Teoria e Debate | Censura: as estratégias do drible - Teoria e Debate

Especial do Golpe

Em 1969, a censura, num arroubo de obscurantismo, proíbe a mostra dos artistas brasileiros selecionados para a VI Bienal de Paris.

Para evitar um confronto suicida, os artistas desenvolveram estratégias, conforme tem aflorado em entrevistas e depoimentos referentes ao período. Tais estratégias são memoráveis e merecem figurar entre os legados a repassar à posteridade como monumentos da resistência.

Uma delas, utilizada pelo pessoal da música popular, era incluir o pedido de liberação de uma canção perigosa incluindo-o na pasta de um cantor neutro e indiferente. A pasta coletiva era então submetida à censura. Assim, foi aprovada uma das canções mais desafiadoras da época, diretamente endereçada à censura, que reza: “Você corta um verso, eu escrevo outro/você me prende vivo, eu escapo morto” (Pesadelo).

Outra artimanha era incluir uns versos de protesto ultrajante e escancarado, de modo que o censor, indignado, se precipitava para cortá-los, e deixava passar o que por contraste parecia brando. Esse recurso foi usado milhares de vezes.

Chico Buarque, o mais visado de todos e que, com muita honra, nunca se acoelhou, fazia a famigerada Dona Solange e seus asseclas verem tudo vermelho, proibindo qualquer coisa que viesse em seu nome. Por isso, criou um pseudônimo, o inesquecível Julinho de Adelaide, que teve todas as suas canções aprovadas.

Tornou-se clássico um show de Chico Buarque e Gilberto Gil, em que o ponto alto foi a execução pelos dois de “Cálice”, trocadilho com “Cale-se”, que tematizava a existência da censura (“Afasta de mim esse Cale-se”). Os dois trauteavam um vocalize sem palavras, que o público supria, cantando em seu lugar. O filme, preservado, é de arrepiar, até hoje.

Foi um período em que a canção e os compositores se armaram em trincheira contra o arbítrio, sofrendo as consequências de sua postura, expressas em censura, perseguição, prisão, exílio. Atente-se para a carreira definitivamente destruída do menestrel popular Geraldo Vandré, que vivia o auge de sua fama. Execrado e caçado pelo exército depois da apresentação de Para não dizer que não falei de flores no Maracanãzinho, só salvou a vida escapando para o desterro.

Como à época tudo se politizava, qualquer arena servia. Foi o que aconteceu nesse Festival Internacional da Canção, realizado pela TV Globo, no fim de 1968. Travou-se uma verdadeira guerra, deflagrada pelos 12 mil adversários do regime que lotavam o Maracanãzinho em estado de insurgência. Como se sabe, a censura tinha mandado o recado de que Pra não dizer... não poderia ganhar. E o público, em peso, preferia Vandré, recebendo a premiação de Sabiá com vaias. A lógica do terror não era ingênua: a canção de Vandré viria a se tornar o hino de todas as manifestações públicas contra o jugo fardado, fosse a campanha pela anistia e pela abertura, fossem cerimônias fúnebres pelos assassinados.

Entretanto, a ingerência da censura levaria os festivais à extinção. Em 1971, os mais influentes autores, incluindo o ordeiro Tom Jobim, retiraram suas inscrições em insubmissão aberta contra a censura, sendo, por isso, todos presos e enquadrados na lei de segurança nacional, de infame memória. Foi dessa maneira inglória que o Festival Internacional da Canção se finou.

As artes

O Cinema Novo foi o patamar de maior fastígio já atingido por nossa sétima arte, com a exibição simultânea de Deus e o diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha, e de Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, no festival de Cannes de 1964. Depois dessa data, o Cinema Novo participaria da discussão de intelectuais e artistas sobre a ditadura e os caminhos para desafiá-la, como se pode ver em Terra em transe e em O dragão da maldade contra o santo guerreiro, ambos de Glauber Rocha, este último premiado em outro Festival de Cannes.

