Rita Cadillac vive o ápice e a calmaria na chegada aos 70: 'Não fiz mal a ninguém a não ser eu mesma'

Rita Cadillac estava na fila do banco, em uma tarde como outra qualquer, quando de repente um homem a advertiu: “Madrinha, vai embora.” Pela abordagem, achou melhor atender ao aviso e voltou para casa. No dia seguinte, descobriu pelo noticiário que tinha sido poupada de um assalto.

O “afilhado” era um dos milhares de detentos que passaram pelo Carandiru, penitenciária de São Paulo onde ela fez o primeiro show em 1984 e foi coroada madrinha desde então. Frequentou regularmente a Casa de Detenção por 20 anos, até o dia em que a cadeia foi implodida, em 2002, quando também estava presente.

Ora Rita Cadillac, ora Rita de Cássia. Por via das dúvidas, a partir de agora vamos chamá-la Rita. Ex-chacrete, bailarina, cantora, atriz, um dos maiores símbolos sexuais da cultura brasileira dos últimos 50 anos é também uma mulher séria e introspectiva. O olhar tem algo de triste e intimidador. A Cadillac, diz ela, é uma roupa que tira do armário quando precisa. Na definição de sua amiga Rita Lee, é “a única bunda que pensa”.

A três meses de completar 70 anos, Rita recebeu Marie Claire para uma entrevista de duas horas em seu apartamento em Santa Cecília, bairro central de São Paulo onde já é figura carimbada, sempre ao lado de Pietro, um poodle preto de cinco anos. Quando estou prestes a deixar o apartamento, já na porta, Rita grita lá de dentro: “Você já me comeu?”. E dá uma gargalhada. “É que tem um sanduíche no Johnnys [tradicional bar e lanchonete de Santa Cecília] que leva meu nome. Qualquer hora a gente se vê lá!”

Enquanto conversamos lado a lado em seu sofá, o maço de Winston fica em cima da mesa, ao alcance da mão de Rita, que fuma entre uma pergunta e outra. O cabelo está preso num apertado e alto rabo de cavalo. Ela veste um macacão vermelho ferrari e chinelos amarelo marca-texto.

Na sala está um altar com santos católicos, enquanto nas paredes do apartamento ficam fotos antigas que compõem uma linha do tempo de sua carreira. Começou como bailarina em um show do ator e músico Paulo Silvino, depois do qual foi convidada para fazer parte do programa do Chacrinha, em 1975. Ali nasceu Rita Cadillac, ainda que o apelido viesse de antes. E não, não é uma referência à longa traseira do carro estadunidense, como muitos devem imaginar, mas a uma stripper francesa de mesmo nome.

Depois do Chacrinha, Rita passou a levar uma carreira solo como cantora e bailarina, viajando o país inteiro fazendo shows. Em suas apresentações, homens da plateia são convidados a subir ao palco e – em posição de quatro e língua de fora - imitar cachorros. Sob o comando de Rita, são autorizados a tirar a calcinha dela com os dentes, ou então beijar-lhe o bumbum.

Rita Cadillac no Carandiru brinca com detento, que tinha que tirar calcinha com a boca; havia outra peça íntima por baixo — Foto: Arquivo pessoal
Rita Cadillac no Carandiru brinca com detento, que tinha que tirar calcinha com a boca; havia outra peça íntima por baixo — Foto: Arquivo pessoal

Ela também fez shows para multidões de “estátuas de barro” na Serra Pelada. Na sua primeira ida ao garimpo, o teco teco que a levava caiu no meio da floresta, e teve que andar mais de uma hora de saia curta e sandálias até ser resgatada.

A artista ainda atuou ao lado de Edson Celulari em Asa Branca: um sonho brasileiro, longa de Djalma Limongi, de 1981. Aos 50, gravou filmes pornô e com esse dinheiro conseguiu comprar um imóvel para ela e outro para o filho.

Hoje, Rita está “muito bem, obrigada”, produzindo conteúdo adulto para as plataformas Only Fans e Privacy, além dos shows que ainda faz. “Fui criada numa geração que aos 50 você estava numa cadeira de balanço fazendo tricô”, diz ela. “Nunca imaginei que chegaria aos 70 cheia de vida, disposição. Ainda estou bem na fita. Vamos ver até quando.”

