A relação jurídica de soberania na história do Brasil
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A relação jurídica de soberania na história do Brasil

O objetivo estratégico do Estado é manter a soberania, consolidada por 530 anos no Brasil, desde o Tratado de Tordesilhas.

15/5/2024

O principal objetivo estratégico do estado é conquistar, consolidar e conservar a soberania. Nas terras do Brasil, a soberania enquanto finalidade política e jurídica planejada e consolidada completou 530 anos. Começou no ano de 1498 com a assinatura do Tratado de Tordesilhas, mera expectativa de soberania; e segue até hoje como poder primário do estado brasileiro, entre expansões, ameaças e rupturas e produzindo os efeitos próprios de garantia da ordem política e jurídica.

Motivações e meios empregados pelos agentes que lutaram e defenderam a soberania, nos seus diversos estágios da História do Brasil, são muitas vezes deploráveis, mas o efeito como regra se manifesta como ordem a partir da lei apoiada em governo. Isso torna muito difícil a arte de julgar a História. Mais fácil é compreendê-la a partir do objetivo e efetividade da soberania.

Os sucessivos reis de Portugal a partir de Dom Manoel perseguiram a conquista das terras do Brasil. Essa finalidade estratégica foi causa em torno do qual traçaram planos, buscaram cooperação, acordos e fizeram guerras. O Tratado de Madri em 1750 praticamente fecha o mapa do Brasil e consolida a soberania portuguesa.

A ruptura da Independência expulsou os portugueses. Deixou aos brasileiros a difícil missão de conservar a soberania consolidada sobre o grande território brasileiro.

A República trouxe a titularidade da soberania para o povo. Duas rupturas posteriores – 1930 e 1964 – transferiram de certa forma o poder soberano para pessoas e grupos, o que por sucessivos processos de renegociação resultaram em soberanias renovadas.

Soberania é relação de poder pela qual o Soberano impõe lei e governo ao povo que habita determinado território. Poder significa a capacidade do sujeito A modificar ou submeter o comportamento do sujeito B. A transposição dessa relação concreta entre conquistador e conquistado, soberano e cidadão, para o Direito se manifesta como o direito de criar a lei e o governo e impor o seu cumprimento e submissão a determinado povo em certo território.

A relação jurídica de soberania é potestativa. O Soberano detém o direito, que se manifesta como poder e faculdade, de impor lei e governo aos seus súditos e povos conquistados, os quais devem se submeter e acatar o seu cumprimento.

A Figura 1 exprime no plano lógico essa relação jurídica, arduamente perseguida pela Coroa Portuguesa e mantida no Império e República.

Figura 1. Relação jurídica de soberania

A implantação da soberania nas terras do Brasil aconteceu por ciclos de expansão sucessiva no território. O fenômeno pode ser compreendido em seis etapas, que não são necessariamente sucessivas. A Figura 2 organiza essas etapas que serão brevemente comentadas nos parágrafos seguintes.

A primeira etapa é a expectativa de soberania. Trata-se de mera pretensão e que não manifesta nenhuma relação concreta com o território e o povo. Quando Portugal assinou em 1594 com a Espanha o Tratado de Tordesilhas, sob os auspícios e proteção da Santa Sé, houve pacto entre estados soberanos sobre a divisão do mundo, o que excluiu os demais países e, sobretudo, os povos que habitavam os territórios que seriam futuramente descobertos. Nesse contexto, não há como reconhecer, como efeito do acordo, poder efetivo do soberano sobre o território e o povo que habitava as terras do Brasil. Não havia conquista e posse de território e submissão do povo que nela habitava.

A segunda etapa é a conquista da soberania. O ato de conquista do território e subjugação do povo que nela habita pela força militar caracteriza essa etapa. O poder organizado das armas não é a única maneira de conquista da soberania. A implantação de colônias com súditos ou cidadãos relacionados ao Soberano também é um meio para a conquista da soberania. Esse processo pode ser por expansão contínua até o limite que estabelece certa pacificação entre estados vizinhos.

Figura 2. Fluxo lógico do processo de instituição ou constituição da soberania

A pretensão de domínio real sobre as terras do Brasil foi empregada como meio de conquista e expansão territorial. As concessões de terras em regime de sesmaria ou outorgadas aos donatários das capitanias serviu à afirmação da soberania portuguesa tanto quanto a força militar.

