Dezembro 2013
[PERIÓDICO CIENTÍFICO OUTRAS PALAVRAS]
Aparência e Prestígio: a civilidade na corte de Luís XIV
(1643 – 1715)
Marcos Maciel de Sousa Rocha
Resumo
O presente artigo procura compreender a questão da aparência e do prestígio na corte de Luís
XIV (1643-1715), buscando relacionar o comportamento, as novas formas de vestir, falar,
comer com o conceito de civilidade na França dos séculos XVII e XVIII com as relações de
poder. Busquei ainda fazer uma análise da atitude absolutista do Rei Sol com a imagem
simbólica que este construiu de si mesmo e de sua corte. Para tal intento utilizei, sobretudo,
as obras de Peter Burke, A fabricação do rei e as de Norbert Elias, A sociedade de corte e O
processo civilizador. Tais investigações foram fundamentais para a compreensão de meu
objeto de pesquisa. Norbert Elias porque mostra como a etiqueta, o luxo e as demonstrações
de riqueza foram fundamentais para a manutenção do poder do monarca e para a consolidação
do Antigo Regime francês. Já Peter Burke reflete como a propaganda de si mesmo foi uma
estratégia utilizada por Luís XIV como meio de assegurar a submissão ou o assentimento da
nobreza e de seus vassalos ao seu poder. Com Luís XIV, a glória, o prestígio e a grandeza se
transformaram em imagens que garantiram a estabilidade do reino e contribuíram para sua
permanência no poder.
Palavras-chave: Aparência. Prestígio. Absolutismo. Sociedade de corte. Luís xiv.
1. Introdução
Este estudo apresenta representações sobre civilidade presentes na corte de Luís XIV (16431715), a partir da relação entre a mentalidade da época, os conceitos de aparência e prestígio
como elementos fundamentais para a manutenção do poder do rei e da nobreza na sociedade
francesa da época. No período moderno, o prestígio e a aparência foram elementos
importantes na construção de uma nova forma de se comportar e ver o mundo. A análise da
etiqueta e das cerimônias realizadas durante o governo do “rei sol” são fundamentais para se
entender a construção de idéias sobre o que é ser civilizado e incivilizado durante o reinado de
Luís XIV, além da permanência da monarquia absolutista na França.
O foco desse trabalho é entender como se deu o “processo civilizador” na França nos séculos
XVII e XVIII e como este permitiu a diferenciação social da aristocracia com relação à plebe
e contribuiu para a consolidação da supremacia da nobreza cortesã e sobretudo da monarquia,
representada na época por Luís XIV. Para tanto, torna-se relevante versar sobre etiqueta como
símbolo de distinção e poder de determinados grupos sociais que se afirmam como diferentes
e, por isso mesmo, superiores. Embora não seja o foco principal do trabalho, alguns trechos
do filme Maria Antonieta, de Sofia Coppola servirão de exemplos de como a nobreza forja
sua identidade por meio do prestígio e da aparência.
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A referida investigação terá como principal norteamento teórico os livros O processo
civilizador, volume I e A sociedade de corte, ambos de Norbert Elias, e ainda a obra A
fabricação do rei, de Peter Burke. Elias é importante por trabalhar o conceito de civilização
em suas obras. Segundo o autor, “os termos “civilizado” e “incivil” não constituem uma
antítese do tipo existente entre o “bem” e o “mal”, mas representam, sim, fases de um
desenvolvimento que, além do mais, ainda continua”1. O autor mostra ainda que o processo
civilizador foi pautado na definição do que é correto e incorreto, decoroso e indecoroso e do
que é refinado e rude. E nesse sentido, o rei sol foi um emblema de luxo, de riqueza, de poder
e de civilidade.
A relevância deste trabalho consiste em contribuir para o entendimento do “processo
civilizador” que procurou padronizar o comportamento de uma sociedade, impondo novas
regras de comportamento que todos “os extratos sociais superiores” deveriam seguir para se
fazer respeitados e se manterem no poder. Este assunto é bastante atual, estando presente em
nossa sociedade como denota os editorias de Glória Kalil divulgados semanalmente em seu
site chamado Chic2. Kalil é jornalista, empresária, consultora de moda e de comportamento.
Seus editorias são muito lidos e atingem um público cada vez maior que se interessa por se
vestir bem, em saber se comportar em várias ocasiões, família, trabalho, lazer, etc. A imagem,
nesse sentido, é essencial para a criação de uma diferenciação entre aqueles que querem ter
sucesso e ser bem-sucedidos, economicamente e politicamente, dos que estão excluídos desse
universo, e por isso mesmo, considerados subalternos.
Além desse aspecto, o estudo de Luís XIV se mostra ainda contemporâneo e contribuiu para a
compreensão dos comportamentos atuais, pois, ainda hoje como ocorria no século XVII e
XVIII, a elite/burguesia tenta se diferenciar da classe baixa, a partir de determinados gestos e
comportamentos e os considerados inferiores tentam, em contrapartida, se inserirem
socialmente copiando-os.
2. Aspectos bibliográficos: a vida de Luís XIV
(Retrato de Luís XIV, de Hyacinthe Rigaud, óleo sobre tela, 1700, Louvre, Paris)
1
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
vol. I, p. 73.
2
Disponível em: chic.ig.com.br. Acessado em 01.04.2008.
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Luís XIV, também conhecido como “rei sol” - o rei elegera para uma festa o sol como
emblema e, a partir daí, começaram a chamá-lo o Rei-Sol3 - foi um dos monarcas mais
importantes tanto da história européia, quanto particularmente do absolutismo. É considerado
o maior monarca absolutista da França, além de ser um soberano que se tornou um referencial
de rei e de civilidade para toda Europa da época.
