O melancólico ocaso de Tony Blair
Ao encerrar uma década de governo, o criador da “Terceira Via” depara-se com uma popularidade lastimável e os primeiros balanços sérios de seu mandato. Eles destacam a subserviência aos EUA e a manutenção sem brilho das políticas neoliberais de seus antecessoresRichard Gott
Em 17 de julho de 2006, durante a cúpula do G8 realizada em São Petesburgo, na primeira semana da agressão israelense contra o Líbano, uma câmara indiscreta de TV captou um encontro casual de Tony Blair e George Bush. As imagens revelam o presidente dos EUA falando, por cima do ombro, com o seu principal aliado europeu, e perguntando-lhe, descontraidamente. “Oi, Blair, você vai bem, cara?” [1].
A breve conversa subseqüente entre os dois não foi em si muito significativa, mas os meios de comunicação foram rápidos em notar a óbvia falta de interesse de Bush ao ver o primeiro ministro britânico. “Blair parece menos o chefe de um governo soberano do que um agente de Bush esperando o sinal verde do chefe – que nunca chega”, observou o jornal inglês The Guardian.
Talvez Tony Blair imaginasse que tinha um “relacionamento especial” e útil com o presidente dos EUA, [2] mas o curto diálogo televisado revelou que o próprio Bush não tinha essa amizade em tão alta conta. Blair apareceu apenas como um líder político qualquer, com quem o presidente era obrigado a conversar banalidades.
Popularidade em queda livre, derrotas eleitorais, herança lastimável
Blair deixará a residência oficial de Downing Street, em julho de 2007, ao fim de dez anos como primeiro-ministro do Reino Unido — e depois da derrota nas eleições locais de 3 de maio de 2007, em que o Partido Trabalhista inglês perdeu 500 conselheiros e o Partido Conservador ganhou 900. A dimensão mais emblemática do fracasso foi a queda do “bastião trabalhista escocês”, derrubado pelos independentistas do Partido Nacional Escocês (SNP). Alex Salmond, chefe do SNP, vai dirigir o Executivo regional de Edimburgo.
A impopularidade de Blair teve impacto catastrófico sobre as chances do Partido Trabalhista, e seu balanço na chefia do governo é hoje considerado como um dos piores, desde os de Neville Chamberlain [3], nos anos 1930, e de Anthony Eden, nos anos 50. “Iraque” somou-se a “Suez”, no vocabulário dos desastres da política externa britânica [4].
Que aconteceu com Blair? Como o jovem político inteligente, bonitão, eloqüente e acessível de dez anos atrás caiu em tamanha desgraça? Como as mesmas pessoas que beberam champanhe para comemorar sua vitória, em 1997, já separaram novas garrafas para celebrar sua partida, em 2007? Muitos tinham suas dúvidas, é claro, mas o tamanho da queda dificilmente seria predizível nos primeiros anos. O encantador Blair foi bem recebido por toda parte como a vassoura tão esperada para varrer a memória da longa e conflituosa era de Margaret Thatcher.
Coleção de guerras, como não havia desde o império britânico
Blair era uma incógnita, em 1997, mas amigos de colégio e universidade conheciam suas habilidades de ator. Sua capacidade de representar, encenar, decorar um papel e modificá-lo quando as circunstâncias o exigiam tornaram-se a marca registrada de sua carreira, inigualada desde Harold Macmillan, o último primeiro-ministro grande estrela. Blair mostrou ter um talento útil.
Ficou conhecido, também, pelo fervor religioso, inabitual na vida pública européia no final do século 20, e ausente nos primeiros-ministros britânicos desde William Gladstone, da era vitoriana. A Inglaterra é um país amplamente secular e, apesar de metodistas e outras seitas terem tido sempre proeminência no Partido Trabalhista, os sucessivos líderes do partido pouco mais fizeram do que ir às catedrais da Igreja Anglicana quando os deveres de Estado exigiam sua presença.
Blair quebrou o molde, chegando-se mais a Roma do que a Canterbury [5]. Mas sempre teve problemas com as autoridades religiosas, como seu amigo Hans Kung, teólogo católico suíço, que mantém uma relação perenemente problemática com o Vaticano. Blair foi censurado pelo principal arcebispo católico, na Inglaterra, por receber a comunhão católica. Ele é protestante, e foi alertado pelo arcebispo-chefe anglicano por aproximar-se demais de Roma (sua esposa, Cherie, é católica). Coerentemente, Blair também ignorou os avisos contra a invasão do Iraque feitos pelo Papa e pelo arcebispo anglicano, que criticaram ambos, abertamente, a possível guerra.
