Napoleão e Josefina: Uma relação tóxica

Napoleão e Josefina: Uma relação tóxica

Casados quando ele era ainda um simples general e ela uma das grandes belezas de Paris, Napoleão e Josefina mantiveram uma relação marcada por infidelidades mútuas, pela cobiça e pelo calculismo político.

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Napoleão coroa Josefina
FRANCK RAUX / RMN - GRAND PALAIS

Este óleo de Jacques Louis David regista o momento em que Napoleão I, já coroado imperador dos franceses, coloca a coroa imperial na cabeça da sua esposa Josefina. 1804. Museu do Louvre, Paris.

No dia 11 de Março de 1796, um casal abraçava-se à porta de uma residência na luxuosa Rua Chantereine em Paris. A mulher, com cerca de 30 anos, magra, bonita e elegante, fingia soluçar. O homem, baixo e baço (apesar do seu uniforme de general do exército da República Francesa), lutava contra o impulso de não se separar dela: ao fim ao cabo, tinham-se casado há dois dias. Mas o dever chama todos os soldados, e o obscuro general Napoleão Bonaparte tinha de partir sem falta para liderar o exército de Itália no que seria – pelo menos era o que todos acreditavam – mais um episódio na longa guerra que as potências europeias suportavam contra a jovem república.

Menos de um mês mais tarde, enquanto dava início à primeira campanha que o conduziria à glória, Bonaparte continuava a chorar por ter tido de abandonar a sua esposa: “Minha Josefina única, longe de ti não existe alegria; longe de ti, o mundo é um deserto no qual estou isolado e não sinto a doçura que vem do desabafo. Arrebataste-me mais do que a minha alma; és o único pensamento da minha vida.”

O general e a bela viúva
RMN - GRAND PALAIS

O jovem Napoleão faz a corte a Josefina na casa desta pouco depois de se conhecerem. Imagem de 1907, feita através de pintura e fotografia. Mediateca de Arquitectura e Património, Charenton-le-Pont. 

Este futuro herói romântico tinha sido até ao momento um homem de existência cinzenta. Quando conhecera Josefina, seis meses antes do seu casamento, era um general de 26 anos sem destino, que passeava tristemente pelos salões parisienses à procura de protectores e que só se permitia uma refeição por dia. Embora pareça mentira, naquele momento Napoleão só inspirava pena.

Casamento por conveniência?

Josefina, em contrapartida, era uma mulher de 32 anos e com uma grande história atrás de si. Crioula bonita e caprichosa, fora educada entre escravos na plantação que a sua família possuía na colónia caribenha de Martinica e chegara à metrópole ainda adolescente para se casar com o visconde de Beauharnais. Esse foi um casamento infeliz, do qual nasceram dois filhos – Eugénio e Hortênsia – e que terminou abruptamente durante a época do terror, quando a guilhotina caiu sobre o pescoço do seu marido.

Naquela altura, encontrava-se presa numa das famosas prisões de Paris, juntamente com outras pessoas que depressa teriam um papel destacado no novo regime. Quando surgiu o golpe de Estado de 9 de Termidor do ano II (27 de Julho de 1794), que arrasou com Robespierre, Josefina tornara-se amiga íntima da amante de um dos cabecilhas do complot, a espanhola Teresa Cabarrus, detida a seu lado.

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FRANCK RAUX / RMN - GRAND PALAIS

A sua filha Hortênsia, Napoleão e outras damas descansam no frondoso jardim de Malmaison. Victor Viger du Vignea, 1866. 

Aquando da sua saída da prisão, as duas mulheres transformaram-se em sobreviventes. Incapacitadas pelo seu género e pela sua classe social para exercer qualquer profissão ou para se dedicarem abertamente à política, aos negócios e às finanças, depressa perceberam que a sua sorte e a dos seus filhos dependia unicamente da sua capacidade para seduzir homens ricos e poderosos.