(O rei trajado como Sol, no Balé da Noite, em 1653)
Filho de Luís XIII e de Ana da Áustria, Luís XIV nasceu no dia 5 de setembro de 1638 em
Saint-Geramin-en-Laye, na França. Seu nascimento foi considerado um milagre, pois sua mãe
levou quase 23 anos para gerá-lo, demora esta, que acarretou suspeitas, tanto entre os
contemporâneos de Luís XIV, quanto entre os pesquisadores de sua história. Para eles, Luís
XIV não seria filho biológico de Luís XIII. Porém, independente dessas suposições, Luís XIV
foi reconhecido primogênito e herdeiro de Luís XIII. Devido às circunstâncias do seu
nascimento, Luís XIV foi denominado de Luís doado por Deus. Recebendo além do
tradicional título de Delfim, o de Premier Fils de France (Primogênito da França).
Com a morte do seu pai, Luís XIV, na época, com quatro anos de idade, se tornou o herdeiro
legítimo do trono francês. A princípio, por causa da sua menoridade, não pode assumir o
comando geral do trono e a rainha Ana da Áustria foi eleita regente, mas, entretanto,
transferiu seu poder de Estado para o cardeal Giuliano Mazarin. O período de regência
exercido pela mãe de Luís terminou oficialmente em 1651, quando ele tinha 14 anos. Luís
assumiu o trono, mas Mazarino continuou a controlar os assuntos de Estado até 1661.
Foi um período de revoltas internas. Durante a regência do cardeal, ocorreu um movimento
denominado Fronda (1648-52), organizado pelo Parlamento de Paris no qual defendia
restrições ao poder absoluto do rei, pois “não se considerava, contudo, que [ele] estivesse
acima da lei divina, da lei da natureza ou da lei das nações. Não se esperava que exercesse
completo controle sobre a vida de seus súditos.”4 Para Perry Anderson,
Sob certos aspectos, a Fronda pode ser considerada como uma alta “crista”
da onda prolongada de revoltas populares, na qual, por um breve espaço de
tempo, setores da alta nobreza, da magistratura detentora de cargos e da
3
GRIMBERG, Carl. História Universal: o século de Luís XIV. Chile: L.D.A, 1989. v.17. p. 05.
BURKE, Peter. A fabricação do rei – a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1994, p. 52.
4
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burguesia municipal lançaram mão do descontentamento das massas para
seus próprios fins, contra o Estado absolutista5.
A Fronda foi organizada principalmente para limitar as ações do absolutismo. Grandes
senhores, burgueses, parlamentares eram adversos a centralização de poder do rei. Todavia, a
Fronda terá a duração de quatro anos e nesse tempo a família real ficará longe de Paris e dos
protestos que ocorriam naqueles instantes contra a corte. Mas, “Mazarino conhecia
maravilhosamente a arte de dividir os seus adversários, depois de negociar com cada um deles
e lançá-los uns contra os outros. Foi assim que pôde abater a Fronda.”6
No exterior, foi um período de tratados de paz destinados a manter o equilíbrio europeu
(Vestefália 1648, Tratado dos Pireneus com a Espanha, 1659). Em virtude deste último casase com a infanta Maria Teresa, filha de Filipe IV da Espanha. Neste critério matrimonial havia
a necessidade de criar um laço de amizade com os Hasburgos, dentre outros interesses, que
seria selado por meio desse casamento. Conforme Carl Grimberg: Com este matrimônio,
embora Maria Teresa tenha renunciado a todo direito sobre a coroa espanhola, abria-se, para o
governo francês, a possibilidade de intervir na Espanha7.
Entretanto, Luís XIV começa a reinar pessoalmente em 1661, aos vinte e três anos.
Convencido de que a monarquia emanava de um direito divino ele se torna a encarnação do
absolutismo. Dissolve os conselhos e cria os ministérios, os quais controla pessoalmente,
zelando, por todos os meios que pode pela defesa da integridade do poder absoluto [pouvoir
absolu] da monarquia. Porém, como sublinha Burke, “isso não significava, é claro, que o rei
governasse sem orientação ou auxílio. Entre seus auxiliares, a figura mais importante foi
Colbert.”8
Foi com a morte do cardeal Mazarino no ano de 1661, que Luís XIV controlou sozinho seu
reinado. Por exercer todos os mecanismos do Estado, torna-se um referencial de monarquia
absolutista. “Uma vez reunidas num único governante a autoridade real e a capacidade
executiva, todo o potencial político do absolutismo francês realizou-se rapidamente”.9 O
absolutismo de Luís XIV se expandiu em diversos setores, entre eles, o administrativo,
econômico e cultural.
Jean Baptiste Colbert auxiliou o “rei sol” a desenvolver como superintendente das edificações
reais o seu império de glória. Luís XIV foi um rei extremamente habilidoso tanto nas relações
diplomáticas com outros países, quanto na organização interna do reino. Tinha ao seu lado
homens considerados excelentes administradores como Colbert que foi considerado o grande
mentor econômico da França entre os anos de 1660 e 1683. A reforma do sistema tributário
realizado por Colbert foi fundamental para o crescimento e prosperidade da indústria e do
comércio. “Foi dele a idéia de lançar o primeiro jornal de moda, o Mercure Galant, para fazer
com que as roupas parisienses ficassem conhecidas e fossem cobiçadas em toda a Europa.”10
5
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995. p. 97-98.
GRIMBERG, Carl. Op. cit., p.37.
7
Ibidem, p. 03.
8
BURKE, Peter. Op. cit., p. 61.
9
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 99.
10
CARELLI, Gabriela. O inventor do luxo. Revista Veja. São Paulo. Disponível
<http://veja.abril.com.br/310805/p_110.html>. Acesso em: 24/03/2008.
6
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Além disso, a França se tornou, juntamente com a Inglaterra, um dos países mais poderosos
da época com um grande comércio colonial e uma frota importante.
Colbert foi uma grande personalidade dentro do reinado de Luís XIV, marcado por sua
lealdade aos seus serviços para com o rei. Durante vários anos a política fiscal de Colbert
produziu excelentes resultados. Luís XIV se transformou no soberano mais rico da Europa.
