Adegas e tradições, de hoje e de ontem - Expresso
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Adegas e tradições, de hoje e de ontem

Adegas e tradições, de hoje e de ontem
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Património e teimosias no mundo dos vinhos

Na crónica passada falámos de viticultura e de como as tradições podem, ou não, ser motores de modernidade. Hoje entramos na adega e aí temos observado também um movimento de regresso às práticas antigas, da pisa a pé às cubas de cimento, dos ovos em cimento às ânforas, das talhas aos velhos tonéis e balseiros. Também aqui há coisas interessantes e outras nem tanto. Foi nos anos 80 que se começaram a generalizar, mesmo nas mais clássicas regiões do mundo, as cubas de inox com sistema de frio. Assumiu-se então que a fermentação resultaria mais equilibrada, mais fiel às castas e ao terroir, se se desenrolasse num ambiente suficientemente neutro, rapidamente higienizável e que permitisse o controlo da temperatura. Era esse o grande mérito da nova tecnologia, virtude que se mantém até hoje. O que parece que está a acontecer é que esse lado higiénico e neutro é muito chato porque não permite vinhos com desvios, algo que agora é muito apreciado. Num exemplo musical, dir-se-ia que, seguindo a tendência, só gostaríamos de um concerto se a orquestra tocasse desafinada ou se os metais tocassem notas ao lado. Não é verdade e só dizemos que ficámos de alma cheia com um concerto quando tudo corre na perfeição e onde (aí sim…) o solista nos conseguiu arrebatar pela forma como interpretou a partitura. O vinho é como uma sinfonia: o primeiro andamento tem de mostrar bem o tema e tratá-lo a preceito: uvas sãs e maduras, engaços também maduros, boa acidez, um alegretto vivace. Depois, no segundo andamento, uma vinificação neutra, rápida, com temperatura controlada, com monitorização constante do trabalho das leveduras, indígenas se forem boas, industriais se forem precisas, um andante ma non troppo. No terceiro momento, aperfeiçoa-se o material que vem de trás, acentua-se o tema (os aromas das castas), introduzem-se eventualmente novos materiais como barricas, num claro andante non agitatto e finaliza-se num trabalho filigrânico de apuro do produto final, desde os ensaios de colagem até filtrações com conta, peso e medida, para a tal sensação final (a prova) que resulta de um gesto último (engarrafamento) que deverá ser minucioso para não deitar tudo a perder. Poderemos ter um final majestoso, caso toda a orquestra tenha tocado bem. Infelizmente a tendência atual é para achar bom um solo mal feito, um andamento aos tropeções, material de base (uvas) pouco sãs, adegas com falta de higiene, tudo misturado com muito desprezo pelos avanços da ciência. A ciência tem costas largas: ajuda quem quer fazer bem mas também fornece instrumentos a quem quer ser trapalhão; diabolizar a ciência em nome de uma pretensa “energia telúrica” e “respeito pelo terroir” dá asneira. Mais uma vez tudo depende da “mão” que a usa. É sempre bom não esquecer que antes de fazer desenhos superabstratos, tortos e estranhos, Picasso era um exímio desenhador, tal como Dali também era. Isso de começar pelo fim dá mau resultado, na pintura e na música. É o equivalente a dedicar-se à música contemporânea quando não se consegue tocar uma suíte de Bach! No vinho não é diferente. Primeiro os estudos e as escalas, as improvisações virão depois. Talvez.

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