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Florentino Iglesias

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Carlos Diaz

Carlos Díaz reconhece em algum lugar que sua cultura é germânica e, sem dúvida, seus primeiros escritos sobre Husserl, a tradução e introdução ao senhor Vogt, de Marx, seu trabalho sobre Stirner, ou O Livro Vermelho e Negro da dupla Marx- Engels, denotavam um grande amor pela língua de Goethe. Mas Carlos Diaz é germânico por seu rigor, por método, pela sua infatigável laboriosidade que caracteriza a muitos dos que chegaram do outro lado do Rin. E que dizer das suas fontes espirituais?

Foi na margem esquerda do Rin onde encontrou sua fonte espiritual no grande humanista Emmanuel Mounier, homem austero, que viveu conflitos internos, alguns mais lúcidos e conscientes, como as colisões com Maritain pela sua fidelidade tomista. Ele mesmo se considerava ortodoxo, ou com o autodenominado grupo dos Não Conformistas dos anos trinta. Este grupo, de orientação mais laica, aspirava a uma “revolução total” e defendia um radicalismo metodológico e filosófico revolucionário, almejando sempre o câmbio social. Os personalistas mais conformistas viam no “personalismo” uma versão do individualismo liberal ou uma ressurreição de um espiritualismo renovado, inclusive de um “comunismo” menos extremista que o oficial.

Sobre “personalismo” e Mounier

O grupo dos “Não Conformistas”, umas vezes unidos e outras separados pelas querelas da época, lançou o conceito-chave “personalismo”, que, se bem nem todos utilizavam do mesmo modo, era comum aos dois grupos mais importantes, “Ordem Nova” e “Esprit”, e exerceu como signo de identidade e união. Este conceito englobava amplamente o conjunto de temas e preocupações sobre os que tinham algo a dizer. Por outro lado, o termo já tinha sido utilizado por alguns filósofos como Renouvier, por exemplo, embora não implicasse filiação alguma, especialmente entre os partidários da ação.

Pouco depois, Emmanuel Mounier associou seu nome com o “personalismo”. Jacques Chevalier, seu professor de filosofia, se irritava com frequência pelo uso que alguns faziam do conceito, sugerindo que teria sido mais prudente, ou, em todo caso, “mais cômodo”, escolher um outro termo. Mas Chevalier compreendeu rapidamente que Mounier era um caso singular. Já naquele tempo, mais do que criar etiquetas, sua preocupação era se situar dentro de uma tradição espiritual; as palavras sempre definem ou sugerem o que desejamos expressar, e para ele não se tratava de forjar um “ismo mais”: “O que hoje chamamos de personalismo não senão uma novidade. O universo da pessoa, que é o universo do homem. Seria raro que tivéssemos esperado ao século XX para explorá-lo, mesmo que fosse sob outros nomes”.

Emmanuel Mounier, que cobrará a Sartre não sentir o olhar do outro senão como ameaça e violação, soube mover-se entre Bergson e Péguy, quem encarnou o conflito entre o místico e o político, e compreendeu o conflito, melhor dito, o drama de seu país e seu tempo. A luta de Péguy era contra a soberania do dinheiro, contra o domínio econômico e contra o que denominava o partido intelectual. Era místico, nunca consegui ler sua poesia, me exasperava, levava até o trágico seus conflitos com seus adversários, mas também admira e cita com frequência a Proudhon, outro pensamento atormentado, mas, apesar de suas aparentes contradições e seus meandros, mantém uma linha na sua luta para que nosso fim “terrestre seja a realização na Terra o reino do espírito”. Nunca desfaleceu nesse amor concreto ao povo e no seu ódio pela via tortuosa da realidade democrática, e longe de renunciar, continuou a batalha, não só contra os inimigos do povo, mas também contra ele mesmo. Seus “Cahiers” são muito eloquentes ao respeito.

Mounier se familiarizou logo com o conteúdo construtivo e direto da obra de Bakunin, e em 1937 publica, na revista “Esprit”, um importante trabalho no qual demostra seu profundo conhecimento da corrente anarquista. Por sua parte, Jean Lacroix, também tinha dedicado um notável estudo sobre a soberania do direito na obra de Proudhon. Além das diferenças entre eles, Landsberg demostrou, na revista “Esprit”, seus profundos conhecimentos sobre o anarquismo.

