(PDF) POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE | Dora Longo Bahia - Academia.edu
Por uma arte revolucionária independente D��� L���� B���� Em 1938, o fundador do surrealismo André Breton (1896-1966) e o intelectual marxista Leon Trótski (1879-1940) escreveram o Manifesto por uma arte revolucionária independente. Na época da publicação do Manifesto, Trótski não pôde assiná-lo por razões políticas. O artista mexicano Diego Rivera (1886-1957) ocupou o seu lugar, dividindo a autoria com Breton. Em 1980, os arquivos de Trótski foram abertos ao público, na Biblioteca Houghton de Harvard, e revelaram diversos documentos, inclusive cartas entre ele e Breton1 que atestaram a coautoria de Trótski2 . 1 Publicadas em Oeuvres, Paris: Institute Léon Trotsky, 1978. Para maiores informações sobre o encontro e a correspondência entre Trótski e Breton, ver: HEIJENOORT, J. V. Sept Ans Auprès de Léon Trotsky. Paris: Lettres Nouvelles, 1978; DUGRAND, A. Trotsky in Mexico, translated by Stephen Romer. Manchester: Carcanet, 1992; GREELEY, R. 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Pauvert: La Clé des Champs, 1953. 2 7 Rapsódia 12 8 No manifesto, Breton e Trótski3 a��rmam que a arte verdadeira: [...] a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que seja apenas para libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram no passado. Trinta anos depois, o artista alemão Joseph Beuys (1921-1986) ainda acreditava que a arte poderia transformar a sociedade, sendo a única força verdadeiramente “revolucionária”. Numa declaração de 19734 , a��rma que “só a arte seria capaz de desmantelar os efeitos repressivos de um sistema social senil que estaria cambaleando, com os dias contados”. Beuys entendia a esfera da arte como um campo multidisciplinar, que invadia a economia e a política, sendo uma forma de mobilização social. Ele dizia que todo homem é um artista, ou seja, que todo homem tem a capacidade de aplicar criatividade a diversas esferas da vida, e considerava suas aulas como parte de sua obra, uma “escultura monumental”. Em 1974, junto com o escritor Heinrich Böll (1917-1985), Beuys fundou a Freie Internationale Universität (FIU) [Universidade Internacional Livre], que tinha o objetivo de ajudar a tornar real a capacidade inerente a cada pessoa de ser um ente criativo. A universidade de Beuys pregava a miscigenação ideal entre o emissor-professor e o receptor-aluno como o vetor de criação e circulação da memória social, sinalizando a falência do sistema educacional universitário, que precisava ser remodelado, e pregando a necessidade da interdisciplinaridade, da 3 BRETON, A; TROTSKY, L. Por uma arte revolucionária independente. Trad.: Carmem Sylvia Guedes, Rosa Maria Boaventura. São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 37-38. 4 JOACHIMIDES, C. M.; ROSENTHAL, N. (Ed.). Art into society, society into art: seven German artists, Albrecht D., Joseph Beuys, K. P. Brehmer, Hans Haacke, Dieter Hacker, Gustav Metzger, Klaus Staeck. London: Institute of Contemporary Arts. Catálogo: Art into Society, Society into Art, 1974, p. 48. Por uma arte revolucionária independente| D��� L. B���� 9 Fig. 1: Joseph Beuys. Espaço de o��cinas da FIU durante Documenta 6, Kassel, 1977. isonomia política e da democratização do ensino5 , pontos que ainda estão sendo reivindicados pelos estudantes brasileiros nas diversas ocupações das escolas e universidades do país, durante os últimos anos. Demokratie ist lustig [A democracia é divertida] é uma foto que mostra o artista com seus alunos, saindo da secretaria da Staatliche Kunstakademie Düsseldorf [Academia Nacional de Belas Artes de Düsseldorf], em 10 de outubro de 1972, após a chegada da polícia. Beuys e seus alunos ocuparam a secretaria da escola, reivindicando acesso irrestrito à educação. No dia seguinte à intervenção policial, Beuys foi demitido do cargo de professor que ocupava desde 1961. O que seria uma “força verdadeiramente revolucionária”, no contexto do capitalismo, que absorve todos os antagonismos e riscos, autorreorganizando-se constantemente e permanecendo como uma verdadeira força revolucionária e disruptiva? Da mesma forma que um político e um cientista, um artista é responsável tanto por sua obra quanto por suas implicações públicas, e tem que estar ciente 5 Ver KUONI, C. (org.) Energy Plan for the Western Man: Joseph Beuys in America: Writings by and Interviews with the Artist. New York: Four Walls Eight Windows, 1990. Disponível em: <https://sites.google.com/site/socialsculptureusa/freeinternationaluniversitymanifesto.