Na entrevista a seguir, também conta como estudou em colégio interno de freiras e casou-se virgem aos 15 anos, sobre a avó que a criou e foi presa repetidas vezes durante a ditadura militar, do segundo casamento - cerimônia surpresa que organizou sem avisar ao noivo, e tantas outras histórias.

MARIE CLAIRE Você costuma distinguir a Rita de Cássia da Rita Cadillac. Quem estou entrevistando agora?
RITA CADILLAC
Pode escolher, quem você quer entrevistar? A Rita Cadillac é o que todo mundo conhece. Essa mulher que vai, enfrenta, bota a cara, apanha. A Rita de Cássia é mais fechada, introspectiva, mais família, caseira. Não sou tão corajosa quanto a Cadillac. Rita de Cássia é menos corajosa para rebolar, botar uma roupa e fazer gênero.

A Cadillac é uma outra pessoa que guardo quando quero e tiro quando preciso. Acabou o show, estou de Rita de Cássia.

MC Em que momento criou essa personagem que te dá mais coragem?
RC
Foi para a televisão que surgiu a Rita Cadillac. Antes eu dançava fora do país, mas era só a Rita. Quando voltei ao Brasil, me convidaram para fazer show do Paulo Silvino, numa inauguração de boate. Era eu e mais duas meninas só. Me convidaram para ir pro Chacrinha e, quando aceitei, cheguei e tinha milhares de meninas, uma mais bonita do que a outra. Como sempre fui mais fechada, pensei: caraca, como vai ser? Não queria ficar no Brasil, queria voltar para fora, então pensei: tudo bem, vai, seja o que Deus quiser.

O dono da casa do show do Silvino disse que eu parecia a tal Rita Cadillac. Não tem nada a ver, mas ele me apelidou. Não conhecia, só sabia que ela era a rainha do strip na França. Quando fui pro Chacrinha, entrei como Rita só. Com um mês de programa, ele fala: um som para Rita Cadillac! Não estava acostumada a ser chamada disso, na terceira vez percebi que era eu. Fui para frente e dancei a Pantera Cor de Rosa. Aí nasceu Rita Cadillac.

Em 2024 Rita completa 70 anos de vida, 50 de carreira e 40 da música “É bom para o moral” — Foto: Carine Wallauer
Em 2024 Rita completa 70 anos de vida, 50 de carreira e 40 da música “É bom para o moral” — Foto: Carine Wallauer

MC A Rita de Cássia não se acha gostosa?
RC
Não. Engraçado isso, né? Sempre me achei tão comum, igual. A única coisa que sempre tive é muita bunda. Magrinha, mas a bunda estava lá. Quando resolvi ficar no Chacrinha, vi que não teria outro jeito. A personagem estava ali criada.

MC E como é a Rita de Cássia?
RC
Uma mulher que adora ficar em casa. Não sou aquela que gosta de se arrumar, se mostrar. Tenho um irmão de coração que mora na esquina, a gente sai, desce, vai comer. Tem amigos que vêm em casa, gosto de receber, cozinhar. Amo esse bairro. Sou carioca, mas vim para São Paulo em 1983. Nunca saí desse reduto.

MC Você frequenta a boemia da Santa Cecília?
RC
Adoro sair. Vamos para o barzinho, mas não bebo. Tomo uma caipirinha que nem parece ter álcool, como alguma coisa, bato papo. Minha vida de Rita de Cássia é isso e trabalhar. Graças a Deus continuo fazendo shows, presença vip, festas de firma. Tem a mesma música há 40 anos, “É bom para o moral”. Uma vez tentei tirar ela de um show e escutei o que queria e não queria. Não tem como. Sou aquela menina que gravou um disco, veio uma música que se tornou símbolo da Rita e ficou.

Vou ter que carregar isso, ser artista com uma música de sucesso.

MC Você se cansou dessa música?
RC
Não posso me cansar do que sempre me deu vistas. Não posso dizer que estou cansada de fazer show, rebolar. Gosto disso. O dia que subir num palco e não sentir um medo, aí acabou. Aquele frio que te dá e você pensa: caraca, e agora?

MC E por que decidiu sair do Chacrinha?
RC
Não decidi sair. Quando gravei “É bom para o moral” comecei a ter muitos shows. E Chacrinha não abria mão que eu estivesse nos shows dele. Então não dava para conciliar. Ele já estava adoentado, faltando aos programas e aí pensei: tenho que continuar. Então nada mais justo do que sair.