A distribuição de títulos de propriedade foi o vírus que espalhou a soberania nas terras do Brasil. A relação entre soberania e propriedade é muito íntima. Frequentemente, o senhor da terra serve ao soberano e este precisa dele. O regime de senhorio e grandes concessões de terras é parte desse processo. Casas senhoriais, coronéis e poderosos rurais serviram à soberania, enquanto necessários à consolidação da soberania.  

A terceira etapa é a negociação dos pactos de soberania. A força e o pacto se alternam no processo de construção da soberania. Rousseau escreveu no Contrato Social: "O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência (submissão) em dever". Essa frase define o que é soberania e captura a necessidade do pacto ou acordo. Em regra, o conflito e a força precedem o pacto.  

A história do Brasil revela que a conquista e as rupturas da soberania foram sucedidas por pactos (Tabela 1). Esse fato parece ter relação com a necessidade de pacificação, estabilização e legitimação, efeito usual da norma.

Tabela 1. Relação entre conflitos e pactos de soberania na história do Brasil

A quarta etapa é a soberania consolidada. A força e o pacto quando se alinham tendem a estabilizar a soberania por certo tempo, o que configura ordem política e jurídica. Esse efeito normalmente é positivo e favorece o processo evolutivo da Sociedade. A proclamação da República ampliou a representação popular, o que favoreceu a democratização. A soberania se conserva como poder, mas a lei adquire o tom dos novos soberanos.

A quinta etapa são as ameaças e rupturas da soberania consolidada. A perda transitória de território por invasão ou guerra e a mudança abrupta no Soberano são ameaças ou rupturas da soberania. Um bom exemplo é o fim da dinastia de Avis em Portugal e sua substituição em 1580 pelo rei Felipe II, de Espanha, dando início à União Ibérica. Ocorreram conflitos e renegociação dos pactos, através da Cortes de Tomar, em 1581. Processo inverso ocorreu em 1640 com a restauração da independência de Portugal e aclamação de Dom João IV. A ruptura altera a estrutura da soberania, mas não acaba com ela. Ele se renova.

A sexta etapa consiste na renegociação do pacto de soberania. Pode decorrer de revisão simples ou ter como causa ameaça ou ruptura da soberania consolidada. A intervenção normativa pode ser necessária para readequação das relações internas do poder soberano. O rei Dom João III adquiriu compulsoriamente a capitania da Bahia aos herdeiros de Francisco Pereira Coutinho e fez limitações nos regimes de alçadas dos donatários visando melhor aplicação da Justiça. A Assembleia Nacional Constituinte de 1988 foi revisão do pacto de soberania que existia anteriormente. Não houve ruptura, apenas reconfiguração do regime constitucional que orienta a aplicação da lei e o governo.

O Soberano no Brasil atual parece ser o Congresso Nacional. Ele dita a lei, reforma a Constituição e orienta normativamente o governo. O presidente da República governa nos limites da lei. O Poder Judiciário interpreta a lei, mas não cria, ainda que exista o gosto atual pelo ativismo judiciário. O povo elege o Congresso Nacional. Em última instância, o povo efetivamente escolhe a composição do soberano.

Em 530 anos de história, a soberania sobre o povo e as terras do Brasil foi perseguida como objetivo; conquistada pela força das armas e da expansão dos títulos de domínio e propriedade; negociada como pacto entre o povo e o soberano; renovada nos seus fundamentos para ser brasileira (Império), do povo (República), buscando sempre o aperfeiçoamento dos valores e finalidades. Essa ordem política e jurídica com tantos rastros de erros e acertos pelo caminho constitui a linha invisível que sustenta a Sociedade Brasileira.

A liberdade que cada um goza no seu dia a dia decorre dessa relação jurídica de soberania. Quando a Constituição assegura a liberdade da pessoa para fazer ou não fazer algo, a relação jurídica que suporta e garante essa liberdade é a soberania: o poder de impor a lei e o governo.

Soberania é o axioma do Direito! Causa primária da segurança e ordem jurídica na vida dos indivíduos (as unidades), nas relações entre os indivíduos (as partes) e entre todos os indivíduos (o todo).

Luiz Walter Coelho Filho
Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados. Graduado em Direito pela UFBA, ano de 1985. Exerce a advocacia nas áreas de Direito Administrativo e Imobiliário

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