> Acesso em: 22 de agosto de 2017. Rapsódia 12 10 Fig. 2: Joseph Beuys. Demokratie ist lustig, 1973. de suas articulações com as instituições do poder, sejam elas o Estado – que estabelece o que é digno de se tornar cultura nacional – a mídia –, que decide o que é verdade, o que é pós-verdade e o que não é nenhuma das duas – e o poder econômico privado ou corporativo, representado pelos colecionadores, investidores e instituições – que decidem quem integra as grandes coleções e exposições. Articulações inevitáveis, já que a arte, pelo menos desde a Idade Média, mantém relações cordiais com o poder – incorporado primeiro pela igreja, depois pela aristocracia, pela burguesia e, mais recentemente, pelas corporações. Até o começo do século passado, o artista tinha, mesmo imerso nesses jogos do poder, duas alternativas: fazer o jogo das necessidades do opressor – e se tornar um “pintor da corte” – ou adotar uma posição marginal e vanguardista que, apesar de depreciativa das massas, proporcionava, com o decorrer do tempo, uma iconogra��a crítica que funcionava como agente desmisti��cador da história material. A arte tinha um aspecto dialético que desempenhava uma função política vital: a mútua desmisti��cação entre realidade material e expressão estética. Por um lado, a arte necessitava de elementos da história material para sua interpretação, de forma que os “tesouros” culturais deixassem de ser apetrechos da classe dominante. Por outro lado, ela proporcionava uma iconogra��a crítica para decifrar essa mesma história material, de maneira que seus elementos ainda pudessem constituir, parafraseando Walter Benjamin, uma “constelação revolucionária com Por uma arte revolucionária independente| D��� L. B���� 11 o presente”6 . As pretensões universais e emancipatórias da modernidade combinaram-se com o capitalismo liberal e com o imperialismo, sendo assimiladas pelo establishment político e cultural. A arte acabou se tornando uma de suas armas ideológicas mais efetivas. As obras de artistas norte-americanos como Jackson Pollock (19121956), Robert Motherwell (1915-1991) e Mark Rothko (1903-1970) foram utilizadas pela CIA, durante a Guerra Fria, como propaganda capitalista, representando os Estados Unidos em diversas exposições internacionais7 . Su��cientemente plena de alienação e de ansiedade, elas funcionavam como expressão da fragmentação violenta e da destruição criativa, comprovando o compromisso norte-americano com a liberdade de expressão, o individualismo, a inovação e a criatividade – ideais liberais num mundo “ameaçado” pelo totalitarismo comunista8 . O modelo teleológico modernista tornou-se insustentável e acabou fornecendo o fundamento material e político para o aparecimento dos movimentos contraculturais e antimodernistas dos anos 1960. Surgidos no apogeu do capitalismo fordista – regime de acumulação de capital da “sociedade democrática, racionalista, modernista e populista”, em que impera a forma corporativa de organização de negócios, a divisão de trabalho e o aumento de produtividade9 –, eles demonstravam uma resistência cosmopolita e transnacional à tendência positivista e elitista do “modernismo universal”10 e à rigidez do sistema econômico 6 BUCK-MORSS, S. Walter Benjamin: escritor revolucionário. Trad.: Mariano López Seoane. Buenos Aires: Interzona Editora S.A., 2005, p. 40. 7 SAUNDERS, F. S. “Modern art was CIA weapon”. The Independent, Londres, 21 de outubro, 1995. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/world/modern-art-wascia-weapon-1578808.html>. Acesso em: 2 de setembro de 2017. 8 Apesar de, nos anos 1930, o modernismo ter demonstrado amplas tendências socialistas, difundidas pelo surrealismo, pelo construtivismo e pelo realismo socialista, com o advento do expressionismo abstrato norte-americano veri��ca-se uma despolitização da arte, que acaba facilitando a utilização desta como arma ideológica. (HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad.: Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 43.) 