De 30 de abril a 7 de maio, flanei pelas ruas de Buenos Aires — andei de metrô, de Uber e, sobretudo, a pé. Os argentinos são simpáticos e até conversam mais devagar com os que falam apenas português ou arranham uma espécie de “portunhol”. Fiz curso de espanhol na Universidade Católica de Goiás, com o professor Roberto, de El Salvador, na década de 1980 (o melhor aluno da sala era o poeta Delermando Vieira). Leio e traduzo, mas minha companheira, Candice Marques de Lima, que não estudou o idioma, fala bem melhor, absorvendo as entonações locais, escapando à minha lentidão verbal e ao meu formalismo. Sua escuta é mais perspicaz e atenta do que a minha. Em Barcelona, em 2010, um taxista de Sevilha me cutucou: “Por que não troca guapa por hermosa?” Eu quis saber por quê. “Porque é mais bonito.” Rimos, os dois.

Nos dois primeiros dias, numa maneira apressada de ver a realidade das cousas, concluí: o argentino é o francês dos trópicos. Porque reclama de tudo e de todos. A inflação está alta — alardeiam todos, tanto os pró-kirchnerismo (espécie de peronismo “b” — criado pelo casal Nestór Kirschner e Cristina Kirschner) quanto os pró-presidente Javier Milei. A inflação talvez seja a única unanimidade — “os preços estão os olhos da cara”, clamam os portenhos e os demais argentinos que circulam por Baires.

Uma pessoa dorme na rua, sob proteção de seu cachorro | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Na Recoleta e nas avenidas Corrientes e 9 de Julho, vários homens e mulheres, sobretudo quando percebem turistas, se prontificam a trocar pesos argentinos por dólares e reais. A moeda mais cobiçada é o dólar. Todos querem. Mas o real não é desprezado por ninguém. Uma jovem me ofereceu 166 pesos por 1 real. Um cinquentão ampliou a oferta: 170 pesos por 1 real. Na Recoleta, o cambista Pedro Cubano — que se recusa a voltar para Cuba, por causa da ditadura — me ofereceu um pouco mais: 190 pesos por 1 real. Depois, numa casa de câmbio, o valor subiu um pouco mais: 192 pesos por 1 real.

Em Palermo Soho, no restaurante Ciro — que fica nas proximidades dos concorridos Don Julio (é preciso fazer reserva) e El Preferido —, cuja comida é boa e mais barata do que a dos dois concorrentes glamurosos —, um menino de 10 anos fez uma abordagem no mínimo inusitada. Depois de informar que é estudante e que estava pedindo dinheiro para comprar comida para sua família, ele disse: “Quero reais”. Candice deu-lhe 10 reais (cerca de 1.720 pesos) e ele, espoleta que só vendo, saiu comemorando.

O jornalista e editor de livros Everardo Leitão (casado com a simpática paraguaia Nancy), observando a cena, vaticinou: “A Argentina cai e se levanta. Depois, cai de novo e, mais uma vez, se levanta. É a síntese de sua história”. Me parece ter razão. Num sebo, li trechos de um livro que conta que um argentino, riquíssimo, patrocinou a construção do edifício da Escola de Frankfurt, na Alemanha. Coisa de argentino. Os argentinos, não só os portenhos, são gente aguerrida.

Pobres dormem numa estação do metrô de Buenos Aires, em maio de 2024; eles “fogem” do frio | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

O diplomata brasileiro Guillermo Rivera Botovchenco, com quem me encontrei no Caffé Tabac, na magnífica e ampla Avenida Libertador, afirma que “servir” na Argentina é sua melhor experiência (trabalhou na Colômbia, em Camarões e nos Estados Unidos). “Buenos Aires e o povo argentino são magníficos”, resume. Ele mora no país do poeta Oliverio Girondo com sua mulher e dois filhos. “Somos felizes na nação da prosadora, poeta e pintora Silvina Ocampo.”

