Ideias para adiar o fim do mundo
Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

Ideias para adiar o fim do mundo

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Ideias para adiar o fim do mundo Reprodução: GloboNews

O programa Fantástico – que recebe o simpático apelido de Show da Vida – fez uma cobertura ampla dos estragos no Rio Grande do Sul depois das chuvas que atingiram cerca de 90% do estado, incluindo a capital. É importante mostrar ao Brasil o tamanho do desastre e contar um pouco das histórias de quem perdeu tudo e teve a vida impactada pelas mudanças climáticas. Mas tem uma coisa nessa narrativa adotada pela mídia nacional hegemônica que não tá descendo bem. 

A abertura de um dos vídeos do Show da Vida que circula no Instagram faz um paralelo com as enchentes de setembro de 2023. A voz em off diz o seguinte: “ninguém naquela época poderia imaginar que o Rio Grande do Sul sofreria outra tragédia ainda pior, o maior desastre natural de sua história”.

Ninguém?
Poderia?
Imaginar?

*

Imaginação é algo sensacional. Eu diria até vital. Porque não dá pra viver só com a realidade. Dia desses, a poeta Luiza Casanova, que também é professora de literatura em colégios e cursinhos da região de Santa Maria, muito afetada pelas cheias dos últimos dias, me contou uma história comovente. Uma ex-aluna, que agora estuda Medicina e trabalha como voluntária num dos abrigos de refugiados climáticos na cidade de São Leopoldo, mandou a seguinte mensagem: “Tô em São Leo e aqui está um caos com as águas. E ontem aconteceu tanta coisa que só lembrei de um dos poemas que tu me ensinou da Adélia Prado”.

Há quem pense: poesia numa hora dessas? 

Pasmem:

De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.

São os primeiros versos do poema Paixão, do livro O coração disparado, de 1978.

*

É digno de nota o fato do Jornal Nacional ter enviado o âncora William Bonner para o Rio Grande do Sul a fim de cobrir e relatar diariamente e com imagens a tragédia in loco. Mas é uma entrevista com o líder indígena e ambientalista Ailton Krenak, feita pela Globo News e reproduzida no JN, que eu quero mencionar aqui.

Na breve chamada gravada pelo jornalista Roberto D’Ávila para as redes sociais, ele descreve Krenak como um “pensador diferente” que “entra por caminhos que nós não conhecemos” e ainda deixa escorrer pelo canto da boca algum ressentimento branco quando faz notar que a conversa com Krenak, na verdade, tinha sido uma “palestra, me deixando um pouco de lado”. Deve ser mesmo muito difícil ouvir calado o que Krenak tem a dizer.

No trecho que aparece no JN, Krenak é categórico e atropela o entrevistador com a impaciência justa de quem já está exausto de repetir o mesmo alerta há décadas: “Eu, na verdade, não tenho nenhuma perspectiva com relação a um novo mundo. Eu não acredito em um novo mundo. Eu acredito que nós vamos ter que resolver o que a gente vai fazer com esse que a gente está estragando. A ideia de um novo mundo está dentro de uma lógica que sugere que, se o meu sapato acabou, eu compro um novo”.

Ora, um novo mundo.

Um novo tempo, apesar dos castigos – diz a música de Ivan Lins adaptada para o Criança Esperança.

Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou – diz a clássica música de fim de ano da Globo.

Vou parar aqui antes de chegar no Partido Novo. Risos. Mas é curioso pensar nesse tipo de pergunta sobre “um mundo novo”, como se essa fosse uma saída possível. 

Krenak lembra em outro momento da entrevista: “A última vez que eu fui convidado pra vir aqui foi quando o Rio Doce foi devastado pela lama da mineração”. Ou seja, não há nada de novo na tragédia do Rio Grande do Sul.

Seus livros (que, na verdade, são transcrições de palestras) são curtos, em formato de bolso, com ideias simples e “compartilháveis” no formato das redes sociais. Tanto que Krenak é pop, seus livros são best sellers e só pelos títulos já se extrai uma mensagem: Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil e Futuro ancestral. Mas parece que ninguém sabe ler.