A nova elite burguesa surgida do caos da revolução estava disposta a esquecer-se de todos os seus princípios para usufruir do poder e do luxo e aceitou com naturalidade nos seus salões, e até no seio das suas jovens linhagens, um certo tipo de damas que, pouco tempo depois, rejeitaria. O próprio Napoleão seria um dos principais instigadores da estrita moral patriarcal que se exigiria às mulheres durante o século e meio seguinte e que ficaria claramente expressa no seu famoso e imitado Código Civil. 

Em Outubro de 1795, a Convenção Nacional foi substituída pelo Directório, um regime governado por uma comissão de cinco “directores”. Admiradas como poucas nos salões, Josefina e Teresa mantinham estreita relação, às vezes amistosa outras vezes amorosa, com Paul Barras, o membro mais poderoso do Directório. Barras e Teresa Carrabus terão sido, ao que parece, as duas personalidades que tornaram possível o relacionamento entre Napoleão e Josefina, confiando que a união entre aqueles dois seres necessitados de estabilidade seria positiva para ambos.

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GÉRARD BLOT / RMN - GRAND PALAIS

Josefina, no topo das escadas, lê com entusiasmo uma carta de Napoleão na qual o general anuncia uma das suas vitórias. Óleo de Nicolas-Antoine Tauny, 1808. Palácio de Malmaison. 

Napoleão apaixonado

Josefina Beauharnais pareceu aceitar o enlace por conveniência. Em contrapartida, Napoleão Bonaparte apaixonou-se perdidamente por ela desde o dia em que se encontraram pela primeira vez. No dia seguinte a tê-la conhecido, já lhe escrevia uma das suas inflamadas cartas: “Acordei pleno de ti! Doce e incomparável Josefina, que estranho efeito causais no meu coração!”

A verdade sobre o casamento já nós a conhecemos, muito para lá do mito, graças à sua correspondência. Conservaram-se 256 cartas das muitas que Napoleão enviou a Josefina e cinco dela para o seu marido: Bonaparte queixava-se sempre de não receber notícias da esposa, muito preguiçosa na hora de lhe escrever. Estas cartas correspondem a um pequeno orifício na parede que nos permite observar uma certa intimidade do casal. Reflectem desde o início o desequilíbrio e a toxicidade daquela relação.

Durante os primeiros dois anos, enquanto levava a cabo as fantásticas façanhas militares da sua primeira campanha por Itália, Napoleão escrevia incessantemente a Josefina de cada campo de batalha. Enviava-lhe notícias secas sobre as suas vitórias e o número de feridos e mortos, que misturava, com extrema falta de empatia, com expressões do seu amor e das suas saudades. São breves textos sentimentais, frequentemente lastimosos, repletos de frases  ardentes e íntimas: “Um beijo no coração e logo um pouco mais abaixo, muito mais abaixo!”. “Importa-me a honra porque te importa a ti […] e a vitória, porque te faz feliz; sem isso, teria deixado tudo para me deitar a teus pés.” “Sabes muito bem que não esqueço as minhas maravilhosas visitas; já sabes, o teu pequeno bosque negro. Dou-lhe mil beijos e espero impacientemente o momento de me encontrar ali, todo teu.”

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DANIEL ARNAUDET / RMN - GRAND PALAIS

Este óleo de Robert Lefevre mostra Josefina já como imperatriz, com um luxuoso vestido e tiaras e diademas na cabeça, 1805. Palácio de Malmaison. 

Fria e interesseira

Josefina, entretanto, parecia não valorizar os sentimentos exaltados do seu marido. Dedicou-se a usufruir em Paris da sua excitante vida como esposa de um general que todos admiravam, participando em festas e gastando exorbitantes quantidades de dinheiro, mais do que o que lhe enviava o seu marido de Itália, fruto de saques e presentes desmesurados. Além disso, enquanto Napoleão marchava até à frente de combate, Josefina apaixonou-se por um jovem tenente dos hussardos chamado Hippolyte Charles. Sentia-se tão segura do seu poder sobre Napoleão que a possibilidade de este se inteirar da sua relação não a assustava em absoluto.