De tão enturmado, Guillermo Rivera (filho de uma professora aposentada da UFG — uma intelectual brilhante) curte assistir jogos dos clubes argentinos nos estádios, mas, diplomaticamente, disse — ao saber de minha preferência pelo Boca Juniors — não torcer para nenhum time da primeira divisão. O diplomata está lendo “A Fome Vermelha — A Guerra de Stálin na Ucrânia” (Record, 584 páginas, tradução de Joubert de Oliveira Brizida), de Anne Applebaum. “Estou na fase das leituras de não-ficção.”

(Ouço de motoristas de Uber e garçons que os campeoníssimos River Plate e Boca Juniors não vão nada bem. Os dois melhores, no momento, são o Estudiantes e o Velez Sarsfield. O campeão nacional é o primeiro. Encontrei torcedores do San Lorenzo e do Independientes. Ao menos dois argentinos, na Feira do Livro, disseram que há corrupção no futebol argentino. Um deles citou explicitamente o San Lorenzo.)

Na Rua Jorge Luis Borges, em Palermo, onde nos hospedamos (1.500 reais por sete dias) — ficamos num apartamento alugado via Airbnb —, encontro com Julio sentado na porta de uma unidade do Carrefour Express. Ele conta que veio do interior para a capital — onde é mais fácil conseguir algum dinheiro, como pedinte, para comprar comida. “Se a vida está difícil na capital, o sr. imagine nas províncias. Não há dinheiro circulando e as empresas — muitas fecharam, às vezes por causa da pandemia da Covid — não estão contratando.”

Os preços estão elevados para os brasileiros e, claro, muito mais para os argentinos. A mesma camiseta com a estampa da Mafalda, de idêntica marca, pode custar 10 mil pesos (58,47 reais) numa loja e 21 mil pesos (122,78 reais) em outra. Os dois estabelecimentos ficam em San Telmo — a cem metros um do outro. São os preços livres de Milei? Não. É mera exploração da pressa do turista.

Livro sobre Marina Tsvietáieva sai a 418 reais

 Na Feria del Libro de Buenos Aires, realizada no gigantesco parque de exposição agropecuária — a Rural —, apesar dos descontos de 10% e de algumas promoções, os lançamentos estão muito caros. Assim como nas livrarias. Algumas dão desconto de 10% para professores. No sebo Dickens pedi desconto e recebi um sonoro “não”.

O livro “Memorias — Mi Vida con Marina: 1896-1991” (Hermida Editores, 1210 páginas, tradução Olga Korobenko e Mar Sánchez-Nieves), de Anastasía Tsvietáieva, custa impraticáveis 418,62 reais (71.671,91 pesos). Meu cartão de crédito ameaçou saltar de minha carteira, mas dei-lhe um pito (não aceso, diria Pedro Gomes): “Meu filho, só tenho dois rins”. Eu até entregaria a gordura de meu fígado, mas nenhum dos rins, nem mesmo o que tem um cisto de quase dois centímetros. O fato é que, mesmo com um valor tão alto, quase comprei um exemplar. Por causa da notável poeta Marina Tsvietáieva.

No Brasil, no site da Livraria Travessa, o livro “Churchill — Caminhando com o Destino” (Companhia das Letras, 1200 páginas, tradução de Denise Bottmann e Pedro Maia Soares), de Andrew Roberts, sai por um preço bem menor: 144 reais (no site da editora, o valor é um pouco maior: 169,90). A diferença entre os dois valores é de 274,62 reais (estou comparando com o livro sobre as russas).

Juan Manuel Bonet escreveu um belo e valioso livro — “El París de Cortázar” (Editorial RM, 206 páginas). Editado em Barcelona, o livro sai por 211,62 reais (36.235,29 pesos). As fotografias, algumas coloridas, certamente colaboraram para o aumento do preço da obra. Ainda assim, é muito cara. Na Librería Eterna Cadencia (uma das minhas preferidas), um livreiro, muito bem informado sobre literatura, me disse que os leitores reclamam do valor. “Levam porque é bom e, ao mesmo tempo, bonito. Mas todo mundo protesta”, admite. No Brasil, mesmo com fotografias, o livro sairia por cerca de 90 a 110 reais.

As quatro melhores e mais atualizadas biografias de Hitler foram escritas pelo britânico Ian Kershaw, pelo irlandês Brendan Simms e pelos alemães Peter Longerich e Volker Ullrich.

