Filho do último rei de Itália é um “Princípe sem Trono” com pouca nobreza de caráter – NiT

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Filho do último rei de Itália é um “Princípe sem Trono” com pouca nobreza de caráter

A Netflix lançou uma série sobre Vítor Emanuel, que matou um jovem e já foi detido por corrupção, mas escapou sempre à justiça.
O herdeiro foi sempre um íman de polémicas.

O título é simples de explicar. “O Príncipe sem Trono” aborda a vida de Vítor Emanuel — filho do último rei de Itália — que nunca chegou a ser coroado. A família real foi forçada ao exílio depois da II Guerra Mundial, e escolheu Portugal para viver. O pai, Humberto II, o derradeiro monarca reinante italiano deu o nome à mais emblemática avenida de Cascais. Já o Príncipe de Nápoles é o herdeiro de um reino que virou república em 1946 e baniu os Saboias de entrar no país até 2002.

Os três episódios desta série documental da Netflix, que estreou esta terça-feira, 4 de julho, abordam a vida de Vítor Emanuel, mas centram-se num episódio muito específico que o persegue até hoje: a morte de Dirk Hamer, um jovem alemão de 19 anos, em 1978. A produção acompanha os esforços de Birgit Hamer, irmã do adolescente abatido a tiro, para levar o herdeiro italiano à justiça durante quase 40 anos.

No verão de 1978, Brigit e o irmão foram passar férias com um grupo de italianos a Cavallo, uma ilha francesa junto à Córsega onde Vítor Emanuel tinha uma villa. O herdeiro real achou desde logo a presença dos jovens desagradável, mas a tensão escalou numa noite em que levaram o bote do seu veleiro sem pedir autorização. Ao que consta, Vítor Emanuel ficou furioso e foi tentar recuperá-lo munido de uma espingarda de calibre militar. Disparou dois tiros, tendo um deles atravessado a parede do barco onde Dirk dormia, atingindo o jovem. O príncipe foi prontamente detido, tendo assinado um termo de responsabilidade civil. Porém, 19 meses depois, o alemão morreu após inúmeras cirurgias, já Emanuel tinha regressado à Suíça.

O que se seguiu foi um longo calvário para a irmã de Dirk, que teve de combater os poderosos advogados do aristocrata num caso onde se deu o desaparecimento de provas e intimidação de testemunhas. Além disso, a mulher de Emanuel, Marina, levou a investigação a tomar outro rumo. Alegou que os médicos que operaram o adolescente tinham afirmado que fora baleado à queima-roupa. Ou seja, que não teria sido o marido a atingi-lo.

Ao mesmo tempo, Brigit tentou manter a atenção dos meios de comunicação, mas foi ignorada ou informada que não seria possível escrever sobre o caso. Não obstante a influência da família Saboia, o caso foi mesmo a tribunal, em 1989. Dois anos depois, um tribunal de Paris absolveu Emanuel de quase todos os crimes. Recebeu apenas uma pena suspensa de seis meses.

Uma vida de escândalos

A vida do herdeiro ao trono de Itália tem sido recheada de problemas com a justiça. Mais tarde, outro processo traria mais informação sobre a morte de Dirk, em parte devido à arrogância do aristocrata.

A fama de Vítor Emanuel — ou melhor, do clã Saboia, que reinou em Itália desde a unificação de 1861 até 1946 — precedia-o. Nesse ano, Humberto II e restante família foram obrigados a deixar o país depois de um referendo que aprovou uma constituição republicana. O documento explicitava a proibição dos homens Saboia de regressarem a Itália, uma retaliação por Vítor Emanuel III — pai de Humberto II e avô do Príncipe de Nápoles — se ter unido aos fascistas de Benito Mussolini.

No entanto, Vítor Emanuel conseguiu ainda assim ter pior fama do que o seu nome de família já sugeria. A controvérsia começou logo por escolher casar com uma plebeia, Marina Doria, antiga campeã-mundial de esqui aquático. Uma das cerimónias teve lugar em Teerão por convite do Xá do Irão, com quem o herdeiro real negociaria a venda de helicópteros.

Depois do caso de Dirk Hamer, Emanuel foi apanhado num escândalo por ser membro da Propaganda Due, uma loja maçónica de extrema-direita ligada a inúmeros crimes à escala europeia. Em 1982, foi desmantelada pelo parlamento italiano. O facto de pertencer a um grupo que conspirava contra o estado de direito reforçou a noção de que o príncipe nunca reconheceu a república italiana. Em 1996, disse abertamente à televisão suíça que as monarquias eram os sistemas de governação superiores, mas o mais grave foi ter afirmado no ano seguinte que as leis raciais impostas por Mussolini “não tinham sido assim tão más”. As declarações levaram ao repúdio público da parte de associações italianas de judeus.

