopático de súbita percepção ou convicção da nova verdade, ou do impulso para a ação tão obsessivo que precisa ser descarregado de qualquer maneira, nada mais direi a respeito de um fenômeno tão comum. Quando, em adição aos fenômenos de inspiração, tomamos em consideração o misticismo religioso, quando rememoramos as extraordinárias e inopinadas unificações do eu discordante que vimos na conversão, e quando fazemos uma resenha das extravagantes obsessões de ternura, pureza e severidade consigo mesmo que se encontram na santidade, não podemos, acredito eu, evitar a conclusão de que temos, na religião, um departamento de natureza humana que mantém relações inusitadamente estreitas com a região transmarginal ou subliminal. Se a palavra “subliminal” desagrada a qualquer um dos senhores, por cheirar em demasia a pesquisa psiquiátrica ou a quaisquer outras aberrações, poderão dar-lhe o nome que bem entenderem, a fim de distingui-la do nível da plena consciência iluminada. Os senhores, por exemplo, poderão chamar a esta última a região A da personalidade, se assim o quiserem, deixando para chamar à outra parte região B. A região B, por conseguinte, é, manifestadamente, a parte maior de cada um de nós, pois é a morada de tudo o que se encontra latente e o reservatório de tudo o que passa sem ser registrado e sem ser observado. Contém, verbi gratia, coisas como todas tis nossas lembranças momentaneamente inativas, e abriga os mananciais de todas as nossas paixões, impulsos, simpatias, antipatias e preconceitos obscuramente motivados. Dela procedem nossas intuições, hipóteses, fantasias, superstições, persuasões, convicções e, de um modo geral, todas as nossas operações não racionais. É ela a fonte de nossos sonhos, os quais, aparentemente, podem regressar a ela. Nela desabrocha toda e qualquer experiência mística que possamos ter, bem como os nossos automatismos, sensoriais ou motores; a nossa vida em condições hipnóticas e “hipnóides”, se formos pessoas sujeitas a tais condições; nossas ilusões, idéias fixas e acidentes histéricos, se formos sujeitos histéricos; as nossas cognições supranormais, se as tivermos, e se formos sujeitos telepáticos. A região B da nossa personalidade é também o manancial de muita coisa que alimenta a nossa religião. Nas pessoas que se aprofundam na vida religiosa, como temos visto agora abundantemente - e esta é a minha conclusão — a porta para essa região, ao que tudo indica, está insolitamente escancarada; como quer que seja, as experiências que efetuam a sua entrada passando por essa porta têm tido uma influência enfática no afeiçoamento da história religiosa. Com esta conclusão que acabo de expor viro-me para trás e encerro o círculo que abri em minha primeira conferência, terminando dessa maneira a resenha que anunciei dos fenômenos religiosos interiores tais e quais os encontramos em indivíduos humanos capazes de expressar-se com clareza. Se o tempo mo permitisse, eu poderia, com facilidade, multiplicar não só meus documentos mas também minhas discriminações, mas tenho para mim que um tratamento amplo, em si mesmo, é melhor, e creio que as características mais importantes do assunto já se encontram delineadas diante de nós. Na próxima conferência, que é também a última, precisaremos tentar sacar as conclusões críticas que um material tão numeroso pode sugerir. XX Conferência CONCLUSÕES O material do nosso estudo da natureza humana está agora estendido diante de nós; e nesta hora de despedida, libertos da obrigação da descrição, podemos sacar nossas conclusões teóricas e práticas. Em minha primeira conferência, defendendo o método empírico, eu predisse que, fossem quais fossem as conclusões a que pudéssemos chegar, elas só poderiam ser alcançadas por julgamentos espirituais, por apreciações da importância da religião, tomada “em conjunto”, para a vida. Nossas conclusões não serão tão bem marcadas quanto o seriam conclusões dogmáticas, mas eu as formularei, em chegando o momento, tão marcadas quanto puder. Resumindo da maneira mais ampla possível as características da vida religiosa, tais como elas se nos depararam, encontramos as seguintes crenças: 1. Que o mundo visível é parte de um universo mais espiritual do qual ele tira sua principal significação; 2. Que a união ou a relação harmoniosa com esse universo mais elevado é a nossa verdadeira finalidade; 3. Que a oração ou a comunhão interior com o espírito desse universo mais elevado - seja ele “Deus” ou a “lei” - é um processo em que se faz realmente um trabalho, e em que a energia espiritual flui e produz efeitos, psicológicos ou materiais, dentro do mundo fenomênico. A religião inclui também as seguintes características psicológicas: 4. Um novo sabor que se adiciona como dádiva à vida, e que assume a forma de encantamento lírico ou apelo à veemência e ao heroísmo. 5. Uma certeza de segurança e uma mistura de paz e, em relação aos outros, uma preponderância de afeições extremosas. Ao ilustrar essas características por meio de documentos, nós nos banhamos, literalmente, em sentimento. Ao reler o meu manuscrito, sinto-me quase estarrecido diante da quantidade de emocionalidade que encontro nele. Diante disso, podemos dar-nos ao luxo de ser mais secos e menos simpáticos no restante do trabalho que se nos antolha. O sentimentalismo de muitos dos meus documentos é uma consequência do fato de que os procurei no meio das extravagâncias do assunto. Se alguns dos senhores são inimigos do que os nossos antepassados costumavam qualificar de entusiasmo, e ainda estão, apesar disso, ouvindo o que lhes digo, provavelmente acharam que a minha seleção foi, por vezes, quase perversa, e desejaram que eu me tivesse atido a exemplos mais sóbrios. Replico que optei por esses exemplos extremos porque eles fornecem a informação mais profunda. Para aprender os segredos de qualquer ciência, procuramos especialistas versados nela, ainda que sejam pessoas excêntricas, e não discípulos comuns. Combinamos o que eles nos dizem com o resto da nossa sabedoria e formamos o nosso juízo final independentemente. O mesmo acontece com a religião. Nós, que andamos à cata de expressões suas tão radicais podemos agora ter a certeza de que lhe conhecemos os segredos tão autenticamente quanto os conhece qualquer um que os aprende do outro; e temos, em seguida, de responder, cada um de nós por si mesmo, à pergunta prática: Quais são os perigos neste elemento da vida? e em que proporção necessita ele de ser restringido por outros elementos, para dar o equilíbrio apropriado? Mas esta pergunta sugere outra, à qual responderei imediatamente, a fim de arredá-la do caminho, pois não é esta a primeira vez que ela nos vexa.{327} Dever-se-á presumir que em todos os homens há de ser idêntica a mistura de religião com outros elementos? Dever-se-á presumir, com efeito, que as vidas de todos os homens hão de exibir elementos religiosos idênticos? Em outras palavras, é lamentável a existência de tantos tipos, seitas e credos religiosos? A essas perguntas respondo enfaticamente “Não”. E a minha razão é que não vejo como seria possível criaturas em posições tão diferentes e com tão diferentes poderes como são os indivíduos humanos, terem exatamente as mesmas funções e as mesmas obrigações. Não haverá dois dentre nós que tenham dificuldades idênticas, nem se poderá esperar deles que elaborem as mesmas soluções. Cada qual, do seu ângulo especial de observação, vê certa esfera de fato e de problema, com os quais lidará de maneira singular. Um de nós precisa suavizar-se, outro precisa endurecer-se; um precisa ceder num ponto, outro precisa manter-se firme - a fim de defender melhor a posição que lhe coube. Se um Emerson fosse obrigado a ser um Wesley, ou um Moody fosse forçado a ser um Whitman, a consciência humana total do divino sofreria. O divino não pode significar uma qualidade única, tem de significar um grupo de qualidades, e se diferentes homens forem paladinos delas alternadamente, poderão todos encontrar missões dignas. Sendo cada atitude uma sílaba na mensagem total da natureza humana, seremos necessários todos nós para soletrar completamente o significado. Assim, ter-se-á de consentir que um “deus das batalhas” seja o deus para uma espécie de pessoa, um deus da paz, do céu e do lar para outra. Urge reconhecer francamente o fato de que vivemos em sistemas parciais, e que partes não se intercambiam na vida espiritual. Se formos mal-humorados e invejosos, a destruição do eu terá de ser um elemento da nossa religião; e por quê terá de ser um elemento da nossa, se formos bons e simpáticos desde o princípio? Se formos almas doentes, precisaremos de uma religião de libertação; mas por que pensar tanto em libertação, se formos mentalmente equilibrados? {328} Não há dúvida alguma de que alguns homens têm a experiência mais completa e a vocação mais elevada, tanto aqui como no mundo social; mas o melhor será seguramente que cada homem fique em sua própria experiência, seja ela qual for, e que os outros o tolerem ali. Mas, poderão os senhores perguntar agora, essa unilateralidade não poderia ser curada se todos esposássemos a ciência das religiões como a nossa própria religião? Para responder a essa pergunta preciso trazer de novo à discussão as relações gerais da vida teórica com a vida ativa. O conhecimento de uma coisa não é a coisa. Os senhores se lembram do que Al-Ghazzali nos contou na Conferência sobre o Misticismo - que compreender as causas da embriaguez, como o médico as compreende, não é ficar bêbedo. Uma ciência pode vir a compreender tudo acerca das causas e dos elementos da religião, e pode até decidir quais os elementos qualificados, pela sua harmonia geral com outros ramos de conhecimento, para ser considerados verdadeiros; e, sem embargo disso, o melhor homem nesta ciência pode ser o homem que achou mais difícil ser pessoalmente devoto. Tout savoir c’est tout pardonner. O nome de Renan ocorreria, sem dúvida, a muitas pessoas como exemplo do modo com que a amplitude do conhecimento pode fazer de um indivíduo apenas um diletante em possibilidades, e embotar a agudeza da fé ativa da pessoa.