Cristina Sanz sobre o Sínodo: “Recuperar uma forma de ser igreja que não devíamos ter perdido”

Foto: P. Giselo Andrade

A teóloga espanhola María Cristina Inogés Sanz, membro da comissão de metodologia do Sínodo dos Bispos (2021-2024), com direito a voto, por designação direta do Papa Francisco, encontrou-se com um grupo de sacerdotes na quinta-feira, 16 de maio, no Seminário Diocesano do Funchal. O encontro teve como tema, “Sínodo dos bispos (e de todos)”. O Jornal da Madeira falou com esta teóloga e investigadora à margem do encontro.

Para Cristina Sanz, embora o sínodo tenha o apelido de Sínodo dos bispos, “deve orientar-se para um Sínodo do Povo de Deus”, pois todo o Povo de Deus é convidado a participar. Esta escuta não é uma novidade na Igreja, mas uma recuperação das suas origens, “recuperamos o que éramos quando nascemos como igreja, porque a Igreja nasceu sinodal e laical”, recorda. Sobre o facto de ter sido a primeira mulher a fazer a meditação de abertura de um Sínodo dos bispos, diz que não considera “uma conquista ou um privilégio”, mas sente-se grata ao Papa que abriu uma porta que estava fechada.

Em primeiro lugar, gostaria de perguntar o que é para si um sínodo? 

É uma assembleia que tem de ser do povo de Deus. Ou seja, a Igreja tem evoluído e a Igreja tem vivido realidades diferentes. Agora temos de viver no século XXI e temos pela frente um terceiro milénio que evidentemente, ao menos nós, não veremos terminar, e não podemos estar com as formas do século XVI, nem sequer com as formas do século XX. Um Sínodo do povo de Deus significa que todo o povo de Deus oferece ao Papa uma série de questões que o interessam e o preocupam. E que sobre estas questões todo o povo de Deus tem algo a dizer e algo a propor. Portanto, neste momento, o Sínodo que celebramos, embora ainda tenha o apelido de Sínodo dos bispos, deve orientar-se para um Sínodo do povo de Deus.

“existe uma parte do povo de Deus que nunca levamos em consideração e, portanto, nunca ouvimos”.

Significa que o povo de Deus está a ser escutado?  

Sim, claro, é a primeira vez que toda a estrutura de um Sínodo é alterada para que todo o povo de Deus que queira participar possa participar. Onde todo o povo de Deus que participou foi ouvido, mas também foi ouvida aquela parte do povo de Deus que não quis falar. Porque há silêncios que são muito eloquentes e são silêncios que também dizem muito. Portanto, não é apenas escutar sempre a palavra, mas também escutar o silêncio que uma parte do povo de Deus manifestou de alguma forma. Mas é evidente que estamos num processo em que todo o povo de Deus é ouvido.

Isto mostra uma nova atitude da própria Igreja?  

Não! Recuperamos o que éramos quando nascemos como igreja, porque a Igreja nasceu sinodal e laical. O “laical” perdeu-se muito cedo, no final do século I, século II. Perdeu-se quando a figura do sacerdote e do bispo foi sacralizada, mas permaneceu sinodal por mais de mil anos. E, portanto, não estamos a descobrir nada de novo, mas estamos a recuperar algo que é característico da Igreja desde o seu nascimento e que é muito importante, porque evitou que durante o primeiro milénio caísse em muitos problemas, que ao perder a sinodalidade, vemos que ocorreram no segundo milénio e que ainda estamos a sofrer as consequências. Portanto, não estamos diante de um assunto, digamos leve, mas estamos essencialmente num processo de conversão pessoal e comunitária, que nos deve levar a ser, a aprender a ser, todos juntos, igreja de outra forma.

Há pouco falou aos sacerdotes sobre o sínodo e a necessidade da Igreja em chegar às margens, periferias e fronteiras. O que podemos entender? 

É um vocabulário que Francisco nos foi introduzindo desde o início do seu Pontificado, certo? Ele falou de margens e periferias existenciais, porque muitas vezes a margem não é habitada apenas por pessoas com privações económicas ou problemas de algum tipo. Mas muitas vezes é o próprio vazio existencial que nos leva a viver à margem ou na periferia. Nesta linguagem, nesta forma de nos expressarmos, estamos a reconhecer a realidade de que existe uma parte do povo de Deus que nunca levamos em consideração e, portanto, nunca ouvimos. E este Sínodo da Sinodalidade tem que dar voz preferencial àquelas pessoas que vivem nas margens e nas periferias, e depois há a zona fronteiriça, onde curiosamente há pessoas que precisam de outro nível para as abordar, não um nível que simplifique, mas o ao contrário, pois são pessoas com uma realidade intelectual que a nossa mensagem, tal como a expressamos, não lhes chega, ou que até pode ajudar-nos a compreender a realidade que vivemos a partir de outras perspectivas muito diferentes. 

“estamos essencialmente num processo de conversão pessoal e comunitária, que nos deve levar a ser, a aprender a ser, todos juntos, igreja de outra forma”.

Portanto, é necessário que embora um Sínodo não produza propriamente uma teologia como um Concílio, porque não é a mesma coisa, mas no Sínodo, de alguma forma,  sejam lançados os fundamentos de uma teologia. De facto, Francisco, pouco depois de terminar a primeira Assembleia do Sínodo, enviou uma carta à Comissão Teológica, à Comissão das Universidades, para que começassem a realizar, a trabalhar, numa teologia em chave sinodal. Portanto, embora um Sínodo não mude [a teologia], ele não tem esse poder, mas estamos de alguma forma a iniciar o processo de uma mudança em direção a uma Igreja que tem de recuperar o que era no início. 

