Anastácia, és livre, rogai por nós - Helena Barbosa - Diário do Nordeste

Anastácia, és livre, rogai por nós

Símbolo de resiliência no movimento negro, sua existência me abraça com fervor

Legenda: Há uma quebra da ordem quando a arte de Yhuri Cruz retrata uma mulher negra suntuosa
Foto: Yhuri Cruz/Instagram/Reprodução

Santinho é aquela peça gráfica que carrega uma oração ou ilustra a cara eufórica de algum candidato político. Quando criança, a gente empilhava santinhos como se fossem cédulas. Em brincadeiras de aposta, aquela era a nossa moeda. Nunca olhei pro santinho como um repositório de fé ou dispositivo de comoção. O sentimento mudou. Hoje, guardo um santinho na carteira. Ele projeta o rosto de uma mulher negra enfeitada de bromélias. Anastácia. Nos livros de história da minha infância, eu a vi amordaçada. No reencontro promovido pela arte, em minha fase adulta, me deparo com ela coroada em um altar de flores. Sua existência me abraça com fervor.

Anastácia é um símbolo de resiliência no movimento negro. Como resposta à sua digna desobediência ao poder prevalecente, foi castigada, sendo submetida ao uso de uma máscara de flandres: instrumento de tortura produzido de ferro e couro. Esse instrumento era a materialização de uma guerra de dominação. O aparelho, que cobria a boca e reprimia a língua, definia quem tinha acesso à fala, ao ouro, ao açúcar, ao sistema.

A instituição do silêncio é uma estratégia infalível para evitar a produção da expressividade, da criatividade e da liberdade. Esse instrumento de flagelação é um elemento que assegura uma “humanidade sustada”. Enquanto isso, Anastácia teimava em existir. Lá, dentro da gaiola, agitava indomavelmente suas asas. Falava. Se não pela língua, pelos olhos, pelos poros, pela fuga, pela insubordinação, como quem diz:

“Minha voz está em sua garganta e eu a quero de volta”.

A celebração da voz humana estipula a ausência e a existência. Dita que a soberania será estabelecida em função do apagamento do outro. Ela é o antídoto que balança a estrutura assentada numa ordem colonial que insere o povo negro a  serviço do “sinhô” e da “sinhá”. Esse é o lugar da castração, da indigência, da submissão. Perante a lógica da dominação, há uma divisão racial dos espaços. Ao deslocar-se desta posição, ocorre uma contestação da “ordem”. Nesse momento, a fala estilhaça a máscara do silenciamento.

Há uma quebra da ordem quando Karoline Bezerra de Maia se torna a primeira quilombola a assumir o cargo de promotora de justiça do Brasil. Há uma quebra da ordem quando a cantora Ludmilla se apresenta no palco principal do Coachella, um dos festivais de música mais prestigiados do mundo. Há uma quebra da ordem quando Ana Aline Furtado e Cícera Barbosa (artistas e intelectuais negras) assinam a curadoria de exposições no Museu de Arte Contemporânea do Ceará, no Centro Dragão do Mar.

Há uma quebra da ordem quando Erika Hilton assume a liderança do seu partido e se torna a primeira trans negra a comandar a bancada na câmara. Há uma quebra da ordem quando a família Fazeno Rock, energicamente, ocupa o circuito de festivais de música do Brasil. Há uma quebra da ordem quando Amanda Carneiro, cria do Capão (periferia Zona Sul de SP), integra a equipe curatorial da Bienal de Veneza. Há uma quebra da ordem quando a Colagem Negra pinta sonhos da infância. Há uma quebra da ordem quando a arte de Yhuri Cruz retrata uma mulher negra suntuosa.

Legenda: Hoje, guardo um santinho na carteira. Ele projeta o rosto de uma mulher negra enfeitada de bromélias
Foto: Yhuri Cruz/Instagram/Reprodução

Todos esses episódios estruturam um corpo coletivo que se apodera do lugar da linguagem, do sentido, das emergências da verdade. Somos nós saindo do quarto do despejo e dos porões dos tumbeiros e ecoando a voz-liberdade; debochando do silêncio, até porque, como bem lembra a intelectual Audre Lorde, “eles nunca nos protegeram”. Agarra a célebre profecia que vem dos atabaques: cair sem se curvar. De sussurros e lamentos a revoltas, é inadiável a perpetuação das opressões coloniais. Nossa boca não está aqui para tão somente beber o cálice de lágrimas. Podemos tudo, até fazer uma prece para pedir proteção divina:

- Anastácia, és livre, te pedimos: afaste de nós os males e os maldizentes do mundo.