O que Rodolphe Reiss, o Sherlock Holmes da vida real, veio fazer em São Paulo em 1913?

Pesquisa mostra como renomado criminologista influenciou a forma de fazer investigações policiais na São Paulo de cem anos atrás

 Publicado: 17/05/2024     Atualizado: 20/05/2024 as 20:32

Texto: Ivan Conterno*

Arte: Joyce Tenório**

Reiss, de charuto na mão e chapéu claro com fita escura, visita São Paulo em 1913. Ao fundo à esquerda, o delegado Cantinho Filho - Foto: Reprodução/Universidade de Lausanne

O criminologista alemão naturalizado suíço Rodolphe A. Reiss chegou a São Paulo em 1913 a convite do então secretário de Justiça Sampaio Vidal, um marco na história da investigação criminal paulista. Tido na época com um autêntico Sherlock Holmes, o químico de formação foi o pioneiro na introdução de métodos científicos à investigação policial.

A pesquisadora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e jornalista Regina Celia de Sá capturou esse momento e suas repercussões no mundo da criminologia paulistana em sua tese de doutorado A fotografia judiciária sob investigação e o limiar da polícia científica de São Paulo, 1913–1924. A trajetória profissional e acadêmica levou Regina a se interessar por entender quais as concepções, ideias e vieses estão por trás das lentes dos fotógrafos. “Eu comecei a estudar teoria da fotografia há 12 anos. É uma paixão que transcende o fato de simplesmente mirar a câmera”, comenta.

No período traçado para a investigação histórica, as autoridades paulistas buscavam aperfeiçoar as investigações policiais através da precisão visual inédita oferecida pela fotografia, cuja velocidade de disparo começava a se tornar viável para o uso jurídico. Por isso, as técnicas criminalísticas introduzidas pelo suíço incluíam o registro das cenas dos crimes, uma novidade. 

O secretário de Justiça contatou Rodolphe Reiss por correspondência e traçou um cronograma de temas para serem abordados durante os três meses que Reiss estaria em São Paulo. A fama do professor europeu demandou uma espécie de leilão pela sua vinda ao Brasil. “Ele recebeu, à época, 40 mil libras para passar três meses no Brasil. Isso equivalia a décadas do salário dele, um valor astronômico.”

Regina Celia de Sá - Foto: Tatiana Gonçalves

Embora nem todos os ensinamentos sobre composição fotográfica do criminalista tenham sido realmente adotados, os cursos, palestras e conferências foram importantes para definir naquele momento a fotografia como uma ferramenta científica de investigação. 

Reiss introduziu métodos rigorosos de documentação fotográfica em cenas de crime e fraudes, numa época em que a cidade experimentava uma enorme onda de imigração e, com ela, a introdução de novas práticas criminosas. “Reiss trouxe a visão da importância de se registrar uma cena de crime, mas também buscar identificar as falsificações. Muitos imigrantes traziam habilidades específicas para montar laboratórios clandestinos de cédulas, selos e de moedas, na região do Bom Retiro e da Rua Augusta”, conta Regina.

Crime do Carandiru

À procura de casos interessantes para ilustrar suas apresentações, Reiss ia às ruas acompanhar as perícias da polícia paulistana. Numa dessas ocasiões, o especialista suíço introduziu o recolhimento de impressões digitais para elucidar um crime. Era manhã do dia 20 de julho de 1913 quando a polícia foi informada que havia um homem branco com uma faca enterrada no peito no bairro do Carandiru.

O delegado Cantinho Filho, chefe do Gabinete de Investigações, foi para o local com Reiss, um médico legista e assistentes. A vítima era o leiteiro português Antônio Leitão, que vivia em Santana.

Ao examinar o cadáver e a cena do crime, Reiss rapidamente concluiu que o fato tinha sido antecedido por uma luta, na qual o assassino tentou estrangular a vítima.

O corpo do português foi levado para a autópsia. As impressões digitais seriam do chacareiro Silvino Barreira, outro português que, segundo um jornal da época, “dizem ter sido capoeira no Rio e que constituía o terror das gentes daquelas redondezas” e teria discordado do leiteiro quanto ao peso de um animal à venda em um armazém.

