Cat Power reconta Bob Dylan no C6 Fest e afirma que música pode ajudar a 'identificar o fascismo da atualidade'
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Música / Entrevista

Cat Power reconta Bob Dylan no C6 Fest e afirma que música pode ajudar a 'identificar o fascismo da atualidade'

Cat Power se apresenta neste domingo, 19, no C6 Fest; a setlist da artista contará apenas com canções conhecidas na voz de Bob Dylan

Heloísa Lisboa (@helocoptero)

por Heloísa Lisboa (@helocoptero)

heloisa.lisboa@rollingstone.com.br

Publicado em 17/05/2024, às 10h42 - Atualizado às 10h42

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Cat Power/Chan Marshall (Foto: Divulgação)
Cat Power/Chan Marshall (Foto: Divulgação)

Charlyn Marshall, conhecida como Cat Power, pediu para ser referida pelo apelido, Chan, em entrevista à Rolling Stone Brasil. Durante a chamada de vídeo, ela não ligou a câmera, o que fez com que sua voz se tornasse um grande destaque da conversa. Com pausas reservadas à reflexão, risos sinceros e um tom muito afetuoso, a artista falou sobre seu disco que homenageia Bob Dylan.

Cat Power Sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall é inspirado na apresentação de Bob Dylan de 1965, em Londres, registrada no documentário dirigido por D.A. Pennebaker, Don't Look Back (1967). O disco, porém, reproduz a setlist de shows de 1966, que ocorreram tanto no Free Trade Hall (17/05/1966), quanto no Royal Albert Hall (26 e 27/05/1966). Vale ressaltar ainda que o álbum de Dylan intitulado The Bootleg Series Vol. 4: Bob Dylan Live 1966, The "Royal Albert Hall" Concert, lançado em 1998, foi gravado em Manchester.

Chan cresceu ouvindo Bob Dylan, mas não tinha pensado em regravar suas composições até 2022. No mesmo ano, ela lançou Covers, mais um de seus álbuns em que reinterpreta faixas de outros autores. Quando conseguiu agendar um show no Royal Albert Hall, para 5 de novembro, ela relembrou o filme de Pennebaker e decidiu que cantaria as mesmas canções tocadas por Dylan no show de Manchester. 

O dia da apresentação de Chan correspondeu a uma data importante para os ingleses: o aniversário da prisão de Guy Fawkes. Ele foi um católico que participou da tentativa de assassinato do então rei da Inglaterra, Jaime I, e dos membros do parlamento com uma explosão. Fawkes inspirou V, de V de Vingança (2005), e se tornou símbolo da luta antifascista. Ainda que um católico possa não ser a primeira figura que vem à mente quando se pensa no combate a opressores, Guy é celebrado em todo 5 de novembro com fogueiras.

Séculos depois daqueles vividos por Fawkes na Inglaterra, Marshall enxergou um contexto semelhante, cheio de retrocessos, nos Estados Unidos: "Quando fiz o show [da turnê de Covers] nos Estados Unidos, eles tinham acabado de começar a banir livros de autores afro-americanos, muitos autores incríveis. Baniram de bibliotecas, de escolas, proibiram o uso da palavra 'gay' nas escolas, os direitos reprodutivos das mulheres sumiram".

O momento representava também uma oportunidade de mostrar ou relembrar a obra de Bob Dylan. "Quando fiz esse álbum, eu pensei que muita gente poderia não conhecer Bob Dylan ainda", argumentou. "Essas pessoas poderiam se perguntar quem é Bob Dylan, ver o fascismo que prevalecia naquele tempo e identificar o fascismo da atualidade. Isso poderia ser empoderador."

Quando o assunto é cover, Chan está calejada. Ela explicou sua paixão pelas diversas versões que uma única composição ganha na voz de diferentes artistas: "Metade das minhas músicas preferidas são covers ou músicas gravadas por outras pessoas que não as compuseram. Gosto de uma da Nina Simone escrita pelo David Bowie, uma da Billie Holiday escrita pelo George Gershwin... Então, isso faz parte da tradução da música".

