Jardim Cinema: Todd Field - “Pecados Íntimos” / “Little Children”

terça-feira, 14 de maio de 2024

Todd Field - “Pecados Íntimos” / “Little Children”


Todd Field
“Pecados Íntimos” / “Little Children”
(EUA - 2006) – (130 min. / Cor)
Kate Winslet, Patrick Wilson, Jennifer Connelly, Jackie Earle Haley.

Quando se fala no nome de Todd Field, de imediato nos vem à memória essa obra incontornável intitulada “In The Bedroom” / “Vidas Privadas”, uma das obras-primas do cinema contemporâneo, feita com um rigor e sensibilidade únicos, possuindo na direcção de actores um dos seus grandes segredos, para além da fabulosa banda sonora, mas temos que nos conter porque a matéria aqui é a película de Todd Field “Little Children” / “Pecados Íntimos” e poderemos dizer, desde já, que em Portugal os títulos dos seus filmes conseguem deixar qualquer cinéfilo de boca aberta, espantado com a tradução.


Por acaso recordam-se daquele cavalheiro de olhos vendados a tocar piano no filme de Stanley Kubrick, “Eyes Wide Shut”? Pois é verdade, o senhor chama-se precisamente Todd Field e desde 1986 que anda pelos corredores da televisão e dos Estúdios apresentando as suas qualidades como actor, iniciando-se como “crooner” nos “Dias da Rádio” / “Rádio Days” de Woody Allen. Mas vamos ao filme “Pecados Íntimos” e à sua temática que tal como a do filme anterior de Todd Field, navega na América interior das “little towns”, em que mais uma vez se dá voz e visibilidade aos seus residentes, demonstrando como naquele microcosmos poderemos encontrar o retrato da grande nação americana.


Curiosamente em “Little Children” vamos descobrir elementos do quotidiano já trabalhados de forma amoral por Todd Solondz no seu “Felicidade” / “Happiness”, enquanto já a temática do pedófilo se afasta do contexto surgido no filme de Solondz, como nos oferece o outro lado escondido por Michael Cuesta no fabuloso “L.I.E”.

Em “Pecados Íntimos”, mergulhamos no interior de uma comunidade, de uma “little town” e de imediato deparamos com todas aquelas mães e os seus filhos no Parque Infantil, praticando o adultério mentalmente, ao verem surgir nele o famoso e quase esquecido Rei do Baile, Brad Adamson (Patrick Wilson lembram-se dele no Raoul do “Fantasma da Opera”?), sendo precisamente Sarah Pierce (Kate Winslet) a abordá-lo perante a alegria das restantes companheiras, após terem feito uma aposta. Nasce então um beijo quase fortuito, para criar escândalo perante as outras mães presentes que irá invadir a vida de ambos.


Sarah vive com um marido que não lhe liga nenhuma, permanentemente obcecado com os fetiches sexuais proporcionados pela net, e quantos matrimónios morreram no mundo fruto das imagens deste “media” em que nos encontramos? Muitos como sabemos e o de Sarah é simplesmente mais um. Já Brad vive à custa da mulher, realizadora de documentários para a televisão, género PBS e não Michael Moore, como o cineasta gostou de deixar bem frisado no filme, enquanto adia eternamente o exame final de direito. Surge assim, de forma natural, um romance entre os dois, compartilhado inocentemente pelos filhos de ambos. Desta forma começamos a viajar pelos espaços públicos da cidade na sua companhia, ora nas ruas, ora nos parques infantis, ou ainda na piscina municipal.


Será aliás na piscina municipal que irá surgir o caos quando a personagem mais odiada da cidade, Ronnie (Jackie Earle Haley), surge a nadar na piscina cheia de crianças. Anos antes fora acusado de exibição dos órgãos sexuais, tendo sido de imediato condenado por pedofilia e cumprido a respectiva pena. Mas o seu regresso à comunidade não é aceite, provocando o medo nas mães (repare-se na forma como a piscina se esvaziou de crianças, quando as pessoas se apercebem que ele está dentro de água a nadar), temos depois a luta do eterno “justiceiro” da cidade que faz da expulsão de Ronnie a sua última cruzada e modo de sobrevivência, criando deste modo um dos elementos de confrontação do filme. Por outro lado é extremamente curiosa a forma como Todd Field aborda a relação entre Ronnie e a mãe, fruto do excelente trabalho do autor do livro/argumento Tom Perrotta, aproximando-se aqui dos territórios de Solondz e Cuesta, como já referimos anteriormente.


Quanto a Sarah e ao seu romance com Brad, ele surge como o retrato naturalista de milhões de adultérios cometidos diariamente por homens e mulheres casados, fruto do vazio dos seus casamentos, muitas vezes sustentados pelo frágil cimento criado pelos filhos, abrindo brechas constantes ou onde o dinheiro oferecido por um dos cônjuges surge como sinónimo de estabilidade, personificada nessa venda que permite não ver nada, enquanto a carteira possuir notas e cartões de crédito no seu interior.

Repare-se nessa dona de casa tipicamente americana criada excelentemente por Mary B. McCann através da personagem Mary Ann, que resolveu a sua vida sexual marcando um dia certo durante a semana para ter relações sexuais com o marido. Depois veja-se a leitura feita por ela de “Madame Bovary”, oposta à de Sarah (Kate Winslet), tendo esta última uma opinião da personagem criada por Gustave Flaubert fruto do romance mantido com Brad e da leitura que faz da vida matrimonial das mulheres com quem convive na comunidade.


Uma última palavra para esta obra surpreendente de Todd Field a oferecer-nos um olhar profundo do quotidiano humano, através de uma excelente direcção de actores. Aqui Kate Winslet, através da personagem de Sarah, demonstra mais uma vez a excelente actriz que é e não nos estamos a recordar desse “blockbuster” chamado “Titanic”, mas sim de três filmes demonstrativos da sua arte interpretativa: o magistral “Sensibilidade e Bom Senso” / "Sense and Sensibility”, no qual por vezes nos esquecemos do nome do seu cineasta, Ang Lee. Mas também dessa obra pouco conhecida, intitulada “Jude” / “Judas, O Obscuro” baseada na obra homónima de Thomas Hardy, afirmando-se como o melhor filme do “controverso” Michael Winterbottom e por fim o “biopic” da escritora Íris Murdoch, concretizado para o grande écran por Richard Eyre, esse nome grande do cinema das ilhas britânicas, onde Kate Winslet criava a jovem “Íris” e Judi Dench dava vida à velha “Íris”. Basta recordar estas três interpretações de Kate Winslet e juntarmos à sua “performance” em “Pecados Íntimos” e assim criamos um quarteto de películas em que a Arte da Interpretação nos surge em todo o seu esplendor.

“Little Children” / “Pecados Íntimos” de Todd Field apresenta-nos desde já um cineasta e um autor, basta vermos a forma como ele se movimenta no interior das suas personagens, revelando-nos um saber e uma mestria fora do vulgar, fruto do trabalho de um verdadeiro artífice que, ao contrário desse personagem chamado Brad de “Pecados Íntimos”, nunca se irá deixar seduzir pelo “skate” dos Estúdios. Um filme que bem merece ser redescoberto!

Rui Luís Lima

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