9 Ford, idealizador desse sistema, percebeu que “produção de massa signi��cava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia” (ibid., pp. 121-122). 10 O modernismo universal, hegemônico desde 1945, exibia uma relação confortável com os Rapsódia 12 12 em vigor11 . Antagônicas às formas de poder institucionalizado – de governanças corporativas e estatais monolíticas a partidos políticos e sindicatos burocratizados –, essas manifestações de resistência, centradas principalmente nas universidades e nas fábricas, culminaram na turbulência global de 1968, que atingiu diversas cidades ao redor do mundo, como Chicago, Paris, Praga, Cidade do México, Madri, Tóquio, Berlim...12 a) Tóquio 1968 b) Rio de Janeiro, 1968 c) Paris 1968 d) Praga 1968 Fig. 3 centros de poder dominantes, numa “sociedade em que uma versão capitalista corporativa do projeto iluminista de desenvolvimento para o progresso e a emancipação humana assumira o papel de dominante político-econômica” (ibid., p. 42). 11 “Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital ��xo de larga escala e de longo prazo em sistemas de produção em massa, que impediam muita ��exibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo invariante. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho” (ibid., p. 135). 12 Ibid., p. 44. Por uma arte revolucionária independente| D��� L. B���� 13 Esse período de turbulência social foi marcado também por novas transformações nas práticas artísticas. Passou a se acreditar na efetividade do fazer artístico como resistência ao capital e na possibilidade da existência de uma obra de arte desvinculada da mercadoria. O autor, “gênio criador”, perdeu sua hegemonia e transformou-se numa coletividade, num editor, num compilador, num estimulador ou mesmo num participante. A obra de arte, “aurática e eterna”, transformou-se numa ação, experiência ou prática que acontecia, muitas vezes, precisamente no momento de sua ruína, fazendo-se presente no instante de sua autodestruição. As mudanças culturais e artísticas aconteceram como consequência da transição do chamado fordismo para a “acumulação ��exível” – período caracterizado pela expansão das grandes corporações multinacionais, pela globalização dos mercados e do trabalho, pelo consumo de massa e pela intensi��cação dos ��uxos internacionais do capital13 –, que acentuava ainda mais o novo, o fugidio, o efêmero, o fugaz e o contingente da vida moderna como substitutos dos “valores sólidos” implantados na vigência do fordismo e do modernismo. A “desmaterialização da arte”14 , anunciada pelas neo-vanguardas de meados do século XX, na realidade, estava tornando visível a “desmaterialização da moeda”. Com o tempo, a situação foi tornando-se ainda mais homogênea e consensual do que há algumas décadas. As manifestações contraculturais e as práticas “marginais”, de meados do século XX, foram capturadas, os procedimentos de resistência foram banalizados e a “subversão” artística foi transformada em mercadoria. Os Parangolés de Helio Oiticica (1937-1980) são um bom exemplo da rei��cação da experiência artística. Eles foram concebidos no ápice das experiências do artista sobre a relação entre cor e espaço, e podiam ser uma capa, um estandarte ou uma bandeira, concebidos inicialmente para serem vestidos ou carregados por passista 13 Ibid., p. 260. Em 1968, os críticos de arte Lucy Lippard e John Chandler publicaram um artigo chamado “A desmaterialização da arte”, em que discutiam “manifestações artísticas que enfatizavam o processo de pensamento em detrimento da materialidade física”. (LIPPARD, L; CHANDLER, J. “A desmaterialização da arte”. Trad.: Fernanda Pequeno e Maria P. Menezes de Andrade. Arte & Ensaios, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – EBA – UFRJ. Ano XX, no 25, maio 2013. Disponível em: <http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wpcontent/uploads/2013/12/ae25lucy.pdf>. Acesso em: 4 de janeiro de 2016.) 