De polémica em polémica, Vítor Emanuel foi fazendo pressão junto do parlamento italiano e da União Europeia para acabarem com a proibição do seu regresso ao país de origem. Em 2002, conseguiram chegar a acordo: ele e a família podiam voltar, desde que reconhecesse formalmente a república italiana como a única forma de governo legítima e renunciasse às pretensões ao trono.

O retorno após mais de meio século de exílio, porém, não correu como os Saboias esperavam. Em 2003, a polícia de choque desmobilizou uma concentração de neofascistas, republicanos e ultramonarquistas em Nápoles. Protestavam contra o regresso do herdeiro ao trono sob o lema: “Vão-se embora, traidores”. A hostilidade também partiu da própria autarquia — a presidente da câmara da cidade, Rosa Russo Jervolino, recusou a doação de 15 mil euros de Emanuel, considerando-a “uma manobra publicitária”.

A família de Dirk Hamer após a sua morte.

Prostitutas, máquinas de apostas e a admissão de culpa

O outro grande caso protagonizado por Vítor Emanuel explodiu em 2006. Um procurador italiano chamado Henry John Woodcock — o nome improvável deve-se ao pai inglês —  ordenou a sua detenção por suspeitas de tráfico de influências, corrupção e a contratação de prostitutas do leste europeu para um casino.

A investigação de 2000 páginas, que resultou na detenção de mais 12 pessoas e cujas implicações chegaram à máfia italiana, considerou Emanuel como “o líder indiscutível” do grupo. O herdeiro real terá usado a sua influência para levar membros do governo italiano a aprovarem licenças para cinco mil slot machines destinadas a um empresário com ligações criminosas. Os jornais italianos obtiveram e publicaram transcrições de escutas de chamadas telefónicas e fotografias do aristocrata a entregar um envelope com dinheiro, se bem que este disse serem fundos destinados a uma das ordens de cavalaria que liderava.

Ao mesmo tempo, Emanuel foi acusado de contratar prostitutas e encaminhá-las para um casino em Campione d’Italia, um enclave italiano na Suíça. O objetivo era alegadamente serem parte de um “pacote de luxo” para visitantes do espaço. Uma das conversas publicadas detalha o príncipe a dizer a outra pessoa “para dar umas boas palmadas” a uma mulher que lhe terá levado 500 euros e sem prestar os serviços que lhe eram requeridos. O herdeiro real disse tratar-se tudo de “um mal-entendido gigantesco”, já que não precisava “de alugar prostitutas para outras pessoas por 2000 euros por noite”.

Após passar uma semana encarcerado e de ser remetido a prisão domiciliária, Emanuel acabou, uma vez mais, por ser absolvido de todos os crimes. Mas como não soube estar calado enquanto dividia a cela com outros reclusos, deixou revelar mais do que gostaria quanto à morte de Dirk Hamer.

Em 2011, foi descoberto um vídeo gravado secretamente na prisão de Potenza, onde esteve após a detenção de 2006. Os seis minutos captados mostram Emanuel a admitir ter sido ele a balear o jovem alemão e a vangloriar-se de ter escapado à condenação, sugerindo ter enganado os juízes.

“Era culpado, dei-lhes baile. O procurador tinha pedido cinco anos e seis meses de prisão. Tinha a certeza que ia ganhar. Acabei por receber uma pena suspensa; seis meses, houve uma amnistia e nem registaram [a condenação]. Saí em liberdade!”, admite Emanuel no vídeo, seguindo-se um riso.

Apesar da admissão de culpa, a familía real afirmou que se tratavam de imagens manipuladas. E mais: Emanuel havia sido drogado na prisão e não tinha noção do que dizia no vídeo. Já Brigit considerou as afirmações “piores do que tinha imaginado”. “O que para nós é uma confissão, para ele é uma vanglória. Riu-se por ter morto um rapaz”, afirmou.

O vídeo foi obtido pela jornalista Beatrice Borromeo, ela própria parte de uma família real — é casada com Pierre Casiraghi, filho da princesa Carolina do Mónaco. Borromeo publicou com um colega a gravação integral no jornal “Il Fatto Quotidiano” e ajudou Brigit a editar um livro sobre a morte de Dirk.

Um dado particularmente curioso desta história é que é também Borromeo quem realiza “O Príncipe sem Trono”, que conta com a participação do próprio Vítor Emanuel. Como chegaram a acordo para colaborarem na produção da Netflix é um mistério, porque o clipe de 2011 levou o herdeiro real a processar Borromeo e o jornal por difamação, acusando-a de “encenar artificialmente o vídeo” e de tentar “reavivar um episódio doloroso” da sua vida. Todavia, em 2015, a justiça deu razão a Borromeo e ao “Il Fatto Quotidiano”. Tal decisão levou-a a escrever no Twitter: “Vencer por uma causa é sempre bom, mas contra Vítor Emanuel de Saboia é um prazer a dobrar”.

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