Apesar da Guerra, a Resistência, a detenção e a cadeia, Mounier deixou uma obra ampla e densa. Além de representar o melhor do cristianismo, dirigiu a revista entre 1932 e 1950, impregnando-a de seus próprios posicionamentos éticos. Segundo Jean Lacroix, ele foi capaz de se submergir na histórica sem se perder em ela. Para Mounier, a revolução parte do concreto, do cotidiano, do homem, mas, como Proudhon, permaneceu fiel aos ideais da Revolução francesa. Manteve relações com um grupo radical integrado pelo historiador Robert Aron, Arnaud Dandieu, Alexandre Marc e, com maior distanciamento, incluso, com o jovem filosofo suíço Denis de Rougemont.

A Espirit e seu papel

A revista “Esprit” apareceu primeiramente como círculo de estudos, inicialmente mais religiosa, depois com um caráter mais filosófico e social, se apresentava como “grupo de espíritos não-conformistas e revolucionários”. O de “revolucionários” deve entender-se no sentido psicológico e moral, no sentido de aspirar a uma mudança global, a um restabelecimento dos valores fundados sobre a primazia da pessoa humana. Só partindo desta exigência e em função desta finalidade podem ser definidas as instituições de uma sociedade renovada. Ainda em 1932, Arnaud Dandieu e Robert Aron utilizavam a palavra “indivíduo” neste sentido. Em La Revolution nécessaire, uma obra importante para o personalismo, com o objetivo de dissipar os equívocos do individualismo, se lê: “diríamos melhor a pessoa, em oposição ao individuo abstrato do individualismo”. O próprio Alexandre Marc, que se incorporou em 1932, falava, em um de seus artigos, que o movimento personalista talvez não tivesse uma clara consciência de todas suas “fontes” e provavelmente se tivesse inspirado num certo socialismo não marxista, em alguns neotomistas, em Max Schiler, Karl Jaspers e sobretudo Proudhon, sem esquecer de Péguy.

Com certeza, a revista “Esprit” nasceu sob a proteção e o cuidado de Maritain, seguindo uma certa inspiração religiosa sem ser confessional. Do mesmo modo, parece que foi Alexandre Marc, associado à redação, quem propiciou o encontro entre Dandieu e Mounier, apesar de certas reticências recíprocas. É muito provável que, depois de Revolution personaliste, artigo aparecido em dezembro de 1934, Mounier aceitasse definitivamente o termo “personalisme”.

Relevância de Rougemont

Procedente das montanhas do Jura suíço, Denis de Rougemont, protestante barthiano, compilou um conjunto de artigos e conferências que publicou com o nome de Política da Pessoa.Segundo este jovem filósofo, mais proudhoniano que barthiano, para quem a pessoa é o cerne de toda organização social, aparece uma dimensão política reduzida a um “pessimismo ativo”; “a pessoa, ao contrário que o indivíduo perdido na história vive de instante em instante, de um papel a outro, sempre imprevisível, vive no risco e na decisão, enquanto o homem da massa vive, na espera, a revolta e a impotência”. Aqui, não estamos tão longe da posição bakuninista a que Mounier se referia com frequência.

Nesta síntese, aparece a reivindicação da autogestão e a busca da autonomia da pessoa e dos grupos, e aparece igualmente em Carlos Diaz, seu melhor intérprete.

A reivindicação da autonomia pessoal foi, lembremos, durante muito tempo condenada pela Igreja.

A influência de Proudhon

Tanto a Carlos Díaz como a muitos de nós, nos surpreendem os paradoxos de Proudhon. Não aceitamos seus posicionamentos sobre os judeus nem sobre as mulheres. Porém, é justo reconhecer que também realizou grandes aportes, que, em alguns casos, pesam mais que as contradições. Foi um dos primeiros personalistas, defensor da autogestão, sem a qual dificilmente se poderá construir uma sociedade que garanta a justiça e a participação do homem na sociedade. É provável que estes posicionamentos sobre a justiça e a participação ativa ou defesa da autonomia da pessoa fosse o que mais chamou a atenção do jovem Mounier, em quem o espiritual ainda brigava com o diagnóstico sobre a autêntica alienação.

Por outra parte, a guerra da Espanha, Munich, a ocupação, o estalinismo e as guerras coloniais deixavam pouco espaço para o combate espiritual. Sem dúvida, certo niilismo de esquerda, onde abundam as capelas, o fanatismo das seitas, e uma direita reacionária que negava o progresso e a liberdade, quer dizer, “a primazia do espiritual”, ou os quase vinte anos de socialismo real que terminaram por confirmar que o marxismo era “esse filho rebelde do capitalismo e que se parecia cada vez mais a seu pai”, puderam persuadir-lhe a procurar outros caminhos.