MC Como foi essa separação? Ele levou na boa?
RC
Não. Antes teve uma entrevista com várias chacretes para uma revista. Uma delas falou uma besteira e sobrou para mim, que estava mais em evidência. Ela falou que tinha saído com um político. E não era eu. Não se deram nomes. Se fosse comigo, tinha dado nome, não escondo. Quando saiu a entrevista, o Leleco, filho do Chacrinha e diretor do programa, disse que ia me suspender. Aí resolvi sair.

MC E qual o problema de sair com um político?
RC
Na época, mulher que trabalhava em televisão era confundida com prostituta. Chacrinha não deixava marido ou namorado nos buscar no trabalho por causa disso, quem visse a gente entrando no carro podia pensar outra coisa.

Rita Cadillac em sua primeira apresentação no Carandiru, no ano de 1984 — Foto: Arquivo pessoal
Rita Cadillac em sua primeira apresentação no Carandiru, no ano de 1984 — Foto: Arquivo pessoal

MC Tem imagens incríveis suas no Carandiru, com homens no palco, de quatro e língua de fora, imitando um cachorro. O que sente em meio a uma cena dessa?
RC
Era uma brincadeira que eu fazia. Falava que era apaixonada por cachorrinho e dizia a eles: “Fica no canto. Quando eu te chamar, ‘au au’, você vem e dá um beijinho no meu bumbum.” Uma brincadeira inocente. Eu ria, pensava: que coragem do cara de aceitar! Inventava essas coisas na hora. Tudo que planejo, dá errado. Brinco, boto quatro rapazes para dançar como eu. Se tenho que rebolar, eles também têm. Me dá uma satisfação. Sempre sonhei em trabalhar na televisão e dançar, estar nesse mundo. Sempre quis ser bailarina. Desde criança.

O cantar veio por acaso. Tudo meu acontece no acaso. Um dia estava no Chacrinha, por exemplo, o Zé Possi Neto e o Djalma Limongi me viram e me escolheram para fazer o filme Asa Branca, com Edson Celulari. Quando fui encontrá-los, estava de rabo de cavalo, jeans, tênis. Sem maquiagem nem nada. O Zé Possi Neto falou: não era essa aí que mostrava empoderamento. Aí soltei o cabelo, fiz uma leve maquiagem e andei de um lado para o outro. Aí sim: é essa aqui!

MC Você se considera uma mulher empoderada?
RC
O que é uma mulher empoderada? Se for dona de si mesma, sou. Não tenho medo de botar a cara. Esse medo eu não tenho.

MC Qual medo você tem?
RC
Só do escuro. Mas não de enfrentar, de brigar pelo que penso, pelo meu espaço. Sempre fui assim, desde criança. Sempre fiz o que quis, porém sempre fui quieta. Meu sonho era dançar balé, então fui ao Teatro Municipal estudar. Nasci com isso.

MC Tinha algum artista na família?
RC
Não. Quando meu pai voltou da guerra, ele participou de uma cena do filme Ébrio, de Vicente Celestino, e fez o papel de garçom. Ele era advogado. Foi para a Segunda Guerra, lutar na Itália e voltou ferido. Ele morreu de leucemia quando eu tinha 13 dias. Nasci e em seguida minha mãe me entregou para minha avó, e voltou a aparecer quando eu tinha 56 anos. Depois nunca mais nos vimos. Minha avó nunca explicou e eu também nunca perguntei da minha mãe.

Minha avó, sim, era empoderadíssima. Sempre sozinha, tendo que criar uma menina. Ela vivia presa durante a ditadura. Eu ficava sozinha em casa, e ela sumia por dias. Acho que era comunista, mas nunca perguntei. Devia fazer parte de algum grupo. Pelo que vi em filmes, minha casa era um aparelho. Não podia receber amiguinhas porque sempre tinha alguém escondido em casa. A maior parte do tempo fiquei em colégio interno. Fui com uns 9 anos. Depois estudei em Miguel Pereira porque eu tinha problema de espinhela caída. Um problema de respiração.

MC A atividade da sua avó te influenciou de alguma forma, na sua formação política?
RC
Não me fale em política.

MC Mas você se filiou a partidos políticos.
RC
A um ou dois, porque me encheram o saco para ser vereadora em Praia Grande, mas nunca quis política na minha vida. Há pouco tempo me pediram para me candidatar por um partido cristão. Falei: você sabe quem sou eu? Tem certeza? Tenho uma plataforma para adultos e você quer que eu vá para um partido cristão?!