14 Rapsódia 12 14 da escola de samba Estação Primeira da Mangueira. O contato com a comunidade do Morro da Mangueira estimulou Oiticica a produzir a partir da experiência com a dança, dos ritmos dionisíacos do samba e das relações organizadas em torno da criação coletiva. Como título de sua nova proposição, Oiticica se apropriou da identi��cação de um abrigo improvisado, construído por um morador na rua, na qual se lia “Aqui é o Parangolé”. Para o artista, o Parangolé era a “totalidade-obra” que só existiria plenamente quando alguém a utilizasse e que só pelo movimento suas estruturas se revelariam. b) Parangolé exposto na Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, a) P15 Parangolé Capa 12, Eu incorporo a revolta, 1967. Exhibition Artevida: Corpo, 2014. Fig. 4 Atualmente os Parangolés são mostrados em cabides e a experiência do artista com a comunidade da Mangueira é transformada em apresentações de meia dúzia de sambistas, para meia dúzia de convidados VIPs, nas aberturas de exposições institucionais. A totalidade-obra de Oiticica é apresentada como relíquia sagrada, como “resto” nostálgico de algo que não mais existe. Por uma arte revolucionária independente| D��� L. B���� 15 Fig. 5: Cildo Meireles Projeto Cédula, 1970-1976. Outro exemplo da apropriação da subversão pode ser vista na atualização do Projeto Cédula do artista Cildo Meireles. Em 1970, em plena ditadura militar, Cildo realizou as chamadas Inserções em circuitos ideológicos, que consistiam de objetos como vasilhames de coca-cola e notas de dinheiro com frases como “Yankees go home”, ou “Quem matou Herzog?” (jornalista morto na cadeia durante o regime militar). Numa declaração de 198115 , Cildo comenta que: [...] a noção de público, ampla e generosa, foi substituída (por deformação) pela noção de consumidor, que seria aquela pequena fatia de público que teria o poder aquisitivo.. . As Inserções em circuitos ideológicos nasceram da necessidade de se criar um sistema de circulação, de troca de informações, que não dependesse de nenhum tipo de controle centralizado. Um sistema que, na essência, se opusesse ao da imprensa, do rádio, da televisão,. . . em cujo sistema de circulação está sempre presente um determinado controle e um determinado afunilamento da inserção. Neles, a ’inserção’ é exercida por uma elite que tem acesso aos níveis em que o sistema se desenvolve: so��sticação tecnológica envolvendo alta soma de dinheiro e/ou poder... As ‘Inserções’ só existiriam na medida em que não fossem mais o trabalho de uma pessoa, quer dizer, na medida em 15 MEIRELES, C. Cildo Meireles. Texto Ronaldo Brito, Eudoro Augusto Macieira de Sousa. Rio de Janeiro: FUNARTE: Rio de Janeiro, 1981. Disponível em: <http://passantes.redezero.org/reportagens/cildo/inserc.htm>. Acesso em: 22 de agosto de 2017. Rapsódia 12 16 que outras pessoas o pratiquem. A necessidade do anonimato é colocada, envolvendo por extensão a questão da propriedade. Em 2013, Meireles resolveu retomar o projeto carimbando em notas de 2 reais a frase “Cadê Amarildo”, referindo-se ao desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza, durante uma operação policial na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Entretanto, nessa retomada do projeto, os circuitos ideológicos foram as capas de revistas de arte brasileiras e internacionais, resultando numa contradição com os próprios pressupostos do autor, de uma inserção pública e anônima num corpo social. a) Projeto cédula na capa da revista b) E na capa da revista Arforum, maio Select, novembro de 2013. de 2014 Fig. 6 Muitos artistas explicitam, em suas obras, as relações entre a arte e o mercado, simultaneamente con��ituosas e amigáveis. O artista espanhol Santiago Sierra (1966), por exemplo, contrata colaboradores que não compartilham de suas ideias e, na maioria das vezes, nem conhecem sua pesquisa, obra ou objetivos. Alheios ao que seria o “verdadeiro sentido” da obra, cooperam com ele apenas com interesse Por uma arte revolucionária independente| D��� L. B���� 17 Fig. 7: Santiago Sierra. Documentación de línea de 250 cm tatuada sobre 6 personas remuneradas, 1999. pecuniário, sendo, muitas vezes, submetidos a situações aviltantes ou constrangedoras por necessidade ou ignorância. Na sociedade “pós-industrial” em que vivemos, todas as obras de arte que usam o corpo alheio, mesmo aquelas com comprometimento ideológico dos participantes, levam a uma re��exão sobre a natureza alienada do trabalho no mundo capitalista. A remuneração paga pelo artista aos corpos utilizados é sempre, muitas vezes, inferior à riqueza gerada pelo trabalho desses corpos, um dilema ético que é sabiamente explorado por Sierra. Em