A política externa de Blair foi, é claro, a principal causa do seu fracasso. As guerras de Blair, como foram chamadas num contundente livro com esse título [6], levaram a Inglaterra a cinco conflitos em seis anos, um recorde não igualado desde o império. As forças britânicas envolveram-se no Iraque, em 1998 (Operação Raposa do Deserto); no Kosovo, em 1999; em Serra Leoa, em 2000; no Afeganistão, em 2001; e, outra vez, no Iraque, em 2002. Nenhuma dessas aventuras teve sucesso. Kosovo é um caso sem solução. Serra Leoa acalmou-se. Já o Iraque e o Afeganistão continuam como feridas supuradas, conflitos impopulares e intermináveis em que soldados britânicos ainda estão sendo mortos.
Muito pior que uma sombra de George Bush
As guerras de Blair corroeram sua popularidade e apoio político, não apenas dentro do Partido Trabalhista e para o público em geral mas também dentro do próprio aparelho estatal britânico — o que inclui as relações exteriores, o serviço público, o judiciário e, mais recentemente, as figuras principais das forças armadas. Conforme decisão tomada em fevereiro de 2007, os militares impuseram a retirada das tropas de Bassora, no sul do Iraque, onde se configura uma derrota, e o reforço da presença britânica no Afeganistão, onde os Estados Unidos lutam contra os talibãs sob a bandeira da OTAN. Dificilmente, para os políticos da Inglaterra, houve tanta perda de confiança nas políticas de um governo por aqueles que trabalham nele. A entusiástica adesão de Blair à invasão do Iraque pelos Estados Unidos tirou o ânimo do país e teve um importante papel nessa perda de apoio. Também evitou que tivesse qualquer papel útil no desenvolvimento da União Européia. Dando tanta atenção às relações anglo-americanas, deixou de lado seus aliados na Europa.
Blair foi muitas vezes retratado como um contínuo ineficiente do presidente Bush. E, no entanto, a verdade é ainda mais deprimente. Das profundezas de sua própria ignorância, Blair acreditou firmemente em sua missão pessoal nos assuntos externos, independentemente dos norte-americanos. Se Bush tivesse relutado em ir à guerra no Iraque, Blair o teria pressionado. Muitos estadunidenses acreditam que o primeiro-ministro britânico defende a guerra mais articuladamente do que seu próprio presidente.
A expedição ao Iraque foi precedida pela ” guerra contra o terrorismo ” de Bush, à qual Blair aderiu com entusiasmo. Antes, no Partido Trabalhista, havia muitos jovens juristas cheios de ideais (entre os quais Chérie Blair), determinados a ampliar o campo das liberdades civis e dos direitos humanos. Todos foram atropelados pelas exigências da nova guerra, o que os levou a aprovar tacitamente os excessos de Guantánamo e Abu Ghraib e a referendar a legislação repressiva instaurada em seu próprio país [7]
O desastre no Iraque foi a principal causa da trincheira de hostilidade a Blair pessoalmente e a seu governo em geral, mas não a única. Seu fracasso em construir uma alternativa progressista às políticas neo-liberais de Margaret Thatcher mostrou-se igualmente impopular.
Na política interna, mera extensão das agendas neoliberais
Quase tudo o que Blair fez em seu país foi uma extensão das políticas dos conservadores entre 1979 em 1997. Em educação e saúde, em segurança e em relação à Irlanda do Norte, ele seguiu os passos de Margaret Thatcher. Poucos de seus projetos foram originais. A política para a Irlanda do Norte, que produziu o acordo tripartite da Sexta-feira Santa, de abril de 1988 (entre os Protestantes do Ulster, o IRA e o governo da Irlanda), era o sonho de John Major, o primeiro-ministro anterior. Blair realizou-o [8].
O processo de descentralização, que levou à criação de assembléias locais na Escócia e no País de Gales, foi costurado por John Smith, o predecessor de Blair como líder trabalhista. Escolas especializadas e academias, a manutenção das seletivas grammar schools [9], a cobrança de taxas nas universidades eram propostas dos conservadores.