*

Lembrei de outra entrevista com a jornalista e ambientalista Eliane Brum, que é um tapa na nossa cara. Para ela, a maior parte das pessoas se comporta como os negacionistas (esses que a gente acha que estão “do outro lado”), ignorando que é preciso agir com toda a urgência possível para atenuar a catástrofe.

“A maioria de nós está vivendo como negacionista, mesmo achando que não é, porque se vivesse de acordo com a emergência, a gente não estaria fazendo outra coisa a não ser enfrentar a crise climática. Isso é o equivalente a tu estar com a tua casa queimando e tu ficar sentado no sofá, falando ‘a gente espera, aí quando o Bolsonaro sair em 2022, a gente reconstrói o país’, como se a gente tivesse tempo. A gente está com reações que não são de sobrevivência”, disse ela em entrevista ao podcast Ilustríssima Conversa, da Folha de S. Paulo, para apresentar as ideias de seu livro mais recente, Banzeiro òkòtó.

*

O que se odeia no índio
não é apenas o ocupado espaço.
O que se odeia no índio
é o puro animal que nele habita,
é a sua cor em bronze arquitetada.
A precisão com que a flecha voa
e abate a caça; o gesto largo
com que abraça o rio; o gosto de
afagar as penas e tecer o cocar;
O que se odeia no índio
é o andar sem ruído; a presteza
segura de cada movimento; a eugenia
nítida do corpo erguido
contra a luz do sol.
O que se odeia no índio é o sol.
A árvore se odeia no índio.
O rio se odeia no índio.
O corpo a corpo com a vida
se odeia no índio.
O que se odeia no índio
é a permanência da infância.
E a liberdade aberta
se odeia no índio.

Vi no Youtube: Maria Bethânia diz esse poema (creditado em outros sites a Reynaldo Jardim) e emenda a leitura do clássico modernista Os sapos, de Manuel Bandeira, acentuando, na minha interpretação, o verso que cita a “permanência da infância”.

*

Crianças são capazes de criar tudo: um cabo de vassoura é um cavalo; uma roda na ponta desse cabo já vira um carro; uma caixa no meio da sala pode ser um barco. Nessa lógica, toda criança nasce poeta.

Mas o que ninguém poderia imaginar, enquanto adulto, era um dia andar de barco pela Rua dos Andradas.

“Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas a dentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas”, escreveu Mario Quintana no livro Sapato florido (1948) sobre as cenas que viu (viu?) na lendária enchente de 1941.

Em 2024, quando as águas cobrem quase 90% do estado do Rio Grande do Sul, incluindo Porto Alegre, o Brasil se mobiliza diante de uma imagem: um cavalo em cima de um telhado em São Leopoldo.

Não era preciso sonhar. Absolutamente desnecessário fazer poemas. Ninguém poderia imaginar.

*

O gênero ficção científica nunca me atraiu. Mas também nunca me debrucei sobre os motivos. Só ignorava mesmo. Até que no ano passado, me peguei vidrada no livro Uma chance de continuarmos assim, primeira incursão da escritora Taiasmin Onmacht no que se convencionou chamar de afrofuturismo, e entendi tudo.

Aquilo que eu costumava acessar como ficção científica eram, basicamente, histórias que se passavam no futuro, só que escritas por homens do presente. Eu tinha a impressão de que, para esses autores, a única coisa que diferenciava o futuro imaginado por eles do presente vivido por nós era a tecnologia. Naquelas histórias, o tempo tinha passado, mas as transformações eram limitadas, por exemplo: estruturas de poder, jeitos de estar no mundo, relações de gênero e raça… nada evoluía. Para um grupo de autores majoritariamente masculino e branco – bem cômodo, né? – é como se o mundo girasse em torno da posição fixa deles.

E é aí que entra o afrofuturismo. Para começar, no romance de Taiasmin, o tempo não é linear. Logo, não sabemos se realmente estamos falando de futuro. Nem mesmo as situações mais estranhas são capazes de comprovar que se trata de projeção no tempo, afinal, quem vive o presente a partir de uma identidade não normativa, sabe que tudo pode ser bem bizarro. “Embora o futuro do mundo dependa do que farei no passado, agora sou apenas alguém assustada demais”, diz uma personagem em meio a sucessivas viagens no tempo.