MC Tem vários santos na sua casa. Você é religiosa?
RC
Sou, mas não de ir à igreja. Só no dia de Santa Rita de Cássia, que sou devota. Mas sou católica de formação e tenho meus santinhos. Peço minha proteçãozinha.

MC Você é feminista?
RC
[silêncio] Sou.

MC Você é a favor da descriminalização do aborto, por exemplo?
RC
Sim, sou dona do meu corpo. Muitas vezes você engravida sem querer e não pode ter esse filho por n motivos. Legalizar é muito melhor do que ir a uma clínica clandestina e correr o risco de morrer. Melhor do que ter esse ser humano e largar na rua.

MC Como uma pessoa que estudou em colégio de freira se torna a Rita Cadillac?
RC
Isso vem de dentro. Como minha avó vivia presa, eu estava mais protegida no colégio interno do que sozinha em casa. Fiquei uns cinco anos lá.

MC Você gostava?
RC
Não. Acordar às cinco da manhã, tomar banho frio, ir para a igreja rezar e só depois tomar café. Fazer tudo certinho, aprender a costurar. Nunca foi minha praia.

MC Gostava de estudar?
RC
Nunca fui estudiosa, mas gosto de saber as coisas, de prestar atenção, ver documentário, jornal.

MC Fez faculdade?
RC
Não.

MC Gostaria de fazer?
RC
Não, gosto do que eu sou. Gosto dessa mulher aqui.

MC Você passou cinco anos no colégio interno, foi para Miguel Pereira e depois se casou, aos 15?
RC
Sim, conheci e namorei um rapaz. Foi meu primeiro amor. Somos amigos da vida inteira. Quando terminamos, para fazer pirraça, casei com outro cara. Aquela mocinha ali [aponta para uma mulher no quarto ao lado] é filha do primeiro namorado. Podia ser minha filha.

MC Então até se casar, você mal teve contato com homem?
RC
Nunca tive. Tanto que casei e só consegui fazer sexo bêbada depois da lua de mel. Minha avó sempre teve aquela opinião de que a mulher que dá antes de casar homem nenhum vai querer.

MC De uma vida sem sexo, de repente voce se tornou um símbolo sexual.
RC
Acho que nasci com isso. A Rita Cadillac é isso, a de Cássia não. Sexo é gostoso, mas não tenho essa necessidade, de que sem o sexo não vive. E se eu tiver tesão sem namorado, tem duchinha, brinquedinhos, está tudo certo.

MC A vida inteira você foi desejada pelos homens. Isso é importante para você ou apenas sua fonte de renda?
RC
Minha fonte de renda. Às vezes fico até sem graça. Se não estiver no palco, me sinto estranha quando alguém fala “sou apaixonado por você”. Graças a Deus, até o dia de hoje escuto muito isso. No bairro as pessoas já se acostumaram comigo. Quem é de fora ainda me para. Não me acho esse baita mulherão que todo mundo fala. É bom ouvir isso? É. Por mais que o não seja não, o sim é sim. É gostoso. A mulher gosta de saber que alguém falou que ela é bonita. O “gostosa” já acho mais pesado, antes achava normal. Mas bonita, sim.

Ontem mesmo um senhor falou isso para mim. A gente estava sentado no Johnnys, e um cara veio: “Me desculpa, posso tirar uma foto? Sou seu fã desde o Chacrinha.” Se ganhasse um real por foto, estaria rica. É gostoso se sentir desejada, amada, querida. Mas também temos o direito de dizer que não queremos ouvir isso, de falar “não, dá pra parar?”. Mas nunca houve desrespeito, nem dentro de Carandiru, nem no garimpo.

Rita quando começou a dançar no Programa do Chacrinha, em 1975 — Foto: Arquivo Pessoal
Rita quando começou a dançar no Programa do Chacrinha, em 1975 — Foto: Arquivo Pessoal

MC Você consegue namorar como uma pessoa ‘normal’?
RC
Não, você sempre acha que a pessoa está com você porque você é fulana, e tem o imaginário de que sou um fogaréu. É difícil, mas você acaba conhecendo quem quer a Rita de Cássia. Mostro logo: a pessoa chega e estou descabelada, sem maquiagem. Usando aquele moletom manchado de água sanitária. Vou até ao mercado desse jeito, tiro foto assim.

