Beatriz de Portugal e o governo do ducado de Sabóia (1521-1538)
Autor(es):
Merlin, Pierpaolo
Publicado por:
Imprensa da Universidade de Coimbra
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URI:http://hdl.handle.net/10316.2/32335
DOI:
DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0604-0_3
Accessed :
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PORTUGAL
E O PIEMONTE:
A CASA REAL
PORTUGUESA
E OS SABÓIAS
NOVE SÉCULOS DE RELAÇÕES
DINÁSTICAS E DESTINOS
POLÍTICOS (XII-XX)
MARIA ANTÓNIA LOPES
BLYTHE ALICE RAVIOLA
COORD.
2.ª EDIÇÃO
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
COIMBRA UNIVERSITY PRESS
Pierpaolo Merlin
Università di Cagliari
BEATRIZ DE PORTUGAL E O GOVERNO DO
DUCADO DE SABÓIA
(1521-1538)
1. Um casamento político
Quando a infanta D. Beatriz chegou a Nice, no fim de Setembro de 1521,
não era inesperada, nem sequer uma desconhecida1. A escolha matrimonial
tinha sido uma das questões políticas mais importantes que, desde o momento em que se tornou duque, em 1504 2, Carlos II de Sabóia tinha tido
de enfrentar. Não se tratava apenas de arranjar um herdeiro para o trono,
mas antes de criar uma aliança política que permitisse ao estado saboiano
resistir às pressões então exercidas pela França e pelos Suíços. Imediatamente após a ocupação francesa da Lombardia, em 1499, os Sabóias tinham,
de facto, de contrabalançar a engrandecida potência transalpina, aproximando-se do Império, pelo que, em 1501, o duque Felisberto II desposou
Margarida de Habsburgo, filha de Maximiliano I 3.
1 A figura da infanta não foi muito estudada pelos historiadores italianos. Um breve esboço
biográfico é oferecido por MARINI L., 1965, pp. 363-367. Ultrapassado, do ponto de vista historiográfico, é CLARETTA G., 1865 , mas é ainda útil, sobretudo pelos documentos publicados,
FORNASERI G., 1957. Notícias sintéticas são fornecidas por GERBAIX DE SONNAZ C.A., 1910.
A maior parte das cartas de D. Beatriz escritas ao marido estão conservadas no Archivio di
Stato di Torino (doravante AST), Corte, Lettere di Duchi e Sovrani, m.7. Outras, endereçadas a
correspondentes vários, encontram-se no Arquivo de Estado, nos fundos Registri lettere della
corte e Minute lettere della corte.
2 Sobre o duque e o seu governo, veja-se a entrada homónima e MARINI, L., 1977, pp.
294-304.
3 Para uma reconstituição dos acontecimentos políticos e diplomáticos aqui recordados,
cf. MERLIN P., 1994. MESCHINI, 2006.
De seguida, e cada vez com maior insistência, pelo menos a partir de
1508, a assembleia dos Estados, em especial os das províncias de Sabóia para
lá dos Alpes, pediam que o príncipe se casasse também porque, com um
eventual dote avultado, se poderiam enfrentar as dificuldades financeiras em
que o ducado se encontrava, submetido às contínuas chantagens dos cantões
helvéticos, que ameaçavam invadir-lhe os territórios alpinos 4. Entre 1510 e
1511, o governo ducal tinha, portanto, iniciado negociações que previam a
união de Carlos II com Joana de Aragão, neta de Fernando o Católico5.
A conduzir os tratados, que, por outro lado, não foram bem sucedidos,
tinham estado homens, laicos e religiosos, pertencentes àquela camada
nobre que fornecia então a maior parte dos conselheiros ducais e que
constituía a elite dirigente do Estado. Eram personagens como o protonotário apostólico Hércules Tapparelli d’Azeglio e o bispo de Maurienne, Luís
de Gorrevod, feudatários como Claude de Balleyson, barão de Saint-Germain,
ou magistrados como Bernardino Parpaglia, senhor de Revigliasco, futuro
presidente do tribunal de apelação (Consilium Thaurini Residens) de Turim.
Por sua vez, os Franceses, que, em 1512, tinham perdido Milão, tentaram
condicionar a política matrimonial saboiana, favorecendo as núpcias de
Filipe de Sabóia, irmão mais novo do duque, com a promessa de um rico
dote, para que Carlos II ficasse solteiro e o designasse herdeiro. Esta intervenção suscitou a apreensão dos Estados de Sabóia, que, numa importante
reunião efectuada em Annecy, em Outubro de 1513, convidaram o duque
a «prendre party en mariage», com o fim de assegurar a continuidade dinástica6. Todavia, não foi Carlos quem se casou, mas a irmã Filisberta, que,
em 1514, se uniu a Juliano de Medici, irmão do papa Leão X, tornado depois
duque de Nemours pelo rei de França Francisco I 7. Como se vê, o objecti-
4 Nas suas memórias, Pierre Lambert, senhor de La Croix, um dos principais ministros
ducais, recordava as solicitações da parte «dos Estados de Sabóia ao meu senhor, para que
se casasse» (cfr. LAMBERT P., 1840, c.852). [Nota no original italiano: O texto está escrito em
francês; a tradução deste passo, como a de outros citados, é da minha responsabilidade].
5
AST, Corte, Matrimoni della Real Casa, m. 17, n. 3 Matrimonio progettato tra Carlo 3°
Duca di Savoia e la Regina Giovanna, figlia di Ferdinando re di Napoli.
6 TALLONE A., 1937, p.544. Sobre o papel político dos Estados no ducado de Sabóia do
início de Quinhentos, veja-se MERLIN P., 1988.
7
AST, Corte, Matrimoni della Real Casa, m.18.
102
vo da política matrimonial sabauda era o de se firmar em diferentes frentes,
desde a espanhola, à italiana e à francesa.
Nos anos sucessivos, o duque continuou a procurar esposa; foram consideradas várias alternativas e a que se tornou cada vez mais consistente
foi a portuguesa, tanto que, em 1516, foi enviada a Lisboa uma delegação
com uma proposta formal. A iniciativa tinha lugar num momento particularmente delicado para os destinos de Itália, que, após a reconquista
francesa do ducado de Milão, detido por breve tempo pelos Sforzas e Suíços,
e a consequente paz de Noyon, decretava o predomínio da França a Norte
da Península e o da Espanha a Sul .
Apertado na tenaz do rei Cristianíssimo, cujos domínios circundavam
agora perigosamente o Piemonte, Carlos II manteve uma atitude neutral,
procurando favorecer a paz entre o soberano e os Suíços, que ele tinha
derrotado na batalha de Melegnano, em 1515, e adoptando uma política
externa que, através de acordos nupciais, permitisse disputar a hegemonia
alpina. Para sustentar tal estratégia, eram, todavia, necessários, recursos
importantes, quer de ordem financeira, quer militares, que, de resto, o estado saboiano não possuía. Neste contexto tinha nascido a ideia de um
casamento português; a eventual aliança com o reino lusitano, um dos países mais ricos da Europa, era considerada como a solução mais idónea
para compensar a fraqueza económica e política do ducado 8.
O malogrado consenso quanto às núpcias por parte do rei D. Manuel I,
mas sobretudo da rainha-mãe D. Maria de Castela, atrasaram somente por
alguns anos as propostas saboianas, que, de facto, tiveram sucesso em 1521,
depois de o soberano ter consolidado as ligações com os Habsburgos, desposando a arquiduquesa Leonor. Não se conhecem com precisão os motivos
que induziram o monarca a aceitar um casamento que ligava uma infanta
portuguesa a um príncipe de posição inferior. Recentemente os historiadores têm avançado com algumas hipóteses: D. Beatriz era, de qualquer modo,
uma filha mais nova e Carlos II constituía uma escolha «politicamente»
menos vinculativa, do que a de possíveis candidatos de outras dinastias;
8 Um observador atento como Lambert, afirmava que a dinastia se tinha reforçado «com
tão grande e estreita parentela e aliança, que se pode considerar que hoje em dia não existem
na cristandade imperadores ou reis que possam estar a par dela” (LAMBERT P.1840, c.852).
103
D. Manuel foi, para além disso, condicionado por pressões dos Habsburgos,
que visavam obter o apoio saboiano na Itália e talvez se tenha iludido com
a ideia de abrir o Mediterrâneo aos navios portugueses, visto que os Sabóias
possuíam os portos de Nice e Villafranca 9.
Entretanto, Carlos V de Habsburgo tinha sido eleito imperador e tal
eleição foi considerada pelo governo ducal uma ocasião favorável não só
para reforçar as tradicionais relações com o Império, como também para
desfrutar de apoios, a fim de sustentar os direitos da dinastia sobre o reino
de Chipre e sobre o marquesado de Monferrato, como confirmava o próprio
Carlos II em Julho de 1519, enviando o seu embaixador à corte imperial,
com o encargo de manifestar «notre devoir envers sa Maiesté et le Sainct
Empire» 10. O casamento entre D. Beatriz de Portugal e o duque inseria-se,
portanto, num contexto político que agora não interessava só ao estado de
Sabóia mas igualmente à política de equilíbrio italiano e europeu. Não é
por acaso que, em Abril de 1520, Carlos V manda a Lisboa o camareiro
Charles Poupet de La Chaulx para apoiar a proposta matrimonial saboiana
e que da questão se ocupasse o grande chanceler Mercurino di Gattinara,
empenhado também em elaborar as linhas da política imperial em Itália 11.
