(PDF) Resenha do livro de Karl Barth: A Carta aos Romanos, 2a edição, traduzida por Uwe Wegner | Rudolf von Sinner - Academia.edu
Estudos Teológicos foi licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição – NãoComercial – SemDerivados 3.0 Não Adaptada http://dx.doi.org/10.22351/et.v57i1.2804 KARL BARTH – A CARTA AOS ROMANOS1 Karl Barth – The Epistle to the Romans Rudolf von Sinner2 Resenha de: BARTH, Karl. A Carta aos Romanos. Segunda versão (1922). Editado por Cornelis van der Kooi and Katja Tolstaja. Tradução Uwe Wegner. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016. 576 p. ISBN 978-85-8194-075-5. O presente livro marcou, teologicamente, o início do século XX, caindo como “uma bomba [...] no playground dos teólogos”, no dizer de Karl Adam. A primeira edição, de 1919, já tinha chamado a atenção como posicionamento do então pastor da Igreja Reformada de Safenwil, Argóvia, na Suíça, que zelava pelos direitos dos operários numa pequena cidade com grandes e poderosas empresas. Barth entendia que o projeto liberal da teologia, ao qual ele mesmo pertencia, estava falido diante de seu apoio ao nacionalismo e à Primeira Guerra Mundial, entrementes perdida pelos alemães. Era preciso, segundo Barth, entrar mais profundamente na leitura da Bíblia, ir além de um mero cientificismo que não atinge o espírito dela. Visou mudar o enfoque do sujeito humano com suas supostas (e falhas) capacidades, inclusive religiosas, para Deus como sujeito. A teologia deveria partir de Deus e não do ser humano. Assim, Barth afastou-se mais e mais claramente do seu professor Adolf von Harnack (18511930; “é evidente que o ídolo está balançando” – der Götze wackelt) e aproximou-se do grande amigo de Nietzsche, Franz Overbeck (1837-1905), professor polêmico em Basel, das pinturas de Matthias Grünewald (1470-1528) com o dedo de João apontando para Jesus na cruz, de Sören Kierkegaard (1813-1855), em quem o convenceu a clara distinção feita entre Deus e o ser humano, além de outros e, não por último, seu irmão Heinrich Barth, quem defendeu sua tese de habilitação em Basel em 1920 1 2 O artigo foi recebido em 09 de agosto de 2016 e aprovado em 30 de dezembro de 2016 com base nas avaliações dos pareceristas ad hoc. Doutor (Universidade de Basileia, 2001) e livre-docente (Universidade de Berna, 2010) em Teologia. Professor titular de Teologia Sistemática, Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso na Faculdades EST, São Leopoldo/RS, Brasil. Líder do grupo de pesquisa Teologia Pública em Perspectiva Latino-Americana. Contato: r.vonsinner@est.edu.br Karl Barth – A Carta aos Romanos com um estudo sobre a alma na filosofia de Platão, inspirando seu irmão nessa linha platônica da origem. A presente publicação está baseada na segunda edição da Epístola aos Romanos, de 1922. Trata-se de uma nova versão, uma edição crítica, publicada em 2010 em alemão, com anotações explicativas que em muito ajudam a leitora, o leitor hodierno, e foi mui habilmente traduzido pelo exegeta Uwe Wegner. A segunda edição do Römerbrief, uma revisão total, foi escrita em quase 11 meses enquanto Barth, mesmo sem a titulação acadêmica cabível, já estava com uma convocação para a nova cátedra de Teologia Reformada na Universidade de Göttingen, criada com apoio de presbiterianos dos Estados Unidos. A maior mudança entre a primeira e a segunda edições foi que a última não destacava mais tanto o reino de Deus como força que move o mundo, mas Deus como o totalmente Outro. Barth insiste que o ser humano não pode chegar a Deus por força ou vontade própria, mas apenas a partir do Cristo, em quem Deus vem ao encontro do ser humano. A história da salvação entra como crise na história humana, dizendo um grande não ao mundo com seu pecado e a presença da morte, porém proclamando o sim de Deus em Cristo que superou o pecado