MC Você não é vaidosa?
RC
Não. Não vou deixar de ser eu por causa da personagem que é gostosa, que vive toda produzida. Não vou viver? Não vou chegar lá embaixo e beijar o cachorro? Conheço todos os cachorros do bairro. Não me pergunte quem é o dono.

Ex-chacrete, bailarina, cantora, atriz, um dos maiores símbolos sexuais da cultura brasileira dos últimos 50 anos é também uma mulher séria e introspectiva — Foto: Carine Wallauer
Ex-chacrete, bailarina, cantora, atriz, um dos maiores símbolos sexuais da cultura brasileira dos últimos 50 anos é também uma mulher séria e introspectiva — Foto: Carine Wallauer

MC Você faz terapia?
RC
Nunca fiz. Se fizer, deixo a pessoa louca. Nunca tive vontade. Claro que tenho momentos, sozinha, que choro, mas é raro e em consequência de algo que tenha acontecido. Sou bem resolvida comigo mesma. Sou brava, emburrada, chata, tudo isso. Mas o maior de tudo é que sou amiga, tenho coração e sou fiel. Sempre tive que me defender sozinha, fui mãe cedo sozinha.

Sempre me vi sozinha, brigando e enfrentando tudo sozinha. Até hoje.

MC E gosta de estar sozinha?
RC
Não. Como a vida inteira me vi sozinha, gosto de ter amigos em casa, fazer janta ou descer para ir a algum lugar. Gosto de ter pessoas perto de mim, me sinto mais segura de mim mesma.

MC Está namorando?
RC
Estou me namorando. O importante é namorar você. Não tenho vontade de casar de novo, Deus me livre. Lavar cueca de novo? Gosto de não ter que dar satisfação. Acho que por isso sempre estive sozinha. Aos 70, está ótimo assim. Já namorei, casei, descasei. Casei uma vez de véu e grinalda e outra vez que estava num momento frágil, me sentindo sozinha. Fiz uma festa, levei ele de olho fechado e fiz um casamento surpresa, com o Gugu transmitindo ao vivo. Ele era uma pessoa totalmente diferente de mim.

MC Mas por que fazer um casamento surpresa?
RC
Acordei um dia e quis casar. A gente era vizinho, um amor de pessoa. Sei que se amanhã eu ligar pra ele, precisando de algo, ele vem. Mas o casamento foi aleatório, não durou nem um ano, depois que ele entendeu minha vida. Nunca levo marido, namorado em show, não levo porra nenhuma. A Rita Cadillac é solteira. E não vou com guarda-costas. Se tiver que dar porrada, eu dou. Não tenho medo. Como fui criada sozinha, sempre tive que brigar por mim, lutar por mim.

Se tiver que dar porrada, vou dar, foda-se.

A Cadillac, diz Rita, é uma roupa que tira do armário quando precisa — Foto: Carine Wallauer
A Cadillac, diz Rita, é uma roupa que tira do armário quando precisa — Foto: Carine Wallauer

MC Você já fez shows no Carandiru, em garimpo. O que te levou a esses lugares?
RC
O Carandiru veio depois de um show no sistema penitenciário Frei Caneca, no Rio. Fui fazer um show de Natal, a gravadora que me mandou. Minha vontade era sair correndo. Foi a primeira vez que pisei numa cadeia. Era escuro, pesado, uma energia carregada. Quando acabou, falei: “Nunca mais me chamem pra fazer isso.”

Um ano depois, a gravadora me falou para fazer show no Carandiru. Tinha que ir. Quando cheguei lá, era diferente. Estava sol, era um espaço aberto, fui direto para a diretoria. Nisso entrou uma pessoa que conhecia: o cantor Lindomar Castilho, que matou a esposa, Eliane de Grammont, e estava preso no Carandiru. Pensei: caraca, e agora? Mas quando subi no palco, aquele pátio aberto, com crianças, os filhos de presos, foi outra coisa. Foi alegre.

No dia seguinte o diretor me liga dizendo que a comissão de internos gostaria de conversar e me chamaram para almoçar lá. Fui e me convidaram para ser madrinha. Pergunta número um: o que é ser madrinha? Precisava saber, né? Responderam que era ir lá de vez em quando, em formatura, campeonato de futebol. Topei e aí passei a frequentar mais, ia uma ou duas vezes por mês.

