Don DeLillo: "A função do escritor é enfrentar o poder" - ÉPOCA | Ideias
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Don DeLillo: "A função do escritor é enfrentar o poder"

Don DeLillo: "A função do escritor é enfrentar o poder"

O autor americano diz que viver numa democracia é um privilégio, mas mesmo em países livres é preciso identificar as máscaras que escondem o autoritarismo

LUIS ANTONIO GIRON
23/08/2013 - 07h54 - Atualizado 23/08/2013 07h57
ATMOSFERA DE INSEGURANÇA O escritor americano Don DeLillo. “Escrevo sobre tempos conturbados” (Foto: Richard Drew/AP)

O americano Don DeLillo, de 76 anos, é conhecido por sua fixação em imagens. A fotografia de um homem caindo do World Trade Center no dia do atentado às Torres Gêmeas, feita por Richard Drew, inspirou seu romance mais famoso: Homem em queda (Companhia das Letras, 220 págs., R$ 44). Seu livro mais recente, a coletânea O anjo esmeralda, traz fotos do cadáver de Ulrike Meinhof, integrante do grupo terrorista alemão Baader Meinhof, imagem que é obsessão de um dos personagens. DeLillo acha que o romance é um “instrumento de compreensão do tempo e do espaço em que vivemos”. Com uma ficção calcada em temas da atualidade, ele não se considera um “crítico” de nossa época, mas um “observador”.  

ÉPOCA – Por que o senhor escreve romances?
Don DeLillo –
 Só me decidi a ser escritor quando comecei a me dedicar à forma longa do romance. Foi assim que levei quatro anos para concluir meu primeiro, Americana (1971). O romance é uma forma de penetrar na realidade e compreendê-la intuitivamente, como nenhum outro gênero de conhecimento oferece. O romance é um instrumento de compreensão do tempo e do espaço em que vivemos.

ÉPOCA – Há um tema comum a todos os seus livros?
DeLillo – 
Meus romances abordam os tempos difíceis, os tempos conturbados. Os Estados Unidos dos anos 1960 e 1970 foram marcados por assassinatos políticos, Guerra do Vietnã, caso Watergate... Um de meus primeiros contos é ambientado em Dallas. Um jovem de moto escapa de uma cena de crime. Três anos depois, o presidente John Fitzgerald Kennedy seria assassinado em Dallas, e por um jovem que tentou escapar, Lee Harvey Oswald. Usei a mesma cena no romance Libra (1988). O assassinato de Kennedy inaugurou uma era de turbulência que também dá início a minha trajetória literária. Daí a atmosfera de insegurança, desconfiança e niilismo que contaminam minhas histórias dos anos 1960 e 1970.

ÉPOCA – Como o 11 de setembro marcou seu trabalho?
DeLillo –
 Os atentados às Torres Gêmeas impuseram novos tempos instáveis e perigosos aos Estados Unidos. De alguma forma, os americanos se viram cercados de inimigos, sem saber direito por quê. Foi assim que pensei em escrever Homem em queda (2007), um romance ambientado dentro dos prédios do World Trade Center e dentro dos dois aviões arremessados contra eles. Essa visão de dentro chocou muitos leitores. Foi o único romance daquele tempo a fazer isso. Era um tabu enfrentar a situação do jeito como enfrentei, descrevendo a catástrofe em detalhe.

ÉPOCA – Os tempos atuais são menos perigosos?
DeLillo – 
São. A situação mudou com o governo Obama. Mesmo assim, embaixadas são fechadas e boa parte dos americanos corre perigo em países do Oriente e do Oriente Médio.

ÉPOCA – Que critério o senhor seguiu ao organizar a coletânea O anjo esmeralda? Eles sintetizam os principais temas de sua ficção, como o perigo da tecnologia, a insegurança, a fotografia, o irracionalismo da religião.
DeLillo – 
Sim, ler meus contos pode ser uma boa maneira de entrar em meu universo. Porque um pouco de tudo isso que você citou está lá. A pedido de meu editor, reuni os contos mais recentes, de 1979 a 2011, na ordem cronológica de publicação em várias revistas. Revisei-os sem alterar uma linha. Quis manter o ar do tempo em que foram feitos. Lendo-os agora, percebo que todos os contos estão centrados em pessoas obcecadas por alguma coisa. Em “Criação” (1979), o personagem principal está obcecado em escapar de uma ilha cujo aeroporto está fechado. O narrador de “Baader Meinhof” (2002) se deixa hipnotizar pelas fotos da terrorista morta. A aparição de uma menina morta em “O anjo esmeralda” (1994) é motivo para a renovação da fé de um grupo de desvalidos do Bronx de antigamente.