Como viveu a sua participação no sínodo? Como foi a sua experiência?  

Pois bem, a minha participação no Sínodo sempre se deu através do correio eletrónico, que agora é o meio de comunicação. Primeiro como membro da Comissão Metodológica, 6 meses antes do início, porque tive de trabalhar no primeiro documento. Depois, juntamente com Paul Béré, padre jesuíta, fomos ambos convidados a fazer a meditação de abertura. Foi a primeira vez que uma mulher se dirigiu a um Sínodo de bispos, porque então não houve outra participação, em outubro de 2021, e quando a Assembleia já estava convocada. Primeiro recebo uma chamada do subsecretário espanhol Luis Marín, que me diz, amanhã será divulgada a lista de participantes que o Francisco escolheu e você está nela? Confesso que no começo não acreditei. Foi muito difícil para mim acreditar, mas é uma realidade que está aí. Não considero isso uma conquista ou um privilégio. Acredito que, pelo contrário, como mulheres temos de estar muito gratas a Francisco, porque havia uma porta fechada do outro lado. E ele teve a sensibilidade de tirar a chave e abrir aquela porta para que pudéssemos entrar. O que, por outro lado, é o que sempre aconteceu com as mulheres no mundo. Porque se chegamos a estudar carreiras civis é porque os homens nos permitiram ter acesso à Universidade. Se trabalhámos em certas questões foi porque os homens permitiram. Portanto, falar de conquistas parece-me um pouco absurdo e parece certamente criar uma atmosfera com certo ar de conflito. Quando não vale a pena nem leva a lugar nenhum. Portanto, muito reconhecida. Muito grata por Francisco ter contado comigo, obviamente, mas por ter contado com os leigos em geral e com os sacerdotes para um Sínodo. E sobretudo, vivê-lo com a naturalidade de estar a recuperar uma forma de ser igreja que não devíamos ter perdido e onde evidentemente existe um baptismo que nos confere a mesma dignidade e a mesma igualdade para todos e a partir daí não podem ser feitas muitas outras considerações.

Nesta manhã, falou de dois temas chave que surgiu no sínodo, a necessidade de formação do povo de Deus e os ministérios – ministério da escuta e diaconado permanente feminino… 

Sim, é evidente que a maior parte do povo de Deus não está formada. E também é evidente que nem todo o povo de Deus tem que ter uma licenciatura em teologia, mas entre não ter nada e ter uma licenciatura em teologia, pode sempre haver um ponto intermédio que permita ao povo de Deus, a todo o povo de Deus, que tenha essa formação. Porque se não entendemos, se não sabemos o que dizemos, o que confessamos, que fé temos, isto é, se não entendemos? É como a fé do Chapim [ave da família dos Parídeos – “la fe del Carbonero” – expressão que indica uma fé que prescinde da razão], não ir de olhos fechados e dizer sim a tudo, embora não entre apenas no campo da razão. Maria, na Anunciação, também perguntou ao Anjo, e isso não diminuiu o valor de Maria, pelo contrário, faz dela uma mulher livre, certo? Então a formação de todo o povo de Deus é uma realidade que tem uma certa urgência, porque temos o que temos e vivemos no mundo em que vivemos, desconhecer o que dizemos acreditar é a coisa mais absurda que pode haver.

“Como mulheres temos de estar muito gratas a Francisco, porque havia uma porta fechada do outro lado”

Quando ouvimos o Evangelho, “Ide e pregai o Evangelho”! Que Evangelho pregamos se há pessoas que não leem a Bíblia? E ler a Bíblia requer um mínimo de formação para entendê-la sob muitos aspetos. Portanto, a formação do povo de Deus é algo que é urgente, mas uma formação séria, uma formação que não consiste num curso de fim de semana, porque isso não leva a lugar nenhum, tem de ser uma formação que englobe todas as áreas. E pode ser projetado perfeitamente nas universidades. Ou seja, não se vai conseguir um título, haverá quem consiga fazer aos poucos, por unidades individuais, mas que tenha uma ordem e um critério porque isso é extremamente importante. E então os ministérios. Acontece que não podemos viver como agora fazemos, que o sacerdote seja tudo, ou seja, no batismo cada um de nós recebeu uma vocação pessoal. E essa vocação pessoal pode tornar-se um ministério. Agora temos instituídos o acolitado, o leitorado e os catequistas, mas podemos ir aos ministérios, que neste momento são muito importantes. O ministério da escuta. Ficou demonstrado na Assembleia que escutar seriamente, com o método da conversação no espírito, que não é o único, mas neste momento é o que se mostrou válido na Assembleia, onde éramos pessoas de todo o mundo, de todas as culturas. Essa escuta profunda mostrou que quando se pratica realmente, metade do problema desaparece. E a outra metade? Ouvindo as razões, os motivos, os contextos de outras pessoas, entendemos que talvez não estejamos mais no momento de padronizar tudo na igreja, mas que teremos de ter amplitude de mente e de coração para entender que haverá certas questões que terão de ser vividas de maneiras diferentes em muitas partes do mundo. Mas os ministérios? O Ministério da Escuta neste momento é vital porque esse ministério não existia na igreja e neste momento é necessário, e depois o diaconado feminino permanente. Devemos enfatizar que é permanente para que fique bem claro e não crie conflitos. É um ministério que muitas mulheres já exercem no mundo, na América Latina, em África, sem ter reconhecimento. Portanto, se é algo que existe na prática e não gera problemas na comunidade, então é algo que teremos de abordar, não porque seja a solução para a falta de padres, mas porque é uma vocação que se recebe no batismo. Portanto, a partir daí.