É verdade que Blair instituiu um salário mínimo em 1997, quando a deterioração dos equipamentos coletivos o levou a criar empregos no setor público, mas ele seguiu uma política de retração do Estado e de privatização. Os esquemas de Blair para remanejar entulhos do setor público para a empresa privada, suas desajeitadas e mal-pensadas reformas nos sistemas britânicos de educação e saúde e seus esforços para reformar e reorganizar a máquina governamental foram continuações da tentativa conservadora de estabelecer uma agenda neoliberal permanente e reduzir o tamanho do Estado. Entretanto, suas iniciativas foram, quase todas, marcadas por uma série de fracassos muito alardeados pelos meios de comunicação. Se ele não tivesse prometido deixar o poder em maio de 2007, sua saída certamente teria acontecido mais cedo.
A extensão mais significativa do thatcherismo operada por Bush foi a Iniciativa Financeira Privada (IFP) – a introdução de empresas privadas no fornecimento da educação e saúde, até então restrito ao setor público.
Sem coragem para investir, Estado apelou a financiamento privado
A IFP foi originalmente um projeto do governo de John Major, proposta por Norman Lamont, ministro das finanças em 1992. Foi concebida para assegurar o financiamento de empresas privadas para a construção de hospitais e escolas. As empresas teriam um contrato de até cinqüenta anos e recuperariam seu investimento por meio de taxas anuais pagas pelo contribuinte.
Esquemas-pilotos foram lançados pelos conservadores, mas as IFPs só se expandiram mesmo quando foram adotadas com entusiasmo, depois de 1997, por Gordon Brown, ministro das Finanças de Blair. Brown tinha se comprometido a aumentar o investimento no setor público e, ao mesmo tempo, a se manter dentro dos limites estreitos da capacidade de endividamento estatal. Parecia um problema quase insolúvel, mas a IFP trouxe a resposta. O governo garantiria o dinheiro para o investimento e pagaria mais tarde. O ponto fraco era que os recursos adiantados teriam de ser remunerados, muito mais do que os investimentos tradicionais. Contratos com um valor de capital de cerca de 50 bilhões de libras foram assinados no fim de 2005, obrigando o contribuinte a pagamentos anuais de até sete bilhões e meio de libras às empresas privadas, durante um período de no mínimo 20 anos.
Mais tarde a IFP foi estendida para o financiamento de estradas, prisões e tecnologia informática (TI). Autoridades locais usaram o mecanismo para a construção de casas, bibliotecas e iluminação pública. Os maiores projetos de IFP foram contratados pelo ministério da Defesa.
Mais tarde, os conservadores retiraram sua paternidade dos esquemas IFP de Blair. Norman Lamont observou, em 2002: “nunca se pretendeu que [a IFP] fosse um meio alternativo de obter financiamento e acho perigoso, porque a realidade é que o financiamento privado é mais caro.”
Entre os beneficiários dos contratos de IFP estão as maiores empresas de consultoria: Price Waterhouse Coopers, KPMG (originalmente Peat Marwick), Deloitte Touche e Ernst & Young (comprada em parte pela companhia francesa Capgemini). Entre os que se beneficiaram, incluem-se consultores da Accenture (anteriormente Arthur Andersen), Booz Allen, Hamilton e McKinsey. Dos 50 bilhões de libras prometidos em 2005, cerca de cinco bilhões destinaram-se a despesas de consultoria.
A aparição do “Reino Unido Ltd.” e o esvaziamento da política
Essa explosão das empresas privadas de consultoria, encarregadas de uma atividade anteriormente desempenhada pela burocracia estatal, implicou uma reestruturação fundamental do governo. A antiga imagem do burocrata britânico, familiar nos filmes do pós-guerra da Ealing Comedy [10], desapareceu há muito tempo. Servidores civis tradicionais, que antes davam consultoria política, foram encarregados da gerência dos projetos mas, como não eram treinados para a tarefa, foram alijados pelos consultores.
Uma das ambições de Blair era “modernizar” o funcionamento do governo. Essa política foi tornada pública pela primeira vez em 1999, com o compromisso de colocar a “tecnologia informática (TI) no centro do programa de renovação e reforma do serviço público”. Blair imaginou que conseguiria administrar a “Reino Unido Companhia Limitada” como uma grande companhia privada, com a ajuda de caros consultores de gerenciamento. Ele falava de “reforma do serviço público orientada para objetivos”.