Retrocede a 1961 a fundação de algo memorável: o Centro Popular de Cultura (CPC), ativo órgão da União Nacional dos Estudantes (UNE) . Suas filiais pululam pelo Brasil inteiro, puxadas pelos estudantes, mas se abrem à participação de intelectuais e artistas em geral, montando projetos para levar cultura ao povo. Como se vê, algo extremamente generoso e bem intencionado, bastante iludido também quanto ao alcance de ações desse tipo, mas fecundando a cultura brasileira com realizações notáveis. O pessoal realmente botava equipamento em cima do caminhão e ia encenar peça de teatro em favela, pelo Brasil afora, numa dedicação admirável. Surgia em cena um Tio Sam de cartola e fraque recortado na bandeira americana, castigando um lamentável Brasilino em farrapos.

O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi a mais encenada das peças do período, especialmente pelo CPC e pelos grupos amadores dos grêmios estudantis pelo país todo. Tem tudo do ideário nacional-popular vigente: nordestinos, um Cristo negro, anseios de justiça social e pregação de antirracismo. Outra peça muito encenada foi Morte e vida severina, de João Cabral de Mello Neto, auto de Natal que mostrava o destino miserável dos retirantes nordestinos. A montagem do TUCA levaria o primeiro prêmio do festival de Nancy, na França.

Nesse horizonte, o CPC apareceria como responsável pela formação de toda uma geração de artistas, atores, diretores de cinema e teatro, documentaristas, técnicos, dramaturgos, escritores, poetas, compositores, cantores, que continuaria fornecendo quadros até bem mais tarde, quanto se pode notar sua marca de fábrica por exemplo nos noveleiros da TV Globo.

Mas, talvez tenha sido no teatro que se tenha dado a transformação mais notável, inclusive com a afirmação de uma dramaturgia nacional e altamente politizada. Duas companhias paulistas, o Arena fundado em 1953 e o Oficina em 1959, ressaltam nesse percurso.

O Arena, liderado por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, partiu para montagens originais, com dramaturgia própria e a invenção de musicais de sucesso, a partir de Arena conta Zumbi. Seu primeiro êxito foi Eles não usam black-tie, que põe no palco uma greve operária. Viveria seu ápice nos dias finais de 1968 com o canto do cisne da Primeira feira paulista de opinião, pesada crítica ao regime. Pondo em cena atores envergando peles de macaco às quais se sobrepunham fardas militares, concretizando a metáfora de gorilas, entrava pelo terreno da farsa e da bufonaria. A censura caiu em cima e proibiu o espetáculo, selando a extinção do Arena.

No Oficina, José Celso Martinez Corrêa dirigiu muitos sucessos, entre eles O rei da vela, de Oswald de Andrade, numa encenação que marcou época e que é considerada uma das mais importantes já havidas. Também dirigiu Roda-viva, de Chico Buarque, no Teatro Ruth Escobar, alvo de invasão, depredação e agressão armada aos atores por parte do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) , em 1968.

Enquanto discutíamos a censura ao teatro e às demais artes, Augusto Boal e José Celso, como que para demonstrar a importância deles e das artes, eram presos e torturados, partindo para o exílio assim que soltos.

Numa forma nova de driblar a censura, surgiram relevantes shows de protesto, como o Opinião, obra do grupo homônimo criado no Rio de Janeiro por membros do extinto CPC, e Liberdade, liberdade, logo amputado pela censura. Obtiveram enorme popularidade, alcançando largo público.

A ação da censura durante o regime militar tem recebido a pesquisa e os trabalhos que tal ignomínia merece, quando a estimativa corrente avança a cifra de 500 textos de dramaturgia previamente impedidos de chegar ao público. Essa é a censura que brande a tesoura não contra trechos mas contra a obra toda.

No que concerne a teatro, há que realçar a atuação de alguns artistas plásticos, especialmente de Flávio Império, cujos cenários e figurinos revestiram praticamente todas as peças importantes do período. Ele próprio dirigiria a montagem de Os fuzis de dona Teresa, de Brecht, em 1968, pelo Teatro dos Universitários de São Paulo, o Tusp, com sede na Maria Antonia, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras sediada nessa rua.