{329} Se a religião for uma função pela qual a causa de Deus ou a causa do homem deva ser realmente promovida, então aquele que vive a vida dela, por mais estreitamente que a viva, será um servo melhor do que aquele que apenas sabe a respeito dela, por mais que saiba. O conhecimento da vida é uma coisa; a ocupação efetiva de um lugar na vida, com suas correntes dinâmicas passando através do nosso ser, é outra. Por essa razão, a ciência das religiões pode não ser um equivalente da religião viva; e se nos voltarmos para as dificuldades interiores de uma ciência como essa, vemos que surge um momento em que ela precisa renunciar à atitude puramente teórica, e ou deixar que seus nós permaneçam intactos, ou deixar que a fé ativa os corte. Para ver isso, suponhamos que temos a nossa ciência das religiões constituída com base em fatos incontestáveis. Suponhamos que ela tenha assimilado todo o material histórico necessário e destilado dele, como sua essência, as mesmas conclusões que pronunciei momentos atrás. Suponhamos que ela concorde em que à religião, embora seja uma coisa ativa, envolve uma crença em presenças ideais, e uma crença em que, em nossa devota comunhão com elas, {330} um trabalho se realiza e alguma coisa real acontece. Ela tem agora de exercer a sua atividade crítica, e decidir até que ponto, à luz de outras ciências e à da filosofia geral, tais crenças podem ser consideradas verdadeiras. Decidi-lo dogmaticamente é tarefa impossível. Não somente as outras ciências e a filosofia ainda estão longe de estar completas, mas também em seu estado presente encontramo-las cheias de conflitos. As ciências da natureza nada sabem de presenças espirituais e, no todo, não mantém nenhum comércio prático com as concepções idealistas para as quais se inclina a filosofia geral. O chamado cientista, durante suas horas científicas pelo menos, é tão materialista que podemos dizer que, no todo, a influência da ciência contraria a noção de que a religião deve ser reconhecida de algum modo. E essa simpatia pela religião encontra eco dentro da própria ciência das religiões, cujo cultivador precisa familiarizar-se com tantas superstições abjetas e horríveis, que lhe acode facilmente à cabeça a presunção de que qualquer crença religiosa é provavelmente falsa. Na “piedosa comunhão” dos selvagens com a infinidade de divindades que eles reconhecem, é difícil para nós averiguar que genuíno trabalho espiritual - ainda que fosse um trabalho apenas relativo às suas escuras obrigações de selvagens - pode ser feito. A consequência é que as conclusões da ciência das religiões têm tantas probabilidades de serem contrárias quantas têm de serem favoráveis à afirmação de que a essência da religião é verdadeira. Está no ar, entre nós, a noção de que a religião é provavelmente apenas um anacronismo, um caso de “sobrevivência”, uma reincidência atávica num modo de pensamento que a humanidade, em seus exemplos mais esclarecidos, ultrapassou; e, hoje em dia, os nossos antropólogos religiosos pouco fazem para contrapor-se a essa noção. Essa maneira de ver está tão difundida atualmente que me é necessário considerá-la com alguma pormenorização antes de passar às minhas conclusões. Permitam-me que lhe chame a “Teoria da sobrevivência”, por amor da brevidade. O eixo à cuja volta gira, como vimos, a vida religiosa, é o interesse do indivíduo pelo seu destino pessoal particular. A religião, em suma, é um capítulo monumental da história do egotismo humano. Os deuses em que as pessoas acreditam - sejam elas selvagens grosseiros ou homens intelectualmente disciplinados - concordam entre si no reconhecimento de chamados pessoais. O pensamento religioso é levado avante em termos de personalidade, sendo este, no mundo da religião, o único fato fundamental. Hoje, tanto quanto em qualquer época anterior, o indivíduo religioso nos diz que o divino vem ao seu encontro no terreno dos seus interesses pessoais. A ciência, por outro lado, acabou repudiando inteiramente o ponto de vista pessoal. Ela cataloga os seus elementos e registra as suas leis indiferente ao propósito que possam manifestar, e constrói suas teorias sem curar da relação delas com as ansiedades e destinos humanos. Conquanto o cientista possa, individualmente, ter uma religião e ser teísta em suas horas irresponsáveis, já se foram os dias em que se podia dizer que pela própria Ciência os céus declaram a glória de Deus e o firmamento mostra a obra de suas mãos. O nosso sistema solar, com suas harmonias, é visto agora como simples caso passageiro de uma espécie de equilíbrio móvel nos céus, realizado por um acidente local numa vastidão apavorante de mundos em que nenhuma vida pode existir. Num lapso de tempo que, como intervalo cósmico, não representará mais que uma hora, ele terá deixado de existir. A noção darwinia- na da produção casual e subsequente destruição, rápida ou retardada, aplica-se tanto aos fatos maiores quanto aos menores. É impossível, com a índole atual da imaginação científica, encontrar nos cursos dos átomos cósmicos, quer trabalhem em escala universal, quer o façam em escala particular, alguma coisa senão uma espécie de tempo sem rumo, fazendo e desfazendo, que não realiza nenhuma história apropriada e não deixa resultado algum. A natureza não tem nenhuma tendência final distinguível pela qual seja possível sentir simpatia. No vasto ritmo dos seus processos, como a mente científica agora os segue, ela parece cancelar-se a si mesma. Os livros de teologia natural, que satisfaziam os intelectos de nossos avós, afiguram-se-nos grotescos,{331} representando, como o faziam, um Deus que adequava as maiores coisas da natureza às mais insignificantes das nossas necessidades particulares. O Deus que a ciência reconhece há de ser um Deus exclusivamente de leis naturais, um Deus que faz negócios por atacado e não a varejo. Ele não pode acomodar os seus processos à conveniência dos indivíduos. As bolhas existentes na espuma que recobre um mar tormentoso são episódios flutuantes, feitos e desfeitos pelas forças do vento e da água. Nossos eus privados semelham essas bolhas - epifenômenos, como Clifford, se não me falha a memória, engenhosamente lhes chamou; os seus destinos nada pesam e nada determinam nas irremediáveis correntes de acontecimentos do mundo. Os senhores estão vendo como é natural, desde este ponto de vista, tratar a religião como mera sobrevivência, pois a religião, com efeito, perpetua as tradições do pensamento mais primitivo. Coagir os poderes espirituais, ou enquadrá-los e atraí-los para o nosso lado foi, durante enormes períodos de tempo, o nosso único grande objetivo ao tratar com o mundo natural. Para os nossos antepassados, os sonhos, as alucinações, as revelações e as histórias do arco da velha estavam inextricavelmente misturadas aos fatos. Até uma data relativamente recente distinções como essas entre o que fora verificado e o que fora apenas conjeturado, entre os aspectos impessoais e pessoais da existência, eram escassamente suspeitadas ou concebidas. O que quer que imaginássemos de uma forma viva, o que quer que julgássemos apto para ser verdadeiro, afirmávamos confiadamente; e no que quer que afirmássemos, nossos camaradas acreditavam. A verdade era o que ainda não fora contestado. A mente aceitava a maioria das coisas do ponto de vista da sua sugestibilidade humana, e a atenção limitava-se exclusivamente aos aspectos estéticos e dramáticos dos acontecimentos.{332} E como poderia ter sido de outro modo? O valor extraordinário, para a explicação e a previsão, dos modos matemáticos e mecânicos de concepção que a ciência emprega, era um resultado que não poderia ter sido esperado com antecedência. Peso, movimento, velocidade, direção, posição, que idéias magras, pálidas, desinteressantes! Como poderiam os aspectos animísticos mais ricos da Natureza, as peculiaridades e singularidades que tomam os fenômenos pitorescamente dignos de nota ou expressivos, deixar de ser primeiro escolhidos e seguidos pela filosofia como a avenida mais promissora que leva ao conhecimento da vida da Natureza? Bem, é ainda nesses aspectos animísticos e dramáticos mais ricos que a religião se compraz em demorar-se. É pelo terror e beleza dos fenômenos, pela “promessa” da aurora e do arco-íris, pela “voz” do trovão, pela “suavidade” da chuva de verão, pela “sublimidade” das estrelas, e não pelas leis físicas que essas coisas seguem, que a mente religiosa continua a sentir-se mais impressionada; e exatamente como em outro tempo, o homem devoto nos diz que na solidão do seu quarto ou dos campos ainda sente a presença divina, que influxos de ajuda surgem em resposta às suas preces, e que os sacrifícios a essa realidade invisível enchem-no de segurança e paz. Puro anacronismo! brada a teoria da sobrevivência; anacronismo para o qual o remédio requerido é a desantropomorfização da imaginação. Quanto menos misturarmos o particular com o cósmico, quanto mais nos estendermos em termos universais e impessoais, tanto mais nos tomaremos verdadeiros herdeiros da Ciência. Apesar do apelo que essa impessoalidade da atitude científica faz a uma certa magnanimidade de temperamento, tenho para mim que ela é superficial, e posso agora expor minha razão em poucas palavras. A razão é que, enquanto lidarmos com o cósmico e o geral, lidaremos apenas com os símbolos da realidade, mas logo que lidarmos com fenômenos privados e pessoais como tais, estaremos lidando com realidades no sentido mais completo do termo. Creio que posso facilmente deixar claro o que pretendo dizer com essas palavras. O mundo da nossa experiência consiste sempre em duas partes, uma objetiva e outra subjetiva; a primeira pode ser incalculavelmente mais extensa do que a última, mas