Para levar as negociações a bom termo, foram nomeadas personagens
de relevo do conselho ducal: o já citado Claude de Balleyson e Gioffredo
Pasero, que foram coadjuvados pelo secretário Claude Châtel 12 . Até há
algum tempo, os historiadores sublinhavam sobretudo o importante papel
desempenhado no processo pela componente saboiana, em testemunho
9
Cf. BARBERO A., BRERO T., 2008, pp. 338-339.
10
AST, Corte, Negoziazioni con Vienna, m.1, n.1, 14/7/1519. Istruzioni del Duca Carlo III
al Signore di Salenove spedito presso l'imperatore Carlo V. Idem, Materie d'Impero, cat.1, m.1,
n.5, 13/8/1520. Procura del Duca Carlo di Savoia in capo di Filippo Conte del Genevese suo
fratello per prestare a suo nome la fedeltà ed omaggio all'Imperatore Carlo V e prendere dal
medesimo l'investitura dei suoi Stati. As relações entre Sabóia e o Império foram um elemento
fundamental da política dinástica e constituem ainda hoje um importante tema de investigação
(cf. MERLOTTI A., 2008, p.79-93).
11 Sobre a política imperial neste período cf. MERLIN P., 2004, p. 110 e sgts. Sobre a figura
e a obra de Gattinara, veja-se HEADLEY J.M.,1983. RIVERO RODRIGUEZ M., 2005.
12 Veja-se a sua correspondência em AST, Corte, Lettere Ministri, Portogallo, m.1 e Matrimoni
della Real Casa, m.17, n.5, Relazione del signor di Balaison e del Collaterale Pasero Ambasciatori
del Duca Carlo di Savoia in Portogallo della loro negoziazione pel matrimonio del detto Duca
con l’Infante Beatrice di Portogallo. No contrato de casamento, os dois eram denominados
«fidissimi consiliarii». Châtel, de seguida, foi nomeado secretário particular de Beatriz.
104
da forte hegemonia exercida pelo governo no estado. A este propósito,
tinha sido notado «como, com grande prevalência, foram [...] secretários
ducais ou membros do Conselho cum domino ou governadores de Nice, a
trabalharem para Carlos II na preparação dos tratados para o casamento
e para acolher a princesa em Nice» 13. Na realidade, estudos mais recentes
demonstraram que, desde então, na gestão da política saboiana, cresceu
a importância dos conselheiros e dos funcionários piemonteses, os quais,
depois, foram colaboradores de D. Beatriz no governo do ducado 14.
Também foi dito que nas intenções dos nobres saboianos as núpcias
portuguesas deviam servir para defender a orientação conservadora do
velho mundo feudal que eles representavam. Era certo que a infanta provinha de um reino que podia ser considerado quase um império; tinha sido
educada numa corte esplêndida, fundada em valores aristocráticos e cavaleirescos, mas ali também tinha aprendido a lidar com um forte sentido
da soberania. Precisamente este sentimento tê-la-ia levado a considerar
o sistema organizativo por estados, ainda vigente no ducado, como uma
fastidiosa limitação à autoridade do príncipe. As contínuas e desgastantes
negociações com as comunidades e a nobreza dos domínios da Sabóia,
especialmente os que se situam a Sul dos Alpes, convenceram-na bem cedo
da necessidade de um reforço do poder soberano. Esta convicção era, de
resto, partilhada com muitos funcionários piemonteses, que estavam a agir
no sentido de imprimir uma orientação absolutista à política ducal.
2. A corte da infanta
Somente há pouco tempo os historiadores começaram a ocupar-se de
modo aprofundado da corte de Beatriz, reconstruindo-lhe a orgânica e
evidenciando-lhe a função política15. Para sublinhar o facto de que o status
real da filha não tinha diminuído, apesar de o casamento se realizar com
13
MARINI L., 1965 p. 364.
14
Sobre a dinâmica política existente entre piemonteses e saboianos, cf. MARINI L., 1962.
O tema foi retomado sob novas perspectivas por BARBERO A., 1989.
15
BARBERO A., 2002, p.236 e sgts. BARBERO A., BRERO T., 2008
105
um «simples» duque, o pai tinha-a equipado de um numeroso séquito, uns
cinquenta homens e mulheres, destinados a ficar com ela na nova pátria.
Para além disso, tinha sido atribuído à infanta um dote muito considerável,
isto é, 150.000 ducados: 45.000 em contado, 22.000 em jóias, 15.000 em
vasos de prata e paramentaria da capela, 18.000 em tapeçarias, mais outros
50.000 que seriam depositados um ano depois16.
As núpcias foram consideradas, aliás, uma “questão” económica, sobretudo da parte saboiana, visto que, em 1518, Carlos II tinha feito ao futuro
sogro o pedido de 300.000 escudos, contentando-se depois com metade 17.
Tanto quanto parece, foram precisamente as questões financeiras relativas
à manutenção do pessoal da princesa a causa dos primeiros descontentamentos surgidos em Nice entre os ministros portugueses e o governo ducal,
espantado com a perspectiva de ter de sustentar as despesas de uma corte
demasiado numerosa18. Beatriz, todavia, conseguiu conservar a própria casa
e Carlos II, a poucos meses do casamento, atribuiu-lhe como apanágio
diversas somas provenientes de rendimentos do património saboiano 19.
Este facto permite-nos evidenciar uma realidade até agora pouco considerada nos estudos sobre o mundo das cortes: em primeiro lugar, a existência,
ao lado da do príncipe, de uma articulada corte paralela, que dependia da
consorte. Para além disso, enquanto habitualmente os cortesãos da esposa
eram drasticamente reduzidos em número uma vez realizadas as núpcias, no
caso da infanta, o status mais elevado de que provinha permitiu-lhe manter
os seus próprios servidores20. É provável que, nesse sentido, tivessem sido
estabelecidos acordos com cláusulas bem precisas, já no momento das primeiras negociações matrimoniais, a que parecem aludir também as instruções
16 AST, Corte, Matrimoni della Real Casa m. 17, n. 5, Contratto di matrimonio tra Carlo II
e Beatrice del 26/3/1521.
17
Idem, declaração de Carlos II de 8/11/1518.
18
BARBERO A., BRERO T., 2008, pp. 343-346.
19
AST, Corte, Matrimoni della Real Casa m.17, n.5, 19/2/1522, Patenti del duca Carlo di
Savoia d’assegnazione a favore della Duchessa Beatrice di Portogallo sua consorte di fiorini
5900 sovra la gabella del sale di Nizza, altri fiorini 3500 sovra li focaggi e Segreteria di Cuneo
et altri 3000 sovra li focaggi di Santhià.
20 Um caso análogo parece ter sido o da infanta Catarina de Habsburgo, filha de Filipe
II de Espanha (e I de Portugal), que, em 1585, desposou o duque Carlos Manuel I, neto de
Beatriz de Portugal. A propósito veja-se MERLIN P., 2008 (1) e MERLIN P., 2008 (2).
106
redigidas pelo próprio rei D. Manuel a D. Beatriz21. Os estudos mais recentes têm estabelecido que nos casamentos entre príncipes em que a consorte
detinha um grau superior ao marido, esta conseguia conservar uma notável
autonomia, jogando igualmente um papel político relevante.
Em torno da duquesa constituiu-se, portanto, uma corte paralela, financeiramente separada da do duque e com adidos que eram nomeados
directamente por D. Beatriz. Com o tempo, o número crescente de damas,
fidalgos e criados saboianos e piemonteses admitidos, elevaram a respectiva orgânica a cerca de noventa pessoas. O núcleo principal foi, porém,
sempre constituído pelos portugueses que tinham partido de Lisboa no
Verão de 1521, uns vinte dos quais eram ainda nomeados no testamento
ditado pela princesa a 29 de Dezembro de 1537, poucos dias antes da sua
morte. A preeminência da categoria da infanta sobre o marido é, de resto,
evidenciada desde o início pelo diverso tratamento económico reservado
aos seus cortesãos, que premiava decididamente os portugueses face aos
saboianos, a partir do momento em que estes últimos eram pagos em florins,
moeda corrente de valor fixo, enquanto os primeiros o eram em escudos
de ouro, que, no curso dos anos, tiveram uma contínua revalorização 22.
A estrutura da corte de D. Beatriz já foi estudada e não é minha intenção
retomar o assunto23. Nesta ocasião, é mais importante insistir em alguns
resultados alcançados pela historiografia, sobretudo porque podem ser úteis
numa perspectiva comparada, para compreender o funcionamento das cortes das rainhas e princesas, como também as dinâmicas sociopolíticas
relativas ao exercício do poder feminino. O coração da corte da duquesa
era constituído pela câmara, cujos membros mais próximos da pessoa física da infanta eram sobretudo portugueses. Entre estes, sobressaíam algumas
mulheres, em grande parte expoentes da alta aristocracia, que serviam como
damas de companhia, camareiras e guarda-roupa.
21 AST, Corte, Matrimoni della Real Casa m.17, n.5, Istruzioni del re di Portogallo Emanuele
a Beatrice Duchessa di Savoia sua figlia in lingua portoghese e dal medesimo sottoscritte. É
interessante notar que a prática de escrever tais instruções se encontra também na monarquia
espanhola e diz respeito às infantas destinadas a casar com outros soberanos europeus.