No fim da campanha militar, quando se juntou a ele em Milão, seguida de perto pelo tenente, escreveu à sua tia, explicando o seu domínio sobre o general: “Realiza sempre os meus desejos. Está todo o dia em adoração perante mim, como se eu fosse uma divindade.”

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ARNAUD CHICURIEL / GTRES

Quarto de dormir da imperatriz Josefina no Palácio de Malmaison. A cama tem por cima um sumptuoso baldaquino coroado com uma águia imperial. 

Josefina aproveitou-se da situação não só para se divertir, mas também para enriquecer às custas do seu marido, criando uma rede de corrupção que incluía o amante, o director Barras e o ministro da Guerra. Amealhou muito dinheiro, incitando o ingénuo Bonaparte a conceder contratos com fornecedores incertos para o aprovisionamento de víveres e de outros materiais para o seu exército.

O próprio Napoleão reconheceu esta farsa no seu livro Memorial de Santa Helena, as memórias que ditou ao conde de Las Cases no fim da sua vida. Na obra, conta como, depois de ter sido avisado pelo seu irmão José do que estava a passar-se, Josefina conseguiu convencê-lo, entre prantos e carinhos, de que tudo não passava de uma mentira.

Porém, a sorte não duraria para sempre. Em Maio de 1798, dois anos depois do casamento, enquanto se encontrava em plena campanha de conquista no Egipto, Napoleão foi de novo informado dos jogos de bastidores da sua esposa por três altos oficiais da sua confiança. E desta vez acreditou neles. A partir de então, a relação do casal ficou minada. Bonaparte decidiu não se divorciar porque percebeu que, à medida que ascendia na escala social e política, necessitaria cada vez mais de Josefina como anfitriã dos seus compromissos. Mas deixou claro que era agora ele quem detinha o poder, a partir de então exercido de forma tirânica e caprichosa, tal como depressa o faria na vida política de toda a Europa.

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RMN - GRAND PALAIS

No dia 14 de Janeiro de 1797, na batalha de Rivoli. Óleo de Philippoteaux, 1844. Palácio de Versalhes. 

Napoleão começou a acolher na sua cama inúmeras amantes, sempre muito jovens, e a tratar a esposa com uma crueldade enorme que, tal como acontece com a maioria dos abusadores, alternava com momentos de arrependimento e ternura. É bastante provável que chegassem a acontecer episódios de violência física: uma das damas de honor de Josefina, quando era já imperatriz, Madame  de Rémusat, assegurou nas suas Memórias que, certo dia, Josefina seguiu às escondidas outra das suas damas e encontrou-a na cama com Napoleão. Este ter-se-ia aborrecido tanto que “a ultrajou”.

Ela, por seu lado, transformou-se de repente numa mulher débil, ciumenta e assustada, sempre temerosa perante a ideia de que aquele marido, que antes menosprezava, a abandonasse, mas que sabia ter-se transformado numa personagem fora do comum. Agora, era ela quem escrevia frases de submissa devoção nas suas cartas: “Se um arrebato de alegria chegar à tua alma, se a tristeza chegar a inquietar-te por algum momento, será no seio da tua amiga que derramarás a tua felicidade e as tuas penas. Esse é o meu desejo, os meus votos, que se reduzem a agradar-te e a fazer-te feliz.”

O inevitável divórcio

A situação de Josefina tornou-se mais delicada à medida que Bonaparte se tornava mais poderoso. Mas havia um tabu: o casal não conseguia ter filhos. Como Josefina tivera dois do seu anterior casamento, no início pensou-se que a causa da infertilidade era dele.