“Hitler — Solo el Mundo Bastava” (Galaxia Gutenberg, 912 páginas, tradução de Victória Eugênia Gordo del Rey), de Brendan Simms, custa 111.526 reais (25.300 pesos). No Brasil, “Hitler” (Companhia das Letras, 1024 páginas, tradução de Pedro Maia Soares), de Ian Kershaw, sai por 149,90 reais. Isto significa que, apesar de cara, a edição argentina é mais barata que a do pesquisador inglês. O livro de Peter Longerich ainda não foi lançado em português e em espanhol — só em alemão e em inglês (“Hitler — A Life”). Saiu no Brasil o primeiro volume de “Adolf Hitler — Os Anos de Ascensão: 1889-1939” (Amarilys, 984 páginas, tradução de Renate Müller, Karina Janini e Petê Rissatti), de Volker Ullrich. Na Amazon é vendido por 99,80 reais.

O historiador austríaco Raul Hilberg (1926-2007) era o que se pode chamar de exército de um homem (pesquisador) só. “A Destruição dos Judeus Europeus” (Amarilys, 1664 páginas, tradução de Carolina Barcellos, Laura Folgueira, Luís Protásio e Mauricio Tamboni) é o livro incontornável — talvez o único — sobre o Holocausto. É uma obra-prima da historiografia sobre a Segunda Guerra Mundial, notadamente a respeito da Shoah.

A história de como pesquisou e escreveu o livraço está na obra “Memorias de un Historiador” (Arpa, 249 páginas, tradução de Àlex Guàrdia Berdiell). Mergulhado em milhares de documentos, Raul Hilberg fez uma pesquisa tão meticulosa e original que muitos, por não entendê-la, não quiseram publicá-la. Até a grande Hannah Arendt boicotou-o. Custo: 116,36 reais. Caro pelo número de páginas, mas valioso como diamante para o cérebro.

Nas memórias, Raul Hilberg fala de sua família judaica, quase toda tragada pelos campos de extermínio de Adolf Hitler, Heinrich Himmler, Hermann Göring e, entre outros, Adolf Eichmann. O historiador relata que só pôde entender a amplitude do Holocausto ao estudar a sério as minudências das estruturas administrativas do nazismo, como sua relativamente complexa e (por vezes, escorregadia) meticulosa burocracia. Para combater o mal é preciso não apenas atacá-lo. É preciso compreendê-lo nas suas filigranas.

O epílogo das memórias de Raul Hilberg é de autoria de Florent Brayard, autor do excelente “Auschwitz — Investigación Sobre un Complot Nazi” (Arpa, 575 páginas, tradução de Javier García Soberón). A pesquisa do historiador francês, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, é elogiada por Ian Kershaw (“um livro relevante que deveria ler qualquer pessoa que queira se aprofundar na compreensão do Holocausto”), Robert Paxton (“analisando com atenção documentos contemporâneos, Brayard concluiu que a implementação da Solução Final foi ocultada inclusive de alguns líderes nazistas, como Goebbels”), da Universidade Columbia, Michael Marrus, da Universidade de Toronto, e Dan Michman, diretor do Yad Vashem.

Encontrei um livro fabuloso na Librería Guadalquivir: “El Hombre Que Salvó a Primo Levi” (Crítica, 398 páginas, tradução de Lara Cortés), de Carlo Greppi. Traduzo um trechinho da contracapa: “Em ‘É Isto um homem?’, Primo Levi escreveu: ‘Devo a Lorenzo o fato de ter sobrevivido’. Mas quem era Lorenzo? Lorenzo Perrone é a peça do quebra-cabeça da biografia de Primo que nos faltava conhecer: um trabalhador da construção civil piemontês que vivia em frente à vala de Auschwitz III-Morowitz. Um homem, quase analfabeto, que, durante seis meses, levou um prato de sopa para Levi”. O químico, que ainda não era escritor, estava desnutrido. Lorenzo morreu em 1952, tragado pelo alcoolismo e pela tuberculose. “Primo Levi nunca o esqueceu”, diz o autor da obra.