Contudo, esse projeto teve cada vez menos sucesso e mostrou-se especialmente impopular. Os objetivos não foram alcançados, as reformas em TI mostraram-se caras e inadequadas, enfermeiras e professores saíram em protesto. Um ex-conselheiro ministerial escreveu sobre “o fracasso do Estado McKinsey [11]”, enquanto outros falavam da “porta giratória” só de entrada. Consultores privados foram engajados nos projetos do governo, enquanto os servidores públicos aposentaram-se precocemente para trabalhar nas firmas de consultoria. Os políticos deixaram de ser associados a idéias e passaram a ser identificados com a máquina do governo. Os eleitores não tinham mais escolha, a não ser decidir que grupo de políticos seria mais competente na administração da reforma governamental.
Blairismo é o nome dado, hoje, ao fracassado projeto político de Blair, que em sua origem foi chamado de Terceira Via. Era entendido, na versão otimista, como um caminho (ainda que mal definido) entre socialismo e capitalismo, no fim da Guerra Fria. Blair e Gerhard Schroeder, chanceler alemão, chamaram-no Die Neue Mitte [o Novo Centro], em junho de 1999, quando prepararam uma declaração conjunta apontada como um programa para a centro-esquerda européia, que vivia uma breve ressurgência naquele momento. Figuras mundiais — desde Bill Clinton ao brasileiro Fernando Henrique Cardoso — foram arrebanhados para apoiá-lo. Até Hugo Chávez, da Venezuela, em uma visita à Inglaterra antes de sua primeira eleição, em 1998, viu méritos na Terceira Via (embora não por muito tempo).
Com o “blairismo”, tentativa de superar o Partido Trabalhista
A Terceira Via era essencialmente uma proposta norte-americana, que emergiu de dentro do Partido Democrata do presidente Clinton. Foi sonhada como uma filosofia internacionalista que poderia ser adotada por governos-clientes do Império norte-americano. Na melhor das hipóteses, poderia ser construída como uma resposta racional ao novo ambiente social e econômico associado à globalização, considerada um processo permanente e imutável. O raciocínio sugeria que os governos no mundo capitalista globalizado tinham, isoladamente, pouca capacidade de influenciar os movimentos do mercado. Eles deveriam, portanto, concentrar-se em coisas que pudessem de fato fazer: treinar seus trabalhadores para tornarem-se sempre mais competitivos e prover a infraestrutura que tornasse isso possível em termos de escolas, hospitais e meios de comunicação.
Na prática, a capacidade dos governos de cumprir essas tarefas foi super-estimada, e a Terceira Via nunca foi muito além da retórica. Em sua versão britânica (antes da invenção do blairismo) foi chamada de Novo Trabalhismo (New Labour) — uma formulação concebida por volta de 1990, para distanciar Blair e seu projeto dos partidários do Velho Trabalhismo (Old Labour), definidos como sustentáculos e ativistas do Partido Trabalhista tradicional e vistos pejorativamente como sindicalistas ultrapassados ou militantes anacrônicos da luta classes.
Essa reunião de velhos e novos esquerdistas visivelmente estava em defasagem completa com a realidade, argumentavam os blairistas. Nunca conseguiriam ganhar o apoio da geração emergente da classe média e dos consumidores individualistas — os herdeiros da era de Margaret Thatcher.
Era preciso algo diferente, disseram Blair e seus adeptos. O próprio Blair devotou grande parte de sua carreira a brigar com seu próprio partido, muitas vezes passando por cima dele. Ele enfraqueceu a conferência anual do partido, que tradicionalmente discutia as políticas trabalhistas, e desautorizou suas decisões democráticas, substituindo-as por suas próprias políticas. Em conseqüência, a ideologia do novo trabalhismo nunca se tornou popular dentro do próprio Partido Trabalhista e, provavelmente, não vai sobreviver à saída de Blair.
A expressão novo trabalhismo agora raramente é usada, e o projeto político da década passada é mais comumente citado como blairismo. O que pareceu um caminho entre socialismo e capitalismo é definido agora por seus defensores como o casamento entre a economia do livre mercado e a justiça social. O próprio Blair fala mais comedidamente de eficiência econômica, uma vez que a expressão livre mercado foi associada ao longo dos anos com o Partido Conservador. Mas ele gosta de justiça social, que se tornou seu mantra pessoal. Ele explicou na conferência anual trabalhista de outubro de 2006 como “a eficiência econômica e a justiça social são parceiros no progresso”.