O golpe de 64 iria exercer sua influência nefasta sobre as artes visuais, as quais, fossem neofigurativas de sobretons pop ou alinhadas ao construtivismo abstrato, engrossariam as fileiras da oposição. Integrariam Opinião 65, a exposição coletiva carioca contra a ditadura que marcou época. Outros seguiriam posteriormente esse rumo, como Cildo Meireles erigindo nos anos 1970 um monumento ao prisioneiro político, numa instalação toda em vermelho.

Impõe-se uma temática alusiva à truculência dos novos senhores, como se verá nos Bólides e Parangolés, em sua opção pela favela e pela marginalidade, de Hélio Oiticica.

O ano de 1968 seria assinalado pelo Mês de Arte Pública, realizado ao ar livre no Aterro do Flamengo, no Rio. Em 1969, a censura, num arroubo de obscurantismo, proíbe a mostra dos artistas brasileiros selecionados para a VI Bienal de Paris, a ser realizada no Museu de Arte Moderna do Rio. A Associação Brasileira de Críticos de Arte, presidida por Mário Pedrosa, protesta oficialmente, enquanto se organiza o boicote internacional à próxima Bienal de São Paulo.

O arrocho se acentua: expressando o negror totalitário, uma gravura de Cláudio Tozzi apresentaria um cérebro atravessado por um parafuso e forneceria a capa da revista Almanaque – Cadernos de literatura e ensaio, publicação com 14 números que codirigi com Bento Prado Jr. entre 1975 e 1982, em que se entrincheiraram remanescentes da Maria Antonia.

Consuelo e a censura

A crítica mais contundente veio numa peça de teatro, sem disfarces nem linguagem cifrada. Consuelo de Castro, aluna de Ciências Sociais e ocupante da Maria Antonia, ainda autora inédita, assim iniciou sua brilhante carreira nos palcos e na televisão.

Prova de fogo foi sua peça de estreia - mas não estreou. O tema de Consuelo foi, justamente, o movimento estudantil e a ocupação da Faculdade de Filosofia da USP. O título da peça alude ao bombardeio e incêndio do prédio da rua Maria Antonia pelas forças da repressão. O entrecho se passa dentro da Faculdade e suas personagens são os alunos, com seus problemas, seus conflitos, sua solidariedade, vivendo uma utopia.

O destino da peça de Consuelo de Castro é exemplar. Foi, é claro, imediatamente proibida pela censura, em 1969, quando já se ensaiava no Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Correia. Apesar disso e enquanto continuava proibida, ganhou o prêmio de melhor peça de teatro do país, atribuído pelo Serviço Nacional de Teatro, um prêmio oficial portanto, no ano de 1974. Só seria liberada e encenada um quarto de século após os eventos, em 1993, estreando no próprio Grêmio da Faculdade de Filosofia da rua Maria Antonia onde se passa o enredo. E foi no mínimo uma curiosa experiência, difícil de ser enquadrada nas teorias estéticas: uma peça encenada no próprio local em que se deram os acontecimentos que relata, assistida por uma plateia que fazia parte da trama – quem assina estas linhas, inclusive.

Na literatura

A súbita politização é um acento novo e uma consequência imediata do golpe de 1964. Contra os escritores encarniçou-se a censura, bem como contra tudo que fosse ligado à arte e ao pensamento. O livro tornou-se um inimigo, como é habitual em épocas de obscurantismo ou totalitarismo.

No romance, a reação vem dos veteranos. Tarimbados e prestigiosos romancistas, de reputação assentada, são os primeiros a manifestar-se. Escrevem obras de protesto, alegorizado ou não, Érico Veríssimo, Josué Guimarães, J.J. Veiga, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Lígia Fagundes Telles.

