Escravidão na Boca do Sertão - Jornal O ECO

Escravidão na Boca do Sertão

Lençóes não passa isenta pelo período que mais manchou a história do país

Edson Fernandes – Especial para O ECO

O dia 13 de maio deve ser lembrado como resultado das lutas que vários setores da sociedade tomaram para si, inclusive a pressão das pessoas escravizadas, e não como um ‘presente’ dado pela princesa Isabel.

A boca de sertão em que se constituiu Lençóes durante algumas décadas do século XIX também deu sua parcela de sofrimento aos afrodescendentes. O trabalho compulsório dos negros fez a fortuna de uma elite latifundiária, retrato de uma época em que alguém ser proprietário de alguém não feria suscetibilidades.

Em Lençóes, como no restante do Brasil, a maior parte dos escravizados vivia, labutava e morria no meio rural, nas inúmeras fazendas do entorno da então vila. Mas, engano pensar que o núcleo urbano estava isento do suor escravizado. Pelo contrário, eles andavam por aqui e ali, realizando serviços para seus senhores, e elas – as negras escravizadas – acompanhando suas sinhás nas compras e afazeres, ali na nossa Rua Quinze de Novembro, então chamada rua do Commercio.

Para se ter uma ideia de quão disseminada estava esta prática, bastam alguns exemplos. O padre da vila, Vito Januário Finamore, era proprietário de Maria e foi o próprio padre quem batizou o filho dela, nascido em 4 de julho de 1875 e registrado com o nome de Tito. Outro filho de Maria, Achilles, foi batizado por José Mercadante e sua mãe, Antonia Mila, no dia 12 de novembro de 1878.

Em outra época, 13 de maio de 1883 [que ironia!], o padre Miguel Piemonte foi padrinho de Higina, filha da escravizada Maria, pertencente a João de Oliveira Sousa e Ana Maria das Dores.

A professora da vila, Maria Carolina, tinha uma escravizada para chamar de sua. Era Rita e tinha cerca de 40 anos quando morreu, em junho de 1868.

Provavelmente, negros e negras que serviam a senhores no núcleo urbano tiveram condições menos precárias de vida, menos castigos, certamente despertavam uma confiança que lhes permitia ir às ruas desacompanhados.

O trabalho no eito era diverso, o sangue e o suor escorriam em maior quantidade, as feridas demandavam mais tempo para se tornarem cicatrizes, e estas ficavam. Claro que o tratamento variava de um para outro proprietário, de uma vigilância e dureza no trato mais contundente a uma mínima sociabilidade que permitia aos escravizados momentos de distração. Mas, como já se disse, o próprio fato de alguém ser dono de alguém já é uma violência.

Mas de onde vieram estas pessoas escravizadas? De modo geral, vieram acompanhando seus senhores de áreas de ocupação não indígena mais antigas. Sabemos que muitos mineiros saíram de sua terra natal em busca de terras, durante décadas do século XIX. Traziam familiares, ferramentas, gado… e pessoas acorrentadas, num ou noutro sentido. Ou nos dois.

Algumas dessas, mais afortunadas, constituíram família, uma condição difícil em que a desigualdade de gênero era flagrante. Nas lavouras, preferia-se o trabalho de homens. Faltavam mulheres, o que quer dizer que os arranjos matrimoniais eram de outra natureza.

Ainda assim, temos casos em que um fazendeiro era proprietário de três gerações de pessoas. José Teodoro Pereira, com muitas léguas na Fartura, tinha de seu o casal Paulo e Romana, com os seguintes filhos: Eugenio, Maria, Silvana, Teresa, João Paulino, Justina, Bento, Eva, Adão, Roque, Vitória, Severino, Gertrudes, nascidos entre 1852 e 1873. Alguns deles tiveram filhos que também foram escravizados. Tomemos o caso de Teresa: nascida em 1858, teve cinco filhos. Um deles, Romana, nascida em 1875, casou-se com Sebastião Ventura, nascendo dessa união ao menos dois filhos. Um dos filhos era Pedro Ventura, falecido em 1981, aos 81 anos. Outra filha de Teresa era Benedita, que se casou com Lázaro Nicolau e deixou descendência em Lençóis.

O mesmo José Teodoro tinha outro casal, Abrão e Maria, com muitos filhos: Eugenia, Antonio, Estevão, Joaquim, Isabel, André, Jacinta e Sebastião, nascidos entre 1868 e 1884.

No mundo da escravidão, há casos e casos. Por exemplo, o casal formado por uma pessoa escravizada e outra não. Exemplo: o menino Osório foi batizado no dia 15 de agosto de 1878. Seus pais eram Ignácio, pertencente a João Franco da Silveira, e Escolástica Franco de Jesus, não escravizada. Reparar que ela tem nome e sobrenome, o que não ocorre com o pai.

Fica uma questão difícil de responder: abolida a escravidão, para onde foram os ex-escravizados? É uma ironia, enquanto pessoas pertencentes a alguém, eles são registrados, trocados, herdados, alugados, comprados e vendidos. Finda a escravidão, somem dos registros e se tornam pobres comuns. Fica o que a memória familiar guardou ou o que um vigário ou escrivão mais zeloso registrou. Daí sabemos que na atual Lençóis Paulista moram descendentes daqueles que com seu sangue e suor adubaram a terra que gerou riquezas para alguns… e pobreza para muitos.

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