22
BARBERO A., 2002, pp. 237-238.
23
BARBERO A., 2002, pp. 236 e sgts.
107
Algumas delas estavam ligadas a D. Beatriz por laços de família ou por
fortes vínculos afectivos e isso indica que foram recrutadas com o objectivo
de criar, à volta da jovem princesa, um ambiente familiar, que lhe fizesse
recordar de algum modo o país natal. A posição assim alcançada, permitiu-lhes ter mais poder, mais prestígio e mais dinheiro do que os homens que
serviam na corte. O relevo alcançado pelo pessoal feminino da câmara tornou-se evidente já no curso dos festejos realizados em Ivrea, para a celebração
do baptismo do primeiro filho do casal ducal, o príncipe Adriano João Amadeu, nascido em Novembro de 1522. As fidalgas portuguesas ocuparam um
lugar de honra nas cerimónias e nas cortejos, como testemunha um poema
encomiástico composto para a ocasião pelo lombardo Antonino dal Pozzo24.
A duquesa sempre foi particularmente ligada às suas damas, quase todas mais
jovens do que ela, e falava frequentemente delas com grande afecto em documentos oficiais. Preocupou-se em fazê-las desposar os mais eminentes fidalgos
do ducado e atribuiu-lhes dotes assaz consideráveis. Elas constituíram, sem dúvida, o seu círculo mais íntimo, cuja função privada, mas ao mesmo tempo
pública e não destituída de implicações políticas, pode ser, por exemplo, aproximada à que foi desempenhada pelo pessoal feminino de uma grande rainha
de Quinhentos, cujo caso foi amplamente estudado, isto é, o de Isabel Tudor25.
Porém, no seio da câmara, existia uma hierarquia rígida, definida também
pelos vencimentos recebidos, que foi traçada pelos historiadores. O primeiro
lugar tocava às jovens de sangue real, aparentadas com a infanta: D. Mécia
de Portugal, filha de D. Dinis, conde de Bragança, e D. Maria de Noronha,
filha de D. Sancho de Portugal, conde de Odemira. Ambas desposaram
membros da mais alta nobreza saboiana, respectivamente, o conde Renato
de Challant, marechal de Sabóia e principal feudatário de Vale d’Aosta, e
Bertolino de Mombello, conde de Frossasco, mordomo-mor. Ambas tiveram
um dote considerável, que, para a primeira, atingiu os 10.000 escudos.
Apesar de inferiores às damas de honor, ocupavam uma posição especial
e gozavam de precedência Inês Álvares, a ama e, depois governanta da infanta,
24 BARBERO A., BRERO T., 2008, p. 350 e sgts. Sobre os torneios organizados para aquele
evento, cf. GENTILE L. C., 2010, pp. 19-21.
25
Cf. MERLIN P., 2010, pp. 228-229.
108
e a sua filha, Francisca Tavares, que a substituiu no cargo de «femme de
chambre et garderobe». Esta última, casou depois com o nobre saboiano João
de Duingt, barão de Val d’Isere, senhor de Combefort e capitão dos archeiros.
Ao lado da duquesa, só uma fidalga de Sabóia ocupava uma posição de relevo: a senhora de Broissy, mulher do primeiro fidalgo da câmara do duque,
a qual recebia um ordenado superior ao de todas as outras damas ‘comuns’.
Estas últimas eram as verdadeiras e típicas «dames et demoiselles d’honneur»
da câmara da duquesa. D. Beatriz tinha chegado a Nice acompanhada por
oito damas em idade casadoira: a todas foi garantido um casamento mais
ou menos prestigioso com nobres piemonteses ou saboianos. Por exemplo,
Francisca de Lacerda desposou o marquês Gian Giacomo d’Incisa; Beatriz
de Mascarenhas, o conde de Crescentino Ricardo Tizzone26; Inês de Brito,
o conde Carlos de Mombello, filho de Bertolino; enquanto Guiomar Cardoso se uniu a Bertrand de Lucinge, camareiro ducal e capitão da guarda.
A princípio, poucas foram as damas de honor nativas do ducado e somente alguns anos depois da chegada da princesa, o seu número subiu a
sete ou oito, igualmente dividido entre piemontesas e saboianas. É, todavia,
digno de nota o facto de que, nas listas dos ordenados destas damas, «diferentemente do que acontece com as portuguesas, fossem sempre indicadas
simplesmente com o apelido, por testemunho, não de familiaridade, mas
de frieza» 27. Tratava-se de uma condição de inferioridade confirmada também pelos salários, mais baixos cerca de 50 %.
Apesar da prevalência, senão de número, pelo menos de prestígio, do elemento feminino, entre o pessoal português também havia homens que se
tornaram preciosos servidores da duquesa, recebendo compensações mais
altas do que os seus pares saboianos. Tratava-se, por exemplo, do porteiro
da câmara Pedro de Paredes, homem de confiança da infanta, a qual lhe fez
atribuir o cargo de governador do castelo de Carignano. De igual modo fiel
era o escudeiro Pedro Álvares, que desposou a dama de honor Maria de
Meneses. Pedro foi um dos poucos portugueses desembarcados em Nice, em
26 O casamento teve lugar em Junho de 1524, como a própria infanta nos informa numa
carta (FORNASERI G., 1957, p. 89, carta de 5/6/1524).
27
BARBERO A., 2002, p. 245.
109
1521, a ser assumido pelo filho de D. Beatriz, Manuel Felisberto, que lhe
concedeu em 1554 um diploma com a declaração oficial de que a duquesa
«lhe havia pouco tempo antes da sua morte outorgado e dado o título de
dom, e queria que assim fosse chamado»28.
Enquanto algumas secções da corte da infanta, como a capela e a câmara eram quase completamente compostas por portugueses, a casa era
constituída sobretudo por pessoal nativo do ducado, admitido ao serviço
depois do seu casamento e pago em florins. Foi notado que diversos empregados serviam simultaneamente Carlos II e isso permite-nos afirmar que
se D. Beatriz dispunha de uma câmara própria completamente autónoma
da do marido, as duas casas sobrepunham-se.
Entre os mordomos ducais, encontravam-se, por exemplo, homens como
o senhor de Bellegarde ou o senhor de Marsonnax, cujos nomes estão presentes também nas listas de pagamento dos cortesãos da duquesa. Tratava-se
provavelmente de uma forma de limitar as despesas da corte, que, já elevadas
desde os inícios do governo de Carlos, aumentaram muito depois das suas
núpcias. D. Beatriz, por seu lado, teve um único mordomo português, Simão
Correia, que, porém, ficou no cargo por pouco tempo, sendo substituído pelo
pessoal que servia o duque. A infanta começou a ter mordomos próprios a
partir dos anos trinta e foram sobretudo piemonteses, como António Bava,
nomeado em 1532, e Gian Giacomo Bernezzo, senhor de Rossana, em 1534.
Tais nomeações parecem indicar uma prevalência dos piemonteses sobre
os saboianos na corte da duquesa, que agora tendia a residir em Turim
mais repetida e dilatadamente e do que Carlos II. De resto, o caso de Bava,
financeiro desenvolto , que veio depois a ocupar o importantíssimo cargo
de tesoureiro geral, pode ser considerado emblemático «da ascensão política e social daquele ambiente de banqueiros e juristas piemonteses, não
nobres de origem, se bem que quase sempre nobilitados, que teve tanto
protagonismo no governo do ducado no tempo de Carlos II» 29.
De qualquer modo, foi sobretudo a casa o lugar em que operaram alguns
dos oficiais saboianos que mais colaboraram com a princesa lusitana no
28
Citado em BARBERO A., 2002, p. 241.
29
BARBERO A., 2002, p. 248.
110
governo do ducado, a começar por Claude de Balleyson. Ao seu lado, também
não pertencendo oficialmente à casa, encontramos personagens de relevo
do conselho ducal, como o saboiano Pierre Lambert, presidente da câmara
de contas, e o piemontês Nicolau Balbo, superintendente do património,
nomeado por D. Beatriz seu conselheiro e advogado particular.
A chegada da infanta de Portugal teve notáveis consequências no cerimonial de corte. Habituados aos modos abertos e cordiais de Carlos II, que
tinha sido educado à francesa, os súbditos saboianos encontraram-se perante uma princesa que nutria um profundo sentido de soberania e que
pretendia manifestar também a nível exterior a sua superioridade real.
Alguns momentos da vida quotidiana da infanta, como, por exemplo, as
refeições, tornaram-se, de facto, particularmente ritualizados e submetidos
a uma precisa etiqueta, que deveria ser respeitada pelas damas que a serviam
à mesa. Quando, depois, se envolveu nos negócios de Estado, a duquesa
demonstrou um carácter tenaz e qualidades políticas pouco comuns, dotes
que certamente os observadores não esperavam de uma mulher e que lhe
proporcionaram a fama de pessoa orgulhosa e soberba.