Mounier descobre, no pensamento de Bakunin e Proudhon, que, se bem podiam ser considerados personalistas, não elaboram uma clara distinção entre “indivíduo” e “pessoa”.

Poderíamos citar muitos textos, mas assinalaremos somente um do epílogo de Ideia Geral da Revolução, que nos oferece esta definição: “Sem perder nossa individualidade mudamos nossa existência. Talvez a revolução do século XX. Não é a ideia decisiva desta Revolução a negação da autoridade na Igreja, no Estado, sobre a Terra, sobre o dinheiro? Não mais autoridade! Significa algo que nunca temos visto, algo que nunca temos compreendido: harmonia dos interesses com os interesses de todos; a identidade, soberania coletiva com a soberania individual”.

Para os libertários, este personalismo, que reflete fielmente o pensamento de Mounier, se complementa com o federalismo em que os direitos e a autonomia encontram plena garantia.

Em outro texto, Proudhon defende a transcendência da pessoa ao mesmo tempo que a exalta com certo misticismo. “Nem a consciência nem a razão, nem a liberdade nem o trabalho, forças puras, primeiras faculdades criadoras, poderão, sem perecer ser mecanizadas, fazer parte integrante ou constituinte de um sujeito, ou objeto qualquer: estão por natureza do sistema, fora de série, e é na sua obra onde podem encontrar sua razão de atuar. Em isto consiste a pessoa humana, pessoa sagrada que aparece na sua plenitude e irradia toda sua glória ao instante, rejeitando todo sentimento de temor, todo juízo, toda subordinação, toda participação que possa dizer com Descartes: Cogito, ergo sum: eu penso, eu sou soberano, e se exaltando até o entusiasmo: eu sou Deus”.

Entre outras muitas fontes, é daqui de onde bebe Carlos Diaz. Ninguém melhor do que ele, com sua visão enciclopédica, tratou todos os escritos de referência do anarquismo, desde Teorias anarquistas, Memória anarquista, Atualidade do anarquismo, O anarquismo como fenômeno moral, 16 Teses sobre o anarquismo, Sistema do anarquismo ou O anarquismo clássico. Além de mais de trinta prólogos ou introduções a velhos ou novos autores anarquistas. É um luxo tê-lo conosco, contar com sua pena para dar vida e atualizar umas ideias que muitos achavam entregues à “crítica de algum roedor de biblioteca”, como diria Carlos, ou a alguns arquivos pessoais para jovens das novas gerações convencidos de que pertencem à história. À história sim, mas como corrente e escola de pensamento. Ele mesmo se considera um silenciado na sua solidão no panorama intelectual espanhol, e por que não falar, dentro do anarquismo, a que dedicou tanto tempo e tantos esforços a fim de divulgar sua mensagem.

Proudhon advertia, já na sua Primeira Memória, do processo irreversível que se produz com a dissolução da fé na autoridade; desde esse momento o homem procura as motivações da vontade soberana: nesse momento o homem se rebela. Portanto, “se já não obedece porque o rei manda, mas porque o rei demonstra, podemos afirmar que, em diante, não reconhecerá autoridade nenhuma e que se tornou seu próprio rei”. Esta ideia corresponde também a sua visão do homem no mundo. No seu livro A Guerra e a Paz, afirma: “O homem, compêndio do universo, resume e sintetiza na sua pessoa todas as virtualidades do ser, todas as que, por sua divergência, se resume e faz, embora sem penetrar-se nem se confundir. Ele é, ao mesmo tempo, por essa agregação espírito e matéria, espontaneidade e reflexão, mecanismo e vida, anjo e bruto”.

Ainda Carlos Diaz, Mounier e Camus…

Interpretamos, com Carlos Diaz, que “o mundo é de muitas cores e algumas muito dolorosas, mas também que temos energia para tentar pelo menos melhorá-lo”. O consumismo da sociedade atual não deixa demasiadas esperanças, mas Carlos representa esses espíritos que não se dão por vencidos. No percurso da sua vida e sua obra, há um fio condutor; em cada etapa vital, em cada livro, esse fio se mostra como uma exigência de harmonia e uma necessidade de estabelecer a paz com os outros. Este filho de professores adquiriu muito cedo a disciplina do trabalho. Nos seus últimos livros, não falta nada do que pode interessar ao homem contemporâneo, desde sua experiência em Florianópolis, até a terapia compartida com drogados em Cenedhom (Caracas).

Na sua atitude crítica, aflora sempre seu compromisso com o trabalho e a urgência de continuar denunciando as injustiças e aportar informação de outras sociedades possíveis; continua escrevendo e publicando para servir de estímulo às gerações futuras.