“(...) Colbert sonhava em fazer da França a primeira potência econômica do mundo.”11
O ministro da guerra de Luís XIV, Louvois é também uma peça importante para o
desenvolvimento da França no século XVII, pois corroborou, no plano militar, com a política
imperialista do “rei sol”. Fez do exército francês o mais numeroso e o melhor da Europa, na
época. Louvois contribuiu na construção do conselho de Luís XIV que se torna o corpo
exclusivo e supremo do Estado, “Luís e seus ministros deram atenção a todo o sistema de
comunicação (...)”.12
No entanto, após a morte de Colbert em 1683, “(...) o rei permitiu a Louvois comprar o cargo
(de Colbert) e assumir assim o controle não só das construções reais como também dos
Gobelins e das academias.”13
Uma das grandes e mais importantes criações de Luís XIV foi a construção do Palácio de
Versailles em 1664, o que fez com que o monarca conquistasse mais prestígio por toda
Europa, pois Versailles representava imensa riqueza e poder, além de ter sido crucial para a
organização da vida cortesã segundo um modelo de vida baseado no prestígio e na etiqueta
que todos os descendentes de Luís XIV seguiram, servindo inclusive de exemplo para
inúmeros outros monarcas europeus. Em Versailles se desenvolveu intensamente as letras e as
artes, o que fez com o período do “rei sol” fosse considerado a idade de ouro da cultura
francesa, criando uma forma própria de ser e se comportar copiada por toda a Europa desde a
Rússia até Portugal. De acordo com Burke:
Versailles, por exemplo, serviu como um cenário para a ostentação de seu
poder. O acesso ao monarca era cuidadosamente controlado e comportava
uma série de etapas. Os visitantes passavam de pátios externos a pátios
internos, subiam escadas, esperavam em antecâmaras etc., antes que lhes
fosse permitido vislumbrar o rei14.
Buscando concentrar seu poder Luís XIV, junto com seus conselheiros, procuraram formas e
recursos para a expansão do seu reino e para a exaltação de sua imagem. Nesse sentido, a
construção do Palácio de Versailles contribuía para o triunfo da magnificência do soberano.
Assim, os relacionamentos amorosos de Luís XIV era algo cuidadosamente controlado por ele
e seus assessores após seu primeiro casamento. O monarca tentava não expor sua vida
amorosa para toda sociedade, por conseqüência, seu segundo casamento com Madame de
Maitenon e seus relacionamentos com suas amantes eram vividos nas interdependências mais
íntimas e secretas do Palácio de Versailles, sendo apenas presenciado e registrado por seus
camareiros.
11
GRIMBERG, Carl. Op. cit., p. 09.
BURKE, Peter. Op. cit., p. 19.
13
Ibidem, Op. Cit. p.103.
14
BURKE, Peter. Op. cit., p. 19.
12
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Desde os quatro anos de Idade, Luís XIV já era retratado em pinturas vergando o manto real
de maneira majestosa. Porém, essa sua primeira representação é parte de centenas de outras
que foram produzidas durante os seus 72 anos de reinado. Além das pinturas havia também
outras formas de rituais pelas quais o rei apresentava sua imagem ao seu povo, como a
etiqueta, as medalhas, as alcatifas, as roupas e as figuras inteiras esculpidas em pleno relevo
que consolidava sua imagem publicamente como um monarca grandioso: um mito.
Essas apresentações e rituais praticados por Luís XIV e toda sua corte foi consolidado por
meio de uma estrutura rigorosa de simbolismos que por sua vez estava vinculado, ao
prestígio, ao status e à etiqueta. Sua morte, em primeiro de setembro do ano 1715, ocorreu em
meio a uma sublime cerimônia. Foi um “triunfo” dentro do ambiente de Versailles e teve a
participação de todos os que lhe admiravam e lhe prestigiavam. O “rei sol” deixou seu trono
para o seu filho primogênito e herdeiro Luís XV. Na memória e na materialidade o grande rei
absolutista foi estampado por toda a França e deixou sua marca concretizada nas palavras:
L’État c’est moi (O Estado sou eu).
3. O Cenário Francês dos séculos XVII-XVIII
Para um melhor entendimento da estrutura e do comportamento adotado na corte de Luís XIV
é necessário retornamos há alguns eventos que antecederam o seu reinado e que foram
marcantes para a construção da Idade Moderna e, consequentemente, para a formação do
contexto histórico no qual o reinado de Luís XIV foi gestado.
Dentre os diversos fatores que contribuíram para o fortalecimento do governo absolutista de
Luís XIV, destacam-se: o Renascimento, a difusão do capitalismo e a Reforma Protestante.
Elementos esses, que assumiram posições e características próprias na França, e são através
destes que ocorre uma maior concentração de poder no reinado deste monarca. Segundo Perry
Anderson, “a história da construção do absolutismo francês seria a de um progresso
“convulsivo” em direção ao Estado monárquico centralizado (...)”15
O renascimento é importante para o entendimento do sistema e da imagem do reinado de Luís
XIV pois, a construção do império desse rei foi fortemente marcado pelo o Renascimento.
Para Burke; “Os artistas e escritores que trabalharam para Luís XIV eram grandes
admiradores da Itália Renascentista”.16 Tal período é também relevante para o
estabelecimento de diferenças entre a aristocracia e a massa circundante no que se refere ao
comportamento à mesa, dos costumes, de higiene, de letramento, etc. É nesse momento, que
na Idade Moderna, ocorrem distinções de comportamento que fixam contrastes e separações
entre as camadas sociais e sua formação cultural. Nesse trajeto desenvolve-se a imagem do
“homem civilizado” que foi apropriada e desenvolvida em maior grau no reino de Luís XIV.
Outra questão essencial para se compreender o reinado de Luís XIV é a formação do
capitalismo que causou profundas transformações, pois é nesse espaço que a classe burguesa
surge e começa a conquistar posições econômicas, destacando-se como um grupo social que
buscou enriquecimento, dentre outros meios, através do conhecimento cultural. Esse
15
16
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 85.