Clique para acessar. Atenção: conteúdo sensível. Corpo do leiteiro português Antônio Leitão, cujo assassinato foi atribuído ao compatriota Silvino Barreira, considerado no Rio de Janeiro “terror das gentes daquelas redondezas”. Foto mostra as pernas do leiteiro estiradas, os olhos entreabertos e a lâmina de uma faca enorme enfiada no peito - Foto: Rodolphe A. Reiss/Universidade de Lausanne

A maioria dos investigados eram estrangeiros e a minoria eram brasileiros negros. Para a pesquisadora, essa era uma forma de invisibilizar e não dar o direito de defesa a essas camadas que eram condenadas no calor dos acontecimentos.

“É uma forma de apagar o negro da história, inclusive dos tentáculos do Estado. Tem o italiano, o português, o espanhol, que estão nas histórias criminais — um italiano metendo a faca num espanhol num cortiço —, mas não se vê muitos casos de negros. Os crimes atribuídos a eles nem seriam investigados, seriam julgados no ato, porque, quando você é investigado, você ainda tem direito de se defender.”

Outras participações

Durante sua estadia, o criminalista participou de pelo menos mais duas investigações. Um dos crimes foi o assunto do dia 12 de julho de 1913: a casa do professor René Barreto, na Vila Buarque, tinha sido alvejada pelo lavrador Ananias Carlos Arantes, de Pirassununga, cidade do interior de São Paulo.

O professor teria violentado a filha de Ananias, Alexandrina Arantes, auxiliar do grupo escolar de Pirassununga, num quarto do Hotel della Patria, no centro da capital. O professor não deu importância para o atentado a tiros, dizendo que era uma loucura momentânea de Ananias.

Os jornais defenderam o pai vingativo, na defesa da honra masculina. A história, no entanto, era mais complicada. Alexandrina tinha ido estudar na capital e, quando os recursos da família para bancar a estadia acabaram, René se prontificou a abrigar a jovem em sua casa. Com a repercussão do atentado, ela acabou confessando que tinha engravidado e sido levada a abortar por duas vezes a pedido do professor.

Assim, René e Alexandrina foram levados ao júri por conta dos abortos. Dessa vez, Reiss participou das investigações com um laudo dos objetos encontrados na casa da parteira que realizou os procedimentos. René foi absolvido por unanimidade de votos enquanto a moça foi declarada culpada.

Em outra ocasião, após ministrar palestras e visitar distritos policiais no Rio de Janeiro, então capital do País, Reiss interrogou o chefe de uma quadrilha de falsificadores antes de retornar para suas conferências em São Paulo.

O estudioso voltou para a Europa no final de setembro. Em 1915, ele ajudou o governo sérvio a registrar os abusos e crimes das tropas austro-húngaras durante a invasão, no início da Primeira Guerra Mundial. Em meio a esse grande massacre, Reiss fez autópsias de pessoas executadas em valas comuns e o registro de mulheres estupradas e crianças com fome. “Ele virou um herói de guerra. Foi uma das primeiras pessoas a registrar os crimes de guerra com fotografia e com depoimentos.” Segundo a pesquisadora, essas cenas eram muito similares às que vemos hoje na Faixa de Gaza.

Nenhum outro caso policial brasileiro que envolvesse Reiss foi encontrado na pesquisa, porém a tese continua ao abordar como as técnicas foram usadas nos anos seguintes.

Material fotográfico usado por Reiss para o registro das cenas de crime e dos suspeitos - Foto: Reprodução/Universidade de Lausanne

Crime da Rua Brigadeiro Galvão

A eugenia, uma pseudociência racista, era muito difundida na época, o que tinha levado a uma política declarada de embranquecimento da população como estratégia de “elevação racial”. Seguindo por esse caminho, na última década do século 19 o francês Alphonse Bertillon inventou uma técnica duvidosa de identificação de criminosos baseada nas características físicas das pessoas. Sendo assim, a fotografia também serviu como uma ferramenta para levantar suspeitos e foi largamente adotada pela polícia.