a última nunca pode ser omitida nem suprimida. A parte é a soma total de tudo em que estivermos pensando em dado momento, a parte subjetiva é o “estado” interior em que o processo de pensar se realiza. Aquilo em que pensamos pode ser enorme - os tempos e espaços cósmicos, por exemplo - ao passo que o estado interior pode ser a atividade mais fugitiva e insignificante da mente. Entretanto, os objetos cósmicos, na medida em que a experiência os oferece, são apenas imagens ideais de alguma coisa cuja existência não possuímos interiormente, mas apenas miramos exteriomente, ao passo que o estado interior é a nossa própria experiência; sua realidade e a da nossa experiência são uma só. Um campo consciente mais seu objeto sentido ou pensado, mais uma atitude para com o objeto, mais o sentido do eu a que pertence a atitude - um pedaço concreto de experiência pessoal nessas condições pode ser um pedaço pequeno, mas é um pedaço sólido enquanto dura; não é oco, nem um mero elemento abstrato de experiência, tal como é o “objeto” tomado sozinho. É um fato pleno, ainda que seja insignificante; é um fato do tipo a que todas as realidades, sejam elas quais forem, precisam pertencer; as correntes motoras do mundo correm através de algo igual a isso; está na linha que liga eventos reais. Esse sentimento, que não pode ser partilhado, e que cada um de nós tem do valor do seu destino individual, quando o sente rolando sobre a roda da fortuna, pode ser desacreditado pelo seu egotismo, ou chasqueado por não ser científico, mas é a única coisa que enche a medida da nossa realidade concreta, e qualquer existência presumida que carecesse desse sentimento, ou do seu análogo, seria uma peça de realidade desenvolvida apenas pela metade.{333} Se isto for verdade, é absurdo para a ciência dizer que os elementos egotistas da experiência devem ser suprimidos. O eixo da realidade só gira através dos pontos egotistas - que estão enfiados nele como outras tantas contas. Descrever o mundo com todos os vários sentimentos do valor individual do destino, todas as várias atitudes espirituais, deixados fora da descrição - sendo eles tão descritíveis quanto qualquer outra coisa — seria o mesmo que oferecer um cardápio como o equivalente de uma sólida refeição. A religião não comete tais erros. A religião do indivíduo pode ser egotista, e as realidades privadas com as quais ele mantém contato podem ser bastante estreitas; mas, seja como for, ela sempre permanece infinitamente menos vazia e abstrata, no seu campo, do que uma ciência que se envaidece de não tomar conhecimento de nada particular. Um cardápio que trouxesse uma uva de verdade em lugar da palavra “uva”, um ovo de verdade em vez da palavra “ovo”, talvez não fosse uma refeição adequada mas seria, pelo menos, um começo de realidade. A alegação da teoria da sobrevivência de que devemos ater-nos exclusivamente a elementos não-pessoais parece o mesmo que dizer que devemos satisfazernos para sempre com a leitura do cardápio vazio. Creio, portanto, que, seja como for que perguntas particulares ligadas aos nossos destinos individuais podem ser respondidas, somente reconhecendo-as como perguntas genuínas, e vivendo na esfera de pensamento que elas nos abrem, podemos aprofundarnos nas coisas. Mas viver assim é ser religioso; por isso repudio, sem um momento de hesitação, a teoria da sobrevivência da religião, como fundada num egrégio equívoco. Disso não se segue que, por terem os nossos antepassados cometido tantos erros de fato, misturando-os com a sua religião, devemos deixar de ser religiosos de qualquer modo.{334} Sendo religiosos, nós nos estabelecemos na posse da realidade final nos únicos pontos em que nos é dado defender a realidade. Afinal de contas, a nossa responsabilidade é para com o nosso destino particular. Vemos agora por que tenho sido tão individualista em todas estas conferências, e por que tenho parecido tão inclinado a reabilitar o elemento sentimental na religião e a subordinar-lhe a parte intelectual. A individualidade funda-se no sentimento; e os recessos do sentimento, os estratos mais escuros, mais cegos do caráter são os únicos lugares do mundo em que surpreendemos o fato real em formação e percebemos diretamente como acontecem os eventos, e como o trabalho é realmente feito.{335} Comparado com este mundo de sentimentos vivos individualizados, o mundo dos objetos generalizados que o intelecto contempla não tem solidez nem vida. Como nas imagens estereoscópicas ou cinetoscópicas vistas fora do instrumento, a terceira dimensão, o movimento, o elemento vital não estão ali. Obtemos uma bela imagem de um trem expresso que se supõe em movimento, mas onde está no quadro, como ouvi perguntar um amigo meu, a energia ou as cinquenta milhas por hora?{336} Concordemos, portanto, em que a Religião, ocupando-se de destinos pessoais e mantendo-se, assim, em contacto com as únicas realidades absolutas que conhecemos, deverá, necessariamente, desempenhar uma parte eterna na história humana. O que deve ser decidido em seguida é o que ela revela a respeito desses destinos, ou se revela alguma coisa tão distinta que se possa considerar uma mensagem geral ao gênero humano. Como os senhores estão vendo, acabamos com os nossos preliminares e podemos iniciar agora a nossa recapitulação. Estou perfeitamente ciente de que depois de todos os palpitantes documentos que citei, e de todas as perspectivas de instituição e crença inspiradoras de emoção que minhas conferências anteriores abriram, a análise árida para a qual me encaminho pode parecer a muitos dos senhores um anti clímax, uma diminuição gradual e um achatamento do assunto, em lugar de um crescendo de interesse e resultado. Eu disse há pouco que a atitude religiosa dos protestantes parece paupérrima à imaginação católica. Receio, todavia, que ainda mais pobre deverá parecer, a princípio, a alguns dos senhores, minha recapitulação final do assunto. Em razão do que lhes rogo que tenham em mente este ponto, a saber, que na presente parte dela estou tentando expressamente reduzir a religião aos seus termos mais baixos admissíveis, àquele mínimo, livre de excrescências individualistas, que todas as religiões contêm como núcleo, e sobre o qual é de esperar que todas as pessoas religiosas concordem. Dito isso, devemos ter um resultado que pode ser pequeno mas que, pelo menos, é sólido; e nele e em tomo dele as crenças adicionais mais sadias a que os diferentes indivíduos se aventuram podem ser enxertadas e florescer tão ricamente quanto lhes aprouver. Acrescentarei minha própria supercrença (que será, confesso-o, de um tipo um tanto pálido, como quadra a um filósofo crítico), e espero que os senhores também adicionem as suas, e logo estaremos, mais uma vez, no mundo variado das construções religiosas concretas. Por enquanto, seja-me permitido prosseguir aridamente na parte analítica da tarefa. Tanto o pensamento quanto o sentimento são determinantes da conduta, e a mesma conduta tanto pode ser determinada pelo sentimento quanto pelo pensamento. Quando examinamos todo o campo da religião, encontramos grande variedade nos pensamentos que ali prevaleceram; mas os sentimentos, de um lado, e a conduta, de outro, são quase sempre os mesmos, pois os santos estóicos, cristãos e budistas são praticamente indistinguíveis em suas vidas respectivas. Sendo assim variáveis, as teorias geradas pela Religião são secundárias; e se os senhores quiserem capturar-lhes a essência, terão de olhar para os sentimentos e para a conduta como os elementos mais constantes. É entre os dois elementos que se produz o curto-circuito pelo qual ela faz passar o seu tráfico principal, enquanto as idéias, os símbolos e outras instituições formam circuitos indiretos que podem ser aperfeiçoamentos e melhoramentos, e talvez até um dia, estejam todos unidos num sistema harmonioso, mas que não devem ser considerados órgãos com uma função indispensável, sempre necessária ao prosseguimento da vida religiosa. Esta me parece ser a primeira conclusão que estamos autorizados a sacar dos fenômenos que passamos em revista. O passo seguinte consiste em caracterizar os sentimentos. A que ordem psicológica pertencem eles? A resultante deles, de qualquer maneira, é o que Kant denomina afeição “estênica”, excitação de índole alegre, expansiva, “dinamogênica”, que, como qualquer tônico, nos restaura as forças vitais. Em quase todas as conferências, mas sobretudo nas conferências sobre Conversão e sobre Santidade, vimos essa emoção sobrepujar a melancolia temperamental e transmitir resistência ao Sujeito, ou um sabor, um significado, um encantamento, uma glória aos objetos comuns da vida.{337} O nome de “estado de fé” pelo qual o Professor Leuba o designa é um bom nome. {338} Trata-se de uma condição assim biológica como psicológica, e Tolstoi classifica com absoluta precisão a fé entre as forças pelas quais os homens vivem.{339} A sua ausência total, a anedonia,{340} significa colapso. O estado de fé pode encerrar um mínimo diminuto de conteúdo intelectual. Vimos exemplos disso nos súbitos raptos da presença divina, ou nos acessos místicos pelo Dr. Bucke.{341} Pode ser um mero entusiasmo vago, semi-espiritual, semi vital, uma coragem e um sentimento de que grandes e maravilhosas coisas estão no ar.{342} Quando, porém, um conteúdo intelectual positivo se associa ao estado de fé, ele é indelevelmente gravado na crença.