BURKE, Peter. Op. cit., p. 201.
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desenvolvimento econômico foi um dos fatores do fortalecimento da realeza na França e que
contribuirá para o absolutismo régio.
O protestantismo é importante na medida em que o surgimento dessa nova religião e sua
disputa por fiéis e áreas de influências com a Igreja católica dividiu a Europa e criou guerras
religiosas em diversos países, dentre eles a França. As Guerras Religiosas que penduraram na
França criou momentos difíceis para a monarquia, inclusive para o reinado de Luís XIV.
Dentre estes cabe ressaltar a revogação do Edito de Nantes que desembocou na expulsão dada
pelo rei a cerca de 200 mil franceses protestantes da França. No plano religioso, no qual
envolvia guerras, o autor Carl Grimberg explica que: “Para Luís XIV a guerra era um meio
necessário e licito nas relações internacionais.”17
O mercantilismo também é um fator importante para a construção do poder absoluto durante o
reinado de Luís XIV. Este sistema econômico era fundado na idéia de que os lucros de um
país se desenvolviam vendendo muito para outros países e comprando pouco dos mesmos.
Por causa desse ideal de economia a França desenvolve o seu colonialismo na tentativa de
enriquecer ainda mais o poder do Estado.
4. Sociedade de Corte e civilidade no reinado de Luís XIV
(Ilustração de Pierre Patel, Vue Du Château et des Jardins de Versailles, prise de l’ Avenue de Paris, 1668)
A sociedade de Corte do reinado de Luís XIV reforçava o seu absolutismo e estabelecia entre
seus súditos a hierarquia social. A formação social se dava pelas posições de grupos, onde os
mesmos buscavam sinais, códigos, aparências, prestígios e honras para a diferenciação do
comportamento da classe dominante para com a classe em ascensão e a grande massa. Nesse
sentido, na corte a etiqueta era ferramenta de distinção social. Segundo Norbert Elias, “a corte
desempenha aí o papel central, uma vez que organizava o conjunto das relações sociais, (...),
portanto, é compreender a sociedade do Ancien Régime a partir da formação social que pode
qualificá-la: a corte.”18
17
GRIMBERG, Carl. Op. cit., p. 7.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte: investigação sobre a realeza e a aristocracia da corte. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001. p. 08.
18
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Deste modo, as mudanças de comportamento nas maneiras e nas estruturas do ambiente
colaboravam com a formação e aparência da “boa sociedade”. A classe aristocrática cortesã
tinha na arquitetura das suas residências a representação simbólica da superioridade de seu
poder e de seus privilégios. A partir da aparência que possuía as residências nobres da época,
esta já definia o grupo do qual esses indivíduos pertenciam. Este elemento estético foi
fundamental para que a corte de Luís XIV fosse copiada pelas outras cortes européias e
também internamente na França pelas classes médias e pela massa populacional que
buscavam seguir o mesmo padrão praticado na Corte. Tais indivíduos eram modelos de
civilidade. Elias explica que:
Para o grand seigneur, a aparência física da casa no espaço é um símbolo da
posição, da importância, do nível de sua “casa” no tempo, ou seja, de sua
estirpe no decorrer das gerações, com isso simbolizando também a posição e
a importância que ele mesmo possui como representante vivo da casa19.
A questão da ascendência familiar é importante para marcar o lugar social desses nobres
dentro da Corte. Por exemplo, o filho do ministro já era reconhecido pela sua história familiar.
Por essa razão, vai sempre se buscar conservar a tradição das famílias durante as sucessivas
gerações. Nesse sentido, a memória familiar deveria ser sempre mantida como instrumento de
poder e reconhecimento social. No decorrer da ampliação da corte em Versailles, a ordem
hierárquica das famílias e o local que estas ocupavam na Corte definiam a sua posição na
sociedade. A posição geográfica de aproximação ou afastamento da residência dos nobres
diante do rei sol mostrava a intensidade do prestígio que esta tinha dentro da escala social do
reino.
Uma ordem hierárquica, que podia ser muito ou pouco rígida, e uma etiqueta rigorosa os
ligavam entre si. A necessidade de se impor e de se manter dentro de tal figuração conferia a
todos eles uma marca característica, justamente o cunho do cortesão20.
As habitações da nobreza cortesã chamadas de “hôtel” ou “palais” eram distribuídas conforme
a categoria do proprietário e a partir do tamanho de sua honra. Assim, residir no hôtel era
símbolo de poder e honra. A proximidade da nobreza ao rei facilitava o seu domínio e
persuasão por parte do monarca. Desse modo cria-se uma interdependência entre a nobreza
cortesã e o soberano. De acordo com Elias,
(...) os hôtels, mostram de uma forma bastante clara e simples as
necessidades sociologicamente relevantes nessa sociedade em termos de
habitação, necessidades que, multiplicadas, articuladas entre si, complicadas
pelas funções do palácio real, que deve acomodar a sociedade como um
todo21.
Além disso, é importante ressaltar que dentro das próprias moradias havia padrões de
comportamento que distinguiam os proprietários dos seus criados (bassers cours). Segundo
Elias,
Os cortesãos desenvolvem, no âmbito de determinada tradição, uma
sensibilidade extraordinariamente refinada para as posturas, a fala e o
19
Ibidem, p. 75.
Ibidem, p. 61.
21
Ibidem, p. 68.
20
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comportamento que convêm ou não a um indivíduo segundo sua posição e
seu valor na sociedade. Dedica-se uma atenção extrema a cada manifestação
da vida de uma pessoa, portanto também à sua casa, para verificar se está
respeitando sua posição dentro dos limites tradicionais impostos pela
hierarquia social22.
A formalidade desenvolvida dentro das habitações dos nobres era decorrente do sistema
simbólico operacional dentro dos recintos do rei. Os aristocratas em todo o processo de
civilidade desejavam e tentavam aparentar solidez, conforto e a suntuosidade econômica de
suas moradias. Por isso, a estética das suas residências era um parâmetro de sociabilidade
ideal para a mentalidade da época.