3. Entre a França e o Império.
O papel político desenvolvido por D. Beatriz não foi ainda avaliado de
modo adequado, se bem que recentemente tenha sido sublinhada a sua
importância no quadro dos acontecimentos do ducado, entre a terceira e
quarta década de Quinhentos. O primeiro contacto com a realidade de
Sabóia foi para ela a Assembleia dos Três Estados Piemonteses, realizada
em Vigone, em Janeiro de 1522, em que os delegados lhe concederam um
donativo de 50.000 florins, congratulando-se pela «sua feliz e recente
chegada»30. Naquela ocasião o chanceler-mor de Sabóia recordou que Carlos
II se tinha casado «mais para satisfazer os súbditos que impelido por desejo próprio» e que, no curso das conversações havia sustentado muitas
30 TALLONE A., 1932, p. 421. [Nota no original italiano: A recolha de Tallone contém documentos em Francês e Latim. A tradução dos passos citados é da minha responsabilidade].
111
despesas para vencer a concorrência dos outros pretendentes. No fim, porém, tinha conseguido tomar como mulher “a ilustríssima senhora nossa
duquesa Beatriz, filha do invencível Manuel rei de Portugal», a qual tinha
chegado ali vinda «das terras dos confins do mundo» 31.
Mesmo que a jovem princesa não estivesse consciente do facto, naquela
reunião foram discutidas questões políticas bastante delicadas. O duque tinha,
de facto, pedido o conselho e o apoio financeiro dos representantes dos estados
do ducado para fazer frente à grave situação criada em Itália com a retomada
do conflito entre a França e a Espanha, que expunha os domínios de Sabóia
às devastações dos exércitos de ambos os contendores. Os Estados tinham
votado um subsídio a favor do seu príncipe, mas tinham avançado numerosos pedidos, alguns deles que interessavam à ordem institucional do governo.
Nos anos seguintes, Carlos II procurou manter-se neutral entre as duas
potentes monarquias, mas teve de sofrer, por um lado, as pressões de
Francisco I e, por outra, as de Carlos V. Os Franceses, de facto, tinham
sido expulsos da Lombardia e tentavam reconquistá-la, pretendendo livre
trânsito através do Piemonte, enquanto os imperiais pediam que o duque
alinhasse abertamente a seu favor e, entretanto, preparavam-se para enfrentar os inimigos precisamente em territórios da Sabóia, que se tornavam
assim um grande campo de batalha 32.
Foi em tal conjuntura que Beatriz fez o seu ingresso na cena política.
Tinha então vinte anos e em Dezembro de 1523 dera à luz Luís, destinado
a tornar-se o príncipe herdeiro. Deixando o consorte em Sabóia, onde estava empenhado em conversações para reafirmar a supremacia ducal sobre
Genebra, a princesa chegou a Turim, em Junho de 152433. Aqui acolheu os
generais dos Áustrias que estavam a reunir tropas para proceder à invasão
da Provença. Tratava-se de personagens eminentes, como Carlos de Bourbon, o marquês de Pescara e o vice-rei de Nápoles, Carlos de Lannoy. Nem
31
TALLONE A., 1932, p. 431.
32
Sobre a política imperial neste período e a posição do estado de Sabóia no quadro
internacional, cf. MERLIN P., 1994. MERLIN, P., 2001.
33 Os Sabóias estavam em guerra com as autoridades de Genebra pela hegemonia política da
cidade. A partir dos anos vinte o conflito agravou-se por causa da difusão das ideias reformadoras e
da aliança de Genebra com as vizinhas cidades de Berna e Friburgo, que eram contrárias ao poder
saboiano. Para uma reconstituição documental, cf. AST Corte, Negoziazioni coi Svizzeri, m.1 bis.
112
todos, porém, nutriam simpatias pelos Sabóias e especialmente Lannoy era
abertamente contrário a Carlos II, a ponto de ameaçar conquistar todo o
Piemonte em nome do imperador.
Em tal situação, a duquesa procurou actuar como mediadora e conseguiu
obter o apoio do marquês de Pescara. A sua intervenção não impediu,
todavia, que os soldados se comportassem de modo prepotente para com
a população, tanto que naqueles dias a infanta informava Carlos que a
passagem do exército imperial tinha ocorrido «com grande dano e lamentos
dos vossos súbditos» 34. Quando, depois, soube que Lannoy estava a deixar
o ducado, não pôde conter um suspiro de alívio, exclamando: «Deus lhe
conceda a graça de não voltar nunca mais aqui!» 35.
Nos anos seguintes, o duque manteve ainda uma conduta neutral, procurando favorecer a concórdia entre a Coroa francesa e os Habsburgos.
Apesar disso, a guerra continuou e os domínios de Sabóia a Sul das montanhas sofreram as consequências. Depois de ter repelido o ataque imperial
na Provença, Francisco I tinha, de facto, invadido novamente a Itália, onde
foi derrotado e feito prisioneiro em Pavia, em Fevereiro de 1525. Graças
também à mediação ducal, chegou-se à paz de Madrid, de 1526, mas os
territórios subalpinos continuaram ocupados pelas tropas espanholas, que
tinham a intenção de evacuar só depois do pagamento de uma copiosa
indemnização. Os próprios duques foram constrangidos a pedir dinheiro
em empréstimo e D. Beatriz, em particular, teve que empenhar as suas
próprias jóias e pedir um subsídio aos Estados para as resgatar 36.
Da difícil situação, aproveitou então um príncipe cujos domínios faziam
fronteira com o ducado, isto é, o marquês de Saluzzo, aliado da França, cujos
forças armadas começaram a fazer incursões nas fronteiras do Sudoeste,
usando como base a cidade de Carmagnola. Carlos II, que se encontrava a
Norte das montanhas, ocupado com a crise genebrina, pediu novamente
34 FORNASERI G., 1957, p. 98, carta de Turim de 18/6/1524. [Nota no original italiano:
A correspondência de D. Beatriz é em língua francesa; a tradução deste passo, bem como dos
outros que serão citados, é minha]
35
FORNASERI G., 1957, p. 96, carta de Turim de 14/6/1524.
36
TALLONE, A., 1933, pp. 6-7. Os Estados concederam-lhe naquela ocasião um donativo
de 50.000 florins.
113
socorro aos Estados piemonteses, convocados em Turim, em Fevereiro de
1526. As conversações foram conduzidas pela duquesa, que desde o início
declarou que faria todo e qualquer esforço, com a ajuda do conselho ducal,
«para conduzir o assunto a algum bom resultado»37.
E, com efeito, D. Beatriz empenhou-se muito nas discussões com os
delegados, demonstrando também notáveis capacidades diplomáticas. Pela
primeira vez, aliás, teve de se confrontar directamente com o sistema contratual que estava na base do regime constitucional saboiano e que
comportava longas negociações com os estados, os quais não tencionavam
fazer concessões sem ter contrapartidas sobre o plano das isenções e dos
privilégios. A princesa visava alcançar dois objectivos: obter dinheiro para
recrutar tropas para enviar à Sabóia, para apoio de Calos II contra os Suíços,
e para fazer frente aos ataques provenientes de Carmagnola.
A infanta tinha consciência do facto de que, em qualquer caso, se tratava de defender a soberania ducal. Informava, com efeito, o marido de ter
dito aos súbditos que era uma vergonha permitir « aos de Carmagnola que
cometessem injúrias e actos violentos, como os que praticaram no vosso
domínio, onde a vossa honra e a vossa autoridade foram gravemente
ofendidas» e que os seus pedidos visavam somente «a utilidade e a honra
de todo o país» 38. Os Estados, todavia, não se mostraram muito disponíveis
e as negociações demoraram longamente.
No decurso do debate emergiram, na realidade, de modo dramático,
alguns aspectos destinados a caracterizar ulteriormente a vida política do
ducado. Em primeiro lugar, a crescente recusa dos piemonteses em apoiar
as escolhas políticas ducais, agora que estas pareciam orientadas exclusivamente para a defesa dos interesses saboianos; para além disso, a escassa
vontade em conceder ajudas financeiras também se manifestava quando
eram pedidas para defender localidades do próprio Piemonte, como no
caso das comunidades atacadas pelos soldados do marquês de Saluzzo.
Perante tais atitudes, à duquesa não restou outra alternativa senão informar
Carlos II de que existiam súbditos bem intencionados, mas também outros
37
FORNASERI G., 1957, pp. 115, carta de Fevereiro de 1526. TALLONE A., 1933, p. 20.
38
TALLONE A., 1933, pp. 22-23. FORNASERI, G., 1957, pp. 112-114, carta de Fevereiro de 1526.
114
«tão frios para cumprir o seu dever que mais não poderia ser»39. No fim, os
Estados votaram um donativo de 15.000 escudos, mas recusaram-se a recrutar
tropas para mandar para Sabóia, invocando a sua pobreza e lamentando-se
de que as terras piemontesas ainda estavam ocupadas pelo exército imperial.
Na realidade, sempre em 1526, os Estados contribuíram com 10.000 escudos
junto do marquês de Vasto, governador de Milão, para obterem a evacuação
de “muitas divisões de infantaria e homens de armas de Sua Majestade cesárea, que tinham causado enormes e intoleráveis danos a este país»40.