>> Leia trecho do livro O Anjo Esmeralda

A FOTO Homem em queda,  de Richard Drew (Foto: Richard Drew/AP)

ÉPOCA – Esse conto parece refletir sua infância no Bronx católico. A história parece real.
DeLillo –
 Não é real, apesar de ter um fundo de verdade. Em comunidades católicas como as do Bronx, em Nova York, era comum nos anos 1950 as pessoas terem visões como uma menina morta que ressuscita para fazer milagres. Hoje não mais. As protagonistas são freiras que investigam a aparição numa área perigosa de South Bronx. Quis mostrar as freiras correndo perigo. Estudei em colégio de freiras, e elas me marcaram. Daí essa carga real.

ÉPOCA – A história tem a ver com sua formação católica e ítalo-americana. Quanto o senhor foi influenciado por ela?
DeLillo – 
Sou filho de italianos que saíram de seu país para descobrir a América. E conseguiram sobreviver, criar uma família e se estabelecer como americanos no bairro do Queens, em Nova York, depois no Bronx. Claro que isso me influenciou profundamente. Porque, mesmo tendo nascido americano, tenho uma visão de outsider. Os italianos em Nova York são reconhecíveis, mantêm seu mundo à parte do resto da população. É uma comunidade até certo ponto isolada. Ter sido criado numa família italiana operária foi algo positivo: aprendemos a conviver em famílias grandes, logo nos damos conta de nossas diferenças e desenvolvemos uma forma de afeto e tolerância. Tive uma vantagem adicional: como era o filho mais velho, tive apoio de meus pais para fazer o que bem entendesse, desde que ganhasse algum dinheiro com isso. Eles me incentivaram desde o início a lutar para ser escritor. Ao me tornar escritor, quis prestar tributo a meus pais. Como eles, meu projeto tem sido descobrir a América – e me tornar americano.

ÉPOCA – Muitos críticos dizem que seus textos são excessivamente experimentais. O senhor concorda?
DeLillo – 
Não. Não penso nisso. Faço poesia com a prosa, por assim dizer. Não sei me definir, só sei que sigo contando histórias a minha maneira. Dizem que sou um crítico da política americana. Mas não me considero um crítico, e sim um observador, um escritor que vive num mundo em que as conturbações acontecem.

"Depois do 11 de setembro, 
os americanos se viram
cercados de inimigos, sem
saber exatamente por quê" 

ÉPOCA – Apesar de não se considerar um crítico, mas um observador, o senhor ainda acha que a missão do escritor hoje é enfrentar o poder?
DeLillo – 
Sim, mais do que nunca a função do escritor é enfrentar os poderes constituídos. Isso em todo o mundo. Os grandes autores são aqueles que desafiam os regimes totalitários e desumanos. Todo dia escritores são presos por se expressar criticamente contra os governos em países da África, do Oriente Médio e da Ásia. Tenho o privilégio de trabalhar num país democrático, em que a liberdade de expressão é um ponto inegociável. Mas não deixa de ser também um país em que o poder e os poderes se organizam e se mascaram rapidamente. Mesmo na América, os escritores precisam estar atentos a esse ocultamento. E podem fazer suas denúncias por meio não apenas de análises e libelos, mas da ficção.

ÉPOCA – Em que medida o jazz e o cinema foram importantes para a definição de seu estilo de escrever?
DeLillo –
 O jazz me ajudou a criar meu próprio método de escrita espontânea, assim como inspirou Jack Kerouac e Julio Cortázar. Sou fã de jazz, já frequentei muitos clubes do gênero em Nova York, embora hoje eu esteja mais recluso. Jazzistas como Thelonious Monk, Charlie Parker e John Coltrane me ensinaram que os temas podem surgir da improvisação e do acaso. O jazz, assim como o cinema de arte, me indicou que o caminho do romance popular pode ser também a grande arte, e que ser romancista não significa rebaixar os temas ou banalizar as histórias.

ÉPOCA – O senhor esteve no Brasil em 2003. Pretende voltar?
DeLillo –
 Eu gostaria, mas acho que não voltarei tão cedo. Estou no meio de um romance que consome todo meu tempo. Adorei participar da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Desde então, minha mulher (a designer Barbara Bennett) vai ao Brasil. Ela participa de um grupo de observadores de pássaros, com o romancista Jonathan Franzen. Devem ir no fim do ano. Não vou porque esse pessoal não tolera intrometidos! Eu provavelmente os atrapalharia com minhas observações e com minha vontade de ficar isolado.