Nós temos em português “História da Literatura Hispano-Americana” (Editora UFRJ/Francisco Alves, 420 páginas), da extraordinária pesquisadora Bella Jozef.

O escritor, crítico e tradutor César Aira nos brinda com uma versão atualizada do excelente “Diccionario de Autores Latinoamericanos” (Paidós, 703 páginas). É impressionante o vasto domínio que tem da literatura dos países da América Latina. São citados do Brasil, entre outros, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos (relata que morou numa cidade de Alagoas chamada Pernambuco. Estaria errado? É possível. Pernambuco, afinal, é um Estado), Guimarães Rosa, Carlos Drummond de :Andrade, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz, entre muitos outros. Os comentários são pertinentes. Há, claro, problemas — “esquecimentos”. A argentina Mariana Enriquez, a equatoriana Mónica Ojeda e o cubano Reinaldo Arenas (um autor respeitado por Harold Bloom) foram, digamos, “apagados”. Por que não são “canônicos” num dicionário tão amplo, que tem espaço, por exemplo, para a quase esquecida, no Brasil, Dinah Silveira de Queiroz?

A Feria del Libro de Buenos e as livrarias merecem um texto à parte (que escreverei). Primeiro, numa feira superlotada, merece registro a educação dos argentinos. Para passar, pedem “permiso” e, se esbarram na gente, pedem “perdón”. Segundo, há, é claro, uma quantidade de livros extraordinária. O estande da Waldhuter — que, por causa da pandemia da Covid, fechou a livraria e se tornou apenas distribuidora — é o melhor da feira (que acaba na segunda-feira, 13). Há livros de excelente qualidade publicados na Argentina, na Espanha (Barcelona e Madri) e no México.

As livrarias argentinas são muito boas — ainda assim não consegui “Un Carmen em Granada — Memorias de un Hispanista Dublinés”, as memórias de Ian Gibson (o notável biógrafo de García Lorca), “La Cara Oculta del Desmificación de un Herói Romântico”, do escritor cubano Jacobo Machover, “El Holocausto Asiático — Los Crimenes Japoneses en la Segunda Guerra Mundial”, de Laurence Rees, “Némesis — La Derrota del Japon: 1941-1945”, de Max Hastings, e “Habla Terrena”, de Frank Stanford.

As três livrarias que mais aprecio em Buenos Aires são a Eterna Cadencia, Libros del Pasage e Guadalquivir. Há outras, como El Ateneo (a mais bela e turística), a Yenny, a Cúspide (seu acervo é ótimo e variado), a Librería del Fondo (mexicana, mas não há uma biografia de Octavio Paz) e a Clásica y Moderna. Não fui à Galerna Libros, à Falena (na Chacarita) e à Dain Usina Cultural. Desta feita, não me entusiasmei com a Livraria de Ávila, mas comprei um livro de Púchkin, edição de 1955, e a biografia de Heine escrita por Max Brod. Relativamente baratos — na faixa de 10.000 pesos (58,46 reais). Os sebos argentinos são de primeira linha, com promoções. Há livros de qualidade no valor de 15 a 25 reais.

O “gobierno” do presidente Javier Milei

O que os argentinos pensam sobre o Brasil? Não sei, pois não tive acesso a pesquisas. Aqueles com os quais conversei não sabem onde fica nem o que significa Goiás.  

Todos falam do Rio de Janeiro. O jovem Agustin, que trabalha na cafeteria Benigno, em Palermo, disse que foi ao Rio uma vez e ficou impressionando com a beleza das mulheres. Porém, tímido, disse que não namorou nenhuma.

Um motorista de Uber me disse ser torcedor do Santos e fã número um de Pelé (quis me agradar? É possível). Mas acrescentou que ninguém driblava tanto e tão bem quanto Maradona. Ele também aprecia Messi. Falei de Tostão e ele não entendeu. Chegou a perguntar se tinha a ver com dinheiro. Esclareci que era o parceiro de Pelé na Copa de 1970. “Claro”, sumarizou.