e a morte. Entendia a definição científica da teologia a partir da tarefa prática de prédica numa combinação estreita entre reflexão teológica normativa e crítica atual da cultura e sociedade, rendendo-lhe o título de “profeta”. A seguir, como antegosto da leitura própria do livro, apresentarei alguns recortes temáticos que são recorrentes no livro, seguindo mais ou menos a sequência dos capítulos como aparecem de forma proeminente. A abordagem de Barth do texto de Romanos é permeada pelas palavras do juízo e da salvação pela graça, totalmente dependente de Deus e fora do nosso alcance. Toda empreitada humana precisa ser enxergada como tal que é: humana, nada mais nem menos. Deus é Deus, totalmente diferente do ser humano. Deus é soberano inclusive em decisão, tomada antes mesmo da queda no pecado, de predestinação pela salvação e pela condenação. Ela não depende, portanto, da história, de um acontecimento histórico, da ação de um ser humano (Adão). Esse ato e todos os seus desdobramentos tornam apenas visível o que já vale por decisão soberana de Deus. A salvação, por sua vez, vem precisamente da justiça, que é a justiça de Deus, não de Abraão, nossa, do crente, mas de Deus – uma ideia teológica muito típica de Barth. Nisso, Deus toma nosso lado: “Ele se justifica a si mesmo perante si mesmo, declarando-se partidário do ser humano e de seu mundo, não cessando de aceitá-lo. Também a ira de Deus é justiça de Deus”, afirma (p. 127). Que Deus faça isso “apesar” (Trotzdem!) da queda e do pecado é “inaudito” (unerhört – algo como “onde já se ouviu uma coisa dessa”). O juízo não destrói, ele restaura na misericórdia de Deus. Em várias instâncias há cotoveladas contra a teologia liberal e o romantismo, contra a religião como algo humano, ao qual é contraposta a fé como dádiva do Deus soberano, encontrando-se “à sombra do pecado e da morte”, mesmo tendo a religião sua “razão relativa” de ser. Mas religião, inclusive a religião presente no cristianismo, é essencialmente autojustificação do ser humano. Contudo, a fé não é algo fácil; ela dá certeza, mas não dá segurança. Pelo contrário, enquanto tribulações não fazem parte da religião, fazem, sim, da fé, que mostra sua força precisamente no meio da tentação, Estudos Teológicos São Leopoldo v. 57 n. 1 p. 214-217 jan./jun. 2017 215 Rudolf von Sinner Anfechtung. Na fé, Barth propõe uma mudança de perspectiva: “Crer significa ver o que Deus vê” (p. 228), ou seja, buscar olhar para nós mesmos com os olhos de Deus – parece bastante pretensioso, mas é esse olhar que nos tira da nossa catividade ensimesmada. Deus é soberano e livre, portanto não pode ser sujeito nem por contraposição a um outro polo, como faz a religião. É, realmente, o totalmente outro. Ele pode fazer ligação entre eternidade e tempo, construir uma relação com o ser humano – não vice-versa. Mesmo que a religião seja natural para o ser humano – equivalente à lei (ou um dos usos dela) em Romanos –, ela é isto mesmo: humana, e não consegue chegar a Deus, ela estaria até traindo o Cristo. Em contraposição, a graça “é a consciência do ser humano de que sua vida, a despeito de todos os fatos, conteúdos, essências, toda existência e modo de existir, é vida por Deus gerada e movimentada e que nele tem seu repouso” (p. 229). De várias formas, Barth destaca a soberania de Deus também em relação à igreja. A palavra “amei Jacó, mas odiei Esaú” (Ml 1.2-3) mostra novamente a qualidade livre e soberana do agir divino. É sinal da eterna dupla predestinação. É a justiça de Deus, e somente dele. Não há diferença fundamental ou de caráter entre Jacó e Esaú, o Faraó e Moisés nesse sentido, todos precisam mostrar o poder de Deus. Assim, a igreja de Esaú é humana, a de Jacó é que tem relação com Deus – pois no rio Jaboque, Jacó lutou com o anjo e conseguiu a bênção, mas ficou ferido. O