Linea de 250 cm tatuada sobre 6 personas remuneradas apresentada em Cuba, em 1999, seis jovens cubanos desempregados se deixam tatuar por trinta dólares, sem nenhum engajamento ideológico. Ao mesmo tempo em que o artista europeu torna visível a natureza niilista do contrato de trabalho atual e os jogos de poder implícitos na arte, ele perpetua uma situação colonialista de exploração do mais fraco, do excluído social, sem subvertêla. Apesar do consentimento dos jovens cubanos utilizados como matéria prima pelo artista, eles estão em situação de inferioridade com relação a ele. Na época em que a obra Linea de 250 cm tatuada en 6 personas remuneradas foi feita, trinta dólares correspondiam a uma refeição para um artista espanhol, mas para um cidadão cubano, a dois meses do salário de um médico. A desigualdade entre o empregador e o empregado retoma a tradição de exploração da América Latina e as obras acabam por se tornar alvo da crítica que elas próprias poderiam estabelecer. Rapsódia 12 18 Fig. 8: Tino Sehgal. The Kiss, 2014. O artista Tino Sehgal (1976) tenta escapar dessa armadilha do mercado de arte de transformar toda a experiência em mercadoria. Para isso, ele elabora uma série de artimanhas: suas peças são coreogra��as executadas por intérpretes treinados de maneira regular, durante todo o período de suas exposições em museus ou galerias; seus materiais são a voz humana, a linguagem, o movimento e a interação e só existem de maneira efêmera, só podendo ser documentadas na memória do observador. Entretanto, mesmo estipulando que não existam projetos ou instruções escritas, catálogos, fotogra��as ou qualquer tipo de documentação de suas “situações construídas”, Tino Sehgal vende suas obras. A transação ocorre mediante uma “conversa” entre o artista e o comprador, diante de um tabelião e de uma testemunha, reproduzindo os contratos contemporâneos de “prestação de serviço”. Apesar de reivindicar o descolamento de sua obra de qualquer objeto-fetiche, as “situações construídas” de Sehgal são disponibilizadas em edições de 6 (com uma “prova de artista”), por preços entre $85.000 e $145.00016 . Além disso, o artista participa de exposições/projetos patrocinadas por corporações multinacionais (como a Unilever) e concorre a prêmios ��nanciados por Bancos e instituições ��nanceiras (como o Bâloise Art Prize, ��nanciado pelo grupo suíço Bâloise, de 16 LUBOW, A. “Making art out of an encounter”. The New York Times Magazine, 15 de janeiro, 2010. Disponível em: http://www.nytimes.com/2010/01/17/magazine/17seghal-t.html. Acesso em: 15 de dezembro de 2017; DEGEN, N. “Making and selling ephemeral ‘situation’ art”. Financial Times, 13 de fevereiro, 2009. Disponível em: <https://www.ft.com/content/8d4928dcf96e-11dd-90c1-000077b07658>. Acesso em: 15 de dezembro de 2017. Por uma arte revolucionária independente| D��� L. B���� 19 seguros e bancos). A obra de Damien Hirst (1965), por outro lado, não é sobre o mercado; ela é o mercado: uma série de procedimentos feitos inteiramente ou, principalmente, para capturar e incorporar valor ��nanceiro. O subproduto de suas atividades é o corpus mais autoritário da arte dos últimos tempos. Superfícies duras e brilhantes, animais que apodrecem e são destruídos assumem as qualidades do capital. Para Hirst, ganhar dinheiro não é su��ciente, ele quer ser dinheiro: sem peso, onipresente, in��nitamente circulante, imortal. Em 2008, Hirst fez uma exposição/leilão na Sotheby’s de Londres, em que, segundo ele, promulgava a democratização do mercado de arte e se tornava um tipo de “rei Midas”. A intelectual feminista Germaine Greer17 (GREER, 2008), num artigo no jornal inglês The Guardian, escreveu: [...] o inegável gênio do artista consiste em levar as pessoas a comprar suas obras. Damien Hirst é uma marca, porque a forma de arte do século 21 é o marketing. Desenvolver uma marca tão forte com uma racionalidade tão conspícua é um ato extremamente criativo – é revolucionário. Leilão de dois dias na Sotheby’s, em que Hirst se dirigiu diretamente para o público, sem a intermediação de galerias. As vendas totalizaram 198 milhões de dólares por 218 itens. Qual seria então o signi��cado do termo revolucionário num sistema em que o marketing confunde-se com a arte? Num sistema que tudo devora, digere e regurgita em proveito próprio? Nas escolas de arte, os estudantes aprendem a ser “jovens artistas”, estudando as estratégias de inserção no mercado, os procedimentos “revolucionários”, as técnicas tradicionais, as determinações históricas. As escolas de arte “lançam” jovens artistas na mesma frequência que as grandes lojas lançam suas novas coleções. 