Perguntei como sabia tanto de Pelé e ele esclareceu: “O YouTube é uma maravilha. Está tudo lá, as jogadas, os gols. Pelé era um jogador inteligente. Um craque”. Inquiri: “Usted, torce para quem na Argentina?” Redarguiu: “Para o San Lorenzo, que não está nada bem. Para piorar, os melhores jogadores argentinos vão para a Europa muito jovens”. Ele riu muito quando eu disse que tenho apreço pela garra do Boca Juniors. “Então, usted é hincha do Boca?”, perguntou e, depois, deu uma boa risada, sobretudo quando eu disse: “Ninguém é perfeito”. “O Boca é o Flamengo ou o Corinthians da Argentina?”, quis saber. É provável que sim, falei.

Como já estava chegando ao ótimo Caffé Tabac, frequentado por diplomatas, sobretudo americanos, perguntei: “Como vai o governo de Javier Milei?” Ele não titubeou: “Una mierda”. Brinquei: “Isto tudo?” Ele gargalhou, entendendo minha brincadeira. “Mas não torço contra, não. Não votei no kirchnerismo, e sim contra Milei, que percebo como um Carlos Menem mais preparado intelectualmente, porém menos experiente em termos políticos. Se mantiver o ‘controle’ do dólar, até pode estabilizar a economia. Porém, se não conseguir, o país vai explodir”.

A despeito da crítica, o ex-estudante da celebrada Universidade de Buenos Aires, a UBA — não se formou, porque seus interesses eram “variados” —, sublinhou que torce pelo sucesso do governo de Milei. “O seu fracasso será uma bomba para todos nós, não apenas para os mileristas. Antes, eu pensava: Milei vai cair nos primeiros seis meses. Agora penso: talvez caia depois de dois anos. Mas também pode não cair. Será que seja retirado do poder pelo voto dos eleitores”.

Ao sair do Tabac, onde tomei café sem açúcar — arte que aprendi com mi amada Candice —, chamei um motorista de aplicativo. O motorista do Corolla (modelo antigo, mas bem conservado) informou que estava estacionado nas proximidades do estabelecimento. Olhei bem e, de repente, vi que havia um táxi do outro lado da rua. A placa era a mesma descrita pela Uber. Então, me aproximei. O taxista disse: “És o ‘Éuler’?” Ele me contou que é motorista de táxi e de Uber. “Para ganhar um pouco mais.”

Mario Antonio tem 65 anos (parece ter mais) e se aposentou — jubilou-se — depois de 47 anos de trabalho. “Comecei cedo.” Ele foi sindicalista e conta que viu muitos “rolos” de seus companheiros de jornada. Ele votou em Javier Milei para presidente.

“Votei em Milei por exclusão. Durante dezesseis anos, votei nos kirchneristas, como Néstor e Cristina Kirschner, e no peronista Alberto Fernández. Agora, optei pelo câmbio [mudança]. Não dava mais. O kirchnerismo transformou a corrupção numa espécie de instituição. Eu estava cansado”, postula Mario Antonio. “Tenho esperança de que, com Milei, o país melhore.” E a história de que o presidente conversa com cachorros, inclusive com um que já morreu? “O argentino leva, no geral, na brincadeira. Mas sei de gente bem normal que conversa com seus perros.”

O taxista-uberista esclarece que o kirchnerismo é a facção dominante do peronismo na Argentina. “Na verdade, o kirchnerismo, desde Néstor e chegando à sua mulher, Cristina Kirschner, se tornou uma espécie de novo peronismo.”

Mesmo admitindo que os pobres continuam vivendo mal, Mario Antonio sugere que “a corrupção cessou”. Inquirido sobre a educação e a saúde, não hesitou em apresentar explicações. “A educação já foi melhor. Além das greves, em algumas escolas não há aulas todos os dias. Os professores faltam.” A educação é pública, como no Brasil, mas muitos pais preferem colocar os filhos em escolas particulares.

A saúde “funciona relativamente bem”, assinala Mario Antônio. É similar ao SUS. Ouvi várias pessoas sobre o assunto. A maioria diz que o atendimento é “bom” em alguns hospitais e “razoável” em outros. Mas todos admitem que tem a vantagem de o sistema ser “gratuito” e “universal”.