A imagem dos costumes desenvolvidos por Luís XIV era modelo máximo para toda a
sociedade de corte, pois ele transmitia sinal de glória, o glamour, o luxo e o bem-estar,
condições sempre perseguidas por todos a sua volta. De acordo com Peter Burke: “a vida
diária do rei compunha-se de ações que não eram simplesmente recorrentes, mas carregadas
de sentido simbólico, porque eram desempenhadas em público por um ator cuja pessoa era
sagrada.”23
O objetivo dos nobres era tentar assimilar-se ou estar próximo aos costumes da vida de Luís
XIV. Como demonstra Renato Janine:
(...) Luís XIV, o rei que é personagem principal em qualquer história da
etiqueta, manda recensear os seus fidalgos e expurgar os falsos, um dos
critérios de nobreza é uma família manter, desde três gerações ou um século,
padrão de vida nobre. (...) O que funda a qualidade de nobre é um estilo de
vida, desde que reconhecido por longo tempo. Nada, por sinal, mais barroco:
o ser de um homem se confunde com sua aparência. Quem age como nobre é
nobre. (...) porém, é que pelas boas maneiras não é possível discernir com
precisão os graus da sociedade: elas marcam apenas uma ruptura, entre o
refinamento e a rudeza. Além disso, como são fáceis de copiar, as fronteiras
se apagam24.
Por isso, não apenas as boas maneiras deveriam ser cultivadas dentro da corte, mas também a
forma de vestir ou de habitar deveria ser compatível com o status do sujeito nessa sociedade.
Assim, a nobreza cortesã almeja cada vez mais conquistar posições dentro da corte, pois
quanto maior o cargo ocupado, maior à graduação social existente na época, e maior também
o privilégio que dava sentido e valor a vida dos participantes da corte. Por isso, havia muitas
tensões entre a nobreza pelo poder, cargos e títulos, ocasionando uma constante competição.
No entanto, a disputa não poderia resvalar para a incivilidade. Todavia, o controle das
emoções era vital, pois o descontrole significava inferioridade na sociedade de corte. Havia
um cuidado minucioso para não exagerar na exposição das suas emoções, como por exemplo,
nem ser amistoso demais com alguém ou, pelo contrário, hostil. Deve-se assim, procurar
sempre um certo equilíbrio. Como destaca Elias,
22
Ibidem, p. 77.
BURKE, Peter. Op. cit., p. 101.
24
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no antigo regime. São Paulo: Editora Moderna, 1998, p. 13.
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Nesse caso, era indispensável ajustar constantemente e com precisão seu
comportamento em relação a qualquer um na corte. O comportamento que os
cortesãos consideravam conveniente a respeito de alguém era, tanto para si
como para todos os observadores, uma indicação exata de seus status
momentâneo segundo a opinião social25.
Nesse campo de poder e prestígio que significava a corte de Luís XIV era fundamental os
rituais e cerimônias, pois estes também eram marco da distinção social. Para cada espaço da
corte havia seu significado e a sua ostentação inerente a uma determinada categoria. Por
exemplo, as antecâmaras eram voltadas para as atividades domésticas que estavam localizadas
em frente aos quartos dos cortesãos. As antecâmaras que abrigavam os serviçais ficavam
próximas aos quartos dos nobres, porque isso era algo imposto por Luís XIV que queria
oferecer aqueles que pertenciam à aristocracia cortesã conforto semelhante ao que ele possuía.
Elias frisa que:
(...) assim, a disposição dos aposentos, que prevê no mínimo uma
antecâmara para cada quarto dos senhores da casa, é uma expressão dessa
simultaneidade de constante aproximação espacial e constante
distanciamento social, de contato íntimo num nível e distanciamento rígido
no outro26.
Nessa perspectiva, nos círculos sociais vai se formando o ideal de civilisation, pautado na
busca pelos modelos de boas maneiras, de etiqueta e de cerimonial, que eram concebidos
como instrumentos que serviam para selecionar os posicionamentos dos nobres diante do rei
em suas dependências. Para o desenvolvimento desse processo de civilidade na corte, os
manuais (tratados) de boas maneiras serviam para ensinar/orientar os nobres de como se
comportar nas principais situações sociais. Rubem Queiroz descreve a importância desses
manuais:
A Enciclopédia Larousse (1926) informa, sob o verbete civilité, que Erasmo
de Roterdã, notável intelectual holandês do século XVI, se preocupava em
fazer que seus educandos assimilassem desde criança, normas fundamentais
de Boas-maneiras. Ele escreveu, para o jovem príncipe Henrique de
Borgonha, filho de Adolfo, príncipe de Veere, na Holanda, o De civilitate
morum puerilium (Da civilidade dos costumes das crianças), um pequeno
livro de Boas-maneiras publicado em 1530, muito procurado e lido na Época
Moderna27.
Este importante tratado de Erasmo de Rotterdam, conforme assinala Elias: “o livro de Erasmo
trata de um assunto muito simples: o comportamento de pessoas em sociedade –– e acima de
tudo, embora não exclusivamente, do decoro corporal externo”.28
Além de Erasmo de Rotterdam outros pensadores escreveram manuais sobre etiqueta, dentre
eles, Tannhäuser (século XIII), Giovanni della Casa (século XVI) e Courtin (século XVII),
25
ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte. Op. cit., p. 108.
Ibidem, p. 71.
27
COBRA, Rubem Queiroz. Boas-maneiras, etiqueta e cerimonial: suas definições e seu lugar na
filosofia.Brasília: Editora Valci Ltda, 2002. p. 06.
28
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1994. vol. I. p. 69.
26
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todos fundamentais para delimitar o comportamento da sociedade de corte e dos padrões de
vida de toda sociedade ocidental.