Gostava de conversar, saber as histórias, o que levou as pessoas àquilo. Não tenho medo e trato todo mundo de igual para igual. Até meu aniversário eu passava lá. Eles faziam bolinho, me davam presente, um porta retrato, coisas assim. Nunca levantaram um olhar para mim. Falavam pra mim: “Ai madrinha, estou aqui porque não fui eu que fiz, sou laranja.” Eu respondia: “Então tu é trouxa, né? Porque o bandido bom está lá fora e você está aqui de otário.” Como você fala isso para um interno? Eu corria risco de um deles reagir. Mas não, viam que estava conversando de igual para igual.

MC Você já se safou de um assalto por causa disso, né?
RC
Fui assaltada aqui na rua de cima, estava com joinhas do garimpo. Um ouro que parece bijuteria de terceira, mais escuro. Dois rapazes vieram, me deram “oi, Rita” e me roubaram. Fui para casa, liguei para o Chiquinho, meu compadre, que era diretor de patrimônio do Carandiru, e falei: “Fui assaltada. Fala para os afilhados não fazerem isso comigo, poxa.” Ele me chamou lá e contei para aquela mesma comissão de internos. Disseram: “Fica tranquila, você vai receber tudo de volta.” Alguns dias depois, apareceu tudo num envelope na porta da minha casa.

Frequentei o Carandiru até o último dia, durante uns 20 anos. Estava lá na no dia da implosão, fomos convidados para ver. Foi uma sensação de alívio porque sabíamos que aquilo ali era uma bomba atômica. Já tinha explodido com eles lá, mas podia explodir mesmo, feio.

Lá também fiz amizade com o Sabotage, que frequentava porque o tio dele estava preso. Uma história divertidíssima foi um preso que trocou de roupa com a mulher e saiu porta afora. Ele estava no último portão. Depois de passar por vários, ele falseou no salto, caiu e viram que não era mulher.

E tinha um outro interno que era um senhor, já devia ter uns 80 anos, andava de cajado. Ele batia até em policial. As pessoas tinham pena dele porque passou muitos anos preso e quando foi solto ele se viu num mundo que não estava mais acostumado. Quando saiu, ele pegou qualquer pessoa na porta da prisão e bateu com o cajado para voltar. Não tinha família, o que ele ia fazer solto?

MC Depois de tantos anos convivendo com essa realidade, o que aprendeu?
RC
O respeito. Saber que às vezes você parte para um lado obscuro da vida, sem saber o porquê. E depois que entra, não tem como sair. Não tem educação dentro dos presídios, não existe uma forma de fazer com que regenerem. Gostava de ir no Carandiru porque sabia que estava levando um pouco de alegria e tranquilidade enquanto estava lá. Nunca ganhei um real depois dos shows, como madrinha ia por minha vontade. Participava de palestra com Drauzio Varella, ia por prazer. Pelo menos meia dúzia deles respiravam mais leve enquanto eu estava lá. Fazia de coração.

Em um show, fui fazer o tal do cachorrinho. Brincava e dizia que um interno tinha que tirar minha calcinha com a boca, estava com maiô por baixo. Mas não tinha visto que o interno não tinha dentes. Falei: “Tem que vir que nem um au au e tirar a calcinha com a boca.” Só senti uma língua, olhei para o lado e o Raul Gil estava gargalhando, o diretor também.

Ele estava tirando com a língua, tadinho, aí tentei ajudar um pouco. Mas quando acabou o show, os internos levaram ele para um canto e iam matá-lo, porque acharam que tinha passado dos limites comigo. A diretoria me pediu para ir lá e expliquei que estava tudo bem. A assunto morreu ali, não fizeram nada com ele. Só ficaram com a calcinha dele, mas tudo bem.

Rita já é figura carimbada em Santa Cecília, bairro central de São Paulo, sempre ao lado de Pietro, um poodle preto — Foto: Carine Wallauer
Rita já é figura carimbada em Santa Cecília, bairro central de São Paulo, sempre ao lado de Pietro, um poodle preto — Foto: Carine Wallauer

MC E o garimpo da Serra Pelada, por que se apresentou lá?
RC
Não conhecia, fui contratada pela associação dos garimpeiros. Fiz uma semana de shows, porque não tem como ir e voltar da Serra Pelada. Não imaginei que fosse uma cratera deste tamanho com milhões de homens e pouca segurança. Se um deles falasse “pega”, não tinha o que fazer. Pareciam estátuas de barro, com sacos de pedra que poderiam ou não ter ouro. Fiquei numa tenda de plástico preto, dormi na rede, tomava banho de água mineral. Só tinha eu de mulher. Todo dia eram duas sessões de show, à base de gerador. Se pifava,acabava o show.