Por causa da crise, Mario Antônio vendeu sua loja, mas tem três apartamentos alugados. Orgulha-se de ter formado os dois filhos. Um é economista e o outro é contador. “São independentes e bons rapazes.” Por que dirige táxi-Uber? “Para ter ‘efetivo’ [dinheiro] todos os dias. É um complemento.”

Pergunto ao taxista: “Vi, num vídeo da Gabi [ex-atriz da Globo], que mora em Buenos Aires, que há muitos automóveis batidos em Buenos Aires e que as pessoas não os consertam. Qual é o motivo?” Mario Antonio explica: “Primeiro, o conserto é caro, inflacionado. Segundo, há o problema crônico da falta de peças”. O brasileiro Marcelo, casado com uma argentina, confirma: teve de comprar peças no Brasil para colocar no seu Pálio.

Há mulheres dirigindo Uber em Buenos Aires, como a simpática Maria Rita e a sisuda Carla Gimena. O Uber não é caro em Buenos Aires. Viagens para distâncias mais curtas saem, no geral, por 14 (2.390 pesos) a 15 reais. Do apartamento (quarto, sala e cozinha) onde ficamos, em Palermo — quase ao lado da majestosa Rural —, até o aeroporto, o Aeroparque, pagamos 4.800 pesos (28,03 reais).

Na Feira do Livro, dois livreiros, em circunstâncias diferentes, enfatizaram, com veemência, que Milei não se preocupa com os pobres. “Os peronistas podem ter defeitos, como todos têm, mas pelo menos se preocupam com os pobres, com aqueles que ficaram para trás”, frisou um deles. “Milei vai tornar os pobres mais pobres e os ricos mais ricos. Será o resultado de sua política em defesa do mercado”, afirma o outro, mais jovem, estudante universitário.

Pedro Cubano, até por ser estrangeiro, não quer falar em “on” sobre o governo de Javier Milei. Depois de trocar mil reais para mim (torrei tudo na Livraria Cúspide, na Recoleta), disse: “Não tenho entusiasmo. Mas, como a Argentina é minha ‘casa’, tenho de torcer a favor, claro.”

Notei que muitos eleitores de Milei não são exatamente de direita e não fazem discursos ideológicos radicalizados. São, em regra, indivíduos que se cansaram do longo tempo da família Kirschner e epígonos no poder. Falam, com frequência, da corrupção desmedida do grupo de Cristina Kirschner. “Votei em Milei depois de ter votado em Cristina Kirschner e Alberto Fernández. Acho que eles se ‘cansaram’ dos argentinos e nós nos ‘cansamos’ deles. Tudo o que Milei fizer será lucro”, afirma Gonzalo Ricardo. Ressalto que está há apenas cinco meses no governo.

César Alberto discorda: “Milei está dizendo, desde o início, que vai governar para os mais ricos. Suas políticas são anti-povo”.  

José vende livros usados — poucos (Candice adquiriu um exemplar para ajudá-lo) — numa rua nas proximidades do Café London City, onde Julio Cortázar apreciava escrever. É um belo café — “turístico”, como dizem os antenados moradores de Baires. “Rosé” conta que era dono de uma pequena loja, mas quebrou e, para comer, pegou livros de sua biblioteca e está vendendo num calçadão. Ele relata que não tem comprado roupas e sapatos. Porque não sobra nada. A inflação “come” tudo. “Crise”, “paro general” (paralisação geral) e “inflação” são as palavras, digamos assim, up to date em Buenos Aires.

Na Feira do Livro ouvi uma professora da UBA e uma doutora pela UBA. As duas criticaram o governo de Milei de maneira acerba. No meio acadêmico, o capitalismo — um capitalismo radicalizado, a serviço do mercado, mais do crescimento econômico do que do desenvolvimento — defendido pelo presidente é duramente criticado. É uma aposta na exclusão, e não na inclusão social — sugerem os críticos do gestor nacional.