Todos na corte de Luís XIV seguiam regras bem precisas como, por exemplo, uma série de
rituais decorrentes das cerimônias litúrgicas. Esses rituais de cunho religioso eram realizados
em todas as partes de Versailles e visavam, dentre outros motivos, a obtenção do domínio do
rei sobre todas as classes. Essa ritualidade cria também códigos de etiqueta que visam o
distanciamento entre a aristocracia e as camadas sociais inferiores. Segundo Renato Janine:
O homem da etiqueta não é apenas uma pessoa bem-educada. É alguém que
expressa seus costumes de modo a tributar e obter prestígio. As maneiras
servem à circulação, a atribuição do respeito; permitem valorizar os
poderosos, venerá-los; a etiqueta só se compreende a partir de uma estratégia
política29.
É por meio do governo de Luís XIV e de sua corte que a etiqueta encontrava- se no seu
apogeu, sendo através da mesma que o soberano transforma o cotidiano da corte, desde o seu
levantar até o seu deitar. Tais rituais por parte do rei objetivavam o entrelaçamento entre ele e
seus súditos por meio de valores recíprocos entre eles, pois os aristocratas visavam à
sofisticação da corte.
O levantar do rei era um espetáculo aos olhos de quem o assistia. Segundo Renato Janaine:
“na Europa, em que até nobres não sabiam escrever, ver era experiência das mais importantes:
o poder, o prestígio deviam saltar aos olhos. E o apogeu desta exibição foi o espetáculo da
corte de Luís XIV, ordenado segundo a etiqueta mais minuciosa.” 30
Como demonstra Schwarcz,
Senhor de um ritual cujo controle é por princípio impecável, o monarca
transforma seu exercício diário numa grande dramatização, equilibrando-se
no poder por meio da concessão alargada e programada de títulos, medalhas
e privilégios. Dádivas que carregam a imagem do líder, esses rituais de
consagração da monarquia acabam ajudando a cultuar e estender a própria
personalidade do rei, que dessa forma paira muito acima de seus súditos31.
O quarto de Luís XIV é o principal cenário do qual todos os outros derivam. É uma espécie de
ponto de partida para a prática solene das cerimônias na corte, sendo carregado de códigos e
símbolos de etiqueta. O seu quarto servia para a ostentação do seu poder e coerção para com
os grupos dominados. Luís XIV era acordado pelo seu primeiro criado de quarto que ficava
próximo a sua cama. Todo o ritual seguia regras bem precisas. A seqüência dos grupos
visitantes, como família, ministros e etc, no quarto do monarca se dava por seis entradas. Elias
relata que:
Havia seis grupos diferentes de pessoas com permissão para entrar, um após
outro. Falava-se então das diversas “entrées”. Primeiro vinha a “entrée
familière”. Faziam parte dela sobre tudo os filhos legítimos e os netos do rei
29
RIBEIRO, Renato Janine. Op. cit., p. 15.
Ibidem, p. 06.
31
SCHWARCZ, Lilia Moritz. In: Revista de Antropologia, volume 43, número 1, São Paulo, 2000. Disponível
em: Scielo.com.br. Acessado em 25.05.2008.
30
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(...), príncipes e princesas de sangue, o primeiro médico (...) Depois vinha a
“grande entrée”, reservada (...) aos senhores da nobreza a quem o rei
concedera essa honra. Seguia-se então a “première entrée”, para os leitores
do rei, intendentes para divertimentos e festividades, entre outros. Em
seguida havia uma quarta, a “entrée de la chambre”, que compreendia todos
os restantes (...), os ministros e secretários oficiais (...), os oficiais da guarda
pessoal, os marechais de França e assim por diante. (...) Finalmente, havia
ainda um sexto tipo de entrada, que era o mais disputado. (...) Era uma
entrée aberta para os filhos do rei, incluindo também os ilegítimos, e mais
suas famílias e os genros (...)32
Tal situação é mostrada no filme Maria Antonieta de 2006, dirigido por Sofia Coppola. Há
uma cena na qual a princesa Austríaca, personagem da atriz Kirsten Dunst, chega a classificar
o momento no qual os grupos entram em seu quarto para acompanhar a sua troca de roupa
como ridículo. No entanto, apesar da opinião da princesa no filme de Coppola, esse ritual era
importantíssimo para a exaltação do poder do rei. Como lembra Janine, “os gestos mais
triviais adquirem uma importância que, somada ao fascínio que exercem, serve a organizar a
hierarquia da corte.”33
Conforme Lilia Schwarcz,
Elaborada tal qual um grande teatro, um teatro do Estado, a atuação do rei se
transforma em performance; os seus trajes viram fantasia. Na verdade,
esculpida de maneira cuidadosa, a figura do rei corresponde aos quesitos
estéticos necessários à construção da "coisa pública". Saltos altos para
garantir um olhar acima dos demais, perucas logo ao levantar, vestes
magníficas mesmo nos locais da intimidade; enfim, trata-se de projetar a
imagem de um homem público, caracterizado pela ausência de espaços
privados de convivência. Tal qual um evento multimídia, o rei estará
presente em todos os lugares, será cantado em verso e prosa, retratado nos
afrescos e alegorias, recriado como um Deus nas estátuas e tapeçarias34.
Além do cerimonial no quarto, os rituais que envolviam o momento de refeição também são
essenciais como símbolo de civilidade durante o reinado de Luís XIV. As ações de como se
portar diante da mesa era mais um atributo da etiqueta que consistia numa auto-apresentação
da sociedade de corte como modelo de civilidade. Nessa perspectiva, o uso dos talheres, a
carne ou a sopa que eram servidas emanavam significado simbólico. A carne que se comia,
por exemplo, explicitava a posição social do indivíduo e o destrinchar da carne era primordial
para a elegância do degustar da carne. “O ato de comer adquirira um novo estilo,
correspondendo às novas necessidades da vida social.” 35
Um exemplo de como os modelos da corte francesa eram seguidos é o caso da classe
burguesa que tentava por meio do consumo da carne e das vestes que usava, uma forma de
aproximação do estilo de vida da classe nobiliárquica. No entanto, havia impedimentos para
essa aproximação, pois, por exemplo, no caso da vestimenta, “a seda é reservada aos nobres, a
32
ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte. Op. cit., p. 101.