Cantinho Filho seguiu por esse caminho quando se tornou chefe do Gabinete de Investigações na capital paulista entre 1925 e 1927. Antes disso, alguns fatos já mostravam como essa visão já começava a corroer os ensinamentos trazidos por Reiss.

Um deles ocorreu na Barra Funda. Américo Apolinário, um rapaz negro de 27 anos, foi acusado de matar o comerciante Domingos Loureiro da Cruz, de 57, com navalhadas no pescoço na madrugada do dia 14 de maio de 1919. O crime aconteceu em um cortiço próximo à casa da vítima e bem perto de uma festa em comemoração ao 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura.

Cantinho Filho e o também delegado Virgílio Nascimento construíram uma narrativa a partir de uma sequência de reportagens. Loureiro teria acordado perto das cinco horas da manhã e ido ao banheiro do lado de fora da casa quando teria sido surpreendido por Apolinário.

Os jornais chamavam o suspeito de “preto Apolinário”, “filho da preta Maria Rufina da Conceição”. Segundo Regina, os registros mostram que o rapaz teria sido um ambulante e ficava perambulando pelas cidades roubando. “Ele aparece nas reportagens sempre com a alcunha de preto. Por que eles não falam ‘o branco José’? Não tem isso. É sempre ‘o preto’.”

Américo Apolinário, acusado de matar um comerciante com navalhadas no pescoço na madrugada após as festas dos 31 anos da Lei Áurea - Foto: Cantinho Filho/Universidade de Lausanne
O jovem Américo Apolinário aparece descalço, com um olhar distante da mira da câmera, no centro da fotografia, à frente de vários homens brancos com ternos, gravatas, chapéus e sapatos lustrosos que olham para a lente do fotógrafo – Foto: Cantinho Filho/Universidade de Lausanne

Jornada através dos arquivos

Desde que surgiu, a fotografia adquiriu uma autoridade maior do que os relatos verbais, o que permitia estabelecer uma evolução visual dos fatos que confrontasse as lembranças imprecisas de um acontecimento. No final do século 19, as fotos também tiveram destaque em trabalhos psiquiátricos e em inquéritos sobre pessoas que hoje reconhecemos como transgêneros, atributo que na época era incluído entre os crimes sexuais. “Os corpos começaram a ser moldados a partir de uma lente”, sintetiza Regina.

Algumas técnicas de criminologia já eram vistas com ceticismo e preocupação no início do século 20. Esse assunto ainda gera debates que envolvem questões sobre privacidade, consentimento e uso indevido das imagens pelas autoridades. Hoje, um dos grandes dilemas éticos e sociais a esse respeito envolve as tecnologias de reconhecimento facial.

“No carnaval deste ano, muitas pessoas foram reconhecidas através da identificação facial, em plena folia”. Isso normalmente é visto apenas pelo lado positivo, entretanto “há outras questões mais profundas”, lembra a pesquisadora.

Ao longo da tese, a jornalista nos convida a refletir como a fotografia pode ser conformista quando causa um desconforto mal empregado e defende que ela deve nos levar a examinar os fatos. “Em nível mundial, a importância do Reiss na cena do crime é mais do que como um personagem que foi adiante nessa questão. É a técnica a serviço da criminalística em todas as suas frentes possíveis.”

Como a fotografia interferia na percepção de verdade, os inquéritos dos crimes mais emblemáticos encontram-se preservados com muitas imagens. “São os famosos Crime da Mala, que tem o inquérito policial completo e encadernado em acervos da Justiça e da Acadepol, e os crimes do Meneghetti, que era um ladrão.”

Por outro lado, as lacunas de arquivos incompletos e fragmentados evidenciaram questões sobre o próprio processo de preservação histórica. “É muito difícil encontrar material. As condições são precárias. Não fosse o trabalho do Arquivo do Estado, que eu coloco como uma exceção, seria muito difícil pesquisar”, lamenta Regina.

A pesquisadora diz ainda que o fechamento repentino de acervos e bibliotecas em resposta à pandemia global de covid-19 destacou a necessidade de estratégias alternativas de acesso e preservação dos documentos.

Mais informações: e-mail regi.desa@gmail.com, com Regina Celia de Sá

*Com orientação de Luiza Caires e Fabiana Mariz
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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