17 GREER, G. “Germaine Greer Note to Robert Hughes: Bob, dear, Damien Hirst is just one of many artists you don’t get”. The Guardian, 22 de setembro, 2008. Disponível em: <https://www.theguardian.com/artanddesign/2008/sep/22/1>. Acesso em: 2 de setembro de 2017. Rapsódia 12 20 Fig. 8: Damien Hirst. Beautiful Inside my Head, 2008. Surgem os “jovens-artistas-mercadoria” que abastecem a demanda capitalista pelo “novo-sempre-igual”18 . O termo “jovem artista” signi��ca muito mais do que um período na vida de alguém que faz arte. Não é simplesmente a mesma coisa que o “artista quando jovem” joyciano. Em seu primeiro romance, Retrato do artista quando jovem, escrito em 1916, James Joyce narra a “formação” de seu alter ego Stephen Dedalus. Conforme a personagem amadurece, o autor muda o estilo do texto, construindo um espelhamento entre conteúdo e forma. O livro é considerado um romance de formação, ou seja, um romance em que se expõe o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem, nesse caso confundindo-se com o do próprio Joyce. Enquanto o termo “o artista quando jovem” é uma denominação retroativa, que pressupõe a existência de uma obra feita por alguém que faz arte (o artista), a nomenclatura “jovem artista” 18 De acordo com Walter Benjamin, “o novo-sempre-igual aparece palpavelmente, pela primeira vez, na produção em massa”, quando “a ideia da eterna recorrência transforma eventos históricos em produtos de produção em massa”. (BENJAMIN, W. “Central Park”. Tradução para o inglês: Lloyd Spencer. In: New German Critique, 34, Inverno 1985, pp. 48, 36 [tradução nossa]). Por uma arte revolucionária independente| D��� L. B���� 21 prescinde da obra. Ela estabelece uma categoria que existe antes da arte, uma aposta que pode dar certo (valorizar) ou não. a) Indignados, 2012. b) Occupy Wall Street, 2011. c) Passe Livre, 2013. d) Praça Taksim, 2013. Fig. 10 Se a arte ainda incorpora algum pensamento revolucionário, é porque negocia com a memória de uma série de interrupções ambíguas. Apresenta-se como o déjà-vu de uma revolução esquecida, apagada, que nunca terminou de se realizar, que se emaranha e se confunde com as estruturas sociais do capitalismo19 . Dessa confusão, surgem promessas de realização de um novo mundo, fundamentadas na negatividade que se espalha na violência contraditória da contemporaneidade e impossíveis de serem satisfeitas no presente. Indicam caminhos ou abrem fendas que só vão poder ser identi��cados retroativamente e que, nesse movimento, vão alterar as próprias coordenadas em que surgiram. Algumas dessas promessas poderão ser chamadas de arte revolucionária. 19 Ver MEDINA, C. “Contemp(t)orary: eleven theses”. E-�ux journal, nº. 12, janeiro 2010. Disponível em: <http://worker01.e-��ux.com/pdf/article_8888103.pdf>. Acesso em: 22 de agosto de 2017. 22 Rapsódia 12 Referências bibliográ��cas BENJAMIN, Walter. Central Park. Tradução para o inglês: Lloyd Spencer. In: New German Critique 34, Inverno 1985. ___. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução: José Carlos Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. ___. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol. I. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 10a reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996. BRETON, André; TROTSKY, Leon. Por uma arte revolucionária independente. Tradução: Carmem Sylvia Guedes, Rosa Maria Boaventura. São Paulo: Paz e Terra, 1985. BUCK-MORSS, Susan. Walter Benjamin: escritor revolucionário. Tradução: Mariano López Seoane. Buenos Aires: Interzona Editora S.A., 2005. DEGEN, Natasha. Making and selling ephemeral ‘situation’ art. Financial Times, 13 de fevereiro, 2009. Disponível em: https://www.ft.com/content/8d4928dcf96e-11dd-90c1-000077b07658. Acesso em: 15 de dezembro de 2017. GREER, Germaine. Germaine Greer Note to Robert Hughes: Bob, dear, Damien Hirst is just one of many artists you don’t get. 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