RIBEIRO, Renato Janine. Op. cit., p. 45.
34
SCHWARCZ, Lilia Moritz. In: Revista de Antropologia, volume 43, número 1, São Paulo, 2000. Disponível
em: Scielo.com.br. Acessado em 25.05.2008.
35
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Op. cit., vol. I. p. 69.
33
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camisa, geralmente preta, aos burgueses, a sarja, o algodão e o linho aos cortesãos, fora de
quaisquer considerações econômicas.” 36
A forma de se vestir e da etiqueta no andar, falar, comer, etc era vista na época como moda,
pois alcançava vários mecanismos sociais que davam prestígio e poder ao indivíduo. O
modismo manifestava-se também pela forma de falar. Refletindo sobre esse tema Janine
assevera que: “(...) a corte francesa decide passar a pronunciar o ditongo oi como “oá”, em
vez de “ué”; a nova maneira que terminou prevalecendo, durante muito tempo serviu de
distintivo ante os falares campônios e burgueses.”37
A língua francesa foi fluente em diversos países e reinos europeus, pois era considerada como
uma língua primordial para comunicação entre os países daquela época. Na polidez da fala era
transmitida a civilidade e a distinção no ato de dirigir-se há alguém. “Os que “trazem
qualidade de honra” fazem seu nome preceder de uma forma de tratamento (diferença entre o
“seu” fulano e o conhecido fulano) ou de epíteto (honorável homem, pessoa honesta...).”38
Portanto, a descrição, a reserva eram fundamentais no trato com as pessoas.
De fato todos esses modos e padrões descritos e analisados nesse trabalho serviram como uma
estratégia minuciosa para construir, na mentalidade dos indivíduos da sociedade francesa do
reinado de Luís XIV, critérios de distinção de classe. Além disso, visava separar e submeter à
subalternidade as classes dominadas e preservar apenas para a nobreza os conceitos e o estilo
da corte, como explica Elias.
(...) a hierarquia dos privilégios foi criada segundo os parâmetros da etiqueta,
esta passou a ser mantida apenas pela competição dos indivíduos envolvidos
em tal dinâmica, privilegiados por ela e compreensivelmente preocupados
em preservar cada um dos seus pequenos privilégios e o poder que eles
conferiam39.
Exemplo do exercício e da manipulação simbólica do poder, a realeza de Luís XIV evidencia,
com sua etiqueta, a importância do ritual na construção da imagem pública. Por este prisma, a
conduta do rei sol era não somente parte de sua auto-afirmação como também da sua
representação social de um monarca esplendoroso. Em outras palavras, seria a afirmação
simbólica da superioridade do rei francês perante toda a sociedade.
Considerações Finais
"o esplendor que envolve o rei é parte capital de sua própria pujança".
Montesquieu
O reinado de Luís XIV se transformou num grande marco da história, por influenciar toda a
Europa na sua época, como por permanecer “vivo” ainda hoje no século XXI. Segundo
Laurent Bourquin, “Dentre todos os personagens que deram origem a biografias, ele segue
36
CORVISIER, André. História moderna. 2ª ed. São Paulo: Difel, 1980, p. 274.
RIBEIRO, Renato Janine. Op. cit., p. 14.
38
CORVISIER, André. Op. cit., p. 274.
39
ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte. Op. cit., p. 103.
37
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sendo um dos que mais vendem, ao lado de Napoleão e De Gaulle40. O rei-sol tinha uma
grande noção do mundo do qual pertencia e consciência da imensa importância do trono que
ocupava, lapidando minuciosamente sua imagem em todos os sentidos. “Luís XIV cuidava
para que sua imagem pessoal refletisse poder em todos os detalhes.”41
Foi o reinado mais longo da história da França. Durante os seus 72 anos de reinado, o rei sol
conseguiu construir representações simbólicas única e exclusivamente adaptadas para o seu
estilo absolutista. “Sua atitude é em geral impassível e imóvel, pose que também simboliza o
poder.”42 Dentro do mundo absolutista, Luís XIV aliou o poder político ao poder simbólico.
Na sua concepção absolutista, o poder deveria está entrelaçado a magnificência e ao luxo, que
ocasionava a sua veneração por parte dos seus súditos e o respeito “ao grande monarca” que
demonstrava ser.
O Palácio de Versailles e toda sociedade de corte que dela participava, era para Luís XIV o
centro do seu sistema absoluto construído, que representava a sua magnificência. “Luís XIV
prezava mais a magnificência que o conforto. (...) Essas formas de magnificência eram apenas
parte de sua personalidade oficial.”43
Nesse sentido, o rei sol conservou o seu poder por meio da construção criteriosa da sua
imagem, sinônimo de luxo e vaidade, manipulando com eficiência a mentalidade da época a
partir do seu estilo pessoal de vestir, se comportar e governar. Conforme Elias,
Em geral se considera sinal de riqueza não assoar o nariz na mão nem na manga, mas no
lenço. Luís XIV foi o primeiro a possuir um suprimento abundante de lenços e, no seu
reinado, o uso dos mesmos generalizou-se, pelo menos nos círculos da corte44.
A etiqueta, os jeitos e trejeitos, as roupas, o comportamento e a civilidade agiam como um
cimento que dava coesão entre o rei e os seus súditos. Fazer prevalecer o glamour, o luxo, a
sofisticação era primordial nos conceitos da corte naquela época. Luís XIV e seus assessores
compreenderam a importância da aparência da corte e todos os mecanismos de cerimônias
adotados nela. Como destaca Carelli:
O apreço do rei pelo luxo não era apenas uma questão de vaidade, mas parte da estratégia de
promoção da França. Um dos aposentos mais famosos do palácio (Vesailles), a sala de
espelhos, saiu de sua imaginação. Há 300 anos, o espelho era uma preciosidade. Alguns
poucos exemplares eram feitos por vidraceiros de Veneza, mas eram pequenos, irregulares e
muito caros. Em 1660, Luís XIV levou a tecnologia dos espelhos para a França e mandou que
produzissem peças em tamanho grande, capazes de cobrir paredes inteiras, próprias para
“enobrecer um ambiente e multiplicar o brilho das superfícies, fazer tudo parecer maior do
que a vida45.