Como promover justiça social sem tocar na concentração de renda?
O blairismo, rejeitado pela opinião pública britânica, tornou-se a base de uma doutrina comum da esquerda e da direita na Europa, abraçada com entusiasmo tanto por Ségolène Royal e Nicolas Sarkozy como por Blair e David Cameron, o novo líder do Partido Conservador britânico. Cameron até montou um grupo político de justiça social, coordenado por um de seus predecessores, para dar uma imagem mais compassiva ao seu partido.
A expressão justiça social é usada principalmente como um floreado retórico, porque lhe falta qualquer significado ou realização concreta. Qualquer sugestão de que a justiça social poderia implicar em redistribuição de riqueza, antigo anseio do Velho Trabalhismo, foi virulentamente combatida por Blair. Sem dúvida, a tendência vai no sentido oposto. Nada deve atrapalhar a criação de riqueza, o que significa aceitar as grandes desigualdades de renda — características da Inglaterra de Blair (como da de Thatcher).
A Inglaterra ainda vive à sombra das reformas do livre mercado da era Thatcher. Essas reformas foram introduzidas na Inglaterra nos programas econômicos neoliberais adotados por Ronald Reagan, nos anos 1980, que logo se tornaram a moeda corrente do debate global, encapsulado no Consenso de Washington nos anos subseqüentes a 1989.
O crescimento da desigualdade foi um dos notáveis fenômenos associados com o projeto neoliberal. A concentração de renda desencadeou resultados desastrosos em continentes longe da Europa. Na Inglaterra de hoje hoje, os 1% mais ricos da população possuem 25% da riqueza, enquanto os 50% mais pobres possuem apenas 6%. Onze milhões de pessoas, em uma população de 60 milhões, vivem na pobreza. Justiça social, para eles é um sonho distante e cada vez mais difícil de alcançar. Em compensação, os lucros das cem maiores empresas listadas no Financial Times Stock Exchange (FTSE100), explodiram: são hoje sete vezes maiores do que em 2002.
Sintoma da decadência geral dos partidos políticos
A popularidade de Blair sempre foi menor do que parecia. As incertezas do sistema político britânico podem fazer com que um político com menos de 30% do voto popular pareça ter o dobro disso e seja ainda capaz de manter uma maioria confortável no parlamento. O apoio eleitoral de Blair encolheu depois de sua vitória inicial em 1997. Na eleição de 2005, ele garantiu o apoio de apenas 21% de todos os potenciais votantes. Houve mais abstenções que votos nos candidatos do Partido Trabalhista. Não há sinal de que essa tendência tenha sido revertida.
Por que o Partido Trabalhista enamorou-se de Blair? Em parte, claro seu encanto superficial e felicidade verbal. Com a defenestração do inútil Neil Kinnock, a morte do horrendo John Smith e a falta de instinto assassino do brilhante Gordon Brown, a branda figura de Blair, jovem e loquaz, foi enxergada como a única possibilidade.
Sua rápida ascensão foi um sinal da falta de quadros do Partido Trabalhista nos trinta anos anteriores. Tony Blair pode ter sido um charlatão sem cor, como alguns notaram na época, mas só havia ele. Desde a década de 1960, os inteligentes e ambiciosos na Inglaterra tinham desistido de tentar uma carreira nos maiores partidos políticos. Muitos deles tinham partido para os mundos mais dúbios e lucrativos do comércio, cultura e meios de comunicação. Uma carreira honrada na administração governamental, como político eleito ou burocrata mal pago tinha poucos atrativos para a elite britânica no finado século 20.
Os problemas de Blair surgiram, ano passado, de uma tola e, no entanto, inevitável decisão que tomou antes da campanha eleitoral de 2005. Procurando um terceiro mandato, anunciou que não planejava ficar para o quarto período. Sairia em algum momento dos anos seguintes e daria tempo a seu sucessor para preparar-se para a eleição seguinte, que teria lugar em 2009 ou 2010. Sua posição foi imediata e seriamente enfraquecida.