MC E como foi?
RC
Uma coisa que nunca tinha pensado na minha vida. Mas tudo que faço, é porque quero. Nunca me arrependo. Voltei várias vezes depois, fui a outros garimpos. Da primeira vez, o avião que me levou caiu. Saímos do Rio até Imperatriz, no Maranhão, e no dia seguinte íamos pegar o avião para Serra Pelada, no Pará. Era um teco teco sem rádio, radar, banco, porra nenhuma. Fomos sentados em caixotes, com galinha. Eu, o piloto e o empresário.

Aí pegamos um temporal, bateu um raio e o piloto falou: vamos cair. O que eu poderia fazer? Me benzi e falei: pai, tenho filho pequeno para criar ainda. Mas esses pilotos de garimpo são exímios pilotos, e o cara conseguiu. Quebrou a asa do avião, mas não nos machucamos. Mas e agora? Como vamos sair do meio do mato? Já pensei em cobra, onça, estava chovendo. Eu de sainha, chinelinha, toda linda. Arrasando naquela lama. No rabicó não passava uma agulha.

O piloto falou que tínhamos que andar até conseguir chegar num ponto onde passava um carro que leva coisas para o garimpo. Rezar para o carro aparecer. Meu empresário botou minha mala na cabeça e andamos mais de uma hora. Mas de boa, tranquilo. Só tinha medo de cobra.

Em outro garimpo, um cara armado criou confusão. Fiz uma brincadeira que a pessoa que dançasse podia escolher o que quisesse que eu dava. Ele falou uma besteira e eu deixei para lá. Mas quando acabou o show, ele veio no hotel: “Rita, agora você vai ter que dar o que prometeu!” Chamaram o Barba, o dono do garimpo, e ele falou que não ia dar nada: “Ou você cala ou vai amanhecer com a boca cheia de formiga.” Acabou ali.

MC Você já disse que foi mais respeitada por presos e garimpeiros do que por ricos e políticos.
RC
Não só ricos e políticos, mas pelas pessoas da cidade grande, onde supostamente teria educação e respeito. Nunca num garimpo ou cadeia alguém botou um dedo em mim. Aqui já fui queimada com cigarro na bunda, num forró da vida. Já levei um tapa na bunda.

MC Como foi a sua maternidade ao longo desses anos todos?
RC
Meu filho ficou um tempo com o pai, quando dancei fora do Brasil. Depois voltou e morou comigo o resto da vida. Sempre fui muito aberta com ele, por ser homem e eu sozinha tinha que educá-lo. Filho homem tem muito ciúme da mãe. Principalmente se é bailarina, faz revista nua, então era terrível.

Ele foi expulso de n colégios de São Paulo, porque alguém falava que tinha me visto nua e ele batia. Podia ser quem fosse que ele não aceitava. Mas aos poucos ele foi crescendo e vendo quem era a mãe dele, que tinha que batalhar. Ele ficou muitas vezes com babá enquanto eu viajava. Como sempre fomos abertos, mostrei quem era a mãe dele e quem era a personagem. Somos amigos, próximos.

MC Depois que você se separou pela primeira vez, com um bebê nos braços, teve que se prostituir. Como foi isso?
RC
Se durou seis meses, foi muito. Não tenho vergonha nenhuma e meu filho sabe de tudo. Ou eu fazia isso ou ia morar no meio da rua. Decidi e pronto. Tenho total autonomia na minha vida.

MC Durante muito tempo você não gostava de falar sobre sua passagem por filmes pornô. O que te incomoda nisso?
RC
Nao gosto ainda. Fiz pelo dinheiro e não é minha praia, não é o que eu gostaria de ter feito. Mas não me arrependo. Falei para meu filho na época: se você falar não, é não. Ele respondeu: “Alguém paga sua conta? Então vai. Estou aqui para segurar sua onda.” Meus amigos falaram o mesmo, conversei com cada um. Fiz 20 cenas, que se transformaram em filmes até hoje, porque são detentores dos direitos. Não me incomoda mais, mas me incomodou muito na época.