Com o reinício do conflito franco-espanhol, na sequência da Liga de
Cognac, as margens da manobra do governo saboiano e da sua política
de neutralidade tornaram-se ainda mais restritas. Em contrapartida, o ducado
ficou cada vez mais envolvido nas operações bélicas, tanto que Carlos II
se viu constrangido por várias vezes a convocar os Estados, para lhes pedir
ajuda. Procurando justificar as suas escolhas, na Primavera de 1527 recordou
aos Estados «como bom senhor, príncipe e defensor dos próprios súbditos,
e como aliado de ambos os reis, que sempre tinha sido neutral, enviando
embaixadores com grandes despesas a uma e a outra parte» 41 . Teve, porém, oportunidade de verificar que os Estados, sobretudo as comunidades,
se encontravam agora mais rebeldes em colaborar, sobretudo a partir do
momento em que os delegados lhe responderam que «por causa da grande
carestia e pobreza» não podiam «dar ajudas, nem contributos» 42.
O descontentamento piemontês em relação à política saboiana atestava-se de outro modo, mediante a desvinculação que começou a manifestar-se
entre governantes e governados, isto é, entre os funcionários encarregados
da administração e os súbditos. Em Outubro de 1528, Carlos reuniu ainda
a assembleia em Turim, pedindo «conselho e ajuda», mas esta respondeu
que o duque tinha «já junto de si melhor conselho e melhor ajuda do que
aqueles que o país podia oferecer», aludindo deste modo aos conselheiros
e aos outros ministros que colaboravam com o príncipe 43.
39
FORNASERI G., 1957, p. 113, carta de Fevereiro de 1526.
40
TALLONE A., 1933, p. 29.
41
TALLONE A., 1933, p. 43.
42
ALLONE A., 1933, p. 45.
43
TALLONE A., 1933, pp. 48-49.
115
Entretanto, os vínculos com a dinastia de Habsburgo tinham sido reforçados com o casamento de Isabel de Portugal, irmã de Beatriz, com Carlos V,
o qual se movimentava para apoiar as reivindicações ducais sobre Genebra,
enviando embaixadores à dieta helvética, com o objectivo de os fazer «revogar os tratados estipulados com a cidade de Genebra e de Lausana, como
contrários ao duque Carlos de Sabóia, seu vigário imperial»44. A França, por
sua vez, também tinha tentado atrair a dinastia, favorecendo as núpcias
de Carlota de Orleães com Filipe de Sabóia, irmão mais novo de Carlos, que
até ao momento tinha militado pelo império. Ao príncipe, foi concedido o
ducado de Nemours, vago pela morte da irmã Felisberta. E, na tentativa de
não se opor à corte de Paris, Carlos II havia proposto desde 1526 o casamento do primogénito Luís com Margarida de Valois, filha de Francisco I45.
A infanta contribuiu de maneira decisiva para levar o ducado a estabelecer
uma aliança com o imperador, convicta de que a incerta política seguida pelo
marido até ao momento não acarretaria qualquer vantagem. A princesa continuava a cooperar com o duque e os seus funcionários na administração do
Estado, como demonstram as numerosas provisões tomadas por ela neste
período46. Se bem que empenhada no governo, não deixava de se interessar
também pelo seu próprio dote, que ainda não tinha sido pago integralmente47.
4. Na órbitra imperial
Foi notado que «os anos que vão do primeiro congresso de Bolonha em
diante, vêem Beatriz empenhada em tirar da amizade com o imperador
todas as vantagens possíveis para a causa de Sabóia» 48. Carlos II tinha, de
resto, a intenção de desfrutar o mais possível da aliança com os Habsburgos
e quis preparar-se de modo adequado para a grande reunião dos príncipes
44 AST Corte, Genève, cat. I, pacote 12, n.ºs 1-3, cartas de Carlos V aos seus embaixadores,
de 28/4/1526.
45
AST Corte, Matrimoni della Real Casa, m. 19, n.º s 1-8.
46
Cfr. SOFFIETTI I., 1969, passim.
47
FORNASERI G., 1957, p. 128, carta de 9 de Abril de 1526.
48
FORNASERI G., 1957, p. 36.
116
italianos, que constituiu o quadro de fundo da coroação de Carlos V em
Bolonha, em Fevereiro de 153049. A paz de Cambrai, do ano precedente, e
a vinda à Itália do potente soberano pareciam, de resto, inaugurar uma
época de paz, sob a hegemonia da Espanha e do Império 50.
Os Estados piemonteses foram, portanto, convocados em Janeiro de 1530,
por motivo «da chegada do sereníssimo imperador a Itália, pela qual é
oportuno e importa fazer grandes preparativos e despesas». O duque sublinhou, para além disso, que já havia cinco anos que se empenhava «na
conservação do estado e dos súbditos», enviando «muitos embaixadores
à majestade cesárea, ao rei cristianíssimo de França e a outros príncipes»
e que agora tencionava fazer render tal política51. Era, todavia, necessário
fazer uma boa figura perante o monarca Habsburgo e, por isso, pedia um
apoio financeiro.
Carlos obteve um subsídio considerável: 160.000 florins para ele, 20.000
para a duquesa e 5.000 para o príncipe herdeiro Luís, mas os delegados
apresentaram-lhe um longo elenco de reivindicações, como já havia tempo
não se via 52. Entre estas figurava um pedido que nos permite ter uma ideia
do alcance das dificuldades políticas então existentes nos confrontos com
o governo. Tratava-se do requerimento de igualdade entre piemonteses
e saboianos na atribuição dos cargos, benefícios e honras: um problema
que era levantado precisamente agora, vinte anos depois, como testemunho
de uma insatisfação crescente.
De qualquer modo, o príncipe de Sabóia pôde apresentar-se em Bolonha
com um séquito faustoso, que despertou a atenção dos observadores 53 .
49 MERLIN P., 2004, pp. V-VII. Carlo II tinha preparado o terreno também no plano diplomático: cf. AST Corte, Negoziazioni con Vienna m. 1, n. 3, 26/10/1529. Istruzione del Duca
Carlo III al Presidente Jaffrey per portarsi dall’Imperatore nel Congresso che doveva tenere col
Papa in Bologna, n. 4, 26/10/1529. Istruzione al Presidente di Piemonte per portarsi alla Corte
di Vienna e far valere nelle occasioni i diritti del Duca Carlo III.
50 Sobre estes temas e estes acontecimentos que levaram à afirmação da supremacia dos
Habsburgos, cf. CANTU’ F., VISCEGLIA, M.A., 2003.
51
TALLONE A., 1933, pp. 55-57.
52
TALLONE A., 1933, pp. 59-68.
53
Cf. o testemunho dos embaixadores venezianos in SANUDO M., 1898, cc. 644-645. Também
a infanta se fez notar pela riqueza do vestuário e dos ornamentos, tanto que um observador referia que «Sua Excelência entrou com grande pompa e bela comitiva… Tinha jóias em
117
Notável sucesso suscitou Beatriz, a cujo fascínio não ficou imune o próprio
Carlos V, provocando os comentários picantes de muitas testemunhas oculares54. O historiador ducal Pierre Lambert, recordando o episódio, referia
que à duquesa «foram tributados um grande acolhimento e honras, porque
o imperador fê-la acompanhar de uma multidão de cardeais, príncipes e
outros senhores, escoltou-a aos seus alojamentos, onde mais vezes Sua
Majestade veio visitar em privado o meu senhor e a duquesa, e decidiu
tomar as refeições com eles»55. Mesmo que a expedição a Bolonha não tenha
obtido grandes resultados com vista ao reforço saboiano a nível internacional,
lançou, todavia, as bases para um importante engrandecimento territorial do
ducado, que foi alcançado em 1531, quando o imperador doou à cunhada o
condado de Asti e o marquesado de Ceva, cedidos pelos franceses.
A renovada amizade com os Habsburgos de nada serviu a Carlos II
para se proteger contra as pretensões dos cantões helvéticos. Em Outubro
de 1530, os Estados foram convocados com urgência em Turim, porque os
Suíços tinham invadido «as terras ducais do lado de lá dos montes e devastaram muitos lugares, entraram em Genebra e ameaçaram praticar actos
ainda mais terríveis» 56. Perante o novo pedido de ajuda, os delegados recuaram. Como então referia um alto funcionário saboiano: «os do país
desculparam-se de não poder dar socorro, por causa da grande pobreza em
que se encontram, tanto pelos males que têm suportado, como pelos subsídios que têm dado»57. Com efeito, os territórios subalpinos viviam numa
profunda crise, iniciada no mínimo uma década antes. A sociedade piemontesa encontrava-se atravessada por fortes tensões económicas e sociais,
enquanto a administração saboiana se caracterizava por abusos e corrupção.
Assim, o duque teve de se desenvencilhar sozinho e, ao mesmo tempo,
defender-se das hostilidades da França. A cedência de Asti a Beatriz de
abundância ao peito e 60 pérolas grandes de 27 quilates cada. E o imperador demonstrou-lhe
grande carinho» (SANUDO M., 1899, c. 13).
54 Um embaixador veneziano sublinhava de modo particular a galantaria demonstrada
por Carlos V, notando que «o imperador não fez outra coisa todo o dia senão acompanhar a
duquesa de Sabóia e ir em pessoa ao seu encontro» (SANUDO M., 1899, cc. 31-32).
55
LAMBERT P., 1840, c. 861.
56
TALLONE A., 1933, p. 90.
57
TALLONE A., 1933, p. 93, carta de Gioffredo Pasero ao duque, de 24/10/1530.