 “La Nacion” é visto por alguns intelectuais como uma espécie de porta-voz do presidente “anarco-capitalista” — na verdade, um liberal ultraortodoxo. Verifiquei: há críticas a Milei no jornal (uma delas sugere que é lunático). O “Clarin” teria uma cobertura mais distanciada, quer dizer, crítica. Mas o “Clarin” foi um dos críticos mais contundentes do “cristinismo-kirchnerismo”. “Página 12” — no qual escreve a escritora best-seller argentina Marina Enriquez, uma estrela — é anti-Milei, sem meias palavras.

O Jardim Botânico, os cafés e os vinhos

Vegetariana convicta, Candice é apaixonada pela natureza. Por isso andamos por todo o perímetro do Jardim Botânico de Palermo. Além da beleza, as árvores, algumas “anciãs”, são tão altas que parecem dialogar com o Céu, quiçá pedindo clemência a Deus — mas não aos seres humanos — para continuar existindo. Longilíneas e fleumáticas, as magníficas palmeiras parecem nos dizer algo sobre a solidez da natureza.

As árvores, as flores, as borboletas e os pássaros (sabiás; um dos pássaros é parecido com o João de Barro, mas é, salvo engano, menos escuro. Vimos outros, que não conheço) são belos. O problema são os pernilongos, que, maiores do que os “brasileiros”, queriam nos devorar.

O Jardim Japonês é belíssimo, mas, com aquele jeito arrumadinho, que parece feito para turista bater fotografias e enviar para amigos e parentes pelo Instagram, Facebook e WhatsApp.

Vinhos são, em regra, baratos. Um DV Catena Malbec Malbec custa 13 mil pesos (75,93 reais) nos supermercados. O Angelica Zapata vale 20 mil pesos (116,82 reais). O El Enemigo — que um enófilo paraguaio, amigo de Everardo Leitão, diz ser “ótimo” — e o La Posta Armando Bonarda são um pouco mais caros (na faixa de 130 e 140 reais).

No capítulo das “velhas novidades”, comprei Crush e Mirinda. Para matar saudade. Na década de 1970, eu e Eliane, minha irmã, adorávamos tomar Crush (quem pagava era o primo João Fagundes, que trabalhava na área de contabilidade e morreu jovem). A Crush argentina é meio amarga e não aprovei. A Mirinda é mais agradável ao paladar.

Os cafés da Argentina — La Biela, Tortoni, London City, El Gato Negro, Le Pain Quotidien, Tabac — são famosos e celebrados. Como já conheço os que mais atraem turistas, optei pelos relativamente mais baratos — os argentinos acham até estes caros (mas os cafés e os restaurantes estão sempre cheios — e não apenas de turistas). Só um cafezinho custa entre 2.200 (12,85 reais) e 3.000 (17,52 reais) pesos. Sobe para 4 mil pesos (23,36 reais) se o cliente acrescentar duas medialunas (que são deliciosas, assim como os croissants). Uma medialuna sai por 800 pesos (4,67 reais). Como são pequenas, o corriqueiro é o cliente comer aos menos duas.

Uma pizza média custa 10.000 pesos (58,4 reais). Uma boa refeição (come-se sempre bem na Argentina; na carne sempre coloco um pouco mais de sal) sai de 13.000 (75,92 reais) a 20.000 pesos (116,81 reais).

O metrô (subte) é baratíssimo, pelo menos para nós, brasileiros: 125 pesos (0,73 centavos brasileiros).

Muitos pobres pedem dinheiro para comprar comida — vários dormem nas estações de metrô e em agências bancárias que têm caixas eletrônicos. Faz frio: entre 10 e 13 graus à noite. Numa galeria, na Rua Jorge Luis Borges, voluntários serviam sopa para várias pessoas. Na fila de cerca de 50 pessoas havia muitos velhos, a maioria bem-vestida, e alguns jovens. Dei uma empanada para uma senhora, que, ao me agradecer, sorrindo, exibiu a boca desdentada.  

A pobreza é uma invenção de Milei? Não é. É um problema secular da sociedade argentina — pré-governo do político da direita. Mas, se o presidente não tiver um olhar para os pobres, é certo que a miséria tende a aumentar. A retomada do crescimento econômico não significa necessariamente desenvolvimento.