Callado ocupa um lugar especial: Quarup. Bar Don Juan, Reflexos do baile e Sempreviva formam uma saga da esquerda, que devemos àquele que se tornaria seu cronista no período. Algo raro na ficção brasileira de então e mesmo depois por sua envergadura, Quarup propõe um projeto para o Brasil. O projeto inclui os indígenas, realça as Ligas Camponesas e investiga o papel então revolucionário da Igreja Católica, que desembocaria na Teologia da Libertação e nas comunidades eclesiais de base.

Mas o progressivo arrocho da censura decretaria um adeus ao realismo. Já rezando pela cartilha alegórica, na craveira do Realismo Mágico, então em voga na América Hispânica, outros veteranos procederiam a seu ajuste de contas. E surgiriam os novos, bem como todo um memorialismo juvenil de guerrilheiros, cujo carro-chefe foi O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira.

Rejeitado por vários editores, Zero, de Ignacio de Loyola Brandão, acabaria saindo na Itália em 1974 e só um ano depois no Brasil, para ser censurado e apreendido em todo o território nacional. Cacos de prosa experimental compõem um imenso mural em forma de mosaico, com paródias e pastiches que denunciam as violações dos direitos civis, o amordaçamento das opiniões, a mídia enganando a todos, um país onde não se respirava. Composto por fragmentos heteróclitos, tudo se passa como se o romance fosse atingido por um raio, o raio da censura, que o estilhaçou.

E a poesia?

Enquanto isso se passava na prosa, por onde andava a poesia? No início dos anos 1970 nasce a Poesia Marginal ou da Geração Mimeógrafo, com berço no Rio de Janeiro, mas espraiando-se pelo restante do país. Com o fito de driblar a censura, grupos de jovens editavam e divulgavam informalmente suas obras, passando-as de mão em mão em reuniões, em bares, na rua, nas escolas. Essa poesia expressava o estado de ânimo que se convencionou chamar de “exílio interno”,

Outro tipo de poesia, habitualmente ausente de nosso panorama, a poesia militante, logo floresceria com D. Pedro Casaldáliga e outros poetas, nas masmorras da ditadura, mas teria que esperar tempos mais benignos para ver a luz do dia. A lira política de produção clandestina se contrabandeava para fora da prisão, só vindo a ser publicada bem mais tarde. É o caso de Hamilton Pereira/Pedro Tierra, Alex Polari de Alverga (condenado a duas penas de prisão perpétua e recordista de encarceramento por quase dez anos) e Alípio Freire, entre outros; ainda mais tarde este último filmaria um documentário intitulado 1964. Nessa jornada aos infernos da dor, do luto, da agonia, do desespero, a “voz do cárcere” fala pelos que foram amordaçados: os presos, os perseguidos, os torturados, os desaparecidos.

Nos quadros da poesia, destaca-se um poema sobre o clima político de maio de 1968, escrito por ninguém menos que nosso maior poeta, Carlos Drummond de Andrade.

Relatório de maio” foi publicado no jornal carioca Correio da Manhã no dia 26 de maio de 1968, portanto, no auge do movimento estudantil tomando as ruas e ocupando as escolas, aqui e no mundo. O poeta alude à repressão onipresente e ao temor do caos – mas com muita simpatia. O poema termina por uma bela metáfora da esperança:

e mesmo assim na treva uma ave tonta

riscava o céu naquele maio.”

Em Almanaque – Cadernos de Literatura e Ensaio, decidimos republicar o poema para comemorar os dez anos de 1968 (n. 6, 1978). Consultado, o poeta concordou. Mas este poema só em 1985 receberia a honra de ser recolhido em livro seu.

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Enquanto o teatro se desmantelava, o cinema perdia rumo e a literatura ia para a gaveta, a música popular conheceu o apogeu, até ser derrotada pela censura da ditadura. E só depois da restauração da democracia em 1985 os artistas respirariam desafogados.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP. Foi Professora Visitante nas Universidades de Austin, Iowa City, Columbia, Paris VIII, Freie Universität Berlin, Poitiers, Colônia, École Normale Supérieure, Oxford, Berlin 2. Tem 40 livros publicados, sobre Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, crítica da literatura e da cultura. Membro do Conselho Editorial da revista Teoria e Debate.