118
Portugal tinha sido, na realidade, o evento que definitivamente comprometera as relações entre Carlos II e Francisco I. A tal propósito, o embaixador
veneziano Marino Giustiniani, em 1532, afirmava que os Sabóias se encontravam ao tempo em grandes dificuldades, «pelas divergências que têm com
o rei cristianíssimo, porque o imperador tinha doado o condado de Asti a
esta duquesa» 58 . Para a ruptura tinha contribuído certamente também a
atitude da infanta, que havia tempo avisava o consorte para que não se
fiasse dos Franceses. Numa carta escrita nos inícios de 1531, advertia-o que
«Se vós deliberastes comportar-vos para com a França como fizestes até
agora, será algo bastante difícil para que possais conviver com ambos (os
reis), sem descontentar ou um ou o outro ou mesmo ambos” 59.
A aquisição de Asti e Ceva, como quer que seja, teve como consequência que a princesa portuguesa se ligou ainda mais à realidade piemontesa
e ao grupo de conselheiros e funcionários, aos quais o duque, continuamente empenhado para lá das montanhas, tinha confiado a administração
dos domínios subalpinos. É importante notar que, a par de súbditos fiéis
de primeira hora, como, por exemplo, Claude de Balleyson e Gioffredo
Pasero, estava a emergir uma nova geração de oficiais, destinados mais
tarde a governar o ducado. Tratava-se de homens que se tinham formado na
Universidade de Turim, onde haviam sido influenciados pela cultura jurídica
de orientação «monárquica», elaborada por juristas como Giovanni Nevizzano,
mas sobretudo pelo saboiano Claude de Seyssel, autor da famosa Monarquias
de França, conselheiro, primeiro de Carlos II e, depois, de Francisco I.
Para ter uma ideia do peso exercido pelo elemento piemontês, basta
analisar o pessoal que colaborou estreitamente com o duque e a duquesa
na gestão das relações com os Estados subalpinos na primeira metade
dos anos trinta. Em importantes ocasiões, como as assembleias dos Estados
de Janeiro -Fevereiro de 1530 e de 1532-33, ao lado de Carlos, figuravam
poucos saboianos como o escudeiro-mor Louis de Chatillon e Jean de La
Forest, abade de Montjovet. Os outros eram todos eles personagens nativas
dos territórios a sul das montanhas, a começar pelos grandes feudatários:
58
SANUDO M., LVII, c. 201.
59
FORNASERI G., 1957, p. 216, carta sem data, mas anterior a Abril de 1531.
119
o conde de Frossasco, mordomo-mor, e Luís de Sabóia, conde de Racconigi.
Mas a maior componente era constituída por magistrados, como, em primeiro lugar, Girolamo Aiazza, chanceler-mor de Sabóia desde 1528,
Giovanni Francesco Porporato, presidente do conselho de Turim, Aimone
de Publiciis, presidente do conselho de Chambéry, Nicolò Balbo, superintendente do património.
Numerosa era, pois, a presença de conselheiros no Conselho cum domino: do fiel Chiaberto di Scalenghe, homem de confiança de D. Beatriz,
a Stefano Scaglia, Vincenzo Inviziati, Carlo Baratta, sem esquecer figuras
como Giovanni Michele Cacherano, Emiliano Sandigliano e Cassiano Dal
Pozzo, todos advogados fiscais, que serviram não só a Carlos II, mas também
o filho Manuel Felisberto, garantindo assim uma continuidade entre o governo ducal da primeira e da segunda parte de Quinhentos. Finalmente não
faltavam personagens da corte, como os mordomos Giovanni Filippo Cambiano, dos senhores de Ruffia, e Ludovico senhor de Bagnolo.
No grupo de funcionários aqui individualizado, um lugar particular
era ocupado pelos membros da linhagem dos condes de Piossasco, uma
das mais antigas famílias do Piemonte, cujos ramos detinham o senhorio
de diversos feudos. Aimone de Publiciis pertencia à linha de Piobesi, enquanto Chiaberto à de Scalenghe, da qual também fazia parte o irmão
Giacomo Folgore, capitão a soldo imperial, que foi nomeado governador
de Asti por Carlos V e que foi confirmado no cargo pela infanta 60.
A nova dignidade de condessa de Asti comportou para a duquesa um
aumento de prestígio e, por consequência, também de despesas, a tal ponto que o marido, em Maio de 1531, decidiu atribuir-lhe em donativo o
usufruto vitalício de todos os rendimentos da rica província saboiana de
Bresse 61. A partir deste momento, Beatriz ficou ainda mais envolvida na
administração das terras piemontesas e a sua relação com os ministros ducais estreitou-se cada vez mais, como testemunha, por exemplo, uma carta
60 Notícias sobre as personagens aqui citadas podem encontrar-se em MANNO A., Il patriziato subalpino, ad vocem. GALLI DELLA LOGGIA G, 1798, passim.
61 AST Corte, Matrimoni della Real Casa m.17, n. 5, 11/8/1531, Donazione fatta dal duca
Carlo di Savoia a favore di Beatrice di Portogallo sua consorte di tutti li redditi del Paese della
Bressa durante la di lei vita.
120
de Junho de 1531, em que informava Carlos II de ter agido segundo «o
parecer do chanceler e das outras pessoas de bem, que estão comigo» 62.
5. A crise piemontesa
Durante o seu governo do Piemonte, a infanta teve de enfrentar problemas, quer de política interna, quer externa. Em primeiro lugar, foi forçada
a aperceber-se do progressivo agravamento das condições do país, acentuado pela desordem administrativa e pelas dificuldades sociais. Nos finais
da primavera de 1531 referia, alarmada, ao duque que era necessário
emanar «alguma provisão para estes sítios para a administração da justiça».
Tinham rebentado, de facto, algumas insurreições em diversas localidades,
«às quais é preciso providenciar tanto para descargo da nossa consciência, como para remediar a muitos outros inconvenientes que daí possam
derivar» 63.
As tensões redundaram em lutas de facções, que assumiram conotações
políticas e que não interessaram somente à periferia, mas também à própria
capital subalpina, Turim, que em 15 de Agosto de 1532 foi cenário de um
recontro entre partidos opostos, e que envolveu a própria duquesa 64 . D.
Beatriz, naquela ocasião, teve de se refugiar na catedral de S. João, para se
subtrair a uma verdadeira batalha, desencadeada entre membros do partido
filo-imperial, capitaneados pelos condes de Racconigi e de Masino e pelo
governador de Asti, Giacomo Folgore di Scalenghe, e sequazes do partido
filo-francês, conduzidos pelo conde de Tenda, Renato de Sabóia. Tratava-se,
de qualquer modo, da antecipação das divisões destinadas a caracterizar
os acontecimentos do ducado nos vinte anos seguintes.
Foram provavelmente episódios como este que induziram Carlos II a
intervir sem mais demora na caótica realidade piemontesa, através de uma
ampla reforma legislativa, que tocava todos os sectores da sociedade, desde
62
FORNASERI G., 1957, p. 228, carta de 6 de Junho de 1531.
63
FORNASERI G., 1957, p. 228.
64
O facto é narrado numa carta da própria infanta (cf. FORNASERI G., 1957, pp. 237-238).
121
administração judicial à economia. O projecto, que, na realidade, interessava a todo o ducado, tinha sido já apresentado, em 1528, aos Estados
saboianos, mas agora o soberano pretendia alargá-lo também aos subalpinos. Os delegados da nobreza e das comunidades reuniram-se, deste modo,
em fins de 1532 e o duque explicou-lhes que desejava « reformar a justiça,
quer civil, quer criminal», tomar medidas visando a ordem pública e melhorar a economia e as condições de vida dos súbditos 65.
Tratava-se de um plano articulado, que tinha em vista decretar a supremacia da legislação ducal sobre todas as outras fontes de direito e que
visava o reforço do poder saboiano sobre os Estados. Nas últimas décadas
os estudiosos sublinharam a importância de tal projecto legislativo que
permite alterar o juízo negativo até agora feito pela historiografia sobre
o governo de Carlos II, que passou à história com o cognome de “Bom”,
na realidade pouco gratificante do ponto de vista político66. De facto, como
as pesquisas mais recentes demonstraram, o príncipe não só defendeu a todo
o custo a independência política e a integridade territorial do Estado contra as potências estrangeiras, como procurou consolidar a própria soberania.
A presença e o parecer favorável da infanta contribuíram certamente
para confirmar as intenções de Carlos, se bem que a este propósito foi
notado que, para além do apoio dado por Beatriz, «as motivações profundas
da reforma devem ser encontradas nas ideias que se andavam difundindo
entre os mais atentos juristas e homens de estado que preenchiam os cargos
de governo nas magistraturas ducais, entre os quais não faltavam os partidários do absolutismo monárquico e de uma profunda mudança de toda
a ordem estadual» 67.
Conscientes das implicações políticas que estavam na base das propostas ducais, os Estados piemonteses, temendo uma redução dos privilégios
próprios, acolheram com frieza as reformas e levantaram obstáculos à sua
aprovação. É interessante notar que a duquesa, por sua parte, fez pressões
para convencer o marido a promulgar de motu proprio a nova legislação,
65
TALLONE A., 1933, p. 102.
66
Cf. PATRIARCA P.G., 1988.
67
PATRIARCA P.G., 1988, p. LXXXI.