A única certeza que eu tinha é de que o tempo não voltou, pois como boas leitoras de Octavia Butler – tanto a autora quanto suas protagonistas, Paula e Marcela –, o passado não é uma opção para pessoas negras. “Nem todo conhecimento precisa ser para agora”, diz outra personagem.

A história se desenrola de maneira envolvente, tanto que me vi adiando compromissos para não largar a leitura. Agora me permitam finalizar com algo que, coincidentemente, está na parte final do livro: o mundo se separou em duas partes e agora há os seres da Terra e os seres do Espaço. 

“Desde a separação, eles não nos veem mais como humanos. Foram para o Espaço, deixaram nossos ancestrais abandonados a um planeta que agonizava. (…) Agora quem agoniza são eles, os descendentes da Nova Gênesis. Eles têm tecnologia, têm poder, têm espaço, mas perderam a Terra. Este planeta não é deles. Tivemos que recuperar uma tradição muito antiga para sobreviver, e essa tradição nos fez encontrar na natureza tudo o que precisávamos para recomeçar e avançar nas pesquisas de imunologia humana. (…) Tecnologia é natureza, natureza é tecnologia”.

Nesse futuro (que nada tem a ver com tempo), a principal linguagem é a festa. E é na dança que as questões do mundo são resolvidas: “A dança permite que sejam faladas as disposições do espírito. O movimento aviva as palavras.”

No afrofuturismo, o futuro é ancestral.

*

E por falar em distopias, a vida vive imitando a arte, infelizmente. As cenas de caos que vivemos aqui na região central de Porto Alegre, com os avisos atabalhoados de evacuação urgente de bairros inteiros, fruto da mais deslavada incompetência e inoperância da gestão pública – tudo isso logo depois de acompanharmos de longe as notícias de destruição e calamidade no interior do estado – lembrei muito do livro A extinção das abelhas, de Natalia Borges Polesso.

Se eu tivesse que defender porque esse livro tem tudo a ver com a atual situação de emergência climática que vivemos, eu diria: no livro, pelo menos eles têm um colapsômetro – literalmente um medidor do colapso. Sorte a deles, porque nós ainda estamos à deriva, em negação.

Difícil escolher um trecho para reproduzir, porque o que me pega nesse paralelo é toda a ambiência do livro. Mas vou deixar aqui um gostinho:

“Na estrada para Caa Catí, Aurora cantarolava músicas que todas conheciam, mas nenhuma tinha ânimo para acompanhar. Olhavam pelos vidros sujos do carro a estrada vazia. As sanções desertificavam os lugares, os tornavam inabitáveis. Alguém decidia como, quando e quais as condições de vida retiraria das localidades. E era tão rápido e tão impossível de realizar que as estruturas que tinham sido construídas para a sociedade tinham tornado as pessoas tão dependentes que elas ficavam mesmo sem chão quando acabava a água, a eletricidade, a comunicação, as instituições. O senso de comunidade não era restituído. Era um salve-se quem puder que terminava de matar a todos. Fomos moldados para a não-solidariedade, por isso exigíamos tanto o seu exercício, para confeccionar alguma aprendizagem. Regina tinha ficado tão absolutamente sozinha, tão absolutamente sem onde se firmar, que acabara matando uma pessoa, fugindo de sua família e se encontrando numa situação de quase morte. Esse era o resultado planejado para o caos, para o colapso orquestrado. Que as pessoas ou morressem ou se matassem. Contra as estatísticas, Regina agora estava num carro com outras quatro mulheres cruzando a fronteira argentina.”

*

Nos últimos dias, tenho conversado sobre a situação do Rio Grande do Sul com amigos e amigas de fora do estado, do Brasil e de várias partes do mundo. A escritora Carola Saavedra, que mora em Colônia, na Alemanha, me contou da propaganda de um partido que disputa as eleições deste ano para o Parlamento Europeu, cuja proposta é “apoio à medicina para que possamos viver 800 anos”.

Primeiro comentamos que seria cômico, se não fosse trágico. Em seguida, nos perguntamos: em que mundo essas pessoas vivem? 

“São os mesmos homens brancos que acham que vão desembarcar do planeta”, me diz Carola. Daí me lembrei do livro da Taiasmin. Será que a ficção científica é capaz de acompanhar esse delírio?

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