{343} e isso explica a lealdade apaixonada das pessoas religiosas, em toda a parte, às menores minúcias dos seus credos tão amplamente diferentes. Tomando os credos e o estado de fé ao mesmo tempo, de modo que formem “religiões”, e tratando-os como fenômenos puramente subjetivos, sem atentarmos para a questão da sua “verdade”, somos obrigados, por força da sua extraordinária influência sobre a ação e a resistência, a classificá-los entre as mais importantes funções biológicas do gênero humano. O seu efeito estimulante e anestésico é tão grande que o Professor Leuba, em artigo recente,{344} chega a ponto de dizer que enquanto os homens puderem usar o seu Deus, não se darão ao trabalho de indagar quem é ele, ou mesmo se ele é. “A verdade do assunto pode ser colocada”, diz Leuba, “desta maneira: Deus não é conhecido, nem compreendido; Deus é usado - às vezes como fornecedor de alimentos, outras como sustentáculo moral, às vezes como amigo, às vezes como objeto de amor. Se revela útil, a consciência religiosa não lhe pede mais do que isso. Existe Deus realmente? Como existe? O que é ele? são outras tantas perguntas irrelevantes. Não Deus, mas a vida, mais vida, uma vida maior, mais rica, mais satisfatória, em última análise, é a finalidade da religião. O amor à vida, em qualquer nível de desenvolvimento e em todos eles, é o impulso religioso.”{345} Nessa classificação puramente subjetiva, portanto, a Religião há de ser considerada vindicada, de certa maneira, dos ataques dos seus críticos. Dirse-á que ela não pode ser mero anacronismo e sobrevivência, mas deve exercer uma função permanente, quer tenha quer não tenha conteúdo intelectual e, se tiver algum, se este é verdadeiro ou falso. Em seguida, cumpre-nos passar além do ponto de vista da mera utilidade subjetiva, e indagar do próprio conteúdo intelectual. Primeiro, existe, debaixo de todas as discrepâncias dos credos, um núcleo comum de que eles possam dar testemunho de maneira unânime? E, segundo, devemos considerar verdadeiro o testemunho? Tomarei primeiro a primeira pergunta e responderei a ela, de pronto, afirmativamente. Os deuses e fórmulas das várias religiões, que guerreiam entre si, efetivamente se anulam uns aos outros, mas existe certo julgamento uniforme em que todas as religiões parecem encontrar-se. Ele consiste em duas partes: 1. Uma inquietude; e 2. sua solução. 1. Reduzida à expressão mais simples, a inquietude é um sentido de que existe alguma coisa errada a nosso respeito tal como estamos naturalmente. 2. A solução é um sentido de que estaremos salvos do erro se fizermos uma conexão apropriada com os poderes superiores. Nas mentes mais desenvolvidas, que são as únicas que estamos estudando, o erro assume um caráter moral, e a salvação, um toque místico. Creio que nos manteremos bem dentro dos limites do comum a todas essas mentes se formularmos a essência da sua experiência religiosa em termos como estes: Na medida em que sofre em consequência do seu erro e o critica, o indivíduo, até esse ponto, está conscientemente além dele e num contacto pelo menos possível com alguma coisa mais elevada, se é que existe alguma coisa mais elevada. Juntamente com a parte errada há nele uma parte melhor, ainda que seja tão-somente um germe impotente. Nessa fase, não é de modo algum evidente a parte com que ele deve identificar o seu verdadeiro ser; mas quando chega a fase 2 (a fase da solução ou salvação),{346} o homem identifica o seu verdadeiro ser com a parte germinal mais elevada de si mesmo; e fá-lo da seguinte maneira. Torna-se consciente de que essa parte mais elevada é contínua e vizinha de um MAIS da mesma qualidade, operativo no universo fora dele, e com quem ele pode manter um contato ativo e, de certo modo, subir a bordo e salvar-se quando todo o seu ser inferior se houver estraçalhado no naufrágio. A mim me parece que todos esses fenômenos são acuradamente descritíveis nestes termos gerais muito simples.{347} Eles admitem o eu dividido e a luta; envolvem a mudança do centro pessoal e o abandono do eu inferior; expressam a aparência de exterioridade do poder ajudador e ainda explicam o nosso sentido de união com ele;{348} e justificam plenamente nossos sentimentos de segurança e alegria. Não existe, provavelmente, nenhum documento autobiográfico, entre todos os que citei, ao qual não se aplique bem a descrição. Basta-nos apenas acrescentar os pormenores específicos capazes de adaptá-la a várias teologias e temperamentos pessoais, e teremos então as diversas experiências reconstruídas em suas formas individuais. Até onde vai, todavia, esta análise, as experiências são apenas fenômenos psicológicos. É verdade que possuem enorme valor biológico. A força espiritual realmente aumenta no sujeito quando ele as tem, uma nova vida abre-se para ele, e elas lhe parecem um sítio de confluência em que se encontram as forças de dois universos; e, no entanto, isso pode ser apenas a sua maneira subjetiva de sentir as coisas, um estado de espírito da própria fantasia, apesar dos efeitos produzidos. Volto-me agora para a minha segunda pergunta: Qual é a “verdade” objetiva do seu conteúdo?{349} A parte do conteúdo a cujo respeito deve surgir mais pertinentemente a questão da verdade é aquele “MAIS da mesma qualidade” com o qual o nosso eu superior parece, na experiência, entrar numa relação ativa harmoniosa. Será esse “mais” apenas a nossa própria noção, ou de fato existe? Se existe, em que forma existe? E age, além de existir? E em que forma deveríamos conceber a “união” com ele de que os gênios religiosos se mostram tão convictos? E ao responder a essas perguntas que as várias teologias realizam o seu trabalho teórico, e suas divergências, na maior parte, vêm à luz. Todas concordam em que o “mais” realmente existe; se bem algumas lhe sustentem a existência na forma de um deus ou deuses pessoais, ao passo que outras se satisfazem em concebê-lo como uma corrente de tendência ideal embutida na eterna estrutura do mundo. Todas concordam, além disso, em que ele tanto age quanto existe e que alguma coisa realmente se opera para o melhor quando atiramos nossa vida em suas mãos. É quando tratam da experiência de “união” com ele que as suas diferenças especulativas aparecem mais claras. Sobre esse ponto o panteísmo e o teísmo, a natureza e o segundo nascimento, obras, graças e karma, imortalidade e reencarnação, racionalismo e misticismo, travam disputas inveteradas. No fim da minha conferência sobre Filosofia,{350} sustentei que a noção de que uma ciência imparcial das religiões pode joeirar do meio de suas discrepâncias um corpo comum de doutrina e também pode formulá-lo em termos tais que a ciência física não tenha o que lhe objetar. E pode, disse eu, adotá-lo por sua própria hipótese conciliadora, e recomendá-lo à crença geral. Eu também disse que em minha última conferência teria de tentar a mão na elaboração de uma hipótese assim. Chegou o momento da tentativa. Quem diz “hipótese” renuncia à ambição de ser coativo em seus argumentos. Conseguintemente, o máximo que posso fazer é oferecer alguma coisa que se ajuste com tanta facilidade aos fatos que a lógica científica não encontrará nenhum pretexto plausível para vetar o impulso de acolhê-lo como verdadeiro. O “mais”, como lhe chamamos, e o sentido da nossa “união” com ele, formam o núcleo da nossa indagação. Em que descrição definida podem ser traduzidas essas palavras e em que fatos definidos elas representam? Não nos conviria colocar-nos desde já no lugar de determinada teologia, por exemplo, e passar imediatamente a definir o “mais” como Jeová, e a “união” como sua imputação a nós da justiça de Cristo. Sobre ser injusto com outras religiões, pelo menos do nosso atual ponto de vista, isso seria uma supercrença. Precisamos começar usando termos menos particularizados; e, visto que uma das obrigações da ciência das religiões é manter a religião em conexão com o resto da ciência, bem andaremos procurando, primeiro que tudo, um modo de descrever o “mais” que os psicólogos também possam reconhecer como real. O eu subconsciente, hoje em dia, é uma entidade psicológica bem acreditada; e, no meu entender, temos nele exatamente o termo intermediário que se faz preciso. Abstraindo todas as considerações religiosas, existe real e literalmente mais vida em nossa alma total do que temos consciência disso num momento qualquer. A exploração do campo transmarginal não foi até agora empreendida com seriedade, mas o que o Sr. Myers disse em 1892 em seu ensaio sobre a Consciência Subliminal{351} é tão verdadeiro quanto o era ao ser escrito: “Cada um de nós, na realidade, é uma entidade psíquica permanente muito mais extensa do que supõe - uma individualidade que nunca pode expressar-se completamente através de nenhuma manifestação corpórea. O Eu manifesta-se através do organismo; mas há sempre alguma parte do Eu não manifestada; e sempre, ao que parece, algum poder de expressão orgânica em latência ou em reserva.”{352} Grande parte do conteúdo deste fundo de quadro mais vasto, diante do qual o nosso ser consciente se apresenta em relevo, é insignificante. Lembranças imperfeitas, tolas consonâncias, timidezas inibidoras, fenômenos “dissolutivos” de várias espécies, como Myers lhes chama, entram nele em grandes proporções. Mas parece que nele também têm sua origem muitas manifestações do gênio; e em nosso estudo da conversão, de experiência místicas e da oração, vimos a parte extraordinária que as invasões provenientes dessa região desempenham na vida religiosa. Seja-me, pois, lícito propor, à guisa de hipótese, que o que quer que ele possa ser em seu lado mais distante, o “mais” ao qual na experiência religiosa nos sentimos ligados é, em seu lado mais próximo, a continuação subconsciente da nossa vida consciente. Começando, portanto, com um fato psicológico reconhecido como nossa base, parecemos preservar um contato com a “ciência” que o teólogo comum não tem. Ao mesmo tempo, justifica-se a afirmação do teólogo de que o homem religioso é movido por uma força externa, pois uma das peculiaridades das invasões procedentes da região subconsciente é assumir aparências objetivas, e sugerir ao Sujeito um controle externo. Na vida religiosa sente-se o controle como “superior”; mas visto que, em nossa hipótese, são em primeiro lugar as faculdades superiores de nossa própria mente oculta que mais influem, o sentido de união com o poder além de nós é o sentido de alguma coisa que se diria, não apenas aparentemente, senão literalmente, verdadeira. Essa porta para o assunto afigura-se-me a melhor para uma ciência das religiões, pois medeia entre certo número de diferentes pontos de vista. Entretanto é apenas uma porta, e as dificuldades se apresentam logo que a transpomos e perguntamos até onde a nossa consciência transmarginal nos levará se a seguirmos em seu lado mais remoto. Aqui começam as supercrenças: aqui o misticismo, o rapto da conversão, o Vedantismo e o idealismo transcendental introduzem suas interpretações monísticas{353} e nos dizem que o eu finito se junta ao eu absoluto, pois ele sempre se identificou com Deus e foi idêntico à alma do mundo.