Em Dezembro de 1806, porém, mais de dois anos depois de ter sido coroado imperador, chegou a pior notícia possível para ela: o marido acabava de ter um filho de uma das suas amantes. Ficava assim claro que era capaz de gerar um herdeiro e de criar uma dinastia. Como imperador, teria de procurar uma nova esposa, jovem e fértil, em alguma das dinastias europeias subjugadas.

Napoleão não tardou a pedir o divórcio e comunicou-o a Josefina, entre o choro de ambos os lados, no dia 30 de Novembro de 1809, após treze anos de casamento. Algumas semanas mais tarde, a sua nova mulher seria a arquiduquesa austríaca Maria Luísa, com 18 anos, sacrificada pelo pai, o derrotado imperador Francisco I, ao invencível “ogre” francês, que já tinha feito 40 anos. A revolução francesa encerrava um insólito círculo: a noiva era sobrinha-neta da rainha Maria Antonieta.

Casamento Dinástico
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Napoleão casa-se com a arquiduquesa Maria Luísa de Áustria, filha do imperador Francisco I, no Salão Carré do Palácio do Louvre. Óleo de Georges Rouget. Palácio de Versalhes.

Napoleão sentiu-se feliz com a sua nova e submissa esposa, que depressa lhe deu um herdeiro, o futuro duque de Reichstadt: Napoleão II para os homens de Bonaparte. O herdeiro, porém, morreria em Viena aos 21 anos de idade, em 1832. Em relação a Josefina, o imperador comportou-se melhor como ex-marido do que como marido e manteve com ela uma relação carinhosa. A ex-imperatriz dedicou-se a viajar na companhia da sua pequena corte e do seu último amante, o jovem pintor Lancelot Turpin de Crissé. Os prantos do divórcio não demoraram a secar de ambas as partes.

Porém, havia algo de estranho na vida de Napoleão que parece ligá-lo irremediavelmente a Josefina, como se o seu destino tivesse dependido da presença a seu lado desta mulher. Assim que se casou, começou a sua imparável ascensão até alcançar um dos graus de poder mais extremos que o mundo ocidental já conheceu. Assim que se divorciou, começou o seu declínio militar e político: as primeiras dificuldades ocorreram em Espanha, seguiu-se o fiasco da campanha na Rússia e, por fim, a vitória das potências inimigas e a sua entrada em Paris, que provocaram a abdicação de Napoleão em Abril de 1814 e o seu exílio em Elba.

O fim de Josefina

Josefina faleceu no dia 29 de Maio de 1814, escassos 25 dias depois de o ex-marido chegar à ilha-prisão. Quando os vencedores apareceram em Paris, muitos começaram a visitá-la no seu Palácio de Malmaison, tal como se visita um ícone da época.

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FRANCK RAUX / RMN - GRAND PALAIS

Acompanhada pela filha e pelos netos, recebe o czar Alexandre I no seu Palácio de Malmaison. Óleo de Viger de Vigneau, 1864. 

Encantadora, Josefina abriu as portas dos seus salões a todos os que conseguiam fazer-lhe um favor no novo regime. Um deles foi o czar Alexandre I, o grande vencedor do seu ex-marido, que além disso namoriscava abertamente com a sua filha Hortênsia.

Durante um passeio de carruagem com ele, Josefina apanhou frio e adoeceu. Ainda assim, manteve o mesmo ritmo de encontros sociais durante dias até que ficou de cama e, finalmente, faleceu. Tinha quase 51 anos, a mesma idade de Bonaparte à data da sua morte em 1821.

Não se sabe qual foi a reacção de Napoleão perante a morte daquela mulher que um dia venerara. Ao conde de Las Cases, ditou o seguinte: “Eu amava realmente Josefina, embora não a respeitasse. Era muito mentirosa. Mas havia algo nela que eu gostava verdadeiramente: era uma mulher de verdade. E tinha o rabo mais lindo do mundo.”

Artigo publicado originalmente na edição nº 15 da revista História National Geographic.

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