A admiração de Chan por Dylan chegou à esfera romântica. Ela contou que se apaixonou pelo músico e fantasiou um namoro:

Quando visitei Londres pela primeira vez, eu tinha 23 anos e fiquei hospedada no que costumavam chamar de Hotel Rock and Roll, ele se chama The Columbia. Era onde todo mundo costumava fazer coletivas de imprensa. Andei pelo Hyde Park e, quando cheguei na calçada do outro lado, reconheci o lugar que vi no documentário. Fiquei lá na frente por uma hora e meia, fumando meus cigarros e imaginando Bob aparecendo na janela, em 1966, saindo pela porta, pedindo por um cigarro ou um isqueiro. Imaginei ele dizendo: 'Quer vir assistir à passagem de som?' E eu seria sua namorada. 
Bob Dylan em coletiva de imprensa no The Savoy em 1966 (Foto: Fiona Adams/Redferns)

Dylan não disse — publicamente ou para a própria Chan — o que pensou sobre a homenagem de Cat Power. "Talvez [ele tenha dito] em sua cozinha", brincou a cantora. A opinião de Bob sobre seu trabalho não está dentre as grandes preocupações dela. "Eu não ligo", confessou. 

O público do C6 Fest, que acontece nos dias 17, 18 e 19 de maio, poderá assistir à releitura de Cat Power de um dos shows mais marcantes de Bob Dylan. A setlist não abarcará os sucessos da carreira de Chan, nem sequer permitirá uma espiada no álbum em que ela está trabalhando — Opus

Leia entrevista na íntegra:

Rolling Stone Brasil: Bob Dylan é da mesma era que os Beatles e os Rolling Stones, por exemplo. Por que acha que a música dele ficou presa com você dessa forma?
A natureza introspectiva dele. Ele parecia um cara no abismo de um mundo enorme, uma charada. Quando eu ouvi suas palavras, parecia que estava pisando em um labirinto. Enquanto os Stones, eu sabia que podia dançar, mas Dylan me ajudou a pensar sobre as coisas.

Rolling Stone Brasil: Um álbum de covers não é algo novo para você, mas como foi gravar esse? Especialmente como uma mulher gravando covers de um homem. Você acha que tem algum tipo de ativismo nisso?
Antes de fazer o show, não pretendia gravá-lo. Era para ser apenas o último show da turnê do Covers. Mas aí percebi que deveria gravar isso, e acabou virando um álbum. E agora posso fazer as apresentações, o que nem era uma ideia.

Eu era uma garota jovem em um mundo de homens e tudo o que eu via era uma sociedade masculina. Agora que sou mais velha... Bob não precisava, mas ele escolheu escrever músicas como essas, escolheu ser um cantor que protesta. Ele ajudou muita gente, no passado, a entender a realidade. E essas pessoas precisavam aprender, elas precisavam de ferramentas, e ele tinha uma ferramenta, podia ajudá-las a pensar sobre as coisas apenas com suas palavras, que são muito brilhantes e poderosas. É arte, você não pode colocar a arte na prisão. Você não pode assassinar a arte.

Quando fiz o show nos Estados Unidos, eles tinham acabado de começar a banir livros de autores afro-americanos, muitos autores incríveis. Baniram de bibliotecas, de escolas, proibiram o uso da palavra "gay" nas escolas, os direitos reprodutivos das mulheres sumiram. Quando fiz esse álbum, eu pensei que muita gente poderia não conhecer Bob Dylan ainda. Essas pessoas poderiam se perguntar quem é Bob Dylan, ver o fascismo que prevalecia naquele tempo e identificar o fascismo da atualidade. Isso poderia ser empoderador. 

Cat Power (Foto: Dia Dipasupil/Getty Images)

Rolling Stone Brasil: Então, antes de se apresentar no Royal Albert Hall, você nunca tinha pensado em gravar esse disco?
Não! Eu tinha um show na Inglaterra, e eu tinha cinco singles do Covers rodando na BBC 6 — isso nunca tinha acontecido comigo. Ter um single numa rádio já é algo enorme, mas ter cinco de uma única vez e de um único álbum em Londres... Isso era gigantesco, então eu precisava tocar na Inglaterra, mas não conseguia marcar um show e não sabia o porquê — mas isso é conversa para outra hora.

Mas tinha uma data disponível, em 5 de novembro, o dia de Guy Fawkes, conhecido por aquele filme V de Vingança, sabe? É um dia muito famoso e faz parte da história da Inglaterra, é uma noite revolucionária. Quando disseram, "Só temos uma data no Royal Albert Hall, no dia 5 de novembro", eu pensei: "F*da-se, eu quero cantar Bob Dylan, a apresentação de 1966. Que ótima homenagem! Bob continua na Terra, ele tem discos maravilhosos, ainda faz turnês... Vamos nessa!"