encontro com Deus marca! A aflição da igreja é que Deus é desconhecido, desconhecido além daquilo que de si revela, o que insiste na forte coerência do Deus absconditus e do revelatus – ele é absconditus na própria revelação, não além dela. Barth mantém a unidade de Deus, também do irado e do misericordioso, tendo revelado essa unidade na cruz de Cristo. O que isso significaria para um possível diálogo entre as religiões? Parece deixar pouca margem, enquanto desenha uma linha bastante reta entre Israel e a igreja, o que de fato será para Barth o problema ecumênico por excelência. Ao longo do livro, o texto continua num tom irritador, na parte final até pelo título para os capítulos 12-15: “A grande perturbação” (Störung), podendo chamar o próprio evangelho de “perturbador” (p. 512). Não é nada fácil o que Deus aqui exige do seu povo. De novo se insiste que Deus é Deus e o ser humano é humano, e é preciso enxergar a ação de Deus por sua própria iniciativa e não num agir humano. Isso vale, de modo especial, na ética. Ou seja: doutrina e ética não estão separadas, mas intrinsecamente interligadas – a base das duas é que Deus é Deus. A ética não pode ser fundamentada em conceitos “intramundanos” (p. 425). Também não se fundamenta na mística, numa participação em Deus, mas na ação de Deus que ilumina a ação humana, numa superação e transformação do ser humano. A ética humana tem, isto sim, seu direito relativo e pode buscar praticar relacionamentos norteadas pelo amor, pelo respeito diante da “santidade do ser humano, sem o qual a sociedade vira uma casa de loucos” (p. 447). Trata-se de servir com alegria, na perspectiva da esperança, ser persistente, cultivar a hospitalidade; ver que o perseguidor pode ser mensageiro de Deus. O outro, o inimigo, precisa ser reconhecido como carente, como “golpeado pela ira de Deus” (p. 463), e nisso faz surgir nossa solidariedade, pois “sua maldade é tua maldade” (p. 463) e ele precisa tanto da redenção quanto eu. Lembra Barth, ainda, que a Bíblia, e no caso a Carta aos Romanos, não é um receituário de diretrizes diretas 216 Estudos Teológicos São Leopoldo v. 57 n. 1 p. 214-217 jan./jun. 2017 Karl Barth – A Carta aos Romanos de comportamento, nem se pode “por meio de reforma de vida [...] construir o reino de Deus” (p. 490). A única vantagem que se pode ter é a eleição divina (p. 493). A revolução humana é uma “grande possibilidade negativa” (p. 464ss). Temos agora disponível este clássico da teologia protestante do século XX numa versão de utilidade tanto para o público mais amplo quanto para o pesquisador especializado. Está completo, com todo o texto e todas as notas do próprio Barth, além de uma boa apresentação e de notas explicativas dos editores. Isso, em si, é um grande avanço. Somente senti falta de uma tradução de alguns textos que permaneceram em latim – caso também do original, mas cuja tradução para o português seria de muita valia para o público brasileiro. Quanto ao conteúdo, em tempos de grande diversidade religiosa, este livro é polêmico – até porque rejeita a própria “religião”, como a entende, como empreitada meramente humana. Isso pouco ajuda no diálogo entre as religiões do qual tanto precisamos hoje. Consequentemente, para alguns, Barth é “neo-ortodoxo” e conservador ou reacionário, já para outros, é “liberal”. A meu ver, não cabe em nenhuma das duas gavetas. Coloca, isto sim, também para hoje o desafio de falar sobre a relação entre Deus e o ser humano sem tornar essa relação uma de negócio e barganha, ou de união mística, ou de uma exacerbação do ser humano, ou de uma instrumentalização de Deus para qualquer projeto humano. Se Deus é Deus, o ser humano pode ser o que é – ser humano, consolado em sua tribulação pela justiça do Deus misericordioso. Estudos Teológicos São Leopoldo v. 57 n. 1 p. 214-217 jan./jun. 2017 217