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Opinião

Leo Strauss, clássicos ocidentais e discípulos

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Ao longo das duas últimas décadas me tinha tornado assíduo leitor da revista norte-americana “Foreign Affairs”. As releituras de alguns exemplares da colecção, com a necessária distância temporal, têm permitido uma serena compreensão da influência produzida por uma certa filosofia política que tem a sua origem no espaço académico das universidades dos Estados Unidos da América. Os artigos e as entrevistas dos discípulos do filósofo Leo Strauss(1899-1973), revelam-se hoje como peças que contribuíram para um estado do mundo em chamas. Por isso, trago à conversa as ideias deste filósofo germano-americano e de seus discípulos. Trata-se de um tópico que mobiliza a minha atenção, há cerca de sete anos, na leccionação de Estudo das Civilizações cuja introdução passa pela leitura do “Choque de Civilizações”, do cientista político norte-amercano Samuel Huntington (1927-2008)

19/05/2024  Última atualização 10H16

O mundo em chamas

O nosso planeta à escala global tem vindo a tornar-se um espaço perigoso para todos os seres vivos. Aliás, para ser perigoso não é necessário que as notícias aterradoras afectem apenas hemisférios, meridianos ou latitudes do chamado "Norte Global”. Bastariam notícias das consequências da guerra, sobre a morte de crianças no Sudão, na Ucrânia, em Myanmar ou ainda a ameaça de morte que paira sobre as mulheres, crianças e homens na Palestina. Ora, as imagens que nos chegam da Faixa de Gaza, Rafah e de outras regiões da Palestina e que povoam os écrans das televisões atingiram o apogeu do escândalo dentro das fronteiras dos Estados Unidos da América. As comunidades de estudantes das universidades americanas têm desencadeado manifestações contra a violência da guerra e o genocídio na Palestina. Mas a vaga de fundo vai alcançado as fronteiras da Europa. Tudo aponta para a existência de um alvo, o conjunto de dispositivos institucionais do controlo, selecção, distribuição e exclusão de discursos. Quanto a mim a originalidade de tais demonstrações reside no facto de denunciarem a subsistência dos discípulos de filósofos que modelam agendas políticas, enquanto arautos de políticas externas que parecem arrastar o mundo para o abismo. Do ponto de vista ético, esse alvo é constituído por defensores de uma perspectiva realista das relações internacionais, aqueles que se socorrem do brocar do latino "inter arma silent leges” (em tempo de  guerra, silenciam-se as leis). Por outras palavras, durante a guerra tudo vale. A propósito da ética da guerra, Michael Walzer, um outro filósofo norte-americano, dedicou preciosas páginas em dois dos seus livros, "Arguing about War” (Discutindo sobre a Guerra) e "Just and Unjust Wars” (Guerras Justas e Injustas). No entanto, os intelectuais e académicos norte-americanos discutem acerca dos filósofos que influenciam de forma positiva a prossecução de teorias realistas nas relações internacionais. É o caso de Leo Strauss.

 
Quem foi Leo Strauss?

Filósofo político nascido na Alemanha, em 1899, Leo Strauss estudou nas Universidades de Marburgo e Hamburgo, onde conheceu Husserl e Heidegger. Obteve o doutoramento em Filosofia em 1921, na Universidade de Hamburgo. De 1925 a 1932 ocupou um cargo na Academia de Investigação Judaica em Berlim. Residiu em França e Inglaterra, no princípio da década de 30 do século XX. Chegou aos Estados Unidos como refugiado, em 1938. Foi integrado na New School for Social Research, Nova Escola de Pesquisa Social, situada em Nova York, designada então como Universidade no Exílio, por atrair na época os intelectuais alemães que fugiam da perseguição nazi. Em 1949, tornou-se professor de Ciência Política na Universidade de Chicago, onde ganhou notoriedade. Após a sua morte, continuou a merecer a admiração e elogios dos seus discípulos. Tem uma vasta obra.

Seguidores, detractores e choques pós-73

Há três décadas me tenho interessado pelo pensamento e magistério de Leo Strauss. Estamos a falar de um especialista da filosofia política clássica ocidental, desde os gregos, passando pelos europeus dos séculos XVI ao XVIII. Alguns dos seus discípulos entendem que o professor e filósofo é o fundador de um movimento, de uma escola de pensamento, como consequência a veneração que lhe é tributada pelos seus discípulos, especialmente, em universidades do Canadá e dos Estados Unidos, os chamados "straussianos”. A fortuna crítica sobre a sua obra ocorreu num período em que se vulgarizava a ideia dos "choques”, isto é, "choque das civilizações”, "choque das ideias”, "choque de globalizações”, "choque dos povos”. O que constitui motivo para pensar não são os temas dos artigos que se publicam a esse respeito. São as ideias filosóficas subjacentes que suscitam curiosidade. Por isso, tem interesse compreender o alcance e a influência do pensamento de Leo Strauss. O que pode ser realizado, através da leitura crítica dos debates e controvérsias dos seus seguidores e detractores.

