Descrição de chapéu Público Europa Escravidão

Como países da Europa pagaram o preço de seus passados colonizadores

Discussão sobre reparações a ex-colônias voltou à tona após falas do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa

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Marta Leite Ferreira
Público

Há dois ramos de lírios, jasmim e delfínios no centro do altar, coberto por uma bandeira da Namíbia. Duas velas ardem em castiçais e exibem um apelo: "Perdoem os nossos pecados." Os homens, vestidos com trajes ornamentados, e as mulheres, com vestidos compridos e um otjikaiva —um chapéu tradicional em formato de chifre colocado na horizontal—, vão passando com solenidade à frente do altar.

A verdadeira história da cerimônia está nos detalhes: aconteceu em 2018 numa igreja na Alemanha e os participantes, em lágrimas, prestavam tributo a dois crânios, marcados com códigos na testa e nas têmporas, protegidos em cúpulas de vidro no topo de almofadas acetinadas.

Testemunhavam aquele que é considerado o primeiro genocídio do século 20: o cometido pela Alemanha entre 1904 e 1908 contra os povos herero e nama na Namíbia, cujos restos mortais foram utilizados em experiências racistas. A celebração era um pedido de desculpas.

O reconhecimento das atrocidades cometidas pelos antigos impérios voltou a surgir quando o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, defendeu que o país devia "pagar os custos" da violência colonialista. Mas a história, aqui e lá fora, já vai longa, e a cerimônia de entrega dos restos mortais pela Alemanha aos namibianos foi um dos capítulos mais importantes de um processo de reconhecimento das atrocidades perpetradas no passado colonial na África.

Duas mulheres velam caixão sob bandeira da Namíbia e grupo de pessoas acompanha a cerimônia
Autoridades da Namíbia e da Alemanha durante enterro de restos mortais de vítimas do genocídio de 1904-07 - Christian Mang - 29.ago.18/Reuters

Esse processo culminou, em 2021, num caso digno de estudo: a Alemanha foi o único país europeu que, além de assumir a autoria de um genocídio, criou um fundo de € 1,1 bilhão (R$ 6,1 bilhões), pagos ao longo de 30 anos, para apoiar a infraestrutura e programas de formação nas comunidades dizimadas.

As negociações que a Alemanha manteve com o governo da Namíbia ainda não terminaram. Além do fundo e do compromisso alemão de se referir aos acontecimento na Namíbia no início do século passado "como um genocídio" —palavras de Heiko Maas, o ministro das Relações Exteriores da Alemanha à época—, a Associação do Genocídio Namibiano entende ainda que Berlim deve comprar as terras tomadas pelos colonos alemães e devolvê-las aos hereros e aos namas. Para eles, o acordo ainda não basta.

Rishi Sunak, premiê do Reino Unido, nega reparações

Mesmo num impasse, o caso chegou mais longe do que os processos de reconhecimento das atrocidades cometidas na época colonial. E contrasta, por exemplo, com as modestas ações tomadas pelo Reino Unido, onde o rei Charles 3º se tornou o primeiro monarca a expressar apoio a uma investigação ampla sobre o papel da família real no tráfico de escravos —uma posição que surgiu depois de ter vindo a público um documento que comprova a transferência de ações de uma empresa de tráfico de escravos para o rei Guilherme 3º.

Meses depois de a polêmica ter eclodido, os descendentes do antigo primeiro-ministro William Gladstone pediram desculpas pelo passado escravista da família. O rei, no entanto, nunca o fez. Um porta-voz do Palácio de Buckingham disse apenas que Charles 3º leva o assunto "profundamente a sério" e recuperou um discurso do monarca em Ruanda em 2022: "Não consigo descrever as profundezas da minha dor pessoal pelo sofrimento de tantas pessoas, enquanto continuo a aprofundar a minha própria compreensão do impacto duradouro da escravidão."

Nesse mesmo ano, o príncipe William fez um discurso semelhante na Jamaica. Herdeiro do trono britânico —um trono que no século 19 pagou aos donos de plantações por terem perdido a mão de obra escrava—, William admitiu que as reparações históricas às colônias "não fazem parte da abordagem do governo", mas afirmou que a família real sente "um profundo pesar pelo comércio transatlântico de escravos" e "reconhece plenamente o forte sentimento de injustiça e o legado da escravidão nas partes mais afetadas do mundo".

Rishi Sunak, atual primeiro-ministro do Reino Unido, também nunca deu o primeiro passo de pedir desculpa pelas atrocidades associadas ao colonialismo britânico.

Quando uma deputada questionou se ele iria "fazer um pedido de desculpas e comprometer-se a fazer justiça restaurativa", Sunak respondeu sem rodeios: "Não."

"O que acho que devemos fazer é compreender a história e todas as suas partes, não fugir dela, mas garantir que temos uma sociedade que é inclusiva e tolerante", argumentou. "Tentar desfazer a nossa história não é o caminho certo e não é algo em que vamos concentrar as nossas energias."

O mais longe que se foi no Reino Unido foi mesmo a devolução de 32 obras de arte a Gana, mas só durante seis anos: em 2030, as peças, feitas quase inteiramente de ouro e prata, têm de regressar aos museus britânicos.

Nove em cada dez obras de arte africanas estão na Europa

Na França, o primeiro passo na conturbada caminhada europeia pela reparação histórica foi dado em 2017 pelo então novo presidente, Emmanuel Macron. Em visita a Burkina Fasso —que esteve sob domínio francês entre 1896 e 1960—, o presidente disse ser de uma geração "para quem os crimes da colonização europeia são incontestáveis e fazem parte da história".

Defendendo que "o patrimônio africano não pode ficar aprisionado nos museus", Macron devolveu 26 obras de arte que tinham sido retiradas do Benin —algo que a Alemanha também fez em 2022. Entre os objetos recuperados pela Nigéria estão os Bronzes do Benin (uma coleção de peças em liga de cobre, bronze e latão) e uma efígie de madeira do rei Behanzin, representado como metade homem e metade tubarão.

Em 2018, Macron encomendou a especialistas um relatório sobre o patrimônio de origem africana nas coleções públicas francesas. O processo instituído tem servido de exemplo numa Europa que tem nos seus museus entre 80% e 90% de toda a herança cultural dos países africanos colonizados.

A Holanda —que, no sangrento processo de descolonização, entre 1945 e 1949, exigiu da Indonésia o pagamento de uma dívida multimilionária aos colonos— também entrou na onda de devoluções de obras de arte.

O processo começou em 2020 com o rei Willem-Alexander. "Gostaria de expressar a minha consternação e peço desculpas pela excessiva violência por parte dos holandeses nesses anos. Faço isso com a plena consciência de que as famílias afetadas continuam a sentir dor e sofrimento", disse. Em 2023, o país devolveu quase 500 obras de arte à Indonésia.

O caso da Bélgica é particular, porque o Congo, onde o povo foi violentamente escravizado na exploração da borracha, era tratado como uma propriedade privada do rei Leopoldo 2º. Nos últimos seis anos, com a intensificação do debate sobre a responsabilização dos antigos impérios sobre os crimes cometidos na colonização (que incluíram protestos e vandalizações das estátuas de Leopoldo 2º), o rei Filipe da Bélgica admitiu, em 2022, que o país tinha imposto, durante seu passado no Congo, "um regime de relações desiguais, injustificável em si mesmo, marcado pelo paternalismo, pela discriminação e pelo racismo".

"Apesar de muitos belgas terem investido sinceramente, amando profundamente o Congo e o seu povo, o regime colonial baseava-se na exploração e no domínio", afirmou.

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