Todo o aparato criado durante o reinado de Luís XIV contribuiu para que o soberano
alcançasse seus objetivos. Como lembra Elias,
40
BOURQUIN, Laurent. Desafios nem sempre vencidos. In: Revista História Viva, Ano III, número 25, p.48.
CARELLI, Gabriela. O inventor do luxo. Op. cit.
42
BURKE, Peter. Op. cit., p. 44.
43
BURKE, Peter. Op. cit., p. 80.
44
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Op. cit., vol. I. p. 152.
45
CARELLI, Gabriela. O inventor do luxo. Op. cit.
41
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O ocupante do trono tem a chance de controlar a mobilidade social de acordo com os
interesses de sua posição, ou simplesmente de acordo com seus próprios interesses e
inclinações. Luís XIV fez isso com grande consciência46.
Entretanto, em face da ostentação, do luxo da corte e de todos os gastos com festas, jantares,
cerimônias e inúmeros eventos culturais, as despesas do Estado cresceram de forma acelerada,
criando uma crise financeira para o reino. Além disso, as intermináveis guerras com outros
países da Europa, como, por exemplo, a guerra contra a Liga de Augsburgo, em 1697,
formada pela Espanha, Inglaterra, Holanda, Suécia e alguns principados alemães, que durou
cerca de dez anos (1688-1697). Nesta guerra, a França abre mão de alguns territórios já
conquistados e por último reconhece Guilherme de Orange como rei da Inglaterra. Outras
batalhas que contribuíram para o ocaso francês foram à luta contra a Espanha que durou cerca
de doze anos (1702-1713) e o conflito com a Inglaterra e Holanda que com a paz assinada em
1713. Com a Paz de Utrecht, a Inglaterra sai vitoriosa neste conflito, fortalecendo seu espaço
territorial e comercial sobre a Espanha. Segundo Burke,
A guerra da Liga de Augsburgo durou de 1688 a 1697 e a Sucessão Espanhola de 1702 a
1713. Foram guerras caras, que deixaram o Estado atolado em dívidas e que, a despeito de
êxitos isolados, especialmente no primeiro caso, pouco acrescentaram à glória do rei. Este foi
tanto o julgamento dos contemporâneos de Luís, franceses e estrangeiros, como o veredicto de
historiadores posteriores47.
Devido aos seus erros estratégicos na política da hegemonia francesa, Luís XIV trouxe para o
seu reinado o declínio por meio de um longo período de guerras sem vitórias, figurando-se, no
final do seu mandato, uma imagem contrária aos dos anos anteriores. Como sublinha
Grimberg,
No começo do seu reinado, Luís XIV foi favorecido pela situação vigente na Europa. A paz
dos Pireneus e da Vestefália tinha deixado a França numa posição vantajosa. Espanha entrara
numa etapa de decadência. A Inglaterra estava superando os efeitos da revolução e a
Alemanha ficara arruinada pela Guerra dos Trinta Anos. No entanto, a expansão imperialista
da França despertou, em toda Europa, uma forte oposição48.
É nesse paradoxo de contrastes que foi o reinado de Luís XIV, que o absolutismo francês
entrou em decadência. Como assevera Anderson, “a reação aristocrática contra o absolutismo
passou com isso à revolução burguesa que o derrubaria.”49
Enfim, independente das ambigüidades do governo do rei-sol, o estudo da sua administração é
riquíssima para compreender o poder que as representações significam e as ligações entre os
rituais, gestos, cerimônias, etc, com determinados valores que justificam a superioridade
social de determinadas pessoas face outras. Além disso, a questão da aparência e do prestigio
na corte de Luís XIV é importante para compreendermos nas palavras de Schwarcz, como as
vestes, os objetos, a ostentação e os rituais próprios da monarquia são parte essencial desse
regime, constituem sua representação pública e, no limite, garantem sua eficácia. Como diz o
46
ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte. Op. cit., p. 89.
BURKE, Peter. Op. cit., p. 120.
48
GRIMBERG, Carl. Op. cit., p. 15.
49
Ibidem, p. 111.
47
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dito popular "rei que é rei não perde a realeza" e se a perde — digamos assim — é cada vez
menos rei50.
Referências
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995,
BOURQUIN, Laurent. Desafios nem sempre vencidos. In: Revista História Viva, Ano III, n.
25.
BURKE, Peter. A fabricação do rei – a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
CARELLI, Gabriela. O inventor do luxo. Revista Veja. São Paulo. Disponível em:
veja.abril.com.br.
COBRA, Rubem Queiroz. Boas-maneiras, etiqueta e cerimonial: suas definições e seu lugar
na filosofia. Brasília: Editora Valci Ltda, 2002.
CORVISIER, André. História moderna. 2ª ed. São Paulo: Difel, 1980.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte. Investigação sobre a realeza e a aristocracia da
corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
________. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1994. v.1.
GRIMBERG, Carl. História Universal – A França de Richelieu. Chile: L.D.A, 1989. v.16.
_________. História Universal - O século de Luís XIV. Chile: L.D.A, 1989. v.17.
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no antigo regime. São Paulo: Editora Moderna, 1998.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. In: Revista de Antropologia, v.43, n.1, São Paulo, 2000.
50
SCHWARCZ, Lilia Moritz. In: Revista de Antropologia, volume 43, número 1, São Paulo, 2000. Disponível
em: Scielo.com.br. Acessado em 25.05.2008.
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