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Aversão e ostracismo: filme que nenhum dos Beatles gostou chega à Disney+

Prensagem japonesa de "Let it Be" dos Beatles em uma loja de discos em Tóquio - AFP PHOTO / Toshifumi KITAMURA
Prensagem japonesa de "Let it Be" dos Beatles em uma loja de discos em Tóquio Imagem: AFP PHOTO / Toshifumi KITAMURA
do UOL

Thales de Menezes

Colaboração para o UOL

14/05/2024 04h00

Para aqueles que não são beatlemaníacos, o relançamento de "Let It Be" em versão restaurada no Disney +, depois de 40 anos sem distribuição na mídia, pode parecer um exagero. Afinal, das imagens gravadas para esse filme dirigido por Michael Lindsay-Hogg saíram as oito horas de "The Beatles: Get Back", o outro documentário já lançado na mesma plataforma de streaming.

A maratona de "Get Back" editada por Peter Jackson ("O Senhor dos Anéis") utiliza apenas imagens captadas por Lindsay-Hogg. Na verdade, não são filmes concorrentes, mas complementares, por causa das intenções diferentes dos dois cineastas.

Jackson se debruçou sobre todo o material bruto gravado para extrair momentos que mostrassem o relacionamento entre os quatro Beatles, com foco na amizade e no desgaste de uma década de convivência em pleno olho do furacão pop.

Já Lindsay-Hogg estava mesmo preocupado em documentar a gravação do álbum "Let It Be", o último trabalho da banda no estúdio, gravado em 1969 (com exceção de sessões complementares em fevereiro de 1970, sem a presença de John Lennon). O personagem de "Let It Be" é o disco, não os artistas.

É preciso destacar também que Jackson construiu sua versão sentado tranquilamente na mesa de edição, sem pressão. Lindsay-Hogg estava lá, inserido num ambiente tumultuado, e perdendo uma batalha pessoal. Ele era um entusiasta do projeto de um show dos Beatles que seria gravado em um teatro para 2.000 pessoas, em Trípoli, na Líbia.

Apesar da insistência do diretor na proposta absurda, a ideia foi arquivada e os Beatles realizaram o mais do que famoso show no alto do prédio da Apple, gravadora do grupo. Além disso, o cineasta sofria críticas abertas dos integrantes, principalmente de George Harrison.

Nenhum dos músicos gostou do filme. Não apareceu um Beatle sequer no pré-estreia, em maio de 1970, pouco tempo depois do anúncio oficial da separação. A tristeza generalizada entre os fãs certamente prejudicou o fluxo aos cinemas. Tanta aversão, não aliviada com o Oscar vencido na categoria Melhor Trilha Sonora, levou o filme ao ostracismo.

Quem já viu o filme alguma vez, circulando em cópias piratas, certamente contemplou imagens muito mais granuladas do que as disponíveis agora. Elas foram rodadas em 16 mm e depois modificadas para 35 mm visando a exibição nos cinemas. A tecnologia atual deixou as imagens estalando de novas, o que já seria suficiente para assistir ao filme.

Mas é agradável ver "Let It Be" e constatar que a coisa não é tão feia quanto os próprios Beatles pintavam. As falhas existem, e não são poucas. Falta contextualização, não há a mínima preocupação de explicar o que os músicos estão fazendo a cada sequência. É preciso conhecer a biografia da banda para saber que a ideia inicial era gravar um especial de TV e mostrá-los nos bastidores, proposta depois abortada.

As gravações começam nos estúdios Twickenham e, de uma hora para outra, são levadas para o porão da Apple, sem explicações. Ao que parece, foi apenas uma tentativa de melhorar o ambiente que estava péssimo no primeiro estúdio. Não há também nenhuma discussão sobre as idas e vindas de George, que esboçou mais de uma vez a vontade de largar tudo.

Mas ótimos momentos valem a pena. São tanto demonstrações de amizade quanto flagrantes de tensões pessoais. Quando tocam "Two of Us", Paul e John exibem camaradagem e humor. Quando a banda faz uma jam com os hinos antigos do rock and roll "Rip It Up" e "Shake, Rattle and Roll", o que se vê é pura fúria adolescente. Por outro lado, há sorrisos amarelos e olhares atravessados em muitas passagens, principalmente de George, com o humor abaixo de zero.

A pós-produção do filme também foi difícil pra Lindsay-Hogg. Diz a lenda que o grupo exigiu quase uma hora de cortes na primeira versão apresentada pelo diretor. Entre os trechos mais contundentes que foram eliminados está a conversa entre John e Paul, gravada sem que percebessem, na qual eles cogitam convidar Eric Clapton para o lugar de George. E também conversas sobre o envolvimento de John com Allen Klein, que pretendia ser empresário dos Beatles e, segundo alguns biógrafos, influiu bastante na separação da banda.

Apontar hoje para os problemas do documentário chega a ser injusto. Com o impacto do fim da banda, era evidente que não existia ambiente favorável para que os fãs pudessem absorver esse registro conturbado do dia a dia do grupo. Tudo o que um beatlemaníaco tinha na cabeça naquele início de 1970 era o desejo voraz de que a separação do quarteto fosse reconsiderada por seus integrantes. "Let It Be" não é uma obra-prima, claro, mas pagou pelo pecado de escancarar os problemas internos dos Beatles, exatamente o que os fãs queriam que não fosse verdade.

Agora, 54 anos depois, é só outra ótima fonte de pesquisa para conhecer de perto como a banda mais influente da história do pop se comportava no estúdio. Mesmo que traga isso num momento extremamente delicado para todos.

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