 
Francis Fukuyama

Um dos mais mediáticos discípulos de Leo Strauss é Francis Fukuyama, o autor de vários livros, tais como: "The End of History and the Last Man”, (O Fim da História e o Último Homem), "Political Order and Political Decay: From the Industrial Revolution to the Globalization of Democracy”, (Ordem Política e Decadência Política. Da Revolução Industrial à Globalização da Democracia) "Liberalism and Its Discontents” (O Liberalismo e os seus Inimigos), "America at the Crossroads Democracy, Power, and The Neoconservative Legacy”(América na Encruzilhada. Democracia, Poder e o Legado Neoconservador). Fukuyama é um cultor da filosofia e da política internacional, assíduo e frequente leitor de filósofos europeus, entre os quais o franco-russo Alexandre Kojève (1902-1968), com o qual se iniciou na interpretação da obra do filósofo alemão G.Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), por intermédio do filósofo norte-americano Allan Bloom (1930-1992). Isso torna-se perceptível, quando se conhece a "Introdução à Leitura de Hegel”, uma obra do filósofo franco-russo dedicada à interpretação da "Fenomenologia do Espírito” do filósofo alemão. Fukuyama foi aluno de Allan Bloom, antigo aluno e divulgador das ideias de Leo Strauss. Bloom foi enviado por Strauss a Paris para frequentar os cursos ministrados por Kojève. Certos comentadores concluem que Strauss e Kojève exerceram uma poderosa influência sobre Bloom, tal como parece evidenciar-se na sua obra.

 
Defesa de Leo Strauss

Em defesa de Leo Strauss, Francis Fukuyama denuncia os disparates que foram sendo escritos acerca dessa figura tutelar, a propósito da guerra do Iraque, por autores como a cientista política Anne Norton, a filósofa política Shadia Drury, o filósofo Lyndon La Rouche (1922-2019). Identifica o equívoco que está na origem da associação do nome de Leo Strauss à política externa da administração Bush. Para o efeito, sublinha o facto de não haver nenhum "straussiano”na Casa Branca, no período que antecedeu a guerra no Iraque. A ideia da influência "straussiana”tornou-se moeda corrente com a nomeação de Paul Wolfowitz, Vice-secretário de Defesa dos Estados Unidos de 2001 a 2005, que nos tempos de estudante tinha frequentado os seminários de Leo Strauss sobre Platão (427-347 a.C.), filósofo grego, e Montesquieu (1689-1755), filósofo francês. Na sua tese de doutoramento manifestou preocupações contra as centrais de dessalinização alimentadas por energia nuclear, no Médio Oriente. Entretanto, Wolfowitz passou a ser conhecido como perito em Relações Internacionais cujo mentor foi um especialista em questões nucleares, Albert Wohlstetter (1913–1997), tendo-se afastado de Strauss e de Bloom. Por essa razão, Fukuyama considera que Wolfowitz nunca evidenciou a condição de protegido de Strauss.

 
Relação com política

Fukuyama recorre a Mark Lilla, um outro defensor de Leo Strauss, segundo o qual ele evitava a politização de suas ideias. Mas foram os seus antigos alunos que iniciaram o processo conotando-as com prescrições de políticas públicas contemporâneas. Dois filósofos norte-americanos, Harry Jaffa  (1918-2015) e Allan Bloom,que tinham sido estudantes de Strauss, foram responsáveis pelas conotações que podiam ser feitas com a política. Harry Jaffa sustentou o debate argumentativo no seu livro "Crisis of the Strauss Divided: Essays on Leo Strauss and Straussianism, East and West” (A Crise da Divisão: Ensaios sobre Leo Strauss e Straussianismo, no Oriente e Ocidente),referindo claramente o facto de, no princípio do corrente século, o nome de Strauss ter merecido crescente interesse. Registava-se uma abundante produção ensaística, a lista aumentava com trabalhos académicos, teses, dissertações e artigos. Allan Bloom, que em 1987 publicou "The Closing of the American Mind” (O Fechamento da Consciência Americana) fazia apologia de um certo pessimismo inspirando-se em Strauss.

No dizer de Fukuyama, Leo Strauss nunca se tinha pronunciado sobre a política externa norte-americana. Mas a ideia de "regime”, relevante para a política externa da administração Bush, tinha conexões com Strauss e os "straussianos”. Para Fukuyama o lugar central atribuído ao conceito de regime na vida política, remontava aPlatão e Aristóteles. Por conseguinte, Strauss não era nem antipolítico, nem anti-intervencionista. Acreditava na vocação política natural dos humanos. No entanto, os "straussianos”filiavam-se em correntes do pensamento representada pelos neoconservadores. Isso ficou demonstrado no livro de Fukuyama, (América na Encruzilhada. Democracia, Poder e o Legado Neoconservador).