{354} Aqui os profetas de todas as diferentes religiões chegam com suas visões, vozes, raptos e outras manifestações que, no entender de cada um, autenticam a sua própria fé particular. Aqueles dentre nós não pessoalmente favorecidos com tais revelações específicas precisam ficar totalmente fora delas, e, pelo menos por enquanto, decidir que, já que elas corroboram doutrinas teológicas incompatíveis, neutralizam-se umas às outras e não deixam nenhum resultado fixo. Se seguirmos qualquer uma delas, ou se seguirmos uma teoria filosófica e abraçarmos o panteísmo monístico em bases não-místicas, fá-lo-emos no exercício de nossa liberdade individual, e construiremos a nossa religião da maneira mais congruente com as nossas suscetibilidades pessoais, entre as quais as intelectuais representam um papel decisivo. Posto que a questão seja, em primeiro lugar, uma questão de vida, de viver ou não viver na união mais elevada que se abre para nós como dádiva, a excitação espiritual em que a dádiva parece real muitas vezes deixará de ser despertada num indivíduo enquanto não forem tocadas certas crenças ou idéias intelectuais particulares que, como costumamos dizer, lhe são caras e naturais.{355} Dessa maneira, tais idéias serão essenciais à religião daquele indivíduo; e o mesmo é dizer que supercrenças em várias direções são absolutamente indispensáveis, e que devemos tratá-las com ternura e tolerância enquanto elas mesmas não forem intolerantes. Como escrevi algures, as coisas mais interessantes e valiosas a respeito de um homem são, de ordinário, as suas supercrenças. Não fazendo caso das supercrenças, e limitando-nos ao que é comum e genérico, temos no fato de que a pessoa consciente é contínua com um eu mais amplo através do qual sobrevêm a experiência salvadora,{356} um conteúdo positivo de experiência religiosa que, segundo me parece, é literal e objetivamente verdadeiro em toda a sua extensão. Se agora passo a expor minha própria hipótese acerca dos limites mais afastados dessa extensão da nossa personalidade, estarei oferecendo minha própria supercrença - embora saiba que ela parecerá uma triste subcrença para alguns dos senhores - para a qual só poderei solicitar a mesma indulgência que, num caso inverso, eu concederia às dos senhores. A mim me parece que os limites mais distantes do nosso ser mergulham numa dimensão inteiramente outra de existência do mundo sensível e meramente “compreensível”. Chamem-lhe região mística, ou região sobrenatural, como quiserem. Na medida em que os nossos impulsos ideais se originam dessa região (e a maioria deles se origina dela, pois vemos que eles nos possuem de um modo que não podemos explicar articuladamente), nós pertencemos a ela num sentido mais íntimo do que aquele em que pertencemos ao mundo visível, pois estamos ligados, no sentido mais íntimo, ao que quer que pertençam os nossos ideais. Não obstante, a região invisível em apreço não é meramente ideal, pois produz efeitos neste mundo. Quando comungamos com ela, efetua-se realmente um trabalho sobre a nossa personalidade finita, pois somos transformados em novos homens, e consequências no campo da conduta se produzem no mundo natural em seguimento da nossa mudança regenerativa.{357} Mas como aquilo que produz efeitos dentro de outra realidade precisa ser chamado de realidade também, a mim me parece não haver uma desculpa filosófica para qualificar de irreal o mundo invisível ou místico. Deus é a apelação natural, pelo menos para nós, cristãos, da realidade suprema, e por isso darei a essa parte superior do universo o nome de Deus. {358} Nós e Deus temos negócios para tratar e ao abrir-nos à sua influência cumpre-se o nosso destino mais profundo. O universo, nas partes que constituem a nossa essência pessoal, ora se dirige para o pior, ora para o melhor, na proporção em que cada um de nós cumpre ou evade as exigências de Deus. Creio que os senhores, provavelmente, concordarão comigo, pois apenas traduzo em linguagem esquemática o que posso denominar a crença instintiva da humanidade: Deus é real porque produz efeitos reais. Os efeitos reais em tela, na medida em que até agora os admiti, são exercidos sobre os centros pessoais de energia dos vários sujeitos, mas a fé espontânea da maioria dos sujeitos abraça uma esfera mais dilatada do que esta. A maioria dos homens religiosos acredita (ou “sabe”, se for mística) que não somente ela mesma, porém todo o universo de seres para os quais Deus se acha presente, estão seguros em suas mãos de pai. Eles têm a certeza de que há um sentido, uma dimensão, em que todos estamos salvos, a despeito das portas do inferno e de todas as aparências terrestres adversas. A existência de Deus é a garantia de uma ordem ideal, que será permanentemente preservada. Este mundo, como a ciência nos assegura, poderá, um dia, abrasar-se ou gelar; mas se isso fizer parte da sua ordem, os velhos ideais serão seguramente satisfeitos de algum modo, de sorte que, onde Deus está, a tragédia é apenas provisória e parcial, e o naufrágio e a dissolução não são, de maneira alguma, coisas absolutamente finais. Somente quando for dado esse passo ulterior, mais distante, da fé em Deus, e as consequências objetivas remotas forem preditas, a religião, parece-me, ficará inteiramente livre da primeira experiência subjetiva imediata, e porá em campo uma hipótese verdadeira. Uma boa hipótese na ciência precisa ter outras propriedades além das dos fenômenos que ela é diretamente chamada a explicar pois, de outro modo, não será assaz prolífica. Quando significa apenas o que entra na experiência de união do homem religioso, Deus não chega a ser uma hipótese dessa ordem mais útil. É forçoso que ele entre em relações cósmicas mais amplas a fim de justificar a confiança e a paz absolutas do sujeito. Que o Deus com o qual, partindo do lado mais próximo, do nosso eu extramarginal, chegamos à sua margem mais remota, seja o soberano absoluto do mundo, é, sem dúvida, uma supercrença considerável. A supercrença, tal qual é, todavia, constitui um artigo da religião de quase todas as pessoas. Quase todos nós pretendemos, de certa maneira, apoiá-lo na nossa filosofia, mas a própria filosofia é realmente apoiada por essa fé. Que é isso senão dizer que a Religião, em sua expressão mais plena, não é mera iluminação de fatos já dados em outro lugar, nem uma simples paixão, como o amor, que vê as coisas a uma luz mais cor-de-rosa. É tudo isso, na verdade, como temos visto à sociedade. Mas é alguma coisa mais, a saber, um postulador de fatos novos também. O mundo interpretado religiosamente não é o mundo materialista de sempre, com expressão alterada; precisa ter, além do mais, e acima da expressão alterada, uma constituição natural diferente, em algum ponto, daquela que um mundo materialista deve ter. E há de ser de tal ordem que se devem prever nele acontecimentos diferentes, e uma conduta diferente deve ser requerida. Essa visão inteiramente “pragmática” da religião tem sido, por via de regra, tomada pelos homens comuns como coisa lógica de se esperar. Eles interpolaram milagres divinos no campo da natureza, construíram um céu além-túmulo. Só os metafísicos transcendentalistas pensam que, sem acrescentar quaisquer pormenores concretos à Natureza, ou sem subtrair nenhum, mas simplesmente chamando-lhe a expressão do espírito absoluto, nós a tornamos ainda mais divina simplesmente deixando-a como é. Segundo a minha maneira de ver, o modo pragmático de considerar a religião é o mais profundo. Dá-lhe corpo assim como lhe dá alma, fá-lo reivindicar para si, como tudo o que é real precisa reivindicar, algum reino característico de fatos. O que são os fatos mais caracteristicamente divinos, independentemente do influxo real de energia no estado de fé e no de oração, não sei. Mas a supercrença à qual estou pronto para aventurar-me pessoalmente é que eles existem. Toda a corrente da minha educação tende a persuadir-me de que o mundo da nossa consciência presente é apenas um dentre os inúmeros mundos de consciência que existem, e que esses outros mundos devem conter experiências providas também de um significado para a nossa vida; e que embora tais experiências e as experiências deste mundo sejam discretas, em certos pontos se tomam contínuas, e energias mais elevadas filtram-se até nós. Sendo fiel, na medida das minhas pobres forças, a esta supercrença, dou a impressão a mim mesmo de que me mantenho mais são e mais verdadeiro. Está visto que posso colocar-me na atitude do cientista sectário e imaginar vividamente que o mundo das sensações, das leis e dos objetos científicos pode ser tudo. Entretanto, toda vez que faço isso, ouço o monitor interno, a cujo respeito W. K. Clifford escreveu certa vez, murmurando a palavra “bobagem”! Impostura é impostura, ainda que traga um nome científico, e a expressão total da experiência humana, qual a vejo objetivamente, me empurra de maneira irresistível para além dos acanhados limites “científicos”. O mundo real tem, seguramente, um temperamento diferente mais intricadamente construído do que o permite a ciência física. Nestas circunstâncias, tanto a minha consciência objetiva quanto a subjetiva me fazem abraçar, ambas, estreitamente, a supercrença que expresso. Quem