122
sem esperar o consenso dos Estados. Numa carta de Maio de 1533, afirmava o seguinte: «Monsenhor, o senhor chanceler disse-me que haveis
decidido não publicar e fazer executar os estatutos até à convocação dos
Estados. Suplico-vos que não assineis segundo o parecer dos homens de leis,
porque eles adiariam o caso tanto quanto pudessem». Considerava, por
outro lado, que era mais do que nunca necessário actuar «para acabar com
o descontentamento que experimentam não só os vossos súbditos, mas
todos em geral, em relação à justiça» 68. Contudo, o duque não teve a coragem de ir contra a assembleia dos Estados, que foi continuamente adiada,
tanto que, em Outubro daquele ano declarava querer, de facto, «chegar à
publicação dos decretos, mas com a participação de todo o país» 69.
A complicar a situação política do ducado tinha contribuído, entretanto,
a questão da sucessão do Monferrato, onde, em 1533, se extinguiu a linha
masculina dos Paleólogos. O marquesado era um feudo imperial e, assim,
Carlos V chamou a si a decisão de nomear o sucessor. Carlos II avançou
então com os seus direitos, que derivavam da herança de Branca do Monferrato, mas teve de enfrentar a concorrência de outros dois príncipes:
Frederico Gonzaga e o marquês de Saluzzo 70.
Para apoiar as pretensões saboianas, era, porém, necessário o favor do
imperador e, assim, Carlos II decidiu deslocar-se novamente a Bolonha,
aonde Carlos V voltara depois de uma estada na Alemanha, entre 1530 e
1532. A reunião dos Estados piemonteses, no fim daquele ano, também tinha
sido feita para recolher os fundos necessários para a viagem e provavelmente o anúncio da publicação dos novos estatutos foi uma medida para
procurar obter o consenso dos súbditos, que, de resto, não veio a faltar.
Beatriz passou grande parte de 1533 ao lado do marido e procurou
favorecer-lhe os desígnios junto do poder imperial e dos seus poderosos
ministros. Na mente da duquesa amadureceu o plano que previa mandar
o primogénito Luís a Espanha no séquito do imperador, enquanto testemunho da aliança com os Sabóias e com a esperança de que fosse assegurada
68
TALLONE A., 1933, p. 109, carta de 2/5/1533.
69
TALLONE A., 1933, p. 122.
70
Sobre estes aspectos, cf. RAVIOLA A. B., 2003, p. 3 e sgts.
123
uma brilhante carreira ao jovem príncipe. Ela própria desejava deslocar-se
à Península Ibérica para interceder a favor do marido, afirmando ser levada
«mais pelo desejo do vosso bem e do acréscimo do vosso estado, que do
meu prazer próprio» 71.
Apesar de grávida, a duquesa tentou por várias vezes embarcar em Nice,
mas foi sempre impedida pelas condições desfavoráveis do mar. No fim, teve
de renunciar a tal empresa, mas não deixou de se interessar pelas importantes questões do ducado, que eram, entretanto, discutidas, na corte imperial.
Assim, numa carta de 1533, podia escrever a Carlos II que, a respeito da
sucessão de Monferrato, tinha escrito «por mão própria a Sua Majestade, a
imperatriz, para Cobos, e a outros que, sei, vos podem ser úteis»72. A infanta
manteve também uma cerrada correspondência com a irmã, Isabel, mulher
de Carlos V, informando-a dos males que afligiam o Piemonte73.
Apesar dos esforços dos duques, o destino da Casa de Sabóia tornava-se
cada vez pior. Na frente interna, os Estados piemonteses, em Outubro de
1533, concederam finalmente um conspícuo subsídio (300.000 florins a Carlos
II, 25.000 a D. Beatriz, 6.000 ao príncipe herdeiro), mas apresentaram a habitual série de queixas e reivindicações. O duque decidiu promulgar
a reforma legislativa, com o propósito de confiar a respectiva execução à
representação dos Estados. A fórmula com que Carlos emanava as provisões
era bastante ambígua e revelava que a escolha da orientação de uma política mais «absolutista» ainda não tinha sido feita. De facto, no preâmbulo
do texto, o soberano declarava agir «de nossa iniciativa e na plenitude do
nosso poder e não obstante com a madura deliberação dos nossos maiores
e conselheiros, mas também dos Estados do nosso país do lado de cá das
montanhas, congregados para este fim» 74. Na realidade, as novas provisões,
privadas do consenso «popular» e de um forte apoio por parte da elite do
governo, foram letra morta, pois não foram aplicadas.
No plano internacional, a posição do ducado tornava-se cada vez mais
crítica, sobretudo por causa da crescente hostilidade da França e dos prín71
FORNASERI G, 1957, p. 256, carta de 15/5/1533.
72
FORNASERI G., 1957, p. 252, carta de 11/5/1533.
73
FORNASERI G., 1957, p. 242, carta de 21/4/1533 e p. 280, carta de 18/4/1534.
74
TALLONE A., 1933, p. 146.
124
cipes italianos envolvidos na luta pela sucessão do Monferrato. A atitude de
Francisco I perante Carlos II piorou quando este último se recusou a ceder
o castelo de Nice como lugar de encontro entre o rei e o papa Clemente
VII, que acompanhava a sobrinha Catarina de Médicis, noiva do soberano
francês. Por último, em Novembro de 1533, a morte de Filipe de Sabóia,
duque de Nemours e irmão de Carlos, cortou também os últimos laços
de sangue entre as duas dinastias.
Entretanto, Beatriz tinha voltado a ocupar-se do governo do Piemonte
e agora confrontava-se com graves dificuldades financeiras. Já em anos
precedentes se vira obrigada a procurar empréstimos em Génova, lamentando ver-se pressionada por credores 75. Agora a situação parecia ainda
mais grave, a tal ponto que, numa carta de Setembro de 1533, confessava
não saber «onde encontrar um só escudo»76. Faltava o pão e o vinho até na
própria mesa ducal e também o príncipe Luís que se encontrava na corte
espanhola, se via com o dinheiro contado 77 . A infanta viu-se, então, na
necessidade de empenhar as suas jóias, uma solução por ela utilizada outras
vezes no passado 78.
Todavia, apesar das dificuldades, não deixava de ter gestos de afecto
para com Carlos, como quando, em Junho de 1534, assegurava que lhe
mandaria «os primeiros melões que ficarem maduros», desejando poder
comê-los em «vossa companhia»79. Não é fácil julgar qual fosse o sentimento existente entre os dois, considerando também a notável diferença de
idades; decerto, D. Beatriz experimentava uma sincero afecto pelo marido e
nas cartas assinava como «a vossa humilde mulher». Como esposa fiel, esperava com ansiedade notícias do duque, frequentemente em terras
longínquas, e assim, em Fevereiro de 1534, agradecia-lhe as cartas recebidas,
que testemunhavam «o amor e o bem-querer que experimenta em relação
a mim». Pedia-lhe, além disso, que continuasse a enviar-lhe novas e que
75
FORNASERI G., 1957, pp. 144-145; 207; 235-236.
76
FORNASERI G., 1957, p. 274, carta de 21/9/1533.
77
FORNASERI G., 1957, pp. 294-296; 297-299.
78
FORNASERI G., 1957, pp. 300-301.
79
FORNASERI G., 1957, p. 306.
125
«conservasse a vossa pessoa de saúde, para alegria e consolação dos vossos
filhos e da mãe, que estão bem, graças a Deus» 80.
Na realidade, as numerosas gravidezes da princesa portuguesa não tiveram um fim muito feliz. Dos nove filhos tidos de Carlos, oito morreram
depois de alguns meses ou, no máximo, após poucos anos de vida 81. Um
destes, Isabel, nasceu precisamente enquanto a mãe tentava embarcar para
Espanha e morreu durante a viagem de regresso, de Nice para Turim. Não
foi por acaso que a morte da infanta se deveu às consequências de mais
uma gravidez, que a debilitou fisicamente de modo definitivo. No momento do seu desaparecimento, ficava vivo somente um herdeiro, Manuel
Felisberto, destinado, todavia, a suceder ao pai em 1553 82.
Fracassada a projectada viagem a Espanha, a duquesa voltou a ocupar-se da realidade piemontesa, que estava a piorar, sobretudo no que dizia
respeito às condições económicas e à ordem pública. A administração
judiciária era de facto deficiente, e tanto que, em Julho de 1534, D. Beatriz
escrevia ao marido, ao tempo em Sabóia, que, se ele não mandasse “para
aqui gente para reforçar a justiça, eu vos asseguro, monsenhor, que se
acenderá um fogo tão grande, que, quando se quiser apagar, já não será
possível, porque todos os dias são cometidos excessos e assassínios, sem
que se consiga qualquer punição» 83.
Segundo a infanta, uma das principais causas da fraqueza da autoridade
ducal era a distância em que Carlos II se encontrava, cada vez mais envolvido com a questão de Genebra. Por isso, em Agosto de 1534, convidava-o
pela milésima vez a regressar a Turim, sublinhando que a sua vinda seria
o melhor «para pôr ordem nos assuntos daqui»84. Com efeito, se bem que
revelando uma notável capacidade para se ocupar dos problemas políticos
e administrativos, Beatriz jamais obteve uma delegação plena de poderes
por parte do marido e não pode ser considerada uma regente de pleno
80
FORNASERI G., 1957, p. 280, carta de 18/2/1534.