Mas, para além de seu voluntarismo, ele é muito ciente de que as crises são muito frequentes nas pessoas e nos grupos. O próprio Mounier sabia bem disso. Voltemos aos anos trinta. Mounier se viu no meio de uma disputa entre a corrente que aspirava a converter “Esprit” em um apêndice da Igreja e aquela que, ademais de alguns católicos, contava com a presença de protestantes, ortodoxos, judeus e ateus mais próximos das teses revolucionárias. Isto desencadeou uma ruptura com o grupo “Ordem nova”, próximo a seus posicionamento e igualmente com os de colaboradores Alexandre Marc e Denis de Rougemont, ambos claramente partidários do proudhonismo. Também estava G. Gurvitch que acabava de publicar sua tese “A ideia do direito em Proudhon” (1933), que Mounier incorporaria a seu ideário.

Mas será em 1937, com Anarquia e personalismo que irá sintetizar uma ideia comum a “Esprit” e aos grupos revolucionários, devotados a recuperar o pensamento proudhoniano. O grupo de “Ordem Nova” se decanta pelas propostas de um federalismo hamiltoniano aplicado a toda Europa. Especialmente Robert Aron, colaborador da revista Des deux Mondes, que teve, junto a Dandieu e A. Marc, uma atividade de destaque. Os três desejavam por as instituições ao serviço das ideias e batalharam pela unificação europeia, entendida como uma regionalização descentralizada. Firmes partidários da autogestão operária e de um federalismo político como etapa intermediaria, promoveram o “Centro de altos estudos europeus” de Nice, destinado à formação de quadros.

Em um contexto internacional convulso, guerra de Indochina, rebelião em Madagascar, Mounier denunciou com firmeza o colonialismo francês, do mesmo modo que Albert Camus fez em Argélia. Mounier foi um dos primeiros a responder ao chamado de Henri Frenay para incorporar-se ao “Movimento Combat da Resistência” contra a barbárie e o totalitarismo nazista. Sobre isto, Jean Lacroix escreveu: “se Mounier podia comprometer-se de esse jeito em todo, sem poupar nada, era porque apenas se preocupava de sua própria persona”. Isto diz muito do seu posicionamento moral; falar de Mounier é falar de consciência social, apesar de que, como no caso de Proudhon, sua linguagem está cheia de termos cristãos e metáforas evangélicas, pouco relevantes em vista de seu compromisso.

Para convencermos só temos que ler seu “Diário de um detento”. Porém, de todo o círculo de Mounier, o mais próximo do anarquismo, foi Alexandre Marc, quem contemplou o trabalho de Gurvitch como um novo “conceito revolucionário do direito”. Se as citações de Mounier a Proudhon são escassas, em 1934, respondendo a Marcel Moré, quem lhe propôs um artigo sobre Marx, Mounier respondeu: “aqui somos todos proudhonianos”.

Na primeira equipe de “Esprit”, havia homens como Jean Lacroix que já tinham publicado trabalhos sobre Proudhon, partindo do filósofo Alain e do realismo místico de Péguy. Ele foi, sem dúvida, quem mais longe levou a simbiose anarquismo e personalismo, e o autor contemporâneo que mais escreveu sobre pensadores anarquistas, autênticos modelos de organização social que exemplificam os valores básicos que se propõem como guias para a configuração concreta de uma sociedade real”.

Mounier possuía um preciso conhecimento de dos grandes de sua época: Malraux, Sartre, Camus e Bernanos. Naturalmente, com os quatro teve diferenças, embora endereçou suas críticas mais profundas aos três primeiros: “Ninguém poderá nunca generalizar o cartesianismo cósmico ao universo moral. Os mais revolucionários dos moralistas ou imorais posteriores não fizeram senão descolar o campo dos valores do divino ao humano, do espírito ao instinto”. A posição estava, pois, clara, talvez mais matizada no caso de Bernanos.

No que diz respeito a Camus, as discrepâncias se reduzem a seu posicionamento sobre o espiritual. Como ele mesmo afirma, Albert Camus localizava a raiz do mal no ponto onde o homem cede a uma autoridade abstrata. De tal forma que o homem não teria unicamente deveres perante o homem, mas também perante um ser imaginário. Para a teologia, este ser imaginário seria Deus, para a ciência política, o Estado.

“Se Deus não é, que é o homem”, se perguntava Camus? Mounier considerava que Camus começou por colocar a irracionalidade do mundo, e que a humanidade laica acreditava em uma determinada ordem do mundo, de tal forma que a ideia de justiça elevada a um equilíbrio necessário poderia se desenvolver na consciência humana.