sabe se a fidelidade dos indivíduos aqui embaixo às suas miseráveis supercrenças não seja para ajudar a Deus, na realidade, a ser, por seu turno, mais efetivamente fiel às suas próprias tarefas mais excelsas? PÓS-ESCRITO Ao redigir minha conferência final foi-me preciso visar tanto à simplificação que receio que a exposição da minha posição filosófica geral foi tão deficiente que dificilmente será inteligível a alguns dos meus leitores. Acrescento-lhe, portanto, este epílogo que, precisando também ser muito curto, pouco remediará o defeito. Numa obra subsequente eu talvez possa expor minha posição de maneira mais ampla e, consequentemente, mais clara. Não se pode esperar originalidade num campo como este, em que todas as atitudes e temperamentos possíveis foram exibidos na literatura há muito tempo, e onde qualquer escritor novo pode ser imediatamente enquadrado num capítulo familiar. Se devêssemos fazer uma divisão de todos os pensadores e naturalistas e sobrenaturalistas, eu seria incluído, sem dúvida nenhuma, juntamente com a maioria dos filósofos, na categoria dos sobrenaturalistas. Existe, porém, um sobrenaturalismo mais crasso e outro mais refinado, e à divisão refinada pertence a maioria dos filósofos de hoje. Ainda que não sejam idealistas transcendentais ortodoxos, eles, pelo menos, obedecem suficientemente à orientação kantiana para impedir entidades ideais de interferir causalmente no curso dos eventos fenomenais. O sobrenaturalismo refinado é o sobrenaturalismo universalista; para a variedade “mais crassa” o melhor nome talvez fosse sobrenaturalismo “gradativo”. Harmoniza-se com aquela teologia mais velha que hoje, segundo se supõe, só reina entre pessoas incultas, ou se encontra entre os poucos professores atrasados dos dualismos que Kant, segundo se crê, destruiu. Admite milagres e direções providenciais, e não encontra dificuldade intelectual em misturar o mundo ideal ao mundo real interpolando influências da região ideal entre as forças que casualmente determinam os pormenores do mundo real. Nisto os sobrenaturalistas refinados crêem que se embaralham as dimissões díspares da existência. Para eles o mundo do ideal não tem causalidade eficiente, e nunca irrompe em pontos particulares do mundo dos fenômenos. O mundo ideal, para eles, não é um mundo de fatos, mas apenas de significações de fatos; é um ponto de vista para julgar fatos. Pertence a uma “logia” diferente, e habita uma dimensão de ser inteiramente diferente daquela em que prevalecem as proposições existenciais. Não pode descer ao nível da experiência e interpolar-se gradativamente entre as porções distintas da natureza, como pro- pendem a pensar os que acreditam, por exemplo, na ajuda divina em resposta à oração. Sem embargo da minha própria incapacidade de aceitar o Cristianismo popular ou o teísmo escolástico, suponho que a minha crença em que pela comunhão com o ideal uma nova força se introduz no mundo, e novas iniciativas são tomadas aqui embaixo, me sujeita a ser classificado entre os sobrenaturalistas do tipo gradativo ou mais crasso. Tenho para mim que o sobrenaturalismo universalista se entrega com demasiada facilidade ao naturalismo. Aceita os fatos da ciência física pelo seu valor aparente, e deixa as leis da vida exatamente como o naturalismo as encontra, sem esperança de remédio, no caso de serem maus os seus frutos. Limita-se aos sentimentos sobre a vida como um todo, sentimentos que podem ser a admiração e adoração, mas que o não são necessariamente, como o demonstra a existência do pessimismo sistemático. Nessa maneira naturalista de aceitar o mundo ideal, parece-me a essência da religião prática se evapora. Não só instintivamente mas também por razões lógicas, acho difícil acreditar na existência de princípios que não fazem diferença nos fatos.{359} Mas todos os fatos são fatos particulares, e todo o interesse da questão da existência de Deus parece-me residir nas consequências para particulares que se pode esperar que essa existência acarrete. Que nenhum particular concreto da experiência possa alterar- lhe a compleição em consequência da presença de um Deus ali afigura-se-me uma proposição incrível e, não obstante, é a tese que o sobrenaturalismo refinado (pelo menos implicitamente) parece adotar. É somente com a experiência en bloc, diz ele, que o Absoluto mantém relações. Não condescende com transações de varejo. Não conheço o Budismo e falo dele salvo erro, e tão-só para descrever melhor meu ponto de vista geral; mas pelo que apreendo da doutrina budista do Carma, concordo em princípio com ela. Todos os sobrenaturalistas admitem que os fatos estão sob o julgamento de uma lei mais alta; mas para o Budismo, como o interpreto, e para a religião de um modo geral, na medida em que permanece desentibiada pela metafísica transcendentalista, a palavra “julgamento” não significa o mero veredito acadêmico nem a apreciação platônica que significa nos sistemas absolutistas vedântico ou moderno; implica, ao contrário, a execução, é in rebus assim como post rem, e opera “casualmente” como fator parcial no fato total. O universo toma-se um gnosticismo{360} puro e simples em quaisquer outros termos. Mas o ponto de vista de que o julgamento e a execução caminham juntos é o modo de pensar sobrenaturalista mais crasso, de forma que o presente volume precisa ser classificado, no todo, com as outras expressões desse credo. Exponho o assunto assim grosseiramente porque a corrente de pensamento nos círculos acadêmicos corre contra mim, e eu me sinto como um homem que deve apoiar as costas depressa numa porta aberta se não quiser vê-la fechada e trancada. Apesar de ser isso tão chocante para os gostos intelectuais reinantes, acredito que uma consideração franca do sobrenaturalismo gradativo e uma discussão completa de todos os seus significados metafísicos mostrará que ela é a hipótese que satisfaz ao maior número de requisitos legítimos. Este seria, naturalmente, um programa para outros livros, mas não para este; o que agora digo indica suficientemente ao leitor filósofo o lugar ao qual pertenço. Se me perguntassem exatamente onde surgem as diferenças de fato que se devem à existência de Deus, eu diria que, em geral não tenho hipóteses para oferecer, além da sugerida imediatamente pelo fenômeno da “comunhão piedosa”, sobretudo quando tomam parte nela certas espécies de incursões provindas da região subconsciente. A aparência é de que, neste fenômeno, alguma coisa ideal, que num sentido é parte de nós mesmos e em outro sentido não somos nós mesmos, exerce de fato uma influência, eleva o nosso centro de energia pessoal e produz efeitos regenerativos inatingíveis de outras maneiras. Se, então, houver um mundo de seres maior do que o da nossa consciência cotidiana, se nele houver forças cujos efeitos sobre nós sejam intermitentes, se uma condição facilitadora dos efeitos for a abertura da porta “subliminal”, teremos os elementos de uma teoria a que os fenômenos da vida religiosa emprestam plausibilidade. Impressiona-me de tal maneira a importância desses fenômenos que adoto a hipótese que eles sugerem tão naturalmente. Nesses lugares pelo menos, digo eu, dir-se-ia que as energias transmundanas, Deus, se os senhores quiserem, produziram efeitos imediatos dentro do mundo natural a que pertence o resto da nossa experiência. A diferença no “fato” natural que a maioria de nós designaria como a primeira diferença determinada pela existência de Deus seria, imagino eu, a imortalidade pessoal. A religião, com efeito, para a grande maioria dos da nossa raça significa imortalidade, e nada mais. Deus é o produtor da imortalidade; e quem quer tenha dúvidas quanto à imortalidade é classificado como ateu, sem outro julgamento. Eu não disse nada em minhas conferências sobre a imortalidade nem sobre a crença nela, pois isso, para mim, parece um ponto secundário. Se os nossos ideais só são cuidados na “eternidade”, não vejo por que não nos dispomos a entregar-lhes o cuidado a outras mãos. Entretanto, simpatizo com o impulso urgente de estarmos presentes pessoalmente, e no conflito dos impulsos, ambos tão vagos mas ambos tão nobres, não sei como decidir. A mim me parece que se trata eminentemente de um caso que só aos fatos compete resolver. Creio que os fatos ainda não demostraram o “retomo dos espíritos”, embora tenha o maior respeito pelos trabalhos pacientes dos Srs. Myers, Hogdson e Hyslop, e fiquei meio impressionado com as suas conclusões favoráveis. Consequentemente, deixo a questão em aberto, com estas breves palavras para poupar ao leitor uma possível perplexidade quanto à razão por que a imortalidade não foi sequer mencionada no corpo deste livro. O poder ideal com que nos sentimos em conexão, o “Deus” dos homens comuns, é dotado, não só pelos homens comuns mas também pelos filósofos, de alguns desses atributos metafísicos que, na conferência sobre filosofia, tratei com tamanho desrespeito. Presume-se, como coisa lógica e natural, que ele seja “um e único” e que seja “infinito”; e a noção de muitos deuses finitos é uma noção que alguém dificilmente julga valer a pena considerar, quanto mais sustentar. Nada obstante, no interesse da clareza intelectual, sinto-me inclinado a dizer que a experiência religiosa, tal como a estudamos, não pode ser citada como se sustentasse inequivocamente a crença infinitista. A única coisa de que ela dá testemunho inequívoco é que podemos experimentar a união com alguma coisa maior do que nós e, nessa união, encontrar a nossa maior paz. A filosofia, com sua paixão pela unidade, e o misticismo, com o seu pendor monoteísta, “ultrapassam o limite” e identificam essa alguma coisa com o Deus único que é a alma oniabrangente do mundo. A opinião popular, que lhes respeita a autoridade, segue o exemplo dado por eles. Entrementes, as necessidades práticas e as experiências da religião me parecem suficientemente satisfeitas pela crença de que, além de cada homem, e de um modo contínuo com ele, existe um poder maior que é amigo dele e dos seus ideais. Tudo o que os fatos requerem é que o poder seja, ao mesmo tempo, outro e maior do que os nossos eus conscientes. Qualquer coisa maior servirá, contanto que seja bastantemente grande para possibilitar o passo seguinte. Não precisa ser infinito, não precisa ser solitário. Pode até ser concebivelmente um simples eu maior e mais divino, do qual o eu presente será então, apenas, a expressão mutilada, e o universo, concebivelmente, uma coleção desses eus, de diferentes graus de inclusividade, sem que nele se verifique, de fato, nenhuma unidade.