Prefiro não falar sobre esse assunto porque as pessoas não entendem que já trabalhei muito, como dançarina, bailarina, cantora. Só veem esse lado. Então não queria falar mais porra nenhuma.

Quem se machucou fui eu, quem teve que olhar para o espelho fui eu. Não fiz mal a ninguém a não ser eu mesma.

Rita frequentou regularmente a Casa de Detenção por 20 anos, até o dia em que a cadeia foi implodida — Foto: Carine Wallauer
Rita frequentou regularmente a Casa de Detenção por 20 anos, até o dia em que a cadeia foi implodida — Foto: Carine Wallauer

MC Como é sua rotina de trabalho hoje?
RC
Only Fans, Privacy e shows são minha fonte de renda. Acordo cedo, às 7 da manhã, saio com Pietro, meu cachorrinho. Vou para a academia, depois faço almoço. Se tem foto para fazer, tem um monte de coisa para organizar. Tenho equipe, fotógrafo, maquiadora, cabeleireira.

Entrei para o Only Fans na pandemia porque estava precisando de trabalho. Comecei fazendo vestida, aí só tinha reclamação. Fui tirando, mostrando sutiã e pediam mais. Aí fui fazer nua, é minha revista eletrônica. Às vezes vou para a fazenda, outro dia aluguei uma cobertura lindíssima aqui em São Paulo. Já fiz todas as revistas masculinas, só que era obrigada a fazer a produção que eles quisessem.

Agora faço fotos lindas, sensuais, nua, do jeito e onde eu quero.

MC Você imaginava que aos 70 anos continuaria sendo símbolo sexual?
RC
Não, mas graças a Deus sou. Estou com 70, muito bem, obrigada, no Only Fans e Privacy. Pago minhas contas, continuo fazendo shows. Mas nunca poderia me ver assim aos 70. Fui criada numa geração que aos 50 você estava numa cadeira de balanço fazendo tricô. Nunca imaginei que chegaria cheia de vida, disposição, e tem muita garotada me mandando mensagem. Ainda estou bem na fita. Vamos lá. Vamos ver até quando.

MC A Rita Lee dizia que você é a única bunda que pensa. O que você acha dessa definição?
RC
Sempre fui fanzoca dela. Um dia fui a um show dela com o Guilherme Samora, que se tornou um filho para Rita, e acabou virando uma amizade. Eu queria gravar as músicas dela e a Rita falou que ia escolher quais e gravar comigo. Mas na época o cachorrinho dela tinha sumido, ela ficou bem mal. Precisava gravar logo então gravei sozinha. Depois Rita bateu palma, falou que estava lindo. Uma vez ela passou um dia inteiro aqui comigo. Tirou a pantufa do pé dela e deu pra mim. Dormiu aqui comigo na cama, ela e o Guilherme, depois do almoço.

Rita dizia essa frase porque sabia que tudo que eu fazia era pensando em melhorar, crescer, em ter. Não era que só usava a bunda para aparecer.

MC Em uma entrevista para Marília Gabriela, dez anos atrás, você falou que não se arrependia de nada, porque ter vivido essas experiências te permite aconselhar outras mulheres. Que conselho você daria hoje, quase aos 70?
RC
O único conselho que posso dar é: seja você, dona de sua vida, do seu corpo, da sua mente. Não deixe ninguém tirar esses direitos de você. Se não quer que um homem toque em você, não deixe. E se tocar um dedo, sai de casa. Sou prova viva disso. Sempre trabalhei sozinha, com filho a tira colo e dei a ele os melhores colégios.

Quando, me separei do pai do meu filho, ele falou que ia me matar. Respondi: mata agora porque não terá uma segunda chance. E fui embora. Depois tive que me prostituir para viver. Foram seis meses que olhei para o espelho e dizia a mim mesma: você vai sair dessa. E saí. Pensa que não sei que muita gente fala: essa velha fica nua aos 70? Nunca falaram para mim, mas não sou tapada. Nas redes, nem ligo. Uma vez um escreveu: está velha pra botar shortinho. Apenas respondi: “Jura? Acabei de comprar um que sua mãe pediu.” Pronto.

Entrevista: Manuela Azenha
Fotos: Carine Wallauer
Beleza: Gisele Santana
Styling Marco: Antônio
Direção de arte: João Brito
Produção executiva: Vandeca Zimmermann

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