81
É sintomático o caso da princesa Maria, nascida a 21 Março de 1526 e morta no dia
seguinte (cf. SOFFIETTI I., 1969, p. 131, relatório de 22/3/1526).
82
Sobre a figura e obra do duque, cf. MERLIN P., 1995.
83
FORNASERI G., 1957, pp. 318-319, carta de 13/7/ 1534.
84
FORNASERI G., 1957, p. 342, carta de 17/8/ 1534.
126
direito, como foi, por exemplo, Catarina de Habsburgo, a qual, em 1588,
foi nomeada lugar-tenente do duque Carlos Manuel I 85.
A princesa teve sempre de agir com a assistência do pessoal do Conselho de Estado: nobres e juristas, com quem, de resto, instaurou uma sólida
relação de colaboração. Melhor pode dizer-se que, mesmo neste período
crucial, de 1533 a 1535, se ligou ainda mais aos homens que representavam o partido «monárquico», entre os quais emergia o novo presidente do
Conselho de Turim, Giovanni Francesco Porporato, considerado pelos
historiadores o ideólogo da reforma legislativa tentada por Carlos II em
1533 86. Era a própria infanta quem informava sobre as suas reuniões com
os funcionários ducais, como quando, a 13 de Agosto de 1534, advertia ter
feito reunir «na minha presença o chanceler, o escudeiro-mor, o presidente
do Piemonte» com outros dignitários e magistrados, com quem tinha «longamente discutido as questões» 87.
O governo saboiano estava, todavia, demasiado empenhado na vertente
externa para poder ocupar-se de modo eficaz da situação interna. Nestes
anos, os principais problemas que teve de enfrentar foram, de facto, a sucessão do Monferrato e a contestada supremacia sobre Genebra, que Carlos
II tinha já decidido resolver com uma intervenção militar. O ducado encontrava-se, porém, numa grave situação financeira, que atingia a própria
corte, visto que Beatriz, em meados de 1534, afirmava que, dentro de pouco tempo, não se encontrariam «nem escudos, nem tostões, nem outras
moedas» e que não acreditava que fosse possível «poder obter dinheiro das
comunidades» 88.
Em determinada altura, porém, tornou-se inevitável dirigir-se aos Estados,
que foram convocados em Outubro de 1535. Em assembleia, a duquesa
pediu um parecer aos seus membros sobre o que se deveria fazer, visto
que os conselheiros se mostravam bastante cépticos sobre as possibilidades de obterem ajudas substanciais, sustentando que os súbditos estavam
decididos «a não fornecer gente para sair do Piemonte» em socorro do
85
Cfr. MERLIN P., 2008 (2), p. 209.
86
A este propósito, veja-se PATRIARCA P.G., 1988, pp. XII-XIII.
87
FORNASERI G., 1957, p. 340.
88
FORNASERI G., 1957, p. 343, carta de 24/8/1534.
127
duque na Sabóia. É interessante notar que a assistir à infanta estavam
todos os piemonteses, entre os quais figuravam, além do citado Porporato, três membros da fiel família Piossasco e o novo conde de Frossasco,
Carlos di Mombello, que tinha substituído o pai, Bertolino, no cargo de
mordomo-mor 89 .
O príncipe saboiano pretendia realizar uma acção preventiva, para se
apoderar de Genebra e combater ao mesmo tempo as cidades aliadas de
Berna e Friburgo. Para fazer isto era necessário o apoio dos Estados subalpinos e, assim, Carlos decidiu satisfazê-los, emanando em 15 de Outubro
uma série de provisões, cujo objectivo era pôr ordem na confusão monetária
existente no Piemonte 90. No dia 23 Beatriz referia que os nobres pareciam
dispostos «e decididos a fazer o seu serviço», enquanto «algumas comunidades se escusavam, como habitualmente»; também o conde de Frossasco
confirmava que os fidalgos se «tinham mostrado todos eles prontos a obedecer e a prestar serviço» 91.
No momento de decidirem, as cidades, porém, recuaram: Moncalieri, por
exemplo, lamentou-se da pobreza e das taxas que a comunidade já suportava; os delegados de Vercelli, por sua vez, foram mais longe protestando
abertamente «tanto pelo que pertence à justiça, às moedas e ao aprovisionamento do trigo, como pela falta de respeito pelos seus privilégios
e costumes»92. A reunião foi adiada para Novembro, mas também então um
observador notou que «aquelas comunidades não se encontram muito dispostas a ceder o que quer que seja» 93
Entretanto, os Suíços tinham decidido antecipar-se às manobras saboianas e em Dezembro de 1535 invadiram os territórios ducais em volta de
Genebra. Francisco I, por sua parte, aproveitou a ocasião para enviar um
ultimato a Carlos II, em que pedia «muitas terras e senhorios, que pretendia
que lhe pertencessem» por direitos hereditários, entre os quais Nice, Bresse,
Faucigny, Vercelli, Asti e outras terras piemontesas. O duque não cedeu
89
TALLONE A., 1933, p. 151, carta de D. Beatriz de 3/10/1535.
90
TALLONE A., 1933, pp. 152-153.
91
TALLONE A., 1933, pp. 153-154.
92
TALLONE A., 1933, p. 155.
93
TALLONE A., 1933, p. 159.
128
e respondeu às exigências de Paris através do presidente Porporato, «que
é hoje reputado um dos homens mais sábios de Itália» 94.
Como resposta, as tropas francesas desceram ao Piemonte, ocupando
a própria cidade de Turim em Março de 1536. Graças ao jogo das alianças,
Carlos V declarou guerra à França e recrutou um corpo expedicionário para
invadir a Provença, enquanto o que restava da corte de Sabóia se refugiou,
primeiro em Milão, depois em Génova e Nice. Entre o fim de 1535 e o
início de 1536, a família ducal foi, além disso, atingida por vários lutos: em
Dezembro de 1535 morreu em Madrid o herdeiro do trono, Luís, seguido,
pouco tempo depois da irmã Catarina, uma menina de apenas sete anos.
A infanta, todavia, não perdeu o ânimo e continuou a ocupar-se dos negócios do Estado ao lado do marido.
Assídua foi a sua intervenção junto do embaixador espanhol da Lombardia
para que impedisse o avanço dos franceses. Ao mesmo tempo, empenhou-se em promover a resistência das populações saboianas contra o invasor,
como atesta uma carta de Setembro de 1536, que contém um projecto
para organizar uma rebelião antifrancesa em Tarantasia, em acção concertada com o marechal de Sabóia, Renato di Challant 95 . A tal propósito, as
relações bastante tensas que se interpuseram entre a duquesa e o potente feudatário valdostano naquele catastrófico ano de 1536, testemunham
bastante bem qual foi a atitude que D. Beatriz assumiu nos confrontos
com os nobres saboianos . A infanta, de facto, não quis ceder a Challant
os amplos poderes que este pedia, temendo aumentar a sua já ampla
autonomia em relação ao governo central 96 .
Se bem que de sentimentos aristocráticos por nascimento e educação, a
princesa teve sempre mais confiança nos membros da nobreza de serviços
e do corpo burocrático, que tinham decidido apoiar e consolidar a autoridade
ducal, do que nos expoentes da alta aristocracia, considerando-os elementos
que, a par das comunidades, limitavam as prorrogativas soberanas. Sobre tal
convicção, fundou-se a preferência dada a homens filomonárquicos, como
94
LAMBERT P., 1840, c. 872.
95
FORNASERI G., 1957, pp. 362-365, carta de 29/9/1536.
96
O episódio é recordado em BARBERO A., 2002, pp. 160-162.
129
Pasero, primeiro, e Porporato, depois, personagens cujas ideias, como foi
dito, «encontraram um certo acolhimento junto do duque e ainda mais junto
da duquesa Beatriz»97.
Para a princesa lusitana, Nice foi a cidade do destino. Lá tinha chegado
jovem esposa, em 1521, e lá terminou as suas vicissitudes terrenas em
Janeiro de 1538. Nos últimos anos de vida, a sorte, como se viu, não a poupou a dores. Aos desgostos familiares juntaram-se os públicos, a começar
pela invasão francesa do ducado. Por último, em Novembro de 1536 chegou a decisão de Carlos V de atribuir o Monferrato a Margarida Paleólogo
e, através dela, ao marido Frederico Gonzaga. Entretanto, o imperador
fora obrigado a retirar-se da Provença e os Espanhóis não tinham conseguido expulsar os Franceses do Piemonte. Os territórios subalpinos estavam
destinados a tornar-se um vasto campo de batalha, no qual as duas grandes potências europeias se defrontariam, alternando períodos de trégua
e de guerra, até à paz de Cateau-Cambrésis de 1559 98.
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Genève, cat.1, paquet 12
Lettere di duchi e sovrani, m.7
Lettere Ministri, Portogallo, m.1
Materie d’Impero, m.1
Matrimoni della Real Casa, mazzi 17,18,19.
Negoziazioni coi Svizzeri, m.1 bis
Negoziazioni con Vienna, m.1
97
PATRIARCA P.G., 1988, p. XIII.
98
Sobre os acontecimentos relativos ao Piemonte no período que se seguiu à morte da
Duquesa , cf. MERLIN P., 1994 e MERLIN P., 1995.
130
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