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Crítica | “Compartilhar”, da HBO, traz visão intimista sobre abuso e assédio

Por| 05 de Agosto de 2019 às 16h00

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(Imagem: divulgação/HBO)
(Imagem: divulgação/HBO)

Na era digital em que vivemos, tudo é conteúdo. Tudo viraliza. Tudo é mídia. E nessa época, em que nas redes sociais qualquer coisa tem potencial para criar ou destruir a reputação de alguém, a linha que divide a validez da informação contra a disseminação de material abusivo torna-se cada vez mais tênue e embaçada.

Compartilhar (Share, no original em inglês), filme que estreia na HBO hoje (5), premiado no Festival Sundance, tira toda a sua narrativa do pior extremo dessa divisão: sem contar muita coisa para não estragar a experiência do espectador, o enredo gira em torno de Mandy, atleta de basquete e armadora da equipe colegial de sua escola, que após a descoberta de um vídeo assustador de uma noitada de bebedeira cujos detalhes ela não se recorda, deve lidar com todos os percalços que poderão se relacionar toda e qualquer vítima de abuso — na vida pessoal, no âmbito legal e até na continuidade da rotina escolar, atlética e, subentende-se no filme, profissional.

Com roteiro e direção assinados por Pipa Bianco (Sangue Pela Glória), a história de Compartilhar é, lamentavelmente, muito familiar a diversas pessoas — especialmente mulheres — no mundo. Momentos de diversão entre amigos tornam-se potenciais testemunhos em relação ao momento de extremo sofrimento causado por práticas de abuso. O filme todo busca retratar todo o turbilhão de mudanças pela percepção da rotina de Mandy, muito bem vivida pela novata Rhianne Barreto (Hannah), e sua família: como sua mãe deve agir para ajudar a filha diante desse momento complicado? Como as reações de seu pai, que por mais compreensivo e aberto que seja em relação ao caso, impactam na forma como a jovem deve conduzir toda a situação?

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A produção é cheia de nuances que mostram grande impacto dramático até nas pequenas coisas: em um pequeno spoiler sem impacto na experiência do espectador, um bom exemplo disso ocorre próximo à metade do filme, onde, por causa de toda a publicidade que se gera em todo o caso, Mandy acaba suspensa do time de basquete, junto de outras amigas. Essas, automaticamente, passam a responder de forma ligeiramente hostil à ex-companheira de time. Ou ainda as deliberações legais pertinentes a isso: pulverizadas pelo filme estão cenas de ligações com delegados de polícia e advogados, orientando tramitações legislativas contra abuso, o que Mandy pode fazer, o que não tem como ela fazer. Tudo isso traz um peso diferenciado, porém, cumulativo, na vida da jovem e de sua família e amigos.

Todo um quadro de mudança de rotina de uma família bastante suburbana — o point dos jovens no filme é uma loja de conveniência Seven Eleven, bastante conhecida nos postos de gasolina dos Estados Unidos; Mandy declara nunca ter ido à Califórnia em alguns momentos do filme — é mostrado, atribuindo perguntas sem respostas, e é aqui que reside o charme de Compartilhar: a ideia é não é estabelecer uma narrativa com começo, meio e fim. Não é objetivo do filme mostrar um curso específico de ação, mas deixar todo um campo aberto para que o espectador olhe para a situação de forma reflexiva. “Fosse comigo/minha família, o que eu faria?”. Ainda que o filme acabe com uma mensagem subentendida, essa mensagem mostra apenas uma ação que a personagem principal escolheu seguir, dentre muitas outras possibilidades que você ou eu poderíamos ter tomado.

O filme vai ressoar bastante com mulheres que passaram por algum episódio abusivo em suas vidas, independente do grau e intensidade. Ao assistir a película, me vieram inúmeras ideias do que fazer, como reagir, mas, ao mesmo tempo, me peguei constantemente me lembrando: sou homem, heterossexual, não tenho e nem nunca que tive que passar por qualquer coisa remotamente próxima ao que o filme retrata. Não é meu curso de pensamento que conta, não é em mim que a mensagem do filme encontrará um vetor válido. É algo que faz os mais atentos repensarem suas ideias, haja vista que é fácil, para quem está fora do que se transcorre na tela, apontar decisões e ideias. Mas não é a nossa rotina que está sendo diretamente impactada.

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Essa percepção é justamente o que o filme busca demonstrar: não é tanto sobre o que fazer, mas sim estimular o espectador a perceber que os impactos derivativos de uma situação de abuso são longevos, duradouros e, em alguns infelizes casos, permanentes. Isso é especialmente evidente em um diálogo entre Mandy e sua mãe. Dentro do girl talk proposto na cena, a mãe da protagonista diz, em termos nada incertos: “Seu pai está sempre do seu lado, mas isso é diferente para ele”. Vale o adendo: Poorna Jagannathan (Better Caul Saul; 22 Milhas) e J.C. Mackenzie (The OA; Hemlock Grove; The Good Wife) retratam muito bem seus respectivos papéis de pais suburbanos, dando aquela vibração de duas pessoas que sabem que abusos acontecem, mas que ainda são pegos de surpresa quando ditos abusos entram em sua casa, sua família.

Compartilhar falha em apenas dois pontos bem específicos: o primeiro e mais óbvio é na iluminação ambiental. Não sei se por contexto ou falha técnica de produção, toda a produção é extremamente escura, e em um filme que abusa de cenas realizadas à meia luz ou até menos, isso se torna problemático. Em breves momentos, as personagens de uma cena transcorrem como meras silhuetas, e você tem que focar bem os olhos para saber do que se trata, visualmente falando. Em uma era onde a alta definição é lei, isso me pareceu algo bem primário e, se for algo contextualizado, talvez seja desnecessário.

Outro problema é com a evolução da narrativa: o ritmo do enredo é bastante lento, onde a mão da diretora pesou bastante no conto minucioso de cada detalhe. Eu, particularmente, dou preferência para a história do que para o tempo que um filme transcorre, mas não me surpreenderia se boa parte da audiência acabar entediada, achando o filme enfadonho. Não há grandes momentos, a não ser aqueles que mostram o pico da história. A ideia é mostrar um caminhar natural de uma narrativa, e isso pode soar enfadonho para muita gente.

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Compartilhar não é um filme para as massas — prova disso é ele estrear diretamente na HBO e não passar nem mesmo em cinemas de menor abrangência. É definidamente uma produção de nicho, não apelativa ao grande público, mas que traz uma mensagem importante sobre um tema que, infelizmente, se faz cada vez mais presente na era digital. Em nome da diversão juvenil, até que ponto você está disposto a ir; ou atravessar a vida comum dos outros? A quem abraçar o filme com mente aberta, terá um prato cheio em mãos. A quem não tiver essa percepção, bom, essa pessoa não é o alvo, de qualquer forma.