Comentaristas especularam interminavelmente sobre as razões desta súbita e inesperada decisão. Seria problema familiar (ele tem três filhos adolescentes, mais um pequeno e uma mulher ambiciosa) ou ele finalmente reconhecia a promessa feita a Gordon Brown, ministro das Finanças, de que o apoiaria? No entanto, logo ficou claro que isso não era nenhum capricho súbito, enunciado num impulso de momento. Blair não tinha escolha. “Ele só agüentaria até a próxima eleição, se as pessoas soubessem que seria a última”, explicou Neal Lawson, o coordenador do Bússola, um grupo de esquerda dentro do Partido Trabalhista. Blair, bom de voto em eleições anteriores, tinha-se tornado um risco eleitoral em 2005, quando sua maioria parlamentar foi dramaticamente reduzida para 66 representantes, dos 160 de 1997.
Um período de mudanças culturais e sociais profundas
A reputação de Blair deteriorou-se mais ainda nos últimos meses, com seu governo envolvido em rumores de improbidades e escândalos. Blair é acusado, entre outras coisas, de “vender honrarias”, oferecendo títulos de Lorde em troca de contribuições para a campanha. A polícia entrevistou Lord Levy, parceiro de tênis de Blair e seu tesoureiro principal, para discutir o assunto. Membros do gabinete envolveram-se em estrepolias sexuais que o grande público inglês finge execrar e adora ler nos jornais. O próprio Blair e, mais ainda, sua esposa Cherie são vistos como pessoalmente avarentos e aproveitadores da amizade dos muito ricos (o que é visto pela velha guarda puritana do partido como um comportamento inadequado para um líder trabalhista). Os anos de crepúsculo de Blair trouxeram lembranças do último período de governo de seu antecessor John Major, que se desintegrou num clima de insinuações e fraqueza.
Blair está no poder há dez anos, um período longo em política. No entanto, muitas mudanças significativas que ocorreram na sociedade durante esse tempo devem-se mais a tendências gerais do que a políticas de governos que passam. Assim como o resto da Europa, a Inglaterra tem experimentado essa evolução de longo prazo. Na União Européia de hoje, de acordo com Anthony Giddens, ex-diretor da London School of Economics e um dos autores de The Third Way [A Terceira Via], só 16% da força de trabalho atua hoje na indústria manufatureira. Uma avassaladora porcentagem de 80% está no ramo de serviços ou do conhecimento, enquanto que “quase ninguém” trabalha na agricultura.
Essa foi uma extraordinária mudança econômica e cultural, com repercussão nas relações políticas e sindicais. O Partido Trabalhista tinha um milhão de membros por volta de 1950; hoje, tem menos de 200 mil. A filiação aos sindicatos reduziu-se à metade, de 1970 para cá. Os membros restantes são menos de oito milhões, e estão principalmente do setor público.
Mudanças sociais mais amplas ocorreram durante o período Blair. O colapso da classe trabalhadora tradicional, que contava com muitos trabalhadores manuais significou, entre outras coisas a extinção dos antigos pubs, em geral, exclusivamente masculinos, bastiões da identidade britânica. Os pubs transformaram-se em bares mistos onde se toma vinho e se degustam pratos da moda. Uma clientela jovem aflui para as calçadas e senta do lado de fora em qualquer estação, no estilo mediterrâneo, graças a sistemas portáteis de aquecimento a gás. Outras mudanças são os ubíquos telefones celulares, o uso generalizado da internet, facilitado pela banda larga, a taxa de congestionamento [12] para enfrentar o trânsito da cidade, as baladas noturnas das altas horas, a bebida em excesso, o aumento do uso de crack e cocaína, a preocupação com a moda, com o esporte (ainda majoritariamente masculina) e a explosão dos vôos fretados baratos que permite a grupos menos privilegiados viajar nas férias para destinos mais longínquos. São transformações profundas de estilo de vida, sobre as quais os dirigentes políticos não tivereram nenhuma influência e a respeito das quais não sabem o que dizer.
Quando longevidade rima com generalizada mediocridade
Blair enxerga-se como um dirigente nacional heróico, e preocupa-se agora com a “herança” que legará à História. Em matéria de política externa, o que ficará, principalmente, é sua propensão à guerra, sua vontade de reforçar a aliança anglo-americana, a ressurreição de ambições imperiais camuflada em “intervenção humanitária”.
Uma das inovações de sua década no poder tem agora todas as chances de se conservar: a capacidade do governo de manipular a mída. O número de assossores de imprensa e consultores de relações públicas do Estado passou de trezentos, em 1997, para 1815, atualmente.
Pode ser que os historiadores do futuro considerem que a longevidade de Blair no poder e seus êxitos aparentes devam-se mais à mediocridade incomum da oposição conservadora que aos méritos e à popular