Depois de algumas semanas, pessoas começaram a comentar no Instagram: "Venha tocar no Vietnã! Venha tocar no Chile! Venha tocar em Saskatchewan... Em Tel Aviv!" Surgiram todas essas ofertas e eu pensei: "Merda! Eu tenho que gravar isso, porque é o fim da minha turnê do Covers. Seria algo legal e elegante". Tinha que gravar meu próprio disco, minhas próprias músicas, Opus — que é o que tenho feito, a propósito. Pedi por dinheiro e estávamos super quebrados, daí a Domino Records concordou, e gravamos. E cá estou eu conversando com você.

Rolling Stone Brasil: Por que acha que esse lugar [Royal Albert Hall] foi tão importante para esse projeto?
Para mim, quando percebi que tinha sentimentos românticos pelo Bob Dylan... Eu tinha 19 ou 20 anos quando vi o documentário Don't Look Back, e vi Bob como meu amigo. Ele era jovem, ele era sexy, ele era inteligente, era o primeiro punk rocker que eu conhecia. Ele era tão esperto! Sabe, com a imprensa. E sua música... Ele podia mover uma montanha apenas com sua voz e seu violão. Ele era tão poderoso. 

Quando visitei Londres pela primeira vez, eu tinha 23 anos e fiquei hospedada no que costumavam chamar de Hotel Rock and Roll, ele se chama The Columbia. Era onde todo mundo costumava fazer coletivas de imprensa. Andei pelo Hyde Park e, quando cheguei na calçada do outro lado, reconheci o lugar que vi no documentário. Fiquei lá na frente por uma hora e meia, fumando meus cigarros e imaginando Bob aparecendo na janela, em 1966, saindo pela porta, pedindo por um cigarro ou um isqueiro. Imaginei ele dizendo: "Quer vir assistir à passagem de som?" E eu seria sua namorada. 

Nunca tinha feito um show lá, nunca havia pisado lá, em toda essa p*rra de anos. Passei por aquele lugar um milhão de vezes depois que soube que faria um show na noite revolucionária. Simplesmente fez sentido. Estou muito orgulhosa de mim mesma por realizar isso. Trabalhei muito duro para tirar isso do papel e ser respeitosa em relação à maestria de Bob.

Sabe, Bob ainda está vivo. Eu o vi poucas noites antes do show. Nós nos esbarramos e eu também o vi em Glasgow. Foi a melhor apresentação dele que já vi.

Rolling Stone Brasil: Ia te perguntar sobre isso. Quando foi a última vez que o viu? Como foi? Acha que um dia ele vai falar sobre o que você fez em palavras?
Tenho certeza que ele falou em palavras, não publicamente, mas tenho certeza que ele falou... Talvez para si, talvez em sua cozinha, talvez tenha dito: "P*ta merda, Chan, por que está sempre no meu encalço?" Eu não sei. Eu não ligo. Acho que o que ele representa na minha vida é tão tremendo, e sua música é tão importante para a liberdade de pensamento. É como o monte Everest. Mas, sim, eu o vi três noites antes do meu show. Estávamos no mesmo hotel, coincidentemente, e eu consegui meu abraço. Ele me colocou na lista de convidados da apresentação da noite seguinte. E foi o melhor que ouvi de sua voz: a intensidade, a enunciação, tudo o que ele entregou vocalmente foi fascinante e perfeito. 

Rolling Stone Brasil: Você acha que as músicas do Bob Dylan ou mesmo o próprio Bob Dylan mudaram para você após gravar esse disco?
[Risos] É por isso que amo tanto os covers. Metade das minhas músicas preferidas são covers ou músicas gravadas por outras pessoas que não as compuseram. Gosto de uma da Nina Simone escrita pelo David Bowie, uma da Billie Holiday escrita pelo [George] Gershwin... Então, isso faz parte da tradução da música.

Hoje em dia, você tem compositores traduzindo sua versão de Chopin, ou Erik Satie, ou Bach. É como a evolução de um senso de espiritualidade. A música é como o grande tradutor. Posso ouvir uma música e, se eu a cantar, ela se tornará a minha tradução do que essa vibração causou em mim. Não tenho certeza se era isso o que queria saber, mas este é o grande brilho da música: qualquer um pode se aproximar e traduzi-la para levá-la adiante. 

Rolling Stone Brasil: O que devemos esperar do seu show no C6 Fest além das músicas de Bob Dylan?
Oh, meu Deus! Uau... Uma das melhores plateias do mundo é a dos brasileiros. Vocês podem esperar por muito amor, alma e energia positiva. Será empoderador!