{361} Voltaremos dessa maneira, a uma espécie de politeísmo - um politeísmo que, nesta ocasião, não defendo, pois meu único propósito por ora é manter o testemunho da experiência religiosa claramente dentro dos seus limites apropriados. [Compare a pág. 92 acima.] Os sustentadores do ponto de vista monístico dirão a esse politeísmo (o qual, a propósito, sempre foi a verdadeira religião das pessoas comuns, e ainda é hoje em dia) que a menos de haver um Deus oniabrangente, nossa garantia de segurança será imperfeita. No Absoluto, e só no Absoluto, tudo se salva. Se houver diferentes deuses, cada qual cuidando da sua parte, alguma porção nossa poderá não ser coberta pela proteção divina, e nossa consolação religiosa deixará assim de ser completa. Voltamos assim ao que foi dito nas páginas 91-93, acerca da possibilidade de haver porções do universo irrecuperavelmente perdidas. O bom senso, menos vasto em suas exigências do que a filosofia ou o misticismo, pode aceitar a noção de ser este mundo parcialmente salvo e parcialmente perdido. O estado moralístico ordinário da mente condiciona a salvação do mundo ao sucesso com que cada unidade desempenha a sua parte. A salvação parcial e condicional é, de fato, uma noção muito familiar quando tomada abstratamente, e a única dificuldade consiste em determinar-lhe os pormenores. O desinteresse de alguns homens é tão grande que eles não fazem caso de estar entre os remanescentes que não se salvam pelo que toca às suas pessoas, contanto que possam ser persuadidos de que a sua causa prevalecerá - todos nós estamos dispostos a isso, toda vez que a excitação da nossa atividade se eleva suficientemente. Creio, de fato, que uma filosofia final da religião terá de considerar a hipótese pluralística mais seriamente do que até agora se dispôs a considerar. Para a vida prática, de qualquer maneira, basta a oportunidade de salvação. Nenhum fato da natureza humana é mais característico do que a sua disposição de aventurar-se. A existência da aventura faz a diferença, como diz Edmund Gumey, entre a vida cuja tônica é a resignação e a vida cuja tônica é a esperança.{362} Mas todas essas proposições são insatisfatórias pela sua brevidade, e só posso dizer que espero voltar às mesmas questões em outro livro. SUGESTÕES PARA NOVAS LEITURAS Allen, Gay Wilson. William James, A Biography. Nova York, 1967. Bixler, Julius Seelye. Religion in the Philosophy of William James. Boston, 1926. Brenann, Bernard P. The Ethics of William James. Nova York, 1961. , William James. New Haven, 1968. Browning, Don S. Pluralism and Personality: William James and Some Contemporary Cultures of Psychology. Bucknell, Pa., 1981. Clebsch, William A. American Religious Thought: A History. Chicago, 1973. Dooley, Patrick K. Pragmatism as Humanism: The Philosophy of William James. Chicago, 1974. Eisendrath, Craig R. The Unifying Moment: The Psychological Philosophy of William James and Alfred North Whitehead. Cambridge, Mass., 1971. Floumoy, Thedore. The Philosophy of William James. Nova York, 1917. Gun Giles, org. Henry James, Sênior: A Selection of His Writings. Chicago, 1974. Johann, Robert. The Pragmatic Meaning of God. Milwaukee, Wis., 1966. Knox, Howard V. The Philosophy of William James. Nova York, 1941. Kuklick, Bruce. The Rise of American Philosophy: Cambridge, Massachusetts, 1860-1930. New Haven, 1977. Levinson, Henry S. Science, Metaphysics, and the Chance of Salvation: An Interpretation of the Thought of William James. Missoula, Mont., 1978. Linschoten, Hans. On the Way Toward a Phenomenological Psychology: The Psychology of William James. Pittsburgh, 1968. Malony, H. Newton. Current Perspectives in the Psychology of Religion. Grand Rapids, Mich., 1977. Matthiessen, F. O. The James Family: A Group Biography. Nova York, 1947. Moore, Edward. William James. Nova York, 1965. Perry, Ralph Barton. The Thought and Character of William James. 2 volumes. Boston, 1935. Roth, John K., org. The Moral Philosophy of William James. Nova York, 1969. Roth, John P. Freedom and the Moral Life: The Ethics of William James. Filadélfia, 1969. {1} Como acontece com minhas idéias que flutuam no ar de determinada época, essa noção não encontra uma proposição geral dogmática e se expressa apenas parcial e indiretamente. A mim me parece que poucas concepções são menos instrutivas do que esta reinterpretação da religião como sexualidade pervertida. Ela nos lembra, tão grosseiramente é empregada a todo momento, a-famosa zombaria católica, de que a Reforma será mais bem compreendida se não nos esquecermos de que a sua fons et origo era o desejo de Lutero de casar com uma freira: - os efeitos são infinitamente mais amplos do que as causas alegadas e, na maior parte, de natureza oposta. É verdade que, na imensa coleção de fenômenos religiosos, alguns são indisfarçavelmente eróticos - como, por exemplo, as divindades do sexo e os ritos obscenos do politeísmo, e os sentimentos extáticos de união com o Salvador nuns poucos místicos cristãos. Mas, nesse caso, por que não chamar igualmente de religião a uma aberração da função digestiva, e provar o nosso ponto de vista com o culto de Baco e Ceres, ou com os sentimentos extáticos de outros santos a respeito da Eucaristia? A linguagem religiosa só pode vestir-se com os símbolos pobres que a nossa vida proporciona, e todo o organismo responde com vibrações excessivas de comentário todas as vezes que a mente é vigorosamente instigada à expressão. A linguagem extraída do comer e do beber é provavelmente tão comum na literatura religiosa quanto a extraída da vida sexual. Temos “fome e sede” de justiça; “encontramos um sabor doce no Senhor”; “provamo-lo e vemos que ele é bom”. “Leite espiritual para bebês americanos, tirado dos peitos de ambos os testamentos”, é o subtítulo do outrora famoso Devocionário da Nova Inglaterra, e a literatura devocional cristã praticamente flutua no leite, imaginado do ponto de vista, não da mãe, mas do guloso nenê. São Francisco de Sales, por exemplo, assim descreve a “oração da quietude”: “Neste estado a alma é como uma criancinha de peito, cuja mãe, para acariciá-la enquanto ela ainda está em seus braços, faz que o leite lhe escorra pela boca sem que ela sequer movimente os lábios. O mesmo acontece aqui. … Nosso Senhor deseja que a nossa vontade se satisfaça com o sugar o leite que Sua Majestade verte em nossa boca, e que nos apraza a doçura sem que saibamos sequer que ela vem do Senhor.” E em outro passo: “Considerai os infantezinhos, unidos e pegados aos peitos de suas mães nutrizes, e vereis que, de tempos a tempos, eles se achegam ainda mais, aos pulinhos, a que o prazer de sugar os incita. Mesmo assim, durante sua oração, o coração próximo do seu Deus faz tentativas frequentes de unir-se mais estreitamente com movimentos durante os quais chega ainda mais perto da doçura divina.” Chemin de la perfection, cap. XXXI; Amour de Dieu, VII, cap. I. Com efeito, podemos igualmente interpretar a religião como uma perversão da função respiratória. A Bíblia está cheia da linguagem da opressão respiratória: “Não escondas o ouvido do meu respirar; meus gemidos não se escondem de ti; meu coração arqueja, as forças me falecem; meus ossos estão quentes com o meu rugir a noite inteira; como o cervo anseia pelos riachos, assim anseia minha alma por ti, ó meu Deus.” O Hálito de Deus no Homem é o título da principal obra do nosso místico americano mais conhecido (Thomas Lake Harris); e em certos países não-cristãos o fundamento de toda a disciplina religiosa consiste em regular a inspiração e a expiração. Esses argumentos são tão bons quanto boa parte do raciocínio que se ouve em favor da teoria sexual. Mas os campeões desta última dirão, então, que o seu argumento principal não tem análogo em parte alguma. Os dois principais fenômenos da religião, a saber, a melancolia e a conversão, dirão eles, são essencialmente fenômenos da adolescência e, portanto, síncronos com o desenvolvimento da vida sexual. A isso, contudo, também é fácil responder. Mesmo que a afirmada sincronia fosse irrestritamente verdadeira como fato (o que não é), nem só a vida sexual, mas toda a vida mental superior desperta durante a adolescência. Poder-se-ia também sustentar a tese de que o interesse pela mecânica, pela física, pela química, pela lógica, pela filosofia e pela sociologia, que surge durante os anos da adolescência a par com o interesse pela poesia e pela religião, é também uma perversão do instinto sexual: - mas isso seria por demais absurdo. De mais a mais, se o argumento da sincronia é decisivo, que se há de fazer com o fato de que a idade religiosa por excelência parece ser a velhice, quando a comoção da vida sexual já passou? A verdade simples é que, para interpretar a religião, precisamos, no fim, analisar o conteúdo imediato da consciência religiosa. No momento em que ó fazemos vemos quão totalmente desassociado está ele, em geral, do conteúdo da consciência sexual. Tudo o que se relaciona com as duas coisas difere: objetos, estados mentais, faculdades envolvidas e atos provocados. Qualquer identificação geral é impossível: só encontramos, no mais das vezes, a hostilidade e o contraste completos. Se agora os defensores da teoria sexual disserem que isso não faz diferença para a sua