Camus foi muito mais tolerante do que se diria posteriormente dele. Em “O homem revoltado”, que Mounier não chegou a conhecer, une um posicionamento proudhoniano, quase bakuniniano, se não fosse pela injusta crítica que faz. Mas se pensamos na sua intervenção no Convento dos dominicanos de Latour- Maubourg, em fevereiro de 1946, fica claro, como ele mesmo reconhece, que a verdade cristã lhe era completamente alheia e nunca tinha penetrado nela. O verdadeiro problema, prosseguia, era saber se o homem, “sem recorrer ao Eterno ou ao pensamento racionalista, pode criar os verdadeiros valores”. Daí seu desejo de um “universalismo médio” e a definição dos “valores provisionais”, sobre os quais cristãos e não cristãos pudessem se entender para combater eficazmente o reinado da violência, das abstrações homicidas e as tiranias totalitárias.

Sobre a Revolução

É provável que o termo “Revolução” assustasse, mais do que ao próprio Mounier, a um amplo sector de seus colaboradores; de fato, alguns dos posicionamentos originais da revista provocaram certa indignação em parte de seus leitores. Até pode ser que fossem a origem dos relatórios apresentados ao bispo denunciando “Esprit”, queixas que chegaram até o Papa. O que surpreendeu realmente aos Não Conformistas Robert Aron, A. Marc e Denis de Rougemont foi a proximidade de Mounier com os comunistas, sobretudo depois de 1941. De fato, nos três anos que seguiram à liberação, apenas se publicaram denúncias do estalinismo, num momento em que os campos de trabalho e reeducação, o Gulag, estavam em pleno funcionamento. Em relação aos católicos, âmbito católico, “Esprit” consagrava a ruptura entre a ordem cristã e a ordem estabelecida, o que supunha um afastamento do evolucionismo de Theilhard de Chardin.

Este posicionamento ficou claramente exposto pelo secretário de Redação, quem, após uma conversa com Mounier, anotou no seu diário: “Do ponto de vista metafísico, isto deve ficar claro, nosso limite está à beira do ateísmo”. É verdade que Mounier nunca aspirou a ser um funcionário da revolução espiritual.

Além disso, a sombra das relações de “Esprit” com os comunistas persistiu no tempo. E Mounier tinha recebido advertências sobre a verdadeira situação na Rússia. Victor Serge, a quem Leval tinha conhecido em Moscou em 1921, admitia e compartilhava, em privado, o diagnóstico crítico sobre a revolução, e não sentia a menor simpatia pelo Partido e seus dogmas, apesar de seus escritos incendiários na imprensa europeia, onde afirmava todo o contrário. No Hotel Lux de Moscou se vivia muito bem como revolucionário profissional.

Só no final de 1936, quando Víctor Serge, proscrito pela fração no poder, pela ortodoxia da miséria, perante a evidência da história e saudoso de seus velhos amigos, Trotsky, Lenin, Boukahrine e Dzerjensky, mortos, fora do poder com uma casta e uma nova visão do totalitarismo, e autorizado a abandonar Rússia por um paraíso capitalista, Serge endereçou duas cartas a Mounier, a primeira de 7 de janeiro de 1946: “Acho que o senhor se engana, assim como meus amigos fuzilados e eu mesmo nos enganamos obstinadamente durante mais de dez anos e pelas mesmas razões de confiança no homem. Civilizados como somos, nos negamos a acreditar no pior; mil razões afetivas nos vinculam, ao senhor e a mim, ao povo russo, a seus impulsos épicos, a seus sofrimentos, e se deve ter um coração de pedra para dizer a si mesmo, a sangue frio, que esse povo fracassou na sua missão ao acabar no mais sombrio naufrágio tudo o que ele mais queria”.

Pouco depois, na segunda carta de 7 de marco, após receber uns informes sobre os crimes de Stalin, Víctor Serge escreve: “A defesa do homem implica hoje, em primeiro lugar, a reprovação dos crimes do pior totalitarismo, a informação honesta, a toma de consciência do perigo; ou a defesa do homem já não é senão um simulacro. Abdicação, acômodo ao inaceitável”.

Mounier, porém, está longe de se resignar ao inaceitável; seguiu sua linha, ignorando as advertências do converso que tinha vivido sobre os tapetes do Hotel Lux, com todos os gastos pagos pela revolução durante quase vinte anos.

Texto publicado em maio de 2024




Fonte: Ielibertarios.wordpress.com