 
Discípulos

Anne Norton, uma outra autora que estuda o pensamento de Leo Strauss, fala em genealogias e geografias "straussianas”. A geografia "straussiana” consiste na divisão dos Estados Unidos em "straussianos” da Costa Leste e os do Oeste. A cidade de Chicago apresenta-se como o centro de todas as correntes. Dizia-se então que os "straussianos” do Leste eram mais filosóficos e menos preocupados com a política. Entre filósofos "straussianos” da Costa Leste estão Joseph Cropsey (1919-2012), de Chicago, e Harvey Mansfield, de Harvard. Ambos são reputados filósofos políticos e conservadores. Harvey Mansfield foi professor de Francis Fukuyama e do neoconservador William Kristol. Joseph Cropsey foi professor de Paul Wolfowitz e Abram Shulsky, proeminentes figuras dos aparelhos da defesa dos Estados Unidos da América.

 
Hermenêutica de Leo Strauss

Leo Strauss distinguiu-se como filósofo, por se ter dedicado, especialmente, a comentar obras de filósofos clássicos ocidentais, os chamados "grandes filósofos políticos”. É-lhe reconhecido o mérito de ter introduzido um tipo de hermenêutica dos textos desses clássicos. A "escrita esotérica” é um estilo em que se funda essa hermenêutica. As estratégias de interpretação consistem em extrair pensamentos silenciosos, insusceptíveis de serem identificados em leituras primárias. Os seus discípulos referem o facto de ele  atribuir importância ao número de capítulos e parágrafos de uma obra, importando-se com a necessidade de determinar o meio de um livro para a identificação do cerne da questão filosófica. Strauss ensinava que as "salas secretas” não estavam ao alcance de todos. Neste sentido, os méritos de um autor residiam no facto de estar contra o seu tempo. Donde a filosofia devia ser reservada a uma pequena minoria, devendo os filósofos respeitar as opiniões em que se funda a sociedade. Por outro lado, dizem os discípulos de Strauss, igualmente, ele ensinava que a verdade sobre a natureza das coisas, as "coisas humanas”, do mundo do homem e da política, eram incontestáveis. Os seus detractores entendem que Strauss foi um historiador de ideias e não filósofo. Entre os livros que permitem observar esse método, destacam-se "Perseguição e a Arte de Escrever”, "Direito Natural e História”, "Reflexões sobre Maquiavel”, "A Cidade e o Homem” e "Sobre a Tirania”.

 
Crítica de Shadia Drury

No seu requisitório contra Leo Strauss, a filósofa canadiana Shadia Drury afirma categoricamente que a migração dos "straussianos” da academia para os altos cargos do governo atingiu o seu apogeu na administração de George W. Bush. Esta é razão por que Strauss se veio a tornar um autor de grande interesse, longe dos meios universitários. Deste modo, Drury concluía que Strauss tinha moldado as mentes dos homens que eram responsáveis pela política externa cujas consequências tinham impacto mundial.

Por isso, reconhece a existência de uma ligação definitiva entre as ideias políticas de Leo Strauss, o "estado ruinoso da democracia americana” e a sua trágica política externa. A este propósito, Francis Fukuyama cautelosamente chama a atenção para o seguinte. Nos círculos dos neoconservadores norte-americanos, excepcionalmente, apenas o seu fundador, Irving Kristol (1920-2009), podia reivindicar a infuência de Leo Strauss, porque a maioria dos neoconservadores não compreendiam e não o tinham lido. Porsua vez, Drury constatava que a relação entre Strauss e os neoconservadores era complexa. Apesar disso, Strauss deixou um legado aos neoconservadores americanos. Independentemente do seu nível de compreensão do pensamento de Strauss, todos os neoconservadores partilham uma antipatia pela sociedade liberal secular. Tal como Strauss, os neoconservadores estão convencidos de que a sociedade liberal secular constitui uma "crise” que ameaça a civilização ocidental. Pretendem proceder à revisão completa dos valores liberais. Por exemplo: 1) em vez de liberdade a virtude; 2) em vez de individualidade os valores comunitários e familiares; 3) em vez de autoconfiança o auto desprezo; 4) em vez de lazer a auto imolação e o auto-sacrifício; 5) em vez de paz e ordem a guerra perpétua e a luta contra os inimigos da nação;6) em vez de cepticismo e pensamento crítico a religião, a fé e a devoção inabalável à nação e ao seu Deus.

 
Conclusão

Portanto, as manifestações contra a violência da guerra e o genocídio na Palestina, a acção instaurada pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça contra Israel, os protestos de estudantes de universidades norte-americanas, bem como a vaga de fundo que vai alcançado as universidades europeias, embora completem as agendas noticiosas das televisões, constituem sobretudo sintomas da crise de um pensamento filosófico com o qual o chamado "Norte Global” operou durante séculos. É a crise dos dispositivos do controlo, selecção, distribuição e exclusão dos discursos do Outro. Tal como escrevia o poeta irlandês William Butler Yeats (1865-1939),"tudo se despedaça, o centro já não aguenta”. Por isso, não há dúvidas a respeito de uma necessidade que se afigura vital, o conhecimento das filosofias políticas que suportam o modo como se pensa e reproduzem os modelos através dos quais se influenciam os processos e o curso dos acontecimentos à escala global.

 

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia Geral

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