tese; que sem as contribuições químicas que os órgãos sexuais dão ao sangue, o cérebro não seria alimentado para levar a cabo atividades religiosas, a proposição final será verdadeira ou não; de qualquer modo, porém, ter-se-á tomado profundamente nãoinstrutiva; não podemos deduzir dela consequências que nos ajudem a interpretar o significado ou o valor da religião. Nesse sentido, a vida religiosa depende tanto do baço, do pâncreas e dos rins quanto do aparelho sexual, e toda a teoria terá perdido o objetivo ao evaporar-se e transformar-se numa vaga afirmativa geral da dependência, de algum modo, da mente em relação ao corpo. {2} Como exemplo de primeira ordem do raciocínio médico-materialista, veja um artigo sobre “les Variétés du Type dévot”, escrito pelo Dr. Binet-Sanglé na Revue de L’Hypnotisme, XIV. 161. {3} J. F. Nisbet: The Insanity of Genius, 35 edição, Londres, 1893, pp. XVI, XXIV. {4} Max Nordau, em seu alentado livro intitulado Degeneration. {5} H. Maudsley: Natural Causes and Supernatural Seemings, 1886, págs. 256,257. {6} Autobiografia, cap. XXVIII. {7} O intelecto superior, como demonstrou admiravelmente o Professor Bain, parece consistir em nada mais do que num grande desenvolvimento da faculdade de associação por similaridade. {8} Refiro-me a uma crítica da teoria da insanidade do gênio, estampada na Psychological Review, II. 287 (1895). {9} Não posso aqui fazer coisa melhor do que remeter os leitores às extensas e admiráveis observações sobre a futilidade de todas essas definições de religião, num artigo assinado pelo Professor Leuba e publicado no Monista de janeiro de 1901, depois que este texto foi escrito. {10} Miscellanies, 1868, pág. 120 (abreviado). {11} Lectures and Biographical Sketches, 1868, pág. 186. {12} Feuilles détachées, págs. 394-398 (resumido). {13} Op. cit., págs. 313, 314. {14} Livro V, cap. X (resumido). {15} Livro V, cap. IX (resumido). {16} Caps. X, XI (resumido): tradução de Winkworth para o inglês. {17} Livro IV, §23. {18} Tradução de Benham: Livro III, caps. XV, LIX. Compare-se Mary Moody Emerson: “Deixa-me ser uma mancha neste belo mundo, a mais obscura, a mais solitária sofredora, com uma condição, - que eu saiba que é obra Sua. Eu O amarei ainda que Ele derrame gelo e trevas em cada um dos meus caminhos.” R. W. Emerson: Lectures and Biographical Sketches, pág. 188. {19} Vale a pena repetir, há uma grande quantidade de homens, homens constitucionalmente sombrios, em cuja vida religiosa falta esse arrebatamento. Eles são religiosos no sentido mais amplo; entretanto, neste mais agudo de todos os sentidos, não o são, e é a religião no seu sentido mais agudo que desejo, sem disputar acerca de palavras, estudar primeiro, a fim de chegar à sua differentia típica. {20} The New Spirit, pág. 232. {21} Devo esta ilustração alegórica ao meu pranteado colega e amigo, Charles Carroll Everett. {22} Exemplo: “Tenho recebido muito conforto ultimamente ao meditar sobre as passagens que mostram a personalidade do Espírito Santo, e como é distinto do Pai e do Filho. Trata-se de um assunto que requer muita paciência para ser aprofundado mas que, depois de compreendido, nos proporciona um sentido muito mais verdadeiro e vivo da plenitude da Divindade e da sua obra em nós e para nós do que quando apenas pensamos no espírito em seu efeito sobre nós.” Augustus Hare: Memoriais, I, 244, Maria Hare para Lucy H. Haré. {23} Symposium, Jowett, 1871, I, 527. {24} Exemplo: “A Natureza é sempre tão interessante, seja qual for o aspecto por que se mostra, que, quando chove, tenho a impressão de ver uma bela mulher chorando. E ela parece tanto mais bela quanto mais aflita se apresenta”. B. de St. Pierre. {25} Journal ofthe Society for Psychical Research, fevereiro de 1895, pág. 26. {26} E. Gumey: Phantasms ofthe Living, I, 384. {27} Pensées dun Solitaire, pág. 66. {28} Letters of Lowell, I, 15. {29} Tirei esta comunicação com a permissão do Professor Floumoy, da sua rica coleção de documentos psicológicos. {30} Mark Rutherford’s Deliverance, Londres, 1885, págs. 196,198. {31} Em seu livro (muito pouco lido, receio eu), Natural Religion, 3- edição, Boston, 1886, págs. 91,122. {32} C. Hilty: Glück, dritter Theil, 1900, pág. 18. {33} The Soul; its Sorrows and its Aspirations, 3ª edição, 1852, págs. 89,91. {34} Certa vez ouvi uma senhora descrever o prazer que lhe proporcionava a idéia de que “sempre podia aninhar-se nos braços de Deus”. {35} John Weiss: Life of Theodore Parker, I, 152, 32. {36} Starbuck: Psychology of Religion, págs. 305, 306. {37} “Não sei a que leis físicas os filósofos atribuirão algum dia os sentimentos de melancolia. Eu, por mim, acho que são as mais voluptuosas de todas as sensações”, escreve Bemardin de St. Pierre e, conseguintemente, dedica uma série de seções de sua obra sobre a Natureza aos Prazeres da Ruína, aos Prazeres dos Túmulos, às Ruínas da Natureza, aos Prazeres da Solidão - cada qual mais otimista do que os outros. Esse encontro de um deleite na desgraça é muito comum durante a adolescência. A veraz Marie Bashkirtseff expressa-o bem: “Nesta depressão e medonho sofrimento sem tréguas, não condeno a vida. Pelo contrário, gosto dela e acho-a boa. Pode-se acreditar nisso? Tudo me parece bom e agradável, até minhas lágrimas, minha dor. Agrada-me chorar, agrada-me o meu desespero. Agrada-me estar exasperada e triste. Sinto-me como se todas essas coisas fossem outras tantas diversões, e amo a vida apesar de todas elas. Quero continuar vivendo. Seria cruel deixar-me morrer quando sou tão acomodatícia. Choro, sofro e, ao mesmo tempo, sinto-me satisfeita - não, não é exatamente isso - não sei como expressá-lo. Mas tudo na vida me apraz. Acho tudo agradável, e até no meio das minhas preces pela felicidade sinto-me feliz por ser desgraçada. Não sou eu quem padece tudo isso - meu corpo chora e se carpe; mas alguma coisa dentro de mim, que está acima de mim, se alegra com tudo.” Journal de Marie Bashkirtseff, I, 67. {38} R. M. Bucke: Cosmic Consciousness, págs. 182-186, resumido. {39} Refiro-me a The Conservator, dirigido por Horace Traubel, e publicado mensalmente em Filadélfia. {40} Song of Myself, 32. {41} Ilíada, XXI, Tradução para o inglês de E. Myers. {42} “Deus tem medo de mim!” observou um amigo dotado de titânico otimismo, na minha presença, certa manhã, quando sé sentia particularmente entusiasmado e canibalístico. A bazófia da frase mostrava que uma educação cristã de humildade ainda lhe empeçonhava o espírito. {43} “À medida que prossigo nesta vida, dia após dia, torno-me cada vez mais, uma criança aturdida; não consigo acostumar-me a este mundo, à procriação, à hereditariedade, à vista, à audição; as coisas mais comuns são um peso. A superfície formalista, apagada, polida da vida, e os vastos fundamentos obscenos e orgiásticos - ou menádicos - formam um espetáculo com que nenhum hábito me reconcilia.” R. L. Stevenson, Letters, II, 335. {44} “Versos Admonitórios para Crianças”: esse título de uma obra muito difundida, publicada no princípio do século XIX, mostra até onde a musa do protestantismo evangélico na Inglaterra, com o espírito fito na idéia do perigo, já se havia alongado da liberdade original do evangelho. A cura psíquica pode ser brevemente denominada uma reação contra toda a religião da ansiedade crônica, que marcou a primeira parte do nosso século nos círculos evangélicos da Inglaterra e da América. {45} Refiro-me ao Sr. Horatio W. Dresser e ao Sr. Henry Wood, especialmente ao primeiro. As obras do Sr. Dresser são publicadas por G. P. Putnanís Sons, Nova York e Londres; as do Sr. Woods, por Lee & Shepard, Boston. {46} Para que não haja suspeitas acerca do meu próprio testemunho, citarei outro relator, o Dr. H. H. Goddard, da Clark University, cuja tese sobre “os Efeitos da Mente sobre o Corpo tais como são evidenciadas pelas Curas pela Fé” foi estampada no American Journal of Psychology de 1899 (vol. X). Depois de amplo estudo dos fatos, esse crítico conclui que as curas efetuadas pela cura psíquica existem, mas não são diferentes, em sentido algum, das hoje oficialmente reconhecidas pela medicina como curas por sugestão; e o fim do seu ensaio contém interessante especulação fisiológica a propósito do modo com que funcionam as idéias sugestivas (pág. 67 da reimpressão). No que concerne ao fenômeno geral da própria cura mental, escreve o Dr. Goddard: “A despeito da crítica severa que fizemos dos relatos da cura, subsiste ainda vasta quantidade de material, que mostra a possante influência da mente na doença. Muitos casos são de doenças diagnosticadas e tratadas pelos melhores médicos do país, ou que hospitais famosos envidaram esforços para curar, porém debalde. Pessoas de cultura e educação foram tratadas por esse método com resultados satisfatórios. Enfermidades de longa data apresentaram melhoras e até curas …. Acompanhamos o elemento mental através da medicina primitiva e da medicina popular dos dias de hoje, dos medicamentos patenteados e da feitiçaria. Estamos convencidos de que é impossível explicar a existência dessas práticas se elas não curassem a moléstia e, se a curassem, a sua eficácia devia creditar-se, com certeza, ao elemento mental. O mesmo argumento se aplica às escolas modernas de terapêutica mental - Cura Divina e Ciência Cristã. Dificilmente se conceberá que o grande corpo de pessoas inteligentes, que formam o grupo dos Cientistas Mentais, continuasse a existir se a coisa toda fosse uma ilusão. Não é coisa de um dia; não se restringe a uns poucos; não é local. Não há negar que se registram muitos fracassos, mas isso apenas reforça o argumento. Devem ter-se registrado muitos e notáveis sucessos para contrabalançar os fracassos pois, de outro modo, estes últimos teriam dado cabo da ilusão. … A Ciência Cristã, a Cura Divina ou a Ciência Mental não curam, nem podem fazê-lo pela própria